O PLURALISMO RELIGIOSO: O DIÁLOGO ENTRE AS RELIGIÕES NA PERSPECTIVA DE JOHN HICK Quem poderá dizer se em outra manjedoura. Lá no alto, sobre a Láctea Via, Não pode ainda balançar o Rei dos Céus Num outro Natal, de Cristo o dia? Sydney CARTER “De onde poderia então surgir a solitária e estranha presunção de que o Todo Poderoso, de cuja proteção dependiam milhões de mundos, deveria deixar de zelar por todo o resto e vir morrer em nosso mundo, só porque se diz por aí que um homem e uma mulher comeram uma maçã? E, por outro lado: temos nós de supor que cada mundo dessa criação sem limites tinha uma Eva, uma maçã, uma serpente e um Redentor? Neste caso, a pessoa que é irreverentemente chamada de Filho de Deus, e ás vezes de Deus em pessoa, não teria nada a fazer exceto viajar de mundo a mundo, em uma sucessão infinita de mortes, dificilmente passando por um intervalo momentâneo de vida”. Tom PAINE - The Age of Reason INTRODUÇÃO John Hick representante significativo da primeira versão do pluralismo apresenta intrigantes questões que vêm colocar a público, na sua ótica, o caráter não-absoluto do cristianismo. Este teólogo evangélico de grande prestígio, proveniente da tradição presbiteriana da Igreja da Inglaterra tem publicado extensa obra sobre Teologia e dentre estas: An interpretation of Religion (1989); Essays in the Philosophy of Religion (1973);God has many names (1980); The myth of God Incarnate (1977); A Christian Theology of Religions (1995); The metafor of God Incarnate (1993); The Fifh Dimension (1999) e a obra onde propôs “uma verdadeira revolução copernicana na teologia” publicada em 1973, “God and the Universe of faiths” 1 de superação do cristocentrismo pelo teocentrismo. Troca esta que implica uma abertura da questão teológica “e indica uma proposta de superação das reflexões desenvolvidas no âmbito e um cristocentrismo inclusivo e aberto”. 2 John Hick questiona as razões que dão ao cristianismo a presunção de ter caráter absoluto e chama atenção para as conseqüências práticas que esta presunção teórica da superioridade cristã3 traz para a consecução de um diálogo religioso. Dentro desta linha de reflexão Hick trata das tradições religiosas universais e lança a considerações o fato de que estas religiões estão aí não para serem combatidas e eliminadas mas que têm um grande potencial de contribuição para modificar tanto o homem individualmente como a sociedade inclusive oferecendo maior compreensão de Deus aos próprios cristãos. Em quatro capítulos, resumidamente, tentarei mostrar a reflexão teológica de John Hick sobre a questão da Encarnação de Deus e a presunção de superioridade salvífica do cristianismo e o que esta presunção ocasionou e ocasiona hoje de forma mais “delicada” no diálogo religioso entre outros efeitos. CAPÍTULO I A QUESTÃO DO DEUS ENCARNADO A principal tese histórica defendida por Hick em seu livro “The Myth of God Incarnate” publicado em 1973, e que produziu grande agitação, é que a história formidável da encarnação é uma criação da Igreja e segundo o autor naturalmente nada 1 -Citado em TEIXEIRA, Faustino, Teologia de las religiones, p. 57. - Idem. 3 -TROELTSCH, Ernst no seu famoso livro O caráter Absoluto do Cristianismo coloca como foco o que sempre foi próprio do cristianismo até recentemente, e que problematizou o relacionamento com outras religiões , a questão da presunção cristã de ser Cristo/ EvangelhoCristão/o Cristianismo “absoluto”, “único” “final” , “normativo” e “último” fazendo-o resolutamente superior a todos os outros mediadores da salvação, evangelhos e religiões. Este dogma implícito veio a ser alvo de sérios questionamentos até pelo próprio Troeltsch, que antes de morrer criticou sua posição anterior e optou por outra bem diversa da anterior “que o cristianismo é ‘ absoluto ’para os cristãos, e que as outras religiões universais são igualmente ‘ absolutas’ para seus adeptos”. 2 tinha de novidade, o novo é que deveria ser abertamente reconsiderada., uma vez que mesmo Jesus jamais disse ser a encarnação de Deus. Vários teólogos ao versarem sobre este tema da encarnação expressam um amplo consenso de que o Jesus histórico em nenhum momento ensinou, ele próprio, que era Deus ou que era a segunda pessoa da trindade divina. A idéia é de contribuir de uma forma mais racional para o diálogo entre as religiões considerando que ao interpretar literalmente a encarnação além de equivocada, tal compreensão distancia o cristianismo das demais religiões, pois sendo “a religião criada por Deus” logicamente nada teria a aprender com as outras e seria certamente a única verdadeira e superior capaz de levar à salvação toda a humanidade. Hick, citando Sanders, 4 “Jesus pensava que o reino viria no futuro próximo e que Deus estava em ação de modo especial através de seu próprio ministério”. Neste contexto Jesus se via como o último profeta de Deus antes da chegada do reino. Jesus, assim foi identificado pelos seus seguidores primitivos como o novo ungido de Deus, descendente de Davi, o “Cristo” sem nenhum sentido divino. Cumpria o seu papel de “último mensageiro de Deus...”