- Salesiano

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Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória - Iftav
Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo - FCSES
REDES
Revista Capixaba de Filosofia e Teologia
a. 8 - n. 14 - janeiro/junho 2010
Vitória-ES
FILOSOFIA e RELIGIÃO
ISSN 1679-4265
Redes: Revista Capixaba de Filosofia e Teologia
Redes - Filosofia e Teologia - 14.indd 3
Vitória
a.8
n.14 p.1-218
jan./jun. 2010
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© 2010 - Iftav/FCSES
Todos os direitos reservados. A reprodução de qualquer parte da obra, por qualquer meio,
sem autorização da editora constitui violação da LDA 9.610/98.
Redação (endereço para contato):
REDES
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Tel.: (27) 3223-1829 - Fax: (27) 3322-6795
E-mail: [email protected]
Capa: Edson Maltez Heringer
Revisão geral: Djalma José Vazzoler
Elaboração e revisão dos abstracts: Jussara Braz da Conceição
Editoração: Edson Maltez Heringer | 27 8113-1826 - [email protected]
Impressão: Gráfica Quatro Irmãos | 27 3326-1555 - [email protected]
Editora: Iftav/FCSES
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca da Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo
Redes: Revista Capixaba de Filosofia e Teologia. Ano Vitória, a. Vitória, a. 8, n. 14 (Jan./Jun. 2010). - Vitória : Iftav / FCSES, 2010.
216 p. ; 21,5 cm.
Semestral
ISSN 1679-4265
1. Filosofia - Periódicos. 2. Teologia - Periódicos. I. Instituto de Filosofia e Teologia
da Arquidiocese de Vitória - ES. II. Faculdade Católica Salesiana do Espírito
Santo.
CDU 1+2 (05)
Tiragem: 300 exemplares | Periodicidade: Semestral
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Sumário
APRESENTAÇÃO .................................................................................................7
A CRISE DA RAZÃO NA FENOMENOLOGIA ................................... 9-28
The crisis of reason in the phenomenology
Thana Mara de Souza
O QUEFAZER DO INTELECTUAL EM
TRÊS EXEMPLOS: ÁLVARO VIEIRA PINTO,
PAULO FREIRE E LEONARDO BOFF .................................................29-43
The tasks of the intellectual in three examples: Álvaro Vieira Pinto,
Paulo Freire and Leonardo Boff
Rodrigo Marcos de Jesus
A CONCEPÇÃO SEMÂNTICA DA VERDADE E A
TEORIA DA VERDADE-COMO-CORRESPONDÊNCIA ...............45-78
The semantic conception of truth and the theory of truth-as-correspondence
Renato Machado Pereira
RUBEM ALVES E A RELIGIÃO: UMA ANÁLISE
DA PRIMEIRA DA SEGUNDA FASE DE SEU
ITINERÁRIO REFLEXIVO . ....................................................................79-114
Rubem Alves and the religion: an analisis of the
first and second phases fo his reflexive route
Antônio Vidal Nunes
DER MENSCH UND SEINE OPFERRITUALE ..............................115-150
Humankind and its sacrificial rituals
Joachim G. Piepke
A CONCEPÇÃO DE DEUS EM IMMANUEL KANT
NA CRÍTICA DA RAZÃO PURA ..........................................................151-183
The conception of God in Immanuel Kant in the critics of pure reason
Ângelo José Salvador
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BIOÉTICA: DESAFIOS DO SÉCULO XXI .......................................185-203
Bioethics: challenges of the 21st century
Margareth de Oliveira Kuster
SÍNODO ARQUIDIOCESANO DE VITÓRIA DO
ESPÍRITO SANTO. Na fidelidade ao passado,
mas decididamente aberta ao novo .............................205-209
Archidiocesan Synod of Vitória in Espírito Santo.
In faithfulness to the past, but certainly open to the new!
Dom Luiz Mancilha Vilela
REVISTAS EM PERMUTAS ..................................................................211-214
NOTA AOS COLABORADORES .........................................................215-216
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APRESENTAÇÃO
A Revista Capixaba de Filosofia e Teologia (Redes), fundada em
2003, de circulação semestral, é fruto de uma parceria dos cursos de
Filosofia da Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo (FCSES)
e Teologia do Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de
Vitória (Iftav). O periódico foi concebido para estimular e difundir
a construção do conhecimento filosófico-teológico produzido pelos
professores e alunos dos citados cursos, bem como de pesquisadores
de outras instituições de ensino e pesquisa. O nome Redes conserva
a universalidade dos temas básicos da revista, que são filosofia e
teologia. O conhecimento é aqui pensado como entrelaçamento de
significações. “Rede” traz à tona as ideias de acentrismo, metamorfose,
heterogeneidade, multiplicidade, transdisciplinaridade. A Redes busca
a coerência entre a práxis dos cursos de Filosofia e Teologia, além
da integração multidisciplinar com diversas outras áreas do conhecimento, como as ciências da religião, incluindo aí vários recortes que
podem ser feitos no estudo do fenômeno religioso, destacando-se a
antropologia, a comunicação social, a história, a pedagogia, a psicologia e a sociologia.
Paulo Cesar Delboni
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A CRISE DA RAZÃO NA FENOMENOLOGIA
Thana Mara de Souza*
Resumo
Neste artigo pretende-se mostrar qual o papel que a razão analítica terá
no pensamento de Heidegger e Sartre. Contra Descartes, que estabelece a
razão como guia contra todos os erros e como solução para todas as crises,
Heidegger mostra que a certeza do cogito não é anterior à certeza do sum (da
existência), e que por isso esta não se restringe àquela: aqui a compreensão
aparece como anterior à razão, como aquela que possibilita qualquer espécie
de racionalidade. E se Sartre também entende o homem como imediatamente
no mundo, ainda pensa em termos de sujeito, e por isso precisará estabelecer
um papel positivo à razão, não à razão analítica, mas a uma razão dialética,
que tem como finalidade não chegar a verdades absolutas e eternas, mas
elaborar em termos teóricos a compreensão heideggeriana. Mostraremos,
portanto, como a razão perde o papel único e essencial que tinha na filosofia
de Descartes para se tornar, ela própria, fonte de uma crise; e, se ainda mantém algum papel na fenomenologia, é um papel coadjuvante, o de ajudar a
teorizar a compreensão do homem no mundo.
Palavras-chave: Razão. Crise. Descartes. Heidegger. Sartre.
Este artigo apresenta três momentos da razão na história da
filosofia.
O primeiro momento, que será apenas esboçado, servirá como
contraponto aos outros dois, nos quais a crise da razão aparecerá com
Professora do Departamento de Filosofia da Ufes e autora do livro Sartre e a
literatura engajada: espelho crítico e consciência infeliz. São Paulo: Edusp, 2008.
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força. Trata-se aqui de elencar as estruturas principais da filosofia
de Descartes, o papel que a razão adquire como único ponto fixo e
seguro que permitirá chegar às verdades indubitáveis e eternas. Não
estamos em um momento de crise da razão, pelo contrário, mas é justamente a crítica a esse papel fundamental da razão que será o ponto
de partida para as crises posteriores. Por isso mostraremos em termos
gerais como a razão se dá na filosofia de Descartes, a fim de melhor
compreendermos depois como a crise pode surgir dela.
O segundo momento será justamente a explicitação da crítica de
Heidegger ao privilégio dado por Descartes à racionalidade, ao conhecimento e ao pensamento. A partir da inversão da primeira verdade
cartesiana, Heidegger mostrará que a razão só é possível porque o
Dasein é compreensão de ser, abertura, um lançar-se ao mundo, revelando, nessa relação, a verdade, o sentido do ser. O papel da razão aqui
é totalmente subordinado ao papel ontológico da pré-compreensão,
e, embora ainda tenha espaço como manifestação particular da compreensão, ela não é tratada por Heidegger.
Essa crise da razão, crise que atinge o papel fundamental que tinha na filosofia de Descartes, é retomada por Sartre de uma maneira
totalmente outra que a de Heidegger – e é nisso que consistirá o terceiro momento. Embora com influência direta do filósofo alemão, e
mantendo o primado do ontológico sobre o ôntico, Sartre mantém a
noção de sujeito, e por isso também falará da noção de conhecimento,
de um conhecimento racional que se dirige às coisas, à história e ao
homem. Se a razão não pode mais ter o papel prioritário que tinha
em Descartes, se a razão analítica e lógica não pode mais servir como
único guia para a descoberta das verdades, ela não deixa de ter um
papel importante na compreensão da realidade humana. Junto com
a crise da razão analítica, há em Sartre a necessidade de pensar uma
razão outra, uma razão mais abrangente, que dê conta desse sujeito
que há muito deixou de ser coisa pensante.
Comecemos então com a filosofia na qual não há ainda crise da
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A crise da razão na Fenomenologia
razão, na qual, aliás, a razão se estabelece como único guia verdadeiro
para se sair de qualquer crise.
Nas Meditações sobre a filosofia primeira podemos perceber o caminho
de um filósofo em busca dos primeiros fundamentos para estabelecer
em algum momento algo firme e permanente nas ciências. Tal como
Arquimedes desejava um ponto firme e imóvel para remover a terra
inteira de seu lugar, Descartes deseja encontrar algo que seja certo e
inabalável para poder construir sua filosofia e sua ciência com bases
mais sólidas do que as que existiam até então.
Pensando não admitir nada que não fosse verdadeiro, absolutamente verdadeiro, que não aparecesse sob a luz natural, que não
fosse claro e distinto, Descartes inicia sua investigação eliminando os
sentidos e as falsas certezas, as ilusões das sensações que nos fazem
pensar que temos certeza quando só temos erro. Apenas o pensar
por meio de uma razão totalmente lógica poderá guiar o filósofo à
descoberta de sua primeira verdade, desse ponto fixo e imóvel a partir
do qual até mesmo a existência de Deus será provada, e que é justamente a certeza de que ele é, a de que ele pensa. Mesmo com todas as
dúvidas, e justamente por ser capaz de se colocar dúvidas, Descartes
descobre, como intuição clara e distinta, que algo duvida, que ele ao
menos consegue duvidar. A descoberta de que nem mesmo o gênio
maligno pode abalar a certeza de que algo duvida, de que, por meio
do pensamento, a dúvida é possível, faz com que a primeira certeza
seja atingida. Existe algo que pensa, e, por pensar, existe.
