Metabolismo dos corpos cetónicos 1- Durante o jejum a glicemia diminui induzindo diminuição da libertação de insulina nas células β dos ilhéus de Langerhans. Nos adipócitos, a descida da insulinemia provoca aumento da actividade da lípase hormono-sensível (hidrólise dos triacilgliceróis) e consequente libertação de ácidos gordos para o sangue. Nestas circunstâncias, a maior parte dos tecidos (nomeadamente os tecidos muscular esquelético e cardíaco) utiliza os ácidos gordos como combustível preferencial poupando glicose. Contudo, no cérebro (por razões desconhecidas [1]) a oxidação dos ácidos gordos tem um papel irrelevante do ponto de vista energético. Embora o combustível preferencial do tecido cerebral seja a glicose, à medida que o tempo de jejum aumenta, o cérebro passa também a usar como combustíveis os ácidos D-β-hidroxibutírico (CH3CHOHCH2COOH) e acetacético (CH3COCH2COOH) que são formados nas mitocôndrias do fígado por oxidação incompleta dos ácidos gordos. 2- Por razões de tradição os ácidos D-β-hidroxibutírico e acetacético e a acetona (CH3COCH3) são colectivamente designados de corpos cetónicos. No plasma sanguíneo a concentração dos corpos cetónicos pode variar entre valores tão baixos como 0,1 mM (após uma refeição contendo glicídeos) e tão altos como 6 mM (jejum prolongado) ou mesmo 12 mM (diabetes tipo I). A acumulação de corpos cetónicos no plasma sanguíneo chama-se cetose e deve-se a aumento na velocidade da sua síntese (cetogénese). 3- No homem, a cetogénese ocorre nas mitocôndrias do fígado sendo o substrato para a formação dos corpos cetónicos a acetil-CoA formada durante a oxidação em β dos ácidos gordos. À via metabólica em que se forma o acetoacetato também se chama ciclo do hidroximetilglutaril-CoA (HMG-CoA) ou ciclo de Lynen. Por acção catalítica sucessiva da tiólase (equação 1) e da síntase do HMG-CoA três resíduos de acetato (2C) da acetil-CoA dão origem ao resíduo β-hidroximetilglutaril (6C) da HMG-CoA (equação 2). A clivagem deste último composto por acção da líase do β-hidroximetilglutaril-CoA (equação 3) leva à formação do acetoacetato (4C) e acetil-CoA. A equação 4 é o somatório das equações 1-3 e mostra que o processo pode ser globalmente entendido como a formação de uma molécula com 4 carbonos (acetoatetato) a partir de dois resídeos acetilo (2C) do acetil-CoA. 2 acetil-CoA acetil-CoA + acetoacetil-CoA + H2O HMG-CoA 2 acetil-CoA + H2O ↔ acetoacetil-CoA + CoA → HMG-CoA + CoA → acetil-CoA + acetoacetato → acetoacetato + 2 CoA (1) (2) (3) (4) 4- Parte do acetoacetato formado pode converter-se nos outros dois corpos cetónicos. O ácido βhidroxibutírico (4C) forma-se por acção catalítica da desidrogénase do D-β-hidroxibutirato (equação 5) enquanto a descarboxilação do acetoacetato (com formação da acetona) é não enzímica (equação 6). acetoacetato + NADH acetoacetato ↔ D-β-hidroxibutirato + NAD+ → acetona + CO2 (5) (6) 5- A acetona não sofre metabolização no organismo e é eliminada nos pulmões e na urina. Os ácidos D-βhidroxibutírico e acetacético não são utilizados como combustíveis pelo fígado. O seu transporte da mitocôndria para o citoplasma e do citoplasma para o espaço extra-celular envolve a actividade de simporters protão-monocarboxílatos [2]. Vertidos pelo fígado na corrente sanguínea entram em todas as células do organismo (via simporte com o protão) constituindo, juntamente com os ácidos gordos, os combustíveis preferenciais dos tecidos extra-hepáticos durante o jejum. O D-β-hidroxibutirato é uma espécie de fundo de saco metabólico: a enzima que no fígado permite a formação de D-β-hidroxibutirato (ver equação 5) é a mesma que, nos tecidos extra-hepáticos, permite a sua metabolização; no fígado, a desidrogénase do D-β-hidroxibutirato catalisa a formação de D-β-hidroxibutirato a partir de acetoacetato mas, nos tecidos extra-hepáticos, catalisa a sua oxidação e a consequente formação de acetoacetato. A metabolização do