. Veio para proclamar o reino de Deus, que nessa expectativa deveria estar bem próximo. Entretanto na medida em que a segunda vinda de “Cristo” não acontecia foi-se gradualmente elevando Jesus dentro da igreja a “Cristo” “Filho de Deus” pré-trinitário e finalmente “Deus Filho” trinitário, segunda pessoa da SS. Trindade. “O profeta escatológico Jesus foi transformado, no contexto do pensamento cristão, no Deus Filho que desceu dos céus a fim de viver uma vida humana e salvar-nos por meio de sua morte reparadora”. Para Hick esta não é a forma correta de se pensar Jesus de Nazaré. A teologia por ser criação do homem sofre pressões e mudanças na medida em que o contexto social se adapta às novas situações. “Na verdade o corpo doutrinal está sempre em desenvolvimento por toda história cristã”. 5 A consciência global possibilitou um conhecimento mais solidário das outras tradições religiosas. Anuncia que estas tradições religiosas são totalidades únicas e que não é possível, de uma forma real, estabelecer uma ordem de valor, resultado de um consenso, para que nesta ordem sejam inseridas. É esta consciência que questionou o dogma da encarnação de Jesus. A cristologia de Hick acolhe dois primeiros dos seis sentidos característicos de uma teologia encarnacional cristã criteriosamente elaborados por Sarah Coakley 6: 1º- O envolvimento de Deus na vida humana. Deus conosco todo o tempo. 2º- Deus sempre envolvido com todos os homens e de uma forma particular e especialmente poderosa e afetiva envolvido na vida de Jesus. 4 -SANDERS, E.P.Jesus and Judaism. Londres: SCM Press; Filadélfia: Fortress Press, 1985, p.156-321. -HICK, John. A metáfora do Deus encarnado. 2000, p.18 6 -COAKLEY, Sarah. Neste seu livro Christ Without Absolutes (Oxford: Claredon Press, 1988) elabora seis sentidos em que se pode dizer que uma teologia cristã é encarnacional: 1° e 2º citados acima, o 3º sentido-Encarnação significando que Cristo assumiu a carne, crença na preexistência pessoal de Jesus a seu nascimento terreno de forma divina ou quase-divina; 4º - crença na interação total do divino e do humano em Cristo, aqui a revelação de Deus em Jesus é quantitativamente superior a outras; 5º- Neste vai mais além Jesus foi e será a única encarnação divina, no sentido anterior aqui ela é qualitativamente superior a todas e jamais será superada ; 6º-Equipara a cristologia encarnacional com a cristologia do concílio da Calcedônia. 5 Hick focaliza sua atenção para o 5º sentido da teologia da Encarnação que pode ser descrita como a ortodoxia padrão. Foi expressa como o dogma “em Jesus Cristo Deus entrou na história, assumiu a carne e habitou entre nós, numa revelação de si mesmo que é única, final, completamente adequada e totalmente indispensável para a salvação do ser humano” por H.H. Farmer, afirmado pelo papa e incorporado na base confessional do Conselho Mundial de Igrejas na sua mais recente formulação (1966): “O Senhor Jesus Cristo como Senhor e Salvador”. A essa interpretação literal da encarnação Hick se opõe, citando metáforas exemplares tal como a de Gandhi. 7 Com o seu livro ele pretende atingir grupos de leitores de dentro e de fora das Igrejas. 8 Na linha do pensamento de John Hick não há no Jesus histórico nenhuma solicitação de divindade nem intenção de fundar nova religião. O próprio Jesus que sempre apontou para “Deus” jamais se arvorou em ser o Filho de Deus e ser a segunda pessoa da Trindade divina. O pensamento cristão posteriormente criou doutrinas segundo as quais Jesus era a encarnação de Deus e a morte de Jesus um sacrifício divinamente planejado em favor dos homens, ele assim estaria pagando um resgate pelo pecado de Adão, estaria sofrendo para o bem de todos os homens que haviam herdado de Adão o pecado e, portanto, também a necessidade do perdão pela ofensa feita a Deus. A recomendação de Hick é que seja aceita como idéia metafórica a idéia da encarnação de Deus. Para ele, Jesus é um homem excepcionalmente receptivo à influência de Deus e que viveu na terra como um agente de Deus “encarnando” o propósito divino para a vida humana e assim corporificou, no contexto da época o ideal da humanidade, e ao fazer isto Jesus “encarnou um amor que reflete o amor de Deus”. Para Hick se a inspiração original de Jesus puder livrar-se da rede de teorias - acerca da encarnação, Trindade e reconciliação – que não encontram respaldo no moderno pensamento religioso, aquele conjunto de ensinamentos vividos pode continuar a ser uma fonte fundamental de inspiração para a vida humana. Evidenciado “o mito da encarnação” parte Hick para o teocentrismo. Jesus passa a ser constitutivo e normativo somente para os cristãos deixando de sê-lo para as demais religiões. Para Hick “parecerá arbitrário e irrealista continuar insistindo em que o acontecimento Cristo é a fonte única e exclusiva da salvação humana”. 