A partir de então, é o pensamento solitário de um homem que
não pode dizer ainda se tem corpo ou se vê coisas, que irá guiar racionalmente às descobertas de Deus e do mundo. A ciência só pode ser
construída por meio do que é claramente verdadeiro, ou seja, por meio
da adequação entre discurso e objeto, discurso e realidade. Logo no
título da terceira regra de Regras para a direção do espírito podemos ler o
seguinte: “No que respeita aos objetos considerados, há que procurar
não o que os outros pensaram ou o que nós próprios suspeitamos,
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mas aquilo de que podemos ter uma intuição clara e evidente ou que
podemos deduzir com certeza; de nenhum outro modo se adquire a
ciência” (DESCARTES, 1989, p. 18).
Temos, portanto, uma ciência certa e rigorosa, que, para atingir
a Verdade, deve abandonar a história dos erros da filosofia. Essa
ciência só pode existir por meio de uma racionalidade que apareça
como adequação, como intuição clara, que consegue perceber o que
Descartes chama de “luz natural”. Apenas com o olhar intelectual
atento e centrado, não atrapalhado pelas ilusões que as sensações
poderiam causar, é que o filósofo é capaz de observar essa luz natural. Só por meio de um método estabalecido racionalmente é que
se pode ver essa luz – naturalmente racional. Meditações feitas sem
métodos, meditações confusas, obscurecem a luz natural e cegam
os espíritos. Para realmente ver, para alcançar fundamentos verdadeiros que possam ser a base da filosofia e das ciências, é preciso
decidir-se pelo método de investigação, de meditação, que deve ser,
para Descartes, o uso atento e rigoroso da percepção clara e distinta
das coisas.
Apenas com essa percepção clara, com essa intuição evidente,
com a razão que sabe distinguir nitidamente o que é verdadeiro do que
é falso, é que Descartes conseguirá alcançar suas Verdades absolutas,
seus pontos a partir dos quais o mundo todo será movido, e até Deus
será provado. O conhecimento é quem leva à prova da existência do
homem como ser pensante, à prova da existência de Deus, e então à
prova da existência do mundo e do corpo.
Em todo o livro Meditações sobre filosofia primeira temos esse percurso da razão conhecendo, logicamente, as verdades indubitáveis, as
certezas a partir das quais a ciência pode se fundamentar, caminho esse
que é sistematizado anteriormente em Regras para a direção do espírito,
sistematização, aliás, que segue as ordens da matemática, da geometria e da aritmética. Trata-se, para Descartes, de seguir uma ordem
das razões, uma ordem racional, lógica e causal, que fará o homem
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conhecer uma primeira certeza clara e distinta para depois, com ela,
ampliar cada vez mais seus conhecimentos e suas verdades.
Aqui não há, portanto, nenhuma crise da razão. A crise aparece,
no início das Meditações, justamente porque ainda não se estabeleceu
esse método racional e lógico para alcançar verdades indubitáveis e
fixas, eternamente firmes como o ponto de Arquimedes. A possibilidade da loucura, do ceticismo, da crença em um gênio maligno só
tem poder enquanto o filósofo ainda não encontrou os olhos adequados para ver a luz natural: no momento em que a primeira certeza é
adquirida, em que o “penso, logo existo” é afirmado como verdade
indubitável, Descartes já tem ao menos uma arma contra esses medos
que não fazem mais sentido.
Com a certeza do “penso, logo existo”, do “cogito, ergo sum”, Descartes encontra seu ponto fixo e com ele move céus e terras, atinge
não só sua essência como também a essência divina e a realidade do
mundo e do corpo. O estabelecimento do pensamento como único
capaz de conceber um método racional e lógico para alcançar as
verdades aparece nessa filosofia como modo seguro de não cair no
erro da crise, da loucura, do ceticismo. A crise só é possível enquanto
não há razão, enquanto não há possibilidade alguma de se chegar ao
conhecimento certo e seguro. Mas a partir do momento em que a
razão, por meio de um conhecimento adequado, alcança uma verdade que seja indubitável, então a crise é posta de lado. Mesmo que ela
insista em voltar, a partir da primeira certeza já há um critério para
determinarmos o que é verdade e o que é erro, o que é certo e o que
é ilusão – e a crise não tem mais espaço nessa filosofia certa e segura,
em que a razão indubitável encontrou seu reto caminho.
A razão é a solução para as crises descritas no início das Meditações
sobre a filosofia primeira, e é isso que podemos perceber nessa afirmação
ao fim das Meditações: “As dúvidas hiperbólicas dos últimos dias devem ser rejeitadas como dignas de riso” (DESCARTES, 2004, p. 191).
Após encontrar as certezas, ao menos no campo teórico as dúvidas
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e os erros não têm mais poder nenhum, podem ser ridicularizados,
diminuídos.
A razão aparece, portanto, na filosofia de Descartes, como o
estabelecimento do fim da crise. Mas é justamente dessa razão, dessa
primeira certeza, que Heidegger irá desconfiar, e a crise, agora, passará
a ser não a descrença num ponto fixo e seguro que só a racionalidade
pode dar, mas justamente a crença nessa teoria do conhecimento, a
crença nessa verdade como proposição adequada que só a razão poderia fornecer. É o papel da razão que Heidegger pretende diminuir
em seu livro Ser e tempo, não a fim de fazer a crise retornar, mas de
fazer a solução da crise tomar um outro caminho, não mais da razão,
mas da compreensão, não mais do conhecimento, mas do ser.
Orientando-se historicamente, o propósito da analítica existencial
pode ser esclarecido da seguinte maneira: Descartes, a quem se atribui
a descoberta do cogito sum, como ponto de partida básico do questionamento filosófico moderno, só investiga o cogitare do ego dentro de
certos limites. Deixa totalmente indiscutido o sum, embora o sum seja
proposto de maneira tão originária quanto o cogito. A analítica coloca
a questão ontológica a respeito do ser do sum. Pois somente depois de
se determinar o seu ser é que se pode apreender o modo de ser das
cogitationes (HEIDEGGER, 2002, p. 82).
Uma das críticas de Heidegger a Descartes é o fato dele ter se
concentrado na questão do pensamento, e não da existência. Se sua
primeira certeza envolve tanto o pensar quanto o existir, era necessário
discutir, desde o início, esse “existo” que o filósofo moderno pensa
atingir apenas depois de provar a existência de um Deus bondoso
que não engana.
O que Heidegger propõe é justamente inverter o procedimento
cartesiano. Ao invés de partir da noção de conhecimento racional e
lógico para alcançar a verdade pensada como adequação e corres14
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pondência, o filósofo alemão irá partir do questionamento sobre o
sentido do ser, questionamento este que é feito necessariamente por
um ente, e por um ente que tem de estar no mundo, descobrindo seu
ser a partir desse mundo e dos entes intramundanos que ele não é.
O Dasein, ser-aí, é o ente privilegiado no questionamento e na busca
pelo sentido do ser, privilegiado, porque desvela, ao ser-no-mundo, o
mundo e a si mesmo como o ente que revela o ser.
E essa busca pelo sentido do ser, que se dá necessariamente na
existência, não se dá por meio do pensamento, da ordem das razões,
mas por meio da compreensão. Começando pelo lado oposto da primeira certeza de Descartes, pelo existo, e não pelo penso, Heidegger
estabelece outra relação entre os dois termos. Ao invés de o pensamento vir em primeiro lugar, é a existência que se dá de imediato, e
aparece não por meio de um conhecimento lógico e solipsista, mas na
própria vivência. O Dasein, em sua vivência, coloca em questão o seu
ser. É no mundo, sendo, que o ente se mostra como ser e questiona o
sentido mesmo desse ser. Não se trata, portanto, de questões abstratas e indiferentes à concretude da existência: é na própria existência
que a questão sobre o ser se coloca, é na relação com o mundo e a
instrumentalidade das coisas que o Dasein desvela o ser.
É nesse sentido que Heidegger descreve o que é o Dasein: além de
ser o ente privilegiado para a compreensão da questão do sentido do
ser, ele é o ente que se compreende em seu ser, mas se compreende a
partir de sua existência, e não a partir de uma essência qualquer que
fosse anterior à existência.
A compreensão se dá a partir de suas possibilidades próprias,
seja as que ele mesmo escolheu, seja as que lhe foram impostas. É na
concretude das ocupações do Dasein que se pode compreender as possibilidades escolhidas e sofridas – e é apenas porque já há uma certa
compreensão que se pode, depois, tematizar o que é possibilidade e
escolha. Há uma compreensão implícita em toda a vivência, em toda
existência, em toda relação com o mundo – e a ela Heidegger dá o
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nome de pré-compreensão. Em todo lançar-se do Dasein já há uma
espécie de compreensão do mundo, do Dasein e do sentido do ser.
Mas essa compreensão não exclui a pergunta explícita pelo sentido
do ser. Pelo contrário: é porque há pré-compreensão que a pergunta é
possível e deve ser feita. Sem a pré-compreensão, não haveria desvelamento possível, não haveria descoberta possível. Só porque o Dasein
já é pré-compreensão é que os questionamentos podem ser feitos.
Há, portanto, uma inversão da relação estabelecida por Descartes
em sua primeira verdade: não é porque penso que existo, mas é porque
existo que penso. A existência aparece de imediato ao Dasein, revelase como óbvia de início e é a partir dessa relação que surge clara e
distintamente a convicção de que qualquer pensamento é possível. Ao
invés de “penso, logo existo”, temos agora um “existo, logo penso”.
É a existência que se revela como originária, como a que permite o
questionamento sobre o ser, que não é feito por meio do conhecimento, mas sim da tematização da compreensão.