acetoacetato implica a sua “activação” a acetoacetil-CoA numa reacção de transferência de CoA em que o substrato dador é o succinil-CoA. Ao contrário do que acontece no fígado a conversão de succinil-CoA em succinato no ciclo de Krebs (que implica a acção catalítica da sintétase de succinil-CoA: succinil-CoA + GDP + Pi ↔ succinato + CoA + GTP) pode, nos tecidos extra-hepáticos, envolver uma Página 1 de 3 transférase (a succinil-CoA-acetoacetato-CoA-transférase: ver equação 7) que catalisa a transferência do CoA do succinil-CoA para o acetoacetato. O acetoacetil-CoA formado sofre cisão tiolítica (equação 1) e o acetil-CoA formado é oxidado, no ciclo de Krebs, a CO2. O papel biológico da succinil-CoAacetoacetato-CoA-transférase como uma enzima importante no processo oxidativo dos corpos cetónicos fica evidenciado pelo facto de não existir no fígado (que não consome corpos cetónicos) e existir nos tecidos que (como os músculos e o cérebro) podem consumir corpos cetónicos [3]. succinil-CoA + acetoacetato → succinato + acetoacetil-CoA (7) 6- A cetogénese aumenta durante o jejum e na diabetes tipo I porque, nestas circunstâncias, (i) há diminuição da razão [insulina]/[glicagina] que implica uma (ii) oferta aumentada de ácidos gordos livres ao fígado e uma (iii) diminuição da actividade de síntese de malonil-CoA cuja concentração baixa permitindo (iv) um aumento da velocidade da oxidação em β e da síntese de acetil-CoA (v) cuja oxidação só ocorre na exacta medida das necessidades metabólicas neste órgão. Para além disto, a diminuição da razão [insulina]/[glicagina] também (vi) estimula directamente o ciclo de Lynen estimulando a actividade da síntase da HMG-CoA [4]. 7- A diminuição da insulina durante o jejum (ou a sua ausência na diabetes tipo I) implica um aumento na lipólise no tecido adiposo. A hidrólise dos triacilgliceróis endógenos leva à libertação de ácidos gordos para o plasma sanguíneo e, consequentemente, o estado de jejum cursa com aumento da concentração dos ácidos gordos livres no plasma. Os ácidos gordos entram para as células do organismo (incluindo os hepatócitos) onde são activados a acis-CoA. A carboxílase de acetilCoA (acetil-CoA + CO2 + ATP → malonil-CoA + ADP + Pi) é inactivada por fosforilação dependente da cínase de proteínas activada pelo AMP (AMPK) [5, 6], inibida alostericamente pelos acis-CoA e a sua síntese é reprimida quando a glicemia e a insulinemia são baixas. A diminuição da razão [insulina]/[glicagina] leva à diminuição da concentração intracelular do malonil-CoA nos hepatócitos porque nesta condição há diminuição da actividade da carboxílase de acetil-CoA (via diminuição da transcrição, fosforilação dependente da acção da AMPK e inibição directa pelos acis-CoA). O malonilCoA, para além de ser um precursor na síntese de palmitato (lipogénese), é também um inibidor alostérico da carnitina-palmitoil transférase I. Em consequência da diminuição da concentração do malonil-CoA, ocorre aumento da velocidade da oxidação em β o que implica aumento da formação de acetil-CoA. No fígado, ao contrário do que acontece no músculo (onde o destino metabólico da acetil-CoA é a sua oxidação no ciclo de Krebs), um dos possíveis destinos metabólicos da acetil-CoA formada é a formação de corpos cetónicos. 8- Um dos destinos metabólicos da acetil-CoA é a sua oxidação a CO2 no ciclo de Krebs mas a velocidade com que a acetil-CoA é oxidada no ciclo de Krebs depende da velocidade de hidrólise do ATP. Um aumento do consumo de acetil-CoA que permitisse compensar o aumento da sua formação só poderia ocorrer se houvesse, simultaneamente, um aumento proporcional no consumo de ATP hepático. No fígado, o consumo de ATP durante o jejum e na diabetes de tipo I não permite a oxidação de toda a acetil-CoA formada durante a oxidação dos ácidos gordos e a remanescente, devido à presença das enzimas do ciclo de Lynen e à activação da síntase de HMG-CoA é convertida