9 Dessa forma abre espaço para uma reflexão pluralista onde o diálogo entre religiões fluirá com maior facilidade por um caminho então desobstruído da principal barreira construída pela presunção de superioridade do cristianismo. 7 - Citando Hick “quando Gandhi ao ser perguntado pelo conteúdo de sua mensagem, disse que sua própria vida era a sua mensagem , ele estava dizendo que sua mensagem era corporificada, encarnada, tornada visível em sua vida. Pois uma vida humana pode ‘encarnar’ ou veicular até o fim verdades e valores . Aqui a encarnação é metafórica”. A metáfora de Deus Encarnado, p. 25. 8 - O primeiro grupo formado de cristãos insatisfeitos e cheios de questionamentos sem respostas críveis ou significativas e o segundo grupo, bem maior constituído de pessoas que evadiram das igrejas ou nunca estiveram agregados a elas mas que se preocupam verdadeiramente com questões religiosas. 9 -HICK, John. O caráter não-absoluto o cristianismo”, p. 23. CAPÍTULO II O DOGMA DA SUPERIORIDADE SALVÍFICA ÚNICA DO CRISTIANISMO Sobre o tema da encarnação de Deus muitos estudiosos da religião têm se manifestado ora mantendo o absolutismo cristão ora abrindo a possibilidade de encarnações múltiplas divinas em outros lugares na terra e até em outros planetas10. John Hick em seu livro A Metáfora do Deus Encarnado discute e exclui a possibilidade de ser Jesus a única encarnação de Deus, o que de toda forma daria ao cristianismo uma supremacia sobre as demais tradições religiosas. Vista no sentido literal a encarnação daria ao cristianismo o status de ter sido a única religião criada pelo próprio Deus. Seria o único caminho para a salvação final. Mas, diferentemente da maneira como Jesus passou a ser visto pelo pensamento cristão após a sua morte, estudos recentes do Novo Testamento mostraram que o Jesus histórico não teria ensinado ou pensado que era a segunda pessoa encarnada da Trindade divina, ou como filho de Deus num sentido distinto do sentido hebraico familiar. Dentro deste significado, ser filho de Deus é ser um homem próximo de Deus e um instrumento dos seus propósitos. E se o próprio Jesus não se considerava Deus encarnado no sentido literal da palavra não deveria ser tão estranho para os cristãos que teólogos considerassem a encarnação como metáfora, segundo Hick. A cristologia de Hick acena como um alarme para alguns segmentos cristãos. Tomás de Aquino ao se colocar contra a encarnação universal disse: “isso diminuiria a dignidade do Filho de Deus encarnado, que é primogênito entre muitos irmãos” (Romanos 8, 29), e que é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a Criação” (Colossenses 1, 15). Dado o pressuposto de uma encarnação divina única as outras encarnações 11 seriam uma transgressão de sua unicidade. Segundo Hick o receio de alguns cristãos em adotar a cristologia da inspiração e admitir a metáfora da encarnação está no compromisso básico com a superioridade cristã, pois se cada uma das religiões mundiais considerasse como Deus encarnado o fundador/divino/humano e as tradições que se formaram à sua volta como se inspiradas pelo próprio Deus em pessoa, mesmo que estas e aquele assim não se considerassem, o dogma da superioridade salvífica única do cristianismo por si só não se manteria e estaria irremediavelmente comprometido. Na reflexão de Hick, e avançando na idéia das encarnações múltiplas seguir-seia que “quando se encarnou como Jesus, estava humanamente consciente daquele aspecto do divino que pode ser concebido em termos judaicos, a saber, do Pai celeste 10 -John. Hick cita Thomas de Aquino e o fato de não aceitar a hipótese de uma encarnação humana universal na qual cada homem e cada mulher é Deus encarnado, mas aceitar a possibilidade de outras encarnações do Verbo eterno. Também faz referência dentre outros a Quentin Quesnell que falando sobre o possível significado de existência de encarnações distintas da encarnação de Jesus o que seria “a encarnação do Verbo Divino num outro corpo e numa outra alma humanos, ambos diferentes, um com o outro, de um sexo e raça deferentes, em um país diferente, falando uma linguagem diferente e usando imagens diferentes para pregar e explicar a relação