A compreensão heideggeriana não é sinônimo de conhecimento.
Assim como o Dasein não é o sujeito, sua relação com o mundo também não é a mesma da relação entre um sujeito e um objeto, relação
essa que torna, na maior parte das vezes, o objeto como inessencial em
relação ao sujeito. Essa é uma das críticas de Heidegger a Descartes:
ao se colocar a certeza do conhecimento no pensamento, na ordem
das razões, o mundo deixa de ser essencial e, para ter sua existência
comprovada, precisa antes provar que Deus existe. Se o conhecimento
é um ato exclusivo do sujeito, de um sujeito isolado pensante, não há
como diretamente garantir a existência tão óbvia do mundo.
Heidegger, interessado em compreender concomitantemente a
existência do Dasein e do mundo (influência de Husserl e sua noção de
intencionalidade, que foi, aliás, bastante desviada por Heidegger), não
se restringe à noção de conhecimento como juízo adequado, à noção
de verdade pensada como correspondência. Para ele, a relação entre
o Dasein e o ‘mundo’ é ontológica, é mais essencial, não se dá apenas
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por meio de um conhecimento solipsista. Trata-se de uma relação
necessária entre o Dasein e o mundo, um interligado ao outro, o Dasein
se compreendendo na medida em que é no mundo, na medida em
que se relaciona com os entes intramundanos, ou seja, com as coisas,
as utensilidades, os instrumentos que se tem à mão.
Não se trata de uma relação de conhecimento científico entre
sujeito e objeto, de uma relação de indiferença do primeiro com o
segundo – trata-se de uma relação necessária e fundamental entre o
ser-aí e o próprio aí, a facticidade, a concretude. O conhecimento, na
filosofia de Heidegger, deixa de ter a importância fundamental que
tinha na filosofia de Descartes. Ele continua a existir, mas deixa de
ser o fundamento de toda e qualquer relação do Dasein com o mundo.
Pelo contrário: o conhecimento, aqui, só é possível porque se fundamenta nessa relação mais essencial que é a da compreensão.
O fundamento da filosofia não é mais dado pela ciência e sua
ordem das razões: não é mais a razão quem combaterá a crise, mas a
crise está agora justamente no estabelecimento da razão como único
guia certo e seguro para se encontrar a verdade. Ao inverter a primeira certeza de Descartes, Heidegger critica o papel da racionalidade
e mostra que o fundamento da razão está na compreensão, que a
ciência, ôntica, tem de ter bases nas questões ontológicas. No lugar
do conhecimento, o ser. No lugar da razão, a compreensão. No lugar
de uma teoria do conhecimento, a ontologia.
A questão da verdade, da relação do Dasein com o mundo, deixa
aqui de ser uma questão de teoria de conhecimento – de como o
sujeito pode fazer afirmações certas e seguras sobre o objeto – para
ser uma questão de ser, portanto, uma questão ontológica, mas uma
questão ontológica que não pode ser feita senão na existência, no
modo como o Dasein se ocupa com os entes intramundanos e se
preocupa com os outros.
A ciência e a razão (e esta é guia da ciência) deixam de ser o ponto
fixo e seguro que Descartes pensava ter atingido e perdem, assim, o
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poder de mover o mundo e provar a existência de qualquer coisa, seja
do sujeito pensante, de Deus ou do mundo. A razão entra em crise
na filosofia heideggeriana, e seu papel, agora, é ser apenas um dos
modos de o Dasein se relacionar com o mundo, um dos modos de
compreender essa relação necessária.
A problemática ontológica adquire primazia sobre a problemática
ôntica, sobre a questão do conhecimento. A busca pelo sentido do
ser – projeto de Ser e tempo – não é feita de acordo com uma ordem
abstrata das razões, mas na própria existência, no momento mesmo
em que o Dasein se ocupa dos entes intramundanos. A compreensão
do ser se dá na cotidianidade, nas possibilidades que o Dasein escolhe
ou tem que vivenciar. Não se trata de ser como os entes simplesmente dados, mas de ter, em seu próprio ser, uma pré-compreensão do
sentido do ser, uma pré-compreensão da facticidade, da concretude
que o Dasein já sempre é.
É somente no mundo que o Dasein pode compreender e questionar seu ser. E é esse questionamento, possibilitado pela pré-compreensão, que o faz ser diferente do ente simplesmente dado, das
coisas e utensilidades que encontra dentro do mundo. O Dasein não se
encontra dentro do mundo, ele está em relação necessária com o mundo. Sem se confundir totalmente com o mundo, sem estar, portanto,
“dentro” do mundo, o Dasein também não se encontra totalmente
fora do mundo: é nessa relação que o Dasein se compreende, é nessa
relação que ele existe, e nela, portanto, que ele é.
De nenhum modo o Dasein pode ser pensado como um ente que
às vezes quer ter uma relação com o mundo – não se trata, na filosofia
de Heidegger, de uma escolha do Dasein. Ele é necessariamente relação
com o mundo, só é na medida em que está aí, em um certo espaço, lugar,
tempo. E o conhecimento, aqui, é um dos modos de o Dasein ser-nomundo: ele só é possível porque se fundamenta nessa relação essencial
do Dasein com o mundo, porque desde sempre o Dasein é abertura em
direção aos outros entes, é um lançar-se em direção ao factual.
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A crise da razão na Fenomenologia
O conhecimento é uma das maneiras que o Dasein tem de realizar a relação necessária com o mundo – e é uma maneira que só
é possível porque o Dasein, antes de tudo, é compreensão, ou seja,
é ontologicamente abertura, um lançar-se para fora de si mesmo, é,
enfim, desvelamento, mesmo e principalmente quando tenta velar
essa sua essência. “Conhecer é um modo de ser do Dasein enquanto
ser-no-mundo, isto é, o conhecer tem seu fundamento ôntico nessa
constituição ontológica” (HEIDEGGER, 2002, p. 100).
A compreensão, portanto, é uma constituição ontológica do
Dasein, e significa a abertura que o Dasein tem de ser: na pré-compreensão que é, na abertura e lançamento para fora de si, na relação
com o mundo, o Dasein é desvelamento do sentido do ser. A noção
de verdade como conhecimento adequado e a de conhecimento racional e lógico são derivadas da noção essencial, mais principal e mais
concreta, como é dito no início de Ser e tempo, de uma verdade mais
originária, da compreensão da abertura e desvelamento que o Dasein
é – e que seria a condição de possibilidade da verdade como juízo, do
pensamento tal como Descartes postula.
Assim como a relação entre Dasein e mundo é uma relação necessária, uma abertura que se dá a partir da compreensão que o Dasein
é, e não mais uma relação entre sujeito e objeto que se baseia em um
conhecimento lógico, a verdade não se restringe mais ao conhecimento, à correspondência entre o discurso do sujeito e a realidade
do objeto, mas passa a ser constituinte da própria essência do Dasein,
passa a ser e revelar o sentido do ser.
Em sua analítica existencial, Heidegger chega à conclusão de que
“o que se deve verificar não é uma concordância entre conhecimento
e objeto e muito menos entre algo psíquico e algo físico [...]. O que se
deve verificar é unicamente o ser e estar descoberto do próprio ente,
o ente na modalidade de sua descoberta” (HEIDEGGER, 2002, p.
286). E verificar o ser desvelado na própria ocupação do Dasein com
os entes simplesmente dados é colocar a questão ontológica como
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antecedendo a questão ôntica: é aquela que permite esta, é a existência
que permite o pensar racional lógico, e não o contrário, não uma razão
que atinge, abstratamente, a certeza da existência.
O conhecimento e a verdade passam a ser modos particulares
dos modos fundamentais que são a compreensão e a verdade como
alethéia, como desvelamento que se dá em toda ocupação, em toda
abertura que o Dasein é. Por estas questões serem ônticas, o conhecimento como proposição adequada só se torna possível porque há um
fundamento ontológico anterior, que é a relação necessária do Dasein
com o mundo, que é a pré-compreensão que se mostra presente na
ocupação e na preocupação que o Dasein não pode deixar de ser.
Na filosofia de Heidegger temos, no lugar da questão sobre o
conhecimento, a questão sobre o sentido do ser. No lugar da ciência,
da questão ôntica, temos a ontologia. E no lugar da razão como possibilidade da filosofia, temos a compreensão como estrutura essencial
do Dasein.
A razão deixa, portanto, de combater as possibilidades de crise,
como aparecia nas Meditações sobre a filosofia primeira. É seu papel que agora é questionado, e a crise passa a ser componente da própria razão. Ao
inverter a primeira certeza de Descartes, ao colocar o “existo” como originário, Heidegger postula uma outra relação do Dasein com o mundo,
uma relação que se dá de imediato e necessariamente, uma relação que
não passa antes por certezas indubitáveis, mas que se mostra presente
na própria ocupação, no próprio fato de o Dasein ser-no-mundo.
Ao criticar a primazia que Descartes dá ao penso no lugar do
existo, Heidegger enfatiza a existência como primeira constatação e
torna o pensamento racional derivado dessa relação original do Dasein
com o mundo. O fundamento da razão passa a ser a compreensão,
assim como o fundamento das questões ônticas passa a ser a questão
ontológica, assim como o fundamento do conhecimento passa a ser o
ser. A razão, sozinha, não é mais suficiente para se eliminar a crise: é
preciso compreender que a relação essencial não se dá mais por meio
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de proposições e juízos certos, mas na própria existência, no próprio
ocupar-se e preocupar-se.
E, de modo geral, podemos dizer que Sartre continua essa filosofia heideggeriana, reafirmando o primado do ontológico sobre o
ôntico, da compreensão sobre a razão, do ser sobre o conhecer. Mas,
por manter o sujeito que Heidegger abandona, por ainda estabelecer
como prioridade a existência de um sujeito, o filósofo francês tem de
dar uma importância maior à questão do conhecimento e da razão.
