O VALE DOS BICHOS DE PEDRA Em Quixadá, no sertão do ceará, a natureza esculpiu rochas gigantes e coloriu o céu com homens voadores por: Márcia Bizzoto, de Quixadá fotos: Daniel Carvalho GALINHA CHOCA A erosão acabou revelando conjuntos de rochas com formas pitorescas, muitas lembrando animais, como a Pedra da Galinha Choca. A imensidão vazia do sertão cearense é interrompida por uma pedra gigantesca que parece brotar ao lado da estrada. Logo adiante, outra, e mais outra. Parece que uma chuva de meteoros cuspiu rochas sobre a terra. É o sinal de que está perto a entrada para Quixadá, cidade cearense de quase 70 mil habitantes. O conjunto formado por aqueles rochedos, conhecidos como monólitos, não dá apenas nome à cidade quixadá, na língua tupi-guarani, significa "pedra de ponta curvada" -, mas tornou-se sua própria identidade e um meio de vida para a população. Afinal, em torno dessas formações, gira o turismo, atualmente o maior motor da economia local. A beleza singular das rochas às vezes se disfarça em inusitados formatos de animais. Do alto de um morro, uma imensa baleia observa a paisagem. Perto dali, uma foca gigante e, ao lado, uma enorme galinha de pedra. Espalhadas por um terreno inconstante, onde o verde predomina no inverno e apenas cactos e juazeiros sobrevivem ao verão, elas formam vales mutantes e escondem trilhas levando a cavernas e a paredões de até 90 metros que convidam para escalada e rapel. O AÇUDE DO IMPERADOR A cidade pacata se movimenta nos fins de semana ao redor do açude natural formado ainda nos tempos do imperador Dom Pedro II. A 5 quilômetros do centro de Quixadá, a Pedra da Galinha Choca é a mais famosa. Entre os nativos da cidade, corre a lenda de que seria a mãe de todas as demais rochas da re-gião e de que nem sempre esteve no mesmo lugar. É preciso caminhar 2,5 quilômetros para chegar até a base do paredão, e a paisagem que se vê lá de cima desperta as mais férteis imaginações. Há quem diga que já viu extraterrestres no imenso vale salpicado pelos monólitos. "Este lugar tem uma beleza tão mágica que inspira até história de duendes", brinca Adão Masera, militar aposentado que escolheu a cidade como lar. Dono de uma agência de turismo, hoje ele passa os dias guiando visitantes pelo sertão quixadense. Nesse cenário místico, as rochas também são responsáveis por garantir parte da água consumida na cidade, represada em dias de chuva. Dispostas em meia-lua, as pedras formam um açude natural, cuja única parede é uma barragem centenária, construída a mando de Dom Pedro II e tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Projetado em 1877, após uma grande seca que assolou a região, o Açude do Cedro levou 22 anos para ser concluído e grande parte do empreendimento foi realizado por mão-de-obra escrava. O reservatório dá origem a uma rede de canais de irrigação, a primeira construída no Ceará. Durante duas décadas, a obra foi motivo para a abertura de estradas e trouxe algum progresso para aquele pedaço do sertão. Hoje, o Cedro, com suas paredes imponentes contrastando com o sapê das casinhas que o rodeiam, é uma RAPEL QUASE URBANO Quixadá é toda cercada de rochas. Por todo lado há bons pontos para a prática de rapel. das principais atrações turísticas de Quixadá. Sua água também enche as panelas das donas de casa e dá de beber às cabras e às poucas cabeças de gado ainda criadas por ali. Em um lugar onde a temperatura média anual passa dos 26ºC, o açude é a diversão favorita da população. Nos finais de semana, as barraquinhas de comida montadas ao lado da barragem ficam movimentadas. A música se escuta longe, acompanhada pelo aroma da carne-de-sol. Quando a noite cai, sobra um céu estrelado para se apreciar da pracinha no centro da cidade, às vezes ao som da seresta de um restaurante ou de um trio de forró animado no quintal de alguma casa, onde a ordem é dançar descalço. Essa cadência da vida só é mesmo quebrada pelas visitas dos turistas. Todos os dias, jipes, camionetes e motos cortam o vale dos monólitos, destoando dos carros de boi que ainda circulam tranqüilamente, carregados com tonéis de água, pelas estradinhas acidentadas da área. Escolhidas para o Campeonato Cearense de Enduro e para desafios do Clube do Jipe, algumas trilhas passam por casas imponentes no meio de grandes cercados. São resquícios das fazendas que deram origem à cidade, nos idos de 1800, heranças de uma época em que o lugar florescia em campos de algodão. O mesmo clima quente e seco que expulsou os fazendeiros no século passado hoje atrai praticantes de vôo livre de todas as partes do mundo. Sede de inúmeras competições do esporte, como o Campeonato Internacional de Vôo Livre X-Ceará, Quixadá é conhecida por ter, ao lado da mineira Governador Valadares, as melhores correntes térmicas da América do Sul. LIÇÕES DE VÔO O instrutor Paulo Rocha Lima Filho foi contratado pela prefeitura para ensinar os segredos do vôo em asa-delta na Serra do Urucum. A convivência com o vai-e-vem dos voadores que invadem a cidade nos finais de semana despertou a paixão pelo esporte e se tornou fonte de renda e diversão para muitas crianças locais. Nesses dias, quando não têm que ir para a escola, elas sobem a Serra do Urucum para auxiliar os visitantes na preparação e no transporte de seus equipamentos. Desenroscam cordas, montam armações, providenciam capacetes e brincam com protótipos de asas-delta. Elder Silva Sousa rasga o pedaço de um panfleto, solta sobre a fogueira acesa no chão e observa com os olhos faiscando enquanto o papel flutua no ar por alguns longos segundos. "É a térmica gerada pelo calor do fogo que faz a folha voar por tanto tempo", explica o jovem de 19 anos, repetindo a teoria que aprendeu em oito anos de observação. Há dois anos, a prefeitura comprou duas asas-delta e encarregou o instrutor Paulo Rocha Lima Filho, com mais de 20 anos de experiência, a ensinar os moradores locais a voar. Elder, o irmão Edivandro e o primo Sidirlei, todos com a mesma idade, já estão prontos para participar de competições. Ao mesmo tempo, outros jovens recebem treinamento de técnicas de escalada ou são instruídos para trabalhar como guias pelas trilhas que conhecem desde criança. A soma dos interesses dos quixadenses ao potencial natural da região tem como objetivo transformar a cidade em pólo do turismo ecológico no Ceará. São ações que estão mudando a realidade no sertão. Quixadá já não depende dos humores climáticos e seus habitantes, não mais homens calejados pelo clima semi-árido, vêem à frente um horizonte amplo, repleto de oportunidades. Como tudo aconteceu Constituídos de rochas graníticas, os monólitos de Quixadá são típicas formações plutônicas. Segundo Benjamin Bley de Brito Neves, professor de Geotectônica da USP, eles foram formados a 10 quilômetros de profundidade na terra e vieram à tona após 580 milhões de anos de erosão. O clima semi-árido da região, com secas e chuvas curtas, mas torrenciais, é o responsável por esculpir as curiosas formas nas pedras. *Matéria publicada na edição #148 da revista Os Caminhos da Terra.