de Deus com a família humana. Cada uma dessas encarnações seria na verdade a mesma pessoa divina; mas cada uma possuiria uma mente humana diferente, uma vontade humana separada e uma consciência humana distinta.... cada uma teria um nome diferente”; a Thomas Morris que admite múltiplas encarnações divinas em mundos diferentes e assim ele não discordaria necessariamente de Brian Hebblethwaite para quem “somente um único homem pode efetivamente ser Deus para nós, se é que o próprio Deus é um só” e a Tom Paine no livro The Age of Reason sobre múltiplas encarnações de Deus. 11 - Tomás de Aquino não nega a possibilidade de que poderia haver uma pluralidade de outras encarnações, dado o imenso poder de Deus mas que se encarnou em Jesus , segundo determinação de sua incomensurável sabedoria no momento e no lugar mais adequados à satisfação de seus divinos objetivos. pessoal”. 12 Da mesma forma encarnando-se como Gautama Siddhartha, o Buda ou outra figura humana estaria consciente do aspecto divino escolhido e responderia conforme o contexto no qual estivesse inserido. Surgiria assim, segundo Hick, uma teologia das religiões com ênfase na natureza divina da Divindade, mais abrangente e mais eficaz para a salvação uma vez que ofereceria uma variedade de caminhos abertos por diferentes encarnações no decorrer da história da humanidade. Considerar a encarnação divina do modo metafórico continua Hick, abre-se espaço para se considerar, naturalmente, que os grandes lideres religiosos, exemplares de bondade e amor, “encarnaram” cada um a sua maneira “o ideal da vida humana vivida em resposta à Realidade divina”. 13 CAPÍTULO III A PRESUNÇÃO DE SUPERIORIDADE CRISTÃ E O DIÁLOGO RELIGIOSO No capítulo primeiro foi resumidamente exposta a linha de pensamento de Hick sobre a teologia cristã da encarnação. A encarnação tem um profundo sentido religioso para ele, mas não é entendida no sentido literal e metafísico em tampouco defendida teologicamente como simples mistério Para John Hick a encarnação é uma metáfora específica do cristianismo, tem origem na maneira cristã de replicar humanamente ao Real transcendente a que chamamos Deus . Ainda seguindo sua reflexão Hick aborda os “problemas” ocorridos nas relações entre cristãos e os povos negros, indígenas do mundo e judeus, advindos da pseudosuperioridade do cristianismo perante as outras denominações religiosas. Neste capítulo a atenção será voltada tão somente para os efeitos dessa posição no diálogo religioso, embora eles não tenham se limitado apenas a este campo. 14 Para analisar a questão da presunção de superioridade, Hick retorna à época medieval até mais ou menos o fim do século XIX. Período em que imperava um monopólio cristão da verdade e vida salvífica, expressos na máxima extra ecclesiam nulla salvus. Doutrina exclusivista equivalente à protestante que também preconizava: fora do cristianismo não há salvação. E tão convictos disto estavam que missionários foram enviados às mais longínquas paragens para captar almas e livrá-las da perdição eterna. O fato de o cristianismo dever se espalhar por todo o mundo subjugando povos e substituindo suas tradições não - cristãs era válido como uma pretensão virtualmente incontestável. De onde afinal saiu esta presunção de superioridade? Segundo John Hick não seria da linha da santidade, pois as grandes tradições religiosas têm também grandes “santos” na mesma proporção e qualidade. Da mesma forma não se pode buscar tal excelência na prosperidade econômica, uma vez que ela é produto da Ciência e Tecnologia, em nenhuma das tradições religiosas causou o nascimento da ciência 12 - HICK, JOHN, A Metáfora do Deus Encarnado, p. 135. - Id. p. 135. 14 - O anti-semitismo endêmico dos primórdios da civilização cristã até neste século. A colonização européia penetrando à força na África, na Índia, no Sudeste Asiático, na China, na América do Sul, Central e Ilhas do Pacífico. Segundo Morris “Generais como Havelock e Nicholson trucidavam seus inimigos na absoluta certeza de terem um mandato bíblico”. MORRIS, Heaven’s Command, p. 74 in Numem- JF, 1998. 