Embora ainda submetido à questão ontológica, que é o modo como
o Para-si necessariamente se relaciona com o Em-si, com o mundo,
o conhecimento ainda é um modo importante dessa relação.
Se Heidegger não precisa tratar com mais profundidade de uma
razão positiva, já que eliminou o papel forte do sujeito, tentando
justamente estabelecer uma relação totalmente distinta da relação
de conhecimento, Sartre, por manter o sujeito e a subjetividade, por
manter um sujeito separado do objeto, também trata da questão de
como conhecer esse objeto e o sujeito que conhece.
Em O ser e o nada podemos ver a ênfase na questão ontológica,
na compreensão do Para-si como relação necessária com o que lhe
falta, o ser, relação essa que só pode ser pensada na facticidade, no
mundo concreto das relações conflituosas com o outro. Mesmo que
esse Para-si não seja o Dasein de Heidegger, sua relação com o mundo
e com o ser se dá nos mesmos moldes do que mostramos brevemente
aqui: é por meio da própria existência que a essência se revela, é na
compreensão das atitudes do Para-si como nada de ser que deseja ser
completude que sua essência se desvela. A razão aqui aparece apenas
do mesmo modo como em Heidegger: através de uma crítica negativa.
A ela não é dado um papel fundamental, mesmo porque trata-se aqui
de questões ontológicas, e não ônticas. E, para o tratamento ontológico, é a compreensão da realidade humana que servirá como guia. No
entanto, o ontológico sartriano exige o ôntico, e, por isso mesmo, não
será possível não propor positivamente um papel à razão.
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Essas semelhanças não diminuem, porém, as diferenças radicais
que há entre Sartre e Heidegger. A manutenção da noção de sujeito,
se não elimina a possibilidade de pensar em termos de compreensão
e existência, não permite a Sartre ignorar um dos principais modos
desse sujeito se relacionar com os objetos e com os outros sujeitos,
que é por meio do conhecimento racional. E é com essa perspectiva
que Sartre irá escrever a Crítica da razão dialética.
Nesse livro temos o estabelecimento de uma razão que possibilita
melhor o conhecimento do próprio sujeito e de sua historicidade. Se
os objetos matemáticos podem continuar sendo conhecidos por meio
da razão analítica já ordenada por Descartes, é preciso, porém, pensar
um outro tipo de razão, um tipo de razão que é capaz de conhecer
o sujeito sartriano, que não é de modo algum o sujeito cartesiano, o
sujeito pensante que se apoia num ponto seguro e firme e que, com
isso, constrói o universo e prova a existência de Deus.
Como o sujeito não é mais o mesmo, a razão que o compreende
também não pode mais ser a mesma. Seguindo as ambições de Kant,
de estabelecer os limites da razão, Sartre também escreve sua crítica
da razão e ali expõe uma outra razão que seria mais própria para dar
conta de seu Para-si.
Vejamos então agora como essa crise da razão, colocada por
Heidegger de modo a atingir toda a razão, se torna, em Sartre, uma
crise da razão analítica e como, no lugar dela, surge a necessidade de
pensar uma outra razão, uma razão dialética, que melhor explique as
ambiguidades próprias da realidade humana.
A racionalidade analítica, cheia de ordens lógicas e causais, só
pode existir junto com a noção de essência, de uma natureza que
justifique essas relações necessárias entre os acontecimentos e as relações. Como já dissemos no início, Descartes pretende justamente
olhar a luz natural sem se cegar, e para isso estabelece regras, métodos,
ordens: para que sua razão se conforme à racionalidade causal e lógica
que existe na natureza.
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Mas em Sartre não há essa essência na natureza, nem em uma
natureza externa nem em uma natureza humana. Não é possível, por
meio da causalidade, reproduzir a ordem que já há em uma natureza.
Não temos mais nenhuma natureza humana, nenhuma essência que se
encontre antes da existência do homem, que a explique e a justifique,
fornecendo ligações lógicas entre uma ação e outra, entre o passado e
o presente. O que há é justamente a negação da essência como anterior
à existência e o estabelecimento do primado ontológico e ôntico da
concretude, da relação do Para-si com o mundo.
Se é assim, como dar conta da historicidade humana? Se já se
eliminaram as essências que justificam as causalidades entre os fatos,
como compreender a existência que somos? Como compreender
os atos desse homem que é à medida que se faz, que age ou escolhe
não agir? Qual método possibilitaria uma melhor compreensão desse homem sem justificativas, sem desculpas, sem essências, que tem
como arma sua liberdade, liberdade que é para ele ao mesmo tempo
uma punição?
A descrição do absoluto da existência que somos vem acompanhada da renúncia à primazia do conhecimento, desse conhecimento
pensado como juízo e proposição adequada, como garantia de encontrar verdades eternas e indubitáveis. Mas se o conhecimento não tem
mais primazia, ele não pode ser desconsiderado nessa relação do Parasi com o mundo e com os outros Para-sis. É por isso que Sartre se
coloca como objetivo não só estabelecer o primado ontológico frente
ao ôntico, mas também pensar uma nova razão, um novo método que
melhor compreenda esse homem tão fragmentado, fragmentado não
apenas diante de guerras mundiais e da perda de valores universais,
mas fragmentado ontologicamente, fragmentado por ser, em sua
própria essência, vazio, nada de ser, falta, desejo.
E, como podemos ver em Questões de método, é a dialética esse
novo método que permitirá pensar numa nova razão, numa razão
ampliada, que compreenda relações que não sejam causais e lógicas,
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que admita ambiguidades e paradoxos. Mas é uma razão dialética
bastante singular, que reproduz, contra o marxismo de sua época, a
crítica que Marx fez a Hegel.
A dialética hegeliana tem, segundo Sartre, o grande mérito de ser
a mais ampla totalização filosófica, na qual o Saber é elevado à sua
dignidade mais eminente, mas tem também o grande problema de
fazer o vivido ser absorvido pelo sistema. Tudo que é real passa a ser
racional, passa a ser “engolido” pela Razão, pelo Sistema. O vivido se
torna indiferente, é absorvido pelo movimento que coloca no final o
que já está desde o início: o espírito absoluto.
E o que Marx fará (conforme a análise de Sartre em Questões de
método) é criticar esse excesso de sistematização, reintroduzindo o
vivido, fazendo a realidade histórica ser irredutível a uma ideia. Sem
cair no irracionalismo de Kierkegaard, concorda com este na crítica a
Hegel, no fato de ter de recuperar a importância do real, dele não ser
reduzido totalmente ao racional. A dialética da matéria proposta por
Marx pretende mostrar que o humano é irredutível ao conhecimento,
deve ser vivido e produzido, trabalhado, mas não como uma subjetividade vazia. “Marx tem razão, contra Kierkegaard e contra Hegel,
uma vez que afirma, com o primeiro, a especificidade da existência
humana, e uma vez que toma, com o segundo, o homem concreto
em sua realidade objetiva” (SARTRE, 2002, p. 26).
Mas se Sartre admite a importância e o acerto da dialética marxista,
diz, nesse mesmo livro, que ela se encontra paralisada, anêmica, esclerosada. Para ele, o marxismo contemporâneo ignora a complexidade da
teoria de Marx e simplesmente separa a teoria da práxis, faz desta mero
exemplo da teoria (do mesmo modo como Hegel reduzia a realidade
à Ideia). Se o marxismo de sua época recorre aos fatos, é apenas para
conformá-los à teoria, para interpretá-los segundo a teoria. É o que
podemos ver no exemplo que Sartre dá sobre Valéry. Ao tentar compreender suas obras e sua vida, o marxista contemporâneo se contenta
em situá-las de acordo com a época e a classe à qual ele pertenceu, e, ao
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classificá-lo como pequeno burguês, deduz todas suas ideias e atitudes
a partir do que já pensam sobre a pequena burguesia.
E o que Sartre tentará fazer com a proposta de um novo método
que possibilite uma razão dialética é recuperar a individualidade, é
não torná-la mero reflexo da classe, das definições que simplesmente
situam o sujeito. Sua resposta aos que pensam saber tudo de Valéry
por nomeá-lo pequeno burguês é: “Valéry é um intelectual pequenoburguês, eis o que não suscita qualquer dúvida. Mas nem todo intelectual pequeno-burguês é Valéry” (SARTRE, 2002, p. 54).
Refazendo a crítica de Marx a Hegel, Sartre pretende restituir o
singular no universal, o real na ideia, o individual no geral, o sujeito
na história. Admitindo as mediações da psicanálise e da sociologia,
Sartre pretende mostrar as relações do indivíduo com sua família
e com os pequenos grupos e associações. Sem anular o sujeito na
história, o filósofo francês pretende justamente salientar o papel da
singularidade, mostrar como Valéry, se é pequeno-burguês, não se
restringe a ser isso, é um pequeno-burguês que reagiu de modo único
a determinados acontecimentos, que escreveu determinadas obras que
só ele poderia escrever.
Com a psicanálise Sartre quer mostrar que é na particularidade de
uma história que a pessoa faz, de forma obscura, a aprendizagem de
sua classe. E com a sociologia pretende mostrar as relações humanas
em meio a grupos locais, que também é uma forma indireta de viver a
História maior. O que ele procura são mediações que permitam ligar
as particularidades ao social, mediações que ajudarão o marxismo a
reencontrar seu caminho real – mas para isso é preciso elaborar um
método, uma “ordem das razões”, não mais das razões analíticas, mas
das razões dialéticas, uma ordenação do conhecimento dialético do
homem, que exige uma nova racionalidade, a qual, por sua vez, deve
ser construída na experiência, considerando o papel do indivíduo no
acontecimento histórico, fazendo com que a totalização envolva não só
as categorias sociais e econômicas, mas também os atos e as paixões.