em corpos cetónicos. Por mecanismos onde se destaca a indução/repressão do seu gene, a glicagina activa e a insulina inibe a síntase da HMG-CoA. A cetogénese é um mecanismo que permite ao fígado oxidar grandes quantidades de ácidos gordos sem aumentar a velocidade de hidrólise do ATP e, ao mesmo tempo, converter os ácidos gordos aí chegados num combustível utilizável pelo cérebro. Página 2 de 3 9- A diabetes tipo I deve-se à incapacidade de produzir insulina por destruição das células β dos ilhéus de Langerhans. Na ausência de terapêutica adequada podem ocorrer situações de crise que põem em risco a vida do doente. Uma dessas situações é a cetoacidose cuja causa é um aumento anormal da produção de corpos cetónicos. O pKa dos ácidos acetacético e D-β-hidroxibutírico é, em ambos os casos, inferior a 5 o que explica que, ao pH do sangue, estejam predominantemente na forma ionizada; ou seja, aquando da sua formação estes ácidos orgânicos sofrem protólise gerando H+ e os respectivos sais acetoacetato e D-βhidroxibutirato. Os protões libertados levam a uma descida do pH do plasma sanguíneo (acidose). Uma equação que permite compreender o que se passa durante a cetoacidose do diabético é a que descreve o somatório dos processos de hidrólise da tripalmitina (por exemplo), da oxidação em β dos ácidos gordos (no exemplo, 3 palmitatos), da fosforilação oxidativa, da hidrólise do ATP e do ciclo de Lynen: tripalmitina (C51O6H98) + 21 O2 → 12 ac. acetacético (C4O3H6) + 9 H2O + glicerol (C3O3H8) 10- Algumas semelhanças entre a acumulação de ácido láctico durante o esforço muscular intenso e a cetogénese durante o jejum podem ser enfatizadas. Em ambos os casos ocorre (i) catabolismo incompleto de nutrientes (o catabolismo é incompleto porque, quer aquando da formação do ácido láctico, quer aquando da formação dos corpos cetónicos, o ciclo de Krebs e a fosforilação oxidativa não aceleram de forma proporcional à formação de piruvato ou acetil-CoA), (ii) acumulando-se intermediários do metabolismo que (iii) têm características ácidas e que (iv) são transportados através das membranas através da acção catalítica de simporters com o protão. Modificadas as condições que levaram à sua acumulação, (v) diminuem de concentração porque acabam por sofrer oxidação completa (ou, no caso do ácido láctico, também conversão em glicose no fígado). As diferenças referem-se aos órgãos onde se formam e onde são maioritariamente consumidos: no caso dos corpos cetónicos a formação é hepática e o consumo extrahepático; no caso do lactato a formação é extra-hepática e o consumo é maioritariamente hepático (ciclo de Cori). Também são diferentes os nutrientes de onde derivam: o lactato forma-se a partir da glicose e os corpos cetónicos a partir dos ácidos gordos. 1. Morris, A. A. (2005) Cerebral ketone body metabolism, J Inherit Metab Dis. 28, 109-21. 2. Halestrap, A. P. & Price, N. T. (1999) The proton-linked monocarboxylate transporter (MCT) family: structure, function and regulation, Biochem J. 343 Pt 2, 281-99. 3. Fukao, T., Lopaschuk, G. D. & Mitchell, G. A. (2004) Pathways and control of ketone body metabolism: on the fringe of lipid biochemistry, Prostaglandins Leukot Essent Fatty Acids. 70, 243-51. 4. Hegardt, F. G. (1999) Mitochondrial 3-hydroxy-3-methylglutaryl-CoA synthase: a control enzyme in ketogenesis, Biochem J. 338 ( Pt 3), 569-82. 5. Sim, A. T. & Hardie, D. G. (1988) The low activity of acetyl-CoA carboxylase in basal and glucagonstimulated hepatocytes is due to phosphorylation by the AMP-activated protein kinase and not cyclic AMPdependent protein kinase, FEBS Lett. 233, 294-8. 6. Winder, W. W., Wilson, H. A., Hardie, D. G., Rasmussen, B. B., Hutber, C. A., Call, G. B., Clayton, R. D., Conley, L. M., Yoon, S. & Zhou, B. (1997) Phosphorylation of rat muscle acetyl-CoA carboxylase by AMPactivated protein kinase and protein kinase A, J Appl Physiol. 82, 219-25. Página 3 de 3