13 moderna e o cristianismo, até pelo contrário, travou com ela luta ferrenha embora mal sucedida. Sua relação com a Ciência consiste tão somente no fato de que ele foi o primeiro a ser atingido pelo impacto dos novos conhecimentos e perspectiva empíricos. Igual reflexão Hick faz com relação à moderna explosão da tecnologia, com um volume e rapidez de informações até então impossíveis de se imaginar. O outro campo no qual o Cristianismo contemporâneo tem a presunção de ter status mais elevado está na sua adoção dos ideais liberais modernos de igualdade e liberdade humanas expressos nas democracias governamentais. Estes ideais não são puramente cristãos, mas são o resultado de uma interação criativa de influências culturais. Isto é demonstrado pela história do Ocidente cristão poderosamente hierárquico, atacando decisivamente as primeiras idéias de direitos humanos, de liberdade e de igualdade tanto quanto o foi a ciência moderna no seu início. Nos séculos 18 e 19, principalmente, a convicção de que o cristianismo era de fato a religião verdadeiramente superior infundiu na expansão imperial do Ocidente um poderoso ímpeto moral e uma legitimação religiosa efetiva sem a qual certamente não teriam sido tais empreendimentos psicologicamente exeqüíveis. Para Hick, o principal fator que teria feito muitos pensadores cristãos do século XX abandonar gradualmente essa posição absolutista seria a moderna manifestação súbita de conhecimento sobre as outras tradições religiosas. Informações verdadeiras a respeito delas derrubando preconceitos e estereótipos ocidentais desinformados e hostis. Por outro lado o cristianismo não conseguiu transformar a humanidade para melhor, ao contrário o absolutismo cristão junto com a natureza humana ávida por posses materiais contribuiu e muito para a exploração e a opressão em grande escala. O Concílio Vaticano II (1963-1965) destacou e consolidou a nova posição religiosa que muitos teólogos católico-romanos já estavam assumindo há algum tempo. De modo mais brando este concílio repeliu a doutrina extra ecclesiam nulla salus quando declarou que existe salvação fora da igreja visível. A possibilidade de salvação foi estendida em princípio para toda a humanidade. Extensão que foi reiterada pelo Papa João Paulo II mais vigorosa no documento Redemptor Hominis de 1979, onde se manifesta que “o homem – qualquer homem sem exceção – foi redimido por Cristo. (...) porque com o homem – com todo e cada homem, sem qualquer exceção – Cristo está de certa forma unido, mesmo quando o homem não tem consciência disso”.15 Mas apesar dessas idéias o antigo entendimento da superioridade do cristianismo e a reivindicação tradicional da ultimacidade única da proclamação de Jesus continuam a existir. No passado esta reivindicação tinha formas explícitas: só o cristianismo possui o conhecimento total de Deus porque somente ele está baseado na auto-revelação direta de Deus e é seu veículo contínuo; o cristianismo é a única religião fundada por Deus em pessoa; o cristianismo tem a sua origem no ato salvífico de Deus na morte reparadora de Cristo e ele é o único que O proclama. Hodiernamente esta reivindicação é feita de modo menos manifesto e menos lesivo. Em Nutra Aetate a superioridade decisiva de Cristo/Evangelho/Igreja estava sutil e indiretamente subentendida. Em destaque o tema “A Igreja Católica não rejeita nada do que é verdadeiro e santo nestas religiões”. Todavia na Constituição Dogmática sobre 15 - JOÃO PAULO II, Redemptor Hominis, 1979. a Igreja declarou-se claramente que “Toda e qualquer bondade ou verdade que for encontrada entre elas [isto é entre ‘aqueles que sem nenhuma culpa própria não conhecem o Evangelho de Cristo e ‘ aqueles que sem culpa de sua parte, ainda não alcançaram um conhecimento explícito de Deus]’ é considerada pela Igreja como uma preparação para o evangelho.”. 16 Também um outro pronunciamento do Vaticano II assim se manifesta de forma ostensiva “Todos devem ser convertidos a Cristo assim como ele é pela pregação da Igreja. Todos devem ser incorporados a ele pelo batismo e à Igreja que é seu corpo”. 17 Continua, ainda que mais cuidadosa, no cerne da Igreja a superioridade do cristianismo e conseqüentemente a necessidade de se levar ao maior número possível de pessoas o conhecimento do Evangelho e a participação do “corpo” de Cristo, a Igreja, através de uma indispensável atividade missionária. Hick considera que, entretanto há um quase consenso surgido a partir da propensão de se deixar o antigo exclusivismo hoje geralmente chamado de inclusivismo. De acordo com ele: “Atualmente o pensamento cristão em sua maior parte realizou a passagem de um exclusivismo intolerante para um inclusivismo benevolente”. Mas ambos ainda se apóiam na “ultimacidade” do cristianismo. Nesta perspectiva um amplo diálogo com as demais religiões se torna problemático uma vez que cada tradição religiosa é considerada por seus adeptos portadora de verdade e portadora da salvação e de fato cada uma das tradições religiosas constitui totalidades complexas de respostas ao divino. Hick vê na visão católica de Jesus único, decisivo e definitivo o que mais embaraça o diálogo religioso. A conclusão é que nenhuma tradição religiosa pode se considerar superior às outras, pois se o fizer há que se considerar que o trabalho continuado