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Por isso Sartre nomeará seu método de progressivo-regressivo,
porque é um vaivém entre a história e o indivíduo, entre a superestrutura e a infraestutura, entre o sistema e o vivido, com uma iluminando
a outra sem se dissolver nela. Há aqui uma dialética do subjetivo e do
objetivo, uma necessidade conjugada da “interiorização do exterior”
com a “exteriorização do interior”, desse movimento da práxis que é
ao mesmo tempo assimilação da história pelo homem e transformação
dessa história. “Definiremos o método da abordagem existencialista
como um método regressivo-progressivo e analítico-sintético; é, ao
mesmo tempo, um vaivém enriquecedor entre o objeto (que contém
toda a época com significações hierarquizadas) e a época (que contém
o objeto em sua totalização” (SARTRE, 2002, p. 112).
O indivíduo é compreendido pela história, e a história é compreendida pelo indivíduo. Vai-se de início às características da época,
tendo ainda o objeto como um certo vazio, mas depois o objeto é enriquecido pelo conhecimento obtido da época, enriquecimento esse que
não anula o objeto, mas faz com que nos voltemos novamente para
a época, dando novas significações ao que lhe aconteceu. O objeto é
enriquecido pela época e ao mesmo tempo enriquece e transforma a
época por meio do modo como a vive.
Mas justamente porque essa racionalidade deve ser construída
na experiência, não basta estabelecer novas regras para a direção do
espírito. É voltando-se para a experiência, para a existência singular
de um homem, que Sartre pretende praticar sua razão dialética a fim
de compreender essa relação tão íntima e tão paradoxal entre o homem e a história, entre o Para-si e o Em-si, entre o nada e o ser. Essa
tentativa exaustiva de compreender uma vida em sua totalidade, em
sua singular universalidade, será realizada de forma mais completa nos
livros sobre Genet e Flaubert, que não analisaremos.
O que nos importa ressaltar aqui é que Sartre descreve a importância de construir um novo método, de pensar uma razão que
permita compreender a realidade humana. E, ao estabelecer essa
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necessidade de pensar ainda nos limites de uma nova razão, Sartre
propõe um papel da razão para que alcancemos a compreensão colocada por Heidegger.
Trata-se, então, de um outro momento da crise da razão, um momento que continua a não dar espaço para a razão analítca, mas que
volta a buscar a racionalidade, não mais para atingir verdades eternas
como as de Descartes, mas para atingir a busca do sentido do ser,
como proposto por Heidegger.
Referências
DESCARTES. Meditações sobre filosofia primeira. Campinas: Unicamp, 2004.
______. Regras para a direção do espírito. Lisboa: Edições 70, 1989.
HEIDEGGER. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 2002.
SARTRE. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1999.
_____. Questões de método. Rio de Janeiro: DP&A editora, 2002.
THE CRISIS OF REASON IN THE PHENOMENOLOGY
Abstract
In this article we intend to show what role that the analytic reason will have
in Heidegger’s and Sartre’s thought. Against Descartes, who determines
reason as a guide against all the mistakes and as solution for all crises, Heidegger shows that the certainty of the cogito is not prior to the certainty of
the sum (of the existence), and that for this reason it is not restrict to that:
here the understanding appears as prior to reason, as the one which enables
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any sort of rationality. And if Sartre also understands man as immediately
in the world, yet thinking in terms of subject, and for this reason will need
to determine a positive role to reason, not to the analytic reason, but to
a dialectic reason, which has as an aim not to reach absolute and eternal
truths, but to elaborate in theoretical terms the heideggerian understanding.
We will present, therefore, how reason loses the unique and essential role
that it had in the Descartes’ philosophy to become, itself, source of a crisis;
and, if it still keeps any role in the phenomenology, it is a supporting role,
the one that helps to theorize the understanding of man in the world.
Key words: reason, crisis, Descartes, Heidegger, Sartre.
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O QUEFAZER DO INTELECTUAL EM
TRÊS EXEMPLOS: ÁLVARO VIEIRA PINTO,
PAULO FREIRE E LEONARDO BOFF
Rodrigo Marcos de Jesus*
Resumo
Discutiremos a função do intelectual no Brasil na segunda metade do século XX. Para tanto, recorreremos a três exemplos históricos: Álvaro Vieira
Pinto, Paulo Freire e Leonardo Boff. O objetivo é identificar que elemento
comum perpassa a concepção de intelectual nesses autores. Analisar esta
concepção e a função do intelectual no contexto brasileiro neste período
constitui duplo interesse: a) histórico e b) formativo. O primeiro, para um
resgate e uma compreensão do quefazer do intelectual num período importante da filosofia brasileira. O segundo, para auxiliar a pensar e a re-pensar
a atual atividade intelectual e a formação acadêmica.
Palavras-chave: Intelectual. Quefazer. Brasil.
Introdução
Discutamos a função do intelectual no Brasil. Para isso, evoquemos três representantes do pensamento filosófico brasileiro:
Álvaro Vieira Pinto, Paulo Freire e Leonardo Boff. A partir desses
três pensadores e de suas atuações específicas – a filosofia, a educação e a teologia, respectivamente – procuremos identificar o que
Do Grupo Filosofia no Brasil (Fibra). Núcleo de Estudos e Pesquisas do
Pensamento Complexo (Neppcom/FaE/UFMG). E-mail: rodrigomarcosdejesus@
yahoo.com.br
*
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há de comum no quefazer de suas atividades intelectuais. Apontar o
elemento comum presente nesses exemplos permitirá entendermos
o que significou ser intelectual num período relevante da história da
filosofia brasileira (segunda metade do século XX). Além do interesse
histórico, o resgate da concepção de intelectual desse período pode
nos ajudar – no confronto com o nosso tempo – a pensar e a re-pensar
a atual atividade intelectual, a prática e a formação acadêmica. Este
estudo privilegiará a abrangência, a identificação das grandes linhas
orientadoras do trabalho intelectual dos autores escolhidos.
O que é ser intelectual? Iniciemos a questão com uma aproximação etimológica. Intelectual, etimologicamente, tem a ver com
a inteligência (intellectus, de intus-legere), é aquele que se ocupa com a
inteligência do sentido realizado e presente nas atividades humanas.
Desse modo, o intelectual seria capaz de intuir e ler no interior do real
um sentido e valor. “Nas diferentes práticas históricas, [o intelectual]
vê o homem, seu destino, sua realização ou sua frustração em jogo”
(BOFF, 2003, p. 151). Mais do que a fragmentação e a análise, o intelectual é o homem da totalidade e da síntese.
A par desta definição preliminar salientemos outro traço comum
aos pensadores escolhidos. Álvaro V. Pinto, P. Freire e L. Boff compartilham uma mesma percepção: julgam estar vivendo num período
de mudança profunda na realidade que impele a uma tomada de
decisão e têm consciência do condicionamento histórico do próprio
intelectual. Portanto, para esses pensadores, é preciso compreender
o significado da mudança na realidade e a partir dela, sabendo-se
condicionado historicamente, ter clareza do papel do intelectual neste
período de modificações. Daí nasce a indagação sobre o quefazer do
intelectual. Esquematicamente podemos distinguir três concreções do
intelectual: a) Álvaro Vieira Pinto: o filósofo como intelectual vive num
período de transformações na infraestrutura (condições econômicas
e industriais) e superestrutura (condições culturais) da sociedade
brasileira (décadas de 1950-60), fase caracterizada como nacional30
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O quefazer do intelectual em três exemplos: Álvaro Vieira Pinto, Paulo Freire e Leonardo Boff.
desenvolvimentista. Nesta fase o filósofo é impelido a contribuir com
o processo de desenvolvimento através de uma visão de totalidade
desse processo; b) Paulo Freire: o educador como intelectual, situado
num contexto de opressão (desumanização) das classes populares, é
chamado a praticar uma educação libertadora, que favoreça a humanização do oprimido e do opressor (décadas de 1960-701); c) Leonardo
Boff: o teólogo como intelectual, imerso num contexto de pobreza e
exploração do povo, que em sua maioria é cristão, é chamado a não
apenas refletir sobre o papel do cristão na tarefa da libertação dos
oprimidos e excluídos, mas também a tomar uma nova postura (ortopráxis) frente a essa situação (décadas de 1970-802). Detalhemos cada
concreção um pouco mais.
1 Álvaro Vieira Pinto
O período é o dos anos 1950-60. Ocorre uma mudança profunda
da realidade brasileira. Motivada por essenciais transformações
econômicas e sociais, a consciência brasileira começa a ter a percepção
exata de seu próprio ser. O atual momento de transformação – de um
país agrário, objeto colonial, de consciência alienada e poder autoritário
para um país industrializado, sujeito nacional, de consciência crítica
e poder democrático – oferece ao filósofo a oportunidade de
surpreender o jogo de oposições, não para ocupar-se delas de modo
gratuito, mas para optar por um dos lados em disputa. O filósofo é
Frise-se que esta data é somente uma demarcação didática. Com efeito, Paulo
Freire estende sua práxis de uma educação libertadora até o final de sua vida (1997).
2 Aqui a data apresentada é também apenas um recurso didático. Leonardo Boff,
o único dos três pensadores ainda vivo, continua sua atuação em prol da libertação
dos oprimidos, tendo incorporado, principalmente desde seu afastamento da igreja
institucional e dos seus estudos sobre a teologia da criação, a perspectiva ecológica.
1
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indagado a procurar as causas, o sentido e o critério que devem guiá-lo
na sua tomada de decisão por uma das posições em conflito. Neste
período, em que o desenvolvimento (entendido por Vieira Pinto de
modo amplo, pois engloba tanto o desenvolvimento econômico como
o cultural) é a questão em foco, a contradição principal existente é entre
países desenvolvidos e subdesenvolvidos.
O tema em questão posto pela realidade ao filósofo é o da consciência nacional, sua origem, seu significado e valor. Examiná-lo – após
recolher as contribuições das várias ciências – é tarefa filosófica, diz
respeito à compreensão do processo da realidade geral e nacional.
Esclarecer a questão da consciência não é algo de mero interesse
acadêmico. Investigar sua formação e descrevê-la cuidadosamente é
uma contribuição valiosa à comunidade. Pois ter uma consciência bem
formada sobre o fenômeno do desenvolvimento ajuda a compreender
a mudança pela qual passa a sociedade brasileira e é uma ferramenta
a mais no auxílio ao processo de desenvolvimento nacional.
Como todo processo é carregado de sentido, de significado e
traz em si as ideias que o orientam, cabe ao filósofo explicitar essas
ideias, sistematizá-las e colocá-las num horizonte maior de totalidade.
A cada fenômeno corresponde uma ideologia, ao desenvolvimento
corresponde a ideologia3 do desenvolvimento nacional. O filósofo é
chamado a produzir os esquemas de compreensão dessa mudança
acelerada na realidade para que a comunidade obtenha a inteligência
do processo como um todo e possa, a par disso, potencializar as possibilidades latentes no fenômeno.
Entretanto, essa ideologia formalizada pelo filósofo não é criação
sua, provém das massas populares. Estas constituem a vanguarda do
Ideologia apresenta em V. Pinto um caráter positivo, ela é produto de um momento
histórico, nunca algo a priori; não pode por isso ser separada da prática. A ideologia
constitui nas ideias orientadoras presentes em um fenômeno (explícitas ou não).
Portanto, o sentido de ideologia no nosso autor difere daquele comumente adotado
por algumas correntes marxistas.
3
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O quefazer do intelectual em três exemplos: Álvaro Vieira Pinto, Paulo Freire e Leonardo Boff.
processo de desenvolvimento, uma vez que elas executam as tarefas
materiais do desenvolvimento e o desenvolvimento é feito em proveito delas. As massas começam a existir junto com o desenvolvimento.
As exigências das massas são expressões da mudança de consciência
por que passa o país, de uma consciência colonial, heterônoma, subdesenvolvida, inautêntica, ingênua, para uma consciência do ser nacional,
autônomo, em desenvolvimento, autêntica e crítica.
A ideologia do desenvolvimento tem de proceder da consciência das massas.
A verdade sobre a situação nacional não deriva dos intelectuais ou
políticos, mas é dita pelas massas “[...] pois não existe fora do sentir
do povo, como proposição abstrata, lógica, fria. Não é uma verdade
enunciada sobre o povo, mas pelo povo” (VIEIRA PINTO, 1959, p.
38). Aos políticos e intelectuais cabe acolhê-la e interpretá-la com o
instrumental lógico-categorial, sem distorcê-la ou mistificá-la.
A ideologia, então, não deve vir de cima. Ela só é legítima quando
exprime a consciência coletiva e não é imposta. Não basta a justaposição harmoniosa das classes dirigentes e do povo, é preciso “[...] a
existência de quadros intelectuais capazes de pensarem o projeto de
desenvolvimento sem fazê-lo à distância, mas consubstancialmente com
as massas” (VIEIRA PINTO, 1959, p. 39, grifo nosso).
Como análise filosófica, a ideologia do desenvolvimento utilizase das contribuições da economia, sociologia, geoantropologia e da
história, transforma os dados em problemas e lhes confere sentido.
A generalidade da filosofia permite a constituição de critérios de verdade e normas
reguladoras para a elaboração de projetos específicos.
A ideologia do desenvolvimento nacional, portanto, dialoga com as
demais ciências e com a massa. E será a expressão, a enunciação de forma
lógica e organizada daquilo que é anunciado, expresso de maneira inábil
pelo sentir do povo. O filósofo deve se colocar existencialmente do
ponto de vista das massas, ou seja, por-se em situações concretas.
Este trecho de Álvaro é explícito quanto à especificidade do filósofo no país subdesenvolvido:
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Não há problemas filosóficos universais senão os de natureza abstrata.
Desde, porém, que temos de pensar o real concreto, aquele com que
efetivamente nos defrontamos e sobre o qual somos obrigados a agir,
os problemas deixam de apresentar-se de maneira imprecisa, e se desenham como desafios para a inteligência, partidos das coisas próximas.
As tarefas que incumbem ao filósofo do país subdesenvolvido são
específicas, refletem a condição da realidade de que o pensador participa. Não admitem ser consideradas em igualdade com as dos filósofos
pertencentes aos centros dominantes da cultura, para os quais o mundo
é visto da perspectiva do país onde vivem, até agora, sempre em algum
dos que têm estado em posição cultural eminente (VIEIRA PINTO,
1960, v. 1, p. 64).
Há diferença entre o pensamento dos filósofos da metrópole, que
podem fazer elocubrações ideológicas simples ou devaneios metafísicos, e o pensamento dos filósofos do subdesenvolvimento. Para os
primeiros não se apresenta a necessidade de transformação social, já
para os segundos urge uma ideologia transformadora. Os do centro
já estão na cultura alta. Os da periferia precisam galgar os degraus
culturais. Entretanto, ambos estão bem situados historicamente. O
filósofo da periferia tem outra realidade e outra missão. Sabe que
a população do seu país está privada dos bens culturais e materiais
para o bem-estar humano. Sabe que essa situação é imoral e deve ser
ultrapassada “com o ingresso do país nos níveis plenos de desenvolvimento”. Essa transformação é verdadeiramente ontológica, uma
transmutação do ser nacional, exige uma formulação ideológica, que
é incumbência do filósofo elaborar. Por isso não pode desviar-se dessa
missão para recair em criação de concepções de cunho abstrato. Ele
está existencialmente investido, “[...] porquanto não apenas a consciência moral de solidariedade humana, mas até seus mais legítimos
interesses pessoais o obrigam a constituir-se em intérprete do país a
que pertence” (VIEIRA PINTO, 1960, v. 1, p. 65).
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O quefazer do intelectual em três exemplos: Álvaro Vieira Pinto, Paulo Freire e Leonardo Boff.
2 Paulo Freire
No período das décadas de 1960-70, P. Freire entende como
problema iniludível daquele momento histórico a humanização e a
desumanização como possibilidades ontológica e histórica. Para ele:
Os movimentos de rebelião, sobretudo de jovens, no mundo atual, que
necessariamente revelam peculiaridades dos espaços onde se dão, manifestam, em sua profundidade, esta preocupação em torno do homem
e dos homens, como seres no mundo e com o mundo. Em torno do
que e de como estão sendo (FREIRE, 2005, p. 31, nota 1).
Vivenciamos uma realidade opressora, que desumaniza tanto
opressores quanto oprimidos, ainda que de formas diferenciadas.
Neste contexto há necessidade de libertação tanto de oprimidos, que
são impedidos de ser, quanto de opressores, que, ao oprimirem, têm
também sua humanidade distorcida.
A pedagogia do oprimido proposta por Paulo será
[...] forjada com ele [o oprimido] e não para ele, homens ou povos, na
luta incessante de recuperação de sua humanidade. Pedagogia que faça
da opressão e de suas causas objeto de reflexão dos oprimidos, de que
resultará seu engajamento necessário na luta por sua libertação, em que
esta pedagogia se fará e refará” (FREIRE, 2005, p. 34).
Segundo Giroux (1987), o objetivo desse tipo de pedagogia é duplo: tornar o político mais pedagógico e o pedagógico mais político.
Nesta perspectiva, a educação não é neutra (como de resto
para Freire a educação nunca é e nem será), e o educador é, então,
convocado a tomar posição diante da opressão. Uma educação que
trabalhe pela humanização do ser humano oprimido terá de ser uma
educação libertadora, e o educador, um problematizador. A educação
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como prática da liberdade nega o homem abstrato, isolado, solto,
desligado do mundo e nega um mundo também sem os homens.
Ela propõe uma reflexão autêntica sobre os homens em suas relações
com o mundo.
Desse modo, o educador buscará junto com os educandos problematizar o mundo e os homens a fim de que da emersão das consciências resulte a inserção prática no mundo. O papel do educador é
proporcionar a mudança de percepção sobre o mundo (superação do
conhecimento no nível da doxa para o conhecimento no nível do logos),
a fim de propiciar a mudança de atitude com relação ao mundo. Isso
não é feito só através de “conteúdos críticos”, exige a mudança de
postura do próprio educador perante os educandos. Daí resulta uma
educação que não estabelece dicotomia entre educador e educandos,
que não disserta sobre um tema, mas dialoga. Enfim, uma educação
na qual os conteúdos sejam não uma doação ou imposição, “mas
a devolução organizada, sistematizada e acrescentada ao povo daqueles
elementos que este [o povo] lhe entregou de forma desestruturada”
(FREIRE, 2005, p. 97, grifo nosso).
Assim, a educação deve partir do concreto, do estado presente
e existencial do povo, ou seja, de sua situação de opressão. Como
educadores temos a tarefa de dialogar nossa visão de mundo com a
visão de mundo do povo. E na prática mútua de se educar através do
diálogo, mediatizados pelo mundo, trabalharmos contra a desumanização do ser humano.
Para a concretização dessa educação libertadora é preciso que o
educador seja não um mero transmissor de saber, mas um intelectual.
Deve saber “ler dentro da realidade” (intus-legere) o problema colocado
por nosso tempo e a partir dele praticar uma educação que favoreça
a humanização dos oprimidos (que será também humanização dos
opressores). Para tanto, é preciso, além de competência científica sobre sua área de conhecimento, de clareza política, de conhecimento
da história autoritária do país, ter respeito à identidade do educando
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O quefazer do intelectual em três exemplos: Álvaro Vieira Pinto, Paulo Freire e Leonardo Boff.
e um profundo amor pelos homens e pelo mundo concretizado no
compromisso ético em prol da libertação.
3 Leonardo Boff
A teologia da libertação, da qual Leonardo será um dos intelectuais mais influentes e atuantes, está inserida dentro do contexto dos
movimentos de libertação nos países subdesenvolvidos, do emergir
da mobilização popular na sociedade e nas Igrejas dos países latinoamericanos e do compromisso com os pobres assumido pela Igreja
católica no Brasil. Nas palavras do próprio autor:
Toda práxis contém dentro de si sua teoria correspondente. Assim
ocorre com a teologia da libertação, que pretende ser a teoria adequada às práticas do povo oprimido e crente; ela quer ser o momento de
esclarecimento e de animação do caminho da libertação popular, sob
inspiração evangélica (BOFF, 2004, p. 154-5).