da teologia será de modo intenso afetado. John Hick considera que persistindo este caráter de excelência do cristianismo a perspectiva de um diálogo religioso se torna cada vez mais distante. Para Hick Jesus não retém a exclusividade da mediação e sua reflexão quer afastar a errônea, a seu ver, interpretação totalitária da superioridade de Jesus de Nazaré a bem do universo religioso. Analisando a presunção de superioridade do cristianismo John Hick continua a sua reflexão ainda mais impactante sobre as três doutrinas centrais da trindade, da encarnação e da reconciliação. Há uma coesão entre elas. Do ponto de vista jurídico Jesus tinha que ser Deus. Nesse sentido a reparação tem que ser proporcional ao prejuízo. Se a ofensa foi a um Ser divino - o pecado humano contra o Criador-somente um sacrifício de valor divino poderia satisfazer de modo conveniente. E sendo Jesus Deus, a Divindade tinha que ser uma Trindade ou pelo menos uma (binity) dualidade. Mas o pensamento cristão foi além e incluiu uma terceira pessoa: o Espírito Santo, colocando a presença divina na vida humana após de Jesus. Vários teólogos ao versarem sobre este conjunto de doutrinas expressam um amplo consenso atual de que o Jesus histórico em nenhum momento ensinou, ele próprio, que era Deus ou que era a segunda pessoa da trindade divina levando uma vida 16 17 - CONCÍLIO DO VATICANO II, Constituição Dogmática, cap.2. - Idem, Decreto sobre a Atividade Missionária (Ad Gentes) p. 7. humana. Jesus não se afirmou Deus – Filho. Jesus talvez tenha se aplicado um dos dois títulos que a tradição judaica lhe oferecia: Messias ou Filho do homem e em nenhum destes casos implicava em ser Deus. O título de “Filho de Deus”, inicialmente significava um servo especial de Deus, mas com a expansão do Evangelho mundo pagão do Império Romano, “essa poesia foi transformada em prosa e a metáfora viva foi congelada em um dogma rígido e literal”. 18 Segundo Hick o que é mais possível é que o linguajar mais antigo do Novo Testamento exprimia uma “cristologia de inspiração”, percebendo Jesus como um profeta cheio do Espírito de Deus. 19 E é nesse sentido que a encarnação de variadas maneiras e num continuum diferenciado aconteceu e continua a acontecer em muitas pessoas diferentes. A cristologia da inspiração é para John Hick mais compatível com a idéia da trindade “que afirma três maneiras distintas na qual o único Deus é experimentado como agindo em relação a nós e é conseqüentemente conhecido como criador, redentor e inspirador. Não são, neste sentido, as três pessoas três centros diferentes de consciência, mas três aspectos principais de uma natureza divina única.”. (John Hick). Também a teoria da reconciliação recebeu outra interpretação, Hick cita passagens dos Evangelhos que mostram a única condição para o homem ser perdoado de seus pecados: perdoar aos que o ofendem. Um perdão que é dado mediante o pagamento total da dívida, como no caso de Cristo, não é perdão , é quitação. Portanto a análise de cada uma destas doutrinas mostra o caminho para o pluralismo. Pluralismo que requer não um rompimento radical com a tradição cristã, mas uma ampla abertura e a compreensão de que Deus está em outras tradições. E a conclusão que advém daí é que o cristianismo não é o único caminho para a salvação, que Deus está onde se busca a justiça humana e que Deus é fonte de vida e de sentido tão autenticamente para mulheres quanto para os homens. CAPÍTULO IV A ENCARNAÇÃO DIVINA COMO METÁFORA A linguagem metafórica é uma forma de discurso em que as palavras usadas fogem do seu sentido exato, rigoroso. Portanto diferente da linguagem usada nos dicionários. O significado da palavra metáfora vem da sua idéia central derivada do grego “metaphorein,” “transferir”. É, pois uma transferência de sentido. Para Hick nós falamos metaforicamente na mesma proporção que o fazemos literalmente. Antes de Nicéia (325) e Calcedônia (451) a referência a Jesus era feita numa linguagem “devocional, ou extática, ou litúrgica (ou as três), e não um exercício de formulação teológica precisa”. Era uma linguagem com exageros, mas sem a intenção de literalidade. Mas a palavra “encarnação” começou a ser usada nos termos do prólogo do Evangelho de João - “E o Verbo se fez carne” - latinizado como “incarnatus”, 18 - HICK, John “O Caráter não-Absoluto do Cristianismo. Numem: revista de pesquisada religião, Juiz de Fora, v.1, p.38”. 