Se com Paulo Freire temos uma pedagogia correspondente à
libertação, com esta corrente teológica teremos uma teologia em
sintonia com os movimentos de libertação populares.
As primeiras formulações teóricas da teologia da libertação ocorrem no final dos anos 1960, com Rubem Alves e José Comblin. Mas é
nas duas décadas seguintes que ela atinge seu maior grau de elaboração
e sistematização, se espalha por todo o mundo latino-americano, se
consolida na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB),
entra em diálogo produtivo com as teologias negras africana e norteamericana e com o mundo asiático, além de ter encontrado apoios e
resistências na teologia europeia.
Antes de expormos a função intelectual do teólogo, devemos citar
(o espaço não permite detalhamentos) dois pressupostos da teologia
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da libertação, necessários à compreensão do quefazer teológico. Como
teoria (teológica) da prática libertadora a teologia da libertação parte
de 1) uma experiência de Deus a partir dos pobres e 2) um compromisso
ético, uma opção clara pela libertação dos pobres. Isso lhe permite enfatizar: uma concepção de Deus em que este demonstra uma opção
preferencial pelos pobres; a interpretação da história da salvação como
história de luta contra a opressão em favor da libertação; a figura de
Cristo como libertador integral, tendo sua morte causa também política; o pobre como elemento substancial, e não simplesmente algo a
mais nos evangelhos; a Igreja como instrumento-sinal de libertação no
meio histórico e uma espiritualidade de libertação que não dicotomiza
as dimensões da mística e da política.
Ora, a teologia se organiza ao redor do olho da fé e do olho da
realidade histórico-social. Nessa inter-relação dialética os temas do
passado iluminam os de hoje e vice-versa. Assim, a função do teólogo é dupla, ele é explicitador e conscientizador das implicações teóricas
e práticas de fé da comunidade. Como explicitador ele, com sua bagagem teórica, auxilia na compreensão da fé, assume as características
de professor-doutor. Como conscientizador, o teológo ajuda a pensar a
realidade histórico-social à luz da fé, adquire a postura de intépreteprofeta.
Se o intelectual se aprofunda na tarefa do pensamento (pensamento que é característica de qualquer pessoa), o teólogo, sendo o
intelectual da Igreja, se aprofunda na tarefa (que é de todo crente) de
pensar a fé. O ideal de sua formação é formação clássica (domínio da
teoria) e a ausculta do tempo presente (articulação fé e história). Para
isso, é preciso uma renovação constante dos conhecimentos, uma atitude de aprendizagem e capacidade para fazer sínteses elaboradas. Além
disso, é necessário que o teólogo tenha criatividade, seja propositivo e
auxilie a comunidade em sua própria capacidade de pensamento.
O teólogo latino-americano é entendido pela teologia da libertação como intelectual orgânico da comunidade, pois: a) dedica-se aos estudos,
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O quefazer do intelectual em três exemplos: Álvaro Vieira Pinto, Paulo Freire e Leonardo Boff.
dentro de uma realidade sócio-histórica definida e b) preocupa-se
com a caminhada da comunidade. Seu saber é um saber prático – não
meramente teórico – orientado para a vida da comunidade.
Como intelectual orgânico, o teólogo pode apresentar quatro
concretizações básicas:
a) teólogo-professor: docente nos institutos teológicos; trabalho de
acento teórico; possui a exigência de sistema, de ordem, de
visões globalizantes; procura uma hierarquização dos temas
de acordo com sua relevância para a comunidade e de sua
incidência existencial (pertinência ao contexto histórico dos
membros da comunidade).
b) teólogo-assessor: assessora os organismos da Igreja (conferências,
conselhos, pastorais); articula reflexão teológica e pastoral,
para isso trabalha vários discursos (o bíblico, o político, o
histórico, o popular) dentro de uma totalidade (síntese).
c) teólogo-explicitador: nos grupos, nas plenárias e reuniões cabe
ao teólogo desocultar, problematizar, criticar e sintetizar; essa
tarefa exige versatilidade, capacidade de articulação, apreensão
e relativização das polarizações; sua função não é magisterial
nem de suprir o trabalho dos participantes, mas de “[...] deixar
transparecer o horizonte da fé que se alimenta da oração e
mística, mesmo quando se confronta com as questões mais
dilacerantes da justiça e da libertação dos oprimidos” (BOFF,
2004, p. 165).
d) teólogo-animador: participa de encontros, está inserido na comunidade, aqui o teólogo participa de uma reflexão eminentemente comunitária, uma vez que “reflete em cima das práticas
e do nível de consciência revelado pelo grupo”; este é o lugar
de maior aprendizagem e de alimentação da fé do teólogo,
que se dá no seu contato com a fé do povo; a pedagogia e os
recursos de dinâmica de grupo são importantes tanto quanto
a teologia, neste trabalho.
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Neste quefazer do teólogo a grande originalidade está no método.
Parte-se do nível de consciência religiosa do povo para a reflexão, e
não da doutrina já formulada para a prática. É sobre a objetivação e
a conscientização do povo expressas em relatórios, dramatizações e
trocas de experiência que se organiza a reflexão. A partir daí se processam três momentos, que são dialetizados: ver – julgar – agir, os quais
constituem “[...] passos de um único e mesmo processo de expressão,
aprofundamento e mobilização da fé, para que seja eficaz em termos
de produzir graça social, dignidade dos filhos de Deus e uma convivência mais participada e fraterna” (BOFF, 2004, p. 167). O término
e a culminação de todo esse processo ocorre na celebração.
Considerações finais
No início do texto apresentamos dois interesses que nos orientavam neste estudo, um histórico e outro, por assim dizer, formativo.
Consideremo-los.
A nosso ver, na perspectiva histórica, uma figura comum é ressaltada no quefazer intelectual dos três pensadores vistos, a saber:
o intelectual orgânico, tal como tematizado por Gramsci. Segundo o
filósofo italiano, “todos os homens são intelectuais, poder-se-ia dizer
por isso; mas nem todos os homens têm na sociedade a função de
intelectuais” (GRAMSCI, 1978, p. 346). Os intelectuais unificam e
dão coerência às ações econômica, social e política. Conseguem o
consentimento das massas através de uma concepção de mundo, da
consciência da função histórica de um grupo, e exercem coerção e
disciplina por meio dos veículos (instituições, meios de comunicação
etc.) da sociedade civil. O intelectual orgânico organiza, expressa e
defende os interesses do grupo ao qual pertence. Quando ligado ao
proletariado, diríamos ainda, às massas, às classes populares, ao povo,
engaja-se no processo histórico ao lado destes e assume como sua
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O quefazer do intelectual em três exemplos: Álvaro Vieira Pinto, Paulo Freire e Leonardo Boff.
tarefa “formar uma concepção de mundo coerente e unitária, [o que]
significa tomar consciência das contradições vividas no cotidiano,
criticá-las e superá-las unificando teoria e prática” (SCHLESENER,
1992, p. 30). Ou seja, o intelectual orgânico deve ser explicitador, crítico
e propositivo, características que, como vimos, podem ser verificadas
em Álvaro Vieira Pinto, Paulo Freire e Leonardo Boff.4
Quanto ao aspecto formativo, desejamos apenas indicar alguns
pontos. Fica evidente a perspectiva dialógica intra e transacadêmica
dos autores. Com efeito, todos eles se apropriam das pesquisas e dos
conteúdos das demais áreas do conhecimento acadêmico e com eles
se enriquecem. Para compreenderem a situação histórica na qual
estão inseridos buscam se informar e se formar com o auxílio dos
mais variados saberes (ex: história, geografia, sociologia, economia,
antropologia, psicologia), sem com isso perderem a especificidade
de seus campos e de suas tarefas próprias. Além disso, se abrem ao
diálogo com o conhecimento, as aspirações e motivações das classes
populares, o que demonstra o não confinamento acadêmico de suas
atividades e as preocupações não só teóricas, mas principalmente
práticas de seu quefazer.
O que fica para nós destes exemplos? Penso que a atitude de abertura
diante dos saberes e interpelações acadêmicos e não acadêmicos e a
ênfase no caráter prático da atividade intelectual são duas características
desses pensadores que muito têm a nos questionar quanto ao que
fazemos e ao que faremos de nossa atividade intelectual e de nossa
formação acadêmica.
L. Boff é explícito ao se autodefinir como intelectual orgânico. Já V. Pinto não
utiliza nos escritos por nós consultados essa expressão. Tampouco Paulo Freire na
Pedagogia do oprimido (texto que nos serviu de base), no entanto, sabe-se que após este
livro Freire teve contato com Gramsci e foi por este influenciado.
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Referências
BOFF, Leonardo. Ética e eco-espiritualidade. Campinas, SP: Verus
Editora, 2003.
_____. Novas fronteiras da Igreja: o futuro de um povo a caminho.
Campinas, SP: Verus Editora, 2004.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2005.
_____. Pedagogia da esperança: reencontro com a Pedagogia do
Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005a.
GIROUX, Henry. Escola crítica e política cultural. Trad. Dagmar M. L.
Zibas. São Paulo: Cortez, 1987.
GRAMSCI, A. Problemas da Vida Cultural. In: _____. Obras
Escolhidas. Trad. Manoel Cruz. São Paulo: Martins Fontes, 1978.
SCHLESENER, Anita. H. Hegemonia e cultura: Gramsci. Curitiba:
UFPR, 1992.
VIEIRA PINTO, Álvaro. Ideologia e desenvolvimento nacional. Rio de
Janeiro: ISEB/MEC, 1959.
_____. Consciência e realidade nacional. Rio de Janeiro: Iseb/MEC, 1960
(v. 1, 2).
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O quefazer do intelectual em três exemplos: Álvaro Vieira Pinto, Paulo Freire e Leonardo Boff.