19 - Em teólogos católicos pioneiros como Karl Rahner, Edward Schillebeeckx e Hans Küng, Hick encontra vestígios de sua Cristologia de Inspiração. Estes teólogos católicos participam embora de uma forma velada e prudente da idéia de um Jesus humano cheio do Espírito de Deus. “encarnação” adotado oficialmente pela Igreja. Dessa forma Jesus era “verdadeiramente homem e verdadeiramente Deus” no sentido literal da palavra. A essência do cristianismo é que Jesus é Deus. A partir daí Hick tece argumentos sobre esta doutrina e como não pode aceitá-la nos moldes cristãos. Citando G.L. Prestige20 declara que o pronunciamento de Calcedônia não ofereceu nenhuma razão positiva e convincente da fé que fosse isenta de falhas. Deixava inexplicável o mistério existente no fato de como poderia um mesmo ser incorporar ao mesmo tempo duas naturezas com atributos tão incompatíveis entre si. Dentre outros arrazoados Hick alega que se a mente de Jesus é divina, como o faz crer a Igreja não é possível a nós humanos seguir-lhe o exemplo de homem genuíno. Conclui também que a cristologia calcedoniana não pode de “nenhuma maneira religiosamente aceitável, ser traduzida em termos de uma teoria literal” 21, embora declare não ser tal conclusão definitiva. A tese de Hick é que “não se constatou que a doutrina cristã da encarnação possuiria qualquer sentido aceitável enquanto hipótese literal.”. A cristologia adotada por Hick é a da inspiração ou do paradoxo da graça que lhe parece uma boa interpretação do significado religioso de Jesus, manifesto convenientemente pela metáfora da encarnação divina. Com o passar do tempo a “aura de sentido indefinível” colada à metáfora teve grande aumento na imaginação cristã ao se associar à compreensão calcedoniana e literal da encarnação. Muito tempo se passou até que se começasse a perceber que a encarnação de Deus em Jesus é metafórica e não física, psicológica ou metafísica de caráter literal. Diante deste resultado indaga-se sobre a diferença que isso irá fazer à proporção que nas igrejas essa percepção avança. Hick, reiterando sua posição, pondera que o ônus “da justificação” compete a quem alega e, portanto compete à ortodoxia tradicional elucidar de maneira compreensível a doutrina sobre a encarnação. Segundo este teólogo é possível fazer isto sem renunciar ao cristianismo continuando a desenvolver uma autocompreensão cristã mais acordada com situação global dos tempos atuais, então alguns cristãos passarão a perceber “Jesus, de modo coerente com isso, como um homem excepcionalmente aberto à presença divina, e que desta forma encarnava em um grau levado o ideal da vida humana vivida em resposta ao Real” 22 e muitos outros continuarão na mesma posição tradicional23. Na percepção de John Hick, entretanto, ainda que em pequena proporção, há um movimento contínuo em direção a uma visão global, rumo a uma reverência por outras culturas e tradições religiosas. Entre os cristãos que partilham desse olhar global considera-se com freqüência que o cristianismo é apenas uma dentre as várias percepções diferentes do divino e que Jesus foi “um grande profeta humano e servo de Deus”. 20 - PRESTIGE, G.L. God in Patristic Thought. Londres: Heinemann, 1936, p. 279. - HICK, JOHN. A metáfora do Deus Encarnado. P. 145. 22 - Idem, p. 204. 23 - Para FRANÇA MIRANDA, Jesus como Filho de Deus é portanto o único e universal mediador da salvação. Para ele e demais defensores desta reflexão teológica o cristão sob pena de perder a sua própria identidade como cristão tem que se manter fortemente atrelado no que se constitui o cerne de sua fé – Jesus é salvador, e não somente mediador normativo mas também constitutivo da salvação. 23 - Ibidem, p. 205. 21 Questionar a encarnação é por conseqüência questionar a doutrina da Trindade dela derivada. Sendo Jesus, Filho-de Deus, Deus na terra subentende-se a existência de Deus no céu “de maneira que a teologia cristã exigia pelo menos uma ‘binidade’ e quando o” o Espírito Santo-num primeiro momento indiferenciado do espírito de Jesusfoi acrescentado como uma hipóstase distinta a‘binidade’ tornou-se trindade”. 24 Mas em Hick não há necessidade de coisificar estas formas em três pessoas distintas. Para ele o cristianismo é uma fé histórica devido à doutrina da encarnação e que revela a presença de Deus em meio aos homens. Citando H. H. Farmer,” Deus é inistorizado”. Todavia também o judaísmo, o islamismo e o sikhismo vêem o Deus agindo na terra e de forma diferente também o hinduismo que percebe Deus no mais íntimo de seu ser. Assim há várias formas de retratar a “inistorização” de Deus. Levando adiante sua reflexão, se só Jesus for Deus encarnado a existência de um pluralismo de encarnações é totalmente descabido, sem sentido e apenas há lugar para o exclusivismo “só Jesus salva”. E, hoje, para a grande maioria de teólogos cristãos inclusivistas ou pluralistas não há fundamento para tal afirmação. A idéia tradicional da encarnação trás o entendimento de serem os cristãos detentores de “um privilégio glorioso”. 25 Privilégio representado pelo conhecimento antecipado de Jesus, nos dias atuais. Para Hick “este escândalo do acesso restrito que vicia o que de outro modo seriam valores religiosos importantes da idéia de Jesus como Deus encarnado, (e que retorna mais uma vez)” desafia todo estudioso da religião interessado no diálogo religioso a lançar seu olhar para além a fim de perceber que a maior parte do mundo não é cristã, mas que pertence a outras religiões diferentes do cristianismo. O homem sobreviveu até hoje porque a mente humana tem capacidade de afinarse, mesmo que lenta e obstinadamente à realidade em constante mudança e Hick acredita que “um processo análogo à aceitação lenta e dolorosa da evolução ocorrerá com a aceitação de que o cristianismo é apenas uma entre a pluralidade de respostas humanas à realidade divina”. 26Esta aceitação, “quase inevitável” do pluralismo religioso pelos cristãos, segundo Hick, pode acontecer de duas maneiras ou através da “desmitologização” 27 ou do reconhecimento do caráter mitológico do mito e em afirmar o seu valor positivo. Isto é, perceber um mito como um mito, como ele é realmente, um relato simbólico que passa de grupo para grupo e que natural e freqüentemente sofre alteração na sua forma original através do imaginário coletivo. Mas mesmo para Hick é difícil aceitar o mito enquanto mito. O dogma da encarnação implica, pois, a superioridade do cristianismo e da civilização cristã o que é para muitos cristãos algo duvidoso e de acordo com Hick há uma falta de base histórica nos ensinamentos de Jesus para que tal asserção se mantenha. Nem sempre se enxerga com nitidez que o próprio Jesus não pode ter tido 24 - JOHN HICK. A metáfora do Deus Encarnado, p. 205. - Vernon WHITE, no seu livro Atonement and Incarnation, Cambridge (Cambridge University Press, 1991), escreveu sobre como os não cristãos poderiam se salvar e entrar no círculo restrito aos cristãos através de uma segunda chance em “outra vida futura”. Referiu-se ao “privilégio glorioso” que têm os cristãos de prescindirem desta segunda chance. 26 - John HICK, A Metáfora do Deus Encarnado. 27 - Desmitologização, idéia original de Rudolf BULTMANN e que consiste em retirar da crença cristã seus elementos mitológicos. Esta forma de aceitação do pluralismo religioso se desenvolve paralelamente a um movimento cuja origem está na Reforma alemã que se iniciou no século XVI, a “Reforma Radical” que hoje declara-se no movimento unitarista, primordialmente. 25 qualquer concepção a respeito dessas questões sobre sua natureza. Mais uma vez Hick manifesta-se a respeito do dogma da divindade de Jesus que se ele fosse compreendido não literalmente e com implicações universais, mas passasse a ser lido como um discurso metafórico dentro do cristianismo um grande obstáculo ao diálogo entre as religiões seria removido. CONSIDERAÇÕES FINAIS As observações embasadas de John Hick em profundos estudos teológicos sobre o entendimento cristão tradicional da doutrina da encarnação caem na formulação que ele mesmo faz sujeitando a aceitação do dogma a diversas respostas às questões condicionantes . Se Jesus foi Deus encarnado assim entendido de forma literal, porque não se autodenominou dessa maneira? Não seria certo que se fundou uma nova religião não haveria de querer que ela substituísse as outras? Se Jesus fundou uma religião nova e verdadeira, não deveriam ser seus seguidores, cristãos e membros do corpo de Cristo que é sua Igreja, espiritualmente melhores do que os que estão fora dela? Entre muitas outras de semelhante pertinência. Tais reflexões junto às outras aqui citadas tentam ampliar e aprofundar a discussão sobre o pluralismo religioso de forma a se aceitar as grandes religiões como caminhos de salvação. Hick, é profundamente criticado por teólogos inclusivistas dentre outros J. Ratzinger, atual papa Bento XVI e França Miranda que caracterizam sua reflexão como relativista embora não possam tais críticas tirar de suas conclusões a razoabilidade que elas expõem . Hick tenta despertar uma necessidade maior de se fazer uma releitura da doutrina tradicional do cristianismo não para reduzir a importância de Jesus e nem retirar dele o caráter divino mas para reaproximar as grandes religiões e promover um melhor entendimento entre elas para o bem do mundo todo. De forma diversa, se se continuar a entender a encarnação divina de forma literal tendo em Jesus Cristo o único e definitivo mediador da salvação as “portas” continuarão fechadas e as chaves lançadas no profundo lago das discussões radicais não irremediavelmente perdidas, mas com toda certeza encobertadas durante muitos anos de incompreensões fatais à humanidade e ao planeta.