THE TASKS OF THE INTELLECTUAL IN THREE EXAMPLES:
ÁLVARO VIEIRA PINTO, PAULO FREIRE AND LEONARDO
BOFF
Abstract
We will discuss the role of the intellectual in Brazil in the second half of
the 20th century. To do so, we will refer to three historical examples: Álvaro
Vieira Pinto, Paulo Freire and Leonardo Boff. The objective is to identify
which common element passes by the conception of intellectual in these
authors. To analyze this conception and the function of the intellectual in
the Brazilian context in this period constitutes double interest: a) historical
and b) formative. The former, for an accomplishment and an understanding
of the tasks of the intellectual in an important period of the Brazilian philosophy. The latter, to help to think and to rethink the current intellectual
activity and the academic formation.
Key words: Intellectual; tasks; Brazil.
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A CONCEPÇÃO SEMÂNTICA DA VERDADE E A
TEORIA DA VERDADE-COMO-CORRESPONDÊNCIA
Renato Machado Pereira*
Resumo
Este artigo tem por finalidade analisar o problema da verdade no trabalho
apresentado por Alfred Tarski, chamado de Concepção semântica da verdade.
Discutiremos filosoficamente a concepção apresentada por Tarski, compararemos sua concepção com a concepção da verdade-como-correspondência
e buscaremos descrever seu valor filosófico.
Palavras-chave: Verdade. Semântica. Correspondência. Tarski.
Introdução
Em grego, verdade se diz aletheia, que significa “não-oculto”,
“não-escondido”, “não-dissimulado”. Em latim se diz veritas e se refere
a precisão, rigor e exatidão de um relato no qual se diz com detalhes
o que aconteceu. Em hebraico se diz emunah e significa “confiança”.
Na literatura filosófica e no significado próprio que lhe confere
cada povo, encontramos várias concepções para o termo “verdade”,
desde sentido prático, sentido de relação, de revelação, de consistência,
até ausência de uma propriedade como verdade. Essa diversidade de
concepções e de mudanças no conhecimento ao longo da história
mostra o quanto a pesquisa sobre a verdade é necessária. Principalmente
* Professor Assistente da Faculdade Pitágoras – Unidade Poços de Caldas/MG.
Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. E-mail:
[email protected]
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quando a discussão está no âmbito da investigação científica, em que se
espera que os conceitos sejam o mais preciso e claro possível. Discutir
qual concepção é a ideal e qual é a mais adequada para o discurso
científico é importante para o avanço do conhecimento.
Os pensadores que diretamente se preocupavam com o termo
“verdade” na língua natural, no conhecimento, na realidade, nas investigações científicas etc. desenvolveram teorias da verdade. Um dos
objetivos dessas teorias é decidir o que usar na definição do termo
“verdade”. Qualquer que seja o objetivo de explicar e definir a “verdade”, tal definição deve trazer clareza e amenizar a perplexidade do
seu sentido. Muitos teóricos procuraram defini-la por meio de outras
palavras ou termos mais simples que afunilavam a ideia do vocábulo.
Entretanto, o que muitas vezes acontecia era que essas palavras ou
termos propostos guardavam ou preservavam semelhantes problemas
trazidos pelo termo “verdade”.
No início do século XX o lógico e matemático Alfred Tarski ambicionou alcançar dessa palavra uma definição “formalmente correta
e materialmente adequada” que evitasse termos semânticos, ou seja,
termos que relacionam expressões de uma linguagem com os objetos
a que se referem essas expressões. Pois considerava que nenhuma das
noções semânticas era pré-teoricamente suficientemente clara para ser
empregada com segurança.
Seu pressuposto para criar tal concepção parte de uma noção
simples. Ele pede que consideremos a sentença “a neve é branca” e
nos pergunta em que condições essa sentença é verdadeira e em que
condições é falsa. É-nos claro que essa sentença é verdadeira se a neve
é branca, e falsa, se a neve não é branca. Logo, a definição de verdade
pode ser expressa pela seguinte equivalência: A sentença “a neve é
branca” é verdadeira se, e somente se, a neve é branca.
Essa equivalência mostra uma definição tarskiana aparentemente simples e trivial, mas promissora, segura e apta a recolher um
amplo consenso.
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A concepção semântica da verdade e a teoria da verdade-como-correspondência
Generalizando, a condição de adequação material e de correção
formal assevera que a definição da verdade tem de implicar todas as
sentenças do seguinte padrão, chamadas tanto de “forma T” como
de “esquema T” ou “convenção T” (1944, p. 9):
(T) X é verdadeira se e somente se p,
em que a letra “p” deve ser substituída por qualquer sentença da linguagem e “X” por um nome dessa sentença (ou a própria sentença
entre aspas).1
Diferentemente do que fala de outros termos semânticos, Tarski
(1944, p. 16) afirma que “verdadeiro” possui uma natureza lógica
diferente; “verdadeiro” expressa uma propriedade, ou denota uma
classe, de sentenças. Desse modo, uma definição de verdade será uma
conjunção lógica das sentenças na forma T que possuem a propriedade de ser verdadeira e que pertençam a uma linguagem formalizada.
Com essa inovação e esse desejo de formalidade, Tarski se torna
um dos precursores de várias outras ideias acerca da verdade.
Porém, o modo pelo qual o próprio Tarski enfatiza a importância
filosófica da sua definição contrasta com a intensidade das críticas
que afirmam precisamente o oposto. Alguns contendores dizem que
a definição de Tarski não é filosoficamente relevante, porque não
esclarece satisfatoriamente a noção de verdade, ou que Tarski não
resolveu o problema que se propôs a resolver. Mas, mesmo que se
queiram defender as duas afirmações, trata-se de afirmações diferentes
(RODRIGUES FILHO, 2006, p. 24).
Na tentativa de encontrar o valor da noção de verdade apresentada
por Tarski, muitos comentadores discutem a possibilidade de interpretar
a teoria tarskiana como uma reabilitação da teoria da verdade-como1 A qualquer sentença com a forma dessa equivalência passaremos a chamar
“sentença-T”.
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correspondência.2 Todavia, as reações à importância filosófica da sua
definição, enquanto um esclarecimento da noção de verdade-comocorrespondência, são bastante variadas, indo desde a rejeição total até
a aceitação entusiasmada (RODRIGUES FILHO, 2006, p. 25).
1 Teorias da verdade-como-correspondência
Muito da literatura contemporânea sobre verdade toma como
ponto de partida algumas ideias que são proeminentes no início do
século XX. Porém, há algumas concepções da verdade que já estavam
sendo discutidas há muito tempo e influenciaram a maior parte das
discussões atuais. Um grande exemplo disso é a definição de “verdadeiro” dada por Aristóteles, que influenciou muitas teorias do início
do século XX e, indiretamente, muitas outras. Isso pode ser visto
no quadro organizativo apresentado por Haack (1978) em seu livro
Filosofia das lógicas, p. 128:
2 As teorias da verdade-como-correspondência estão baseadas na ideia de que
“verdade é correspondência com a realidade”, ou seja, um portador-de-valor-deverdade é verdadeiro quando as coisas no mundo são como os portadores-de-valorde-verdade dizem que são.
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A concepção semântica da verdade e a teoria da verdade-como-correspondência
Podemos observar, segundo Haack (1978), que a concepção semântica da verdade de Tarski recebeu influência direta da concepção
aristotélica e tem “afinidade” com a teoria da correspondência. Compreendermos essa “afinidade” (se existe ou não) é um dos principais
objetivos deste artigo. Para tanto, será fundamental entendermos as
teorias da verdade-como-correspondência, ou seja, entendermos a sua
estrutura básica e as suas características principais, visando sempre à
futura comparação com a concepção semântica da verdade.
Desse modo, este tópico não procurará desenvolver uma análise
crítica das teorias da verdade-como-correspondência, mas objetivará
caracterizá-la; ou seja, o intuito é compreender o que é uma teoria da
correspondência, e isso servirá de base para discutirmos se a “Concepção Semântica da Verdade” de Tarski é uma teoria da correspondência ou não.
As teorias da verdade-como-correspondência estão baseadas na
ideia de que “verdade é correspondência com a realidade”, ou seja,
um portador-de-valor-de-verdade é verdadeiro quando as coisas no
mundo são como os portadores-de-valor-de-verdade dizem que são.
As teorias correspondenciais estão entre as teorias robustas da verdade; isto é, aquelas teorias que consideram que a verdade tem uma
natureza. Além disso, constituem, em geral, segundo Lynch (2001, p.
5), uma visão realista objetiva: se algo é verdadeiro, isso não depende
daquilo em que cada um acredita; a verdade depende do mundo, e
não de nós. Mas dizer apenas “Verdade é correspondência com a realidade” não expressa adequadamente a essência dessas teorias. Será
necessário esclarecermos três aspectos da ideia de verdade-comocorrespondência (LYNCH, 2001, p. 9):
1. O que tem a propriedade de ser verdadeiro (qual é o portadorde-valor-de-verdade).
2. A “realidade” à qual corresponde o portador-de-valor-deverdade.
3. A correspondência (ou seja, qual a relação entre o portadorde-valor-de-verdade e a realidade).
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1.1 Portadores-de-valor-de-verdade
As teorias da verdade-como-correspondência têm utilizado como
portadores-de-valor-de-verdade: crenças, pensamentos, ideias, juízos,
sentenças, asserções, expressões vocais e proposições. Contudo, é de
costume usar a expressão “portadores-de-valor-de-verdade” sempre
que queremos assumir uma postura neutra dentre essas opções.
Dois pontos devem ser lembrados:
i. Esses portadores-de-valor-de-verdade devem ser tais que se
possa confiar que não vão mudar seu valor de verdade.
ii. Devemos saber distinguir entre portadores-de-valor-deverdade secundários e primários.3
Na literatura contemporânea quase somente proposições são
mencionadas como portadores-de-valor-de-verdade.
1.2 A relação de correspondência
Como vimos, a correspondência se dá entre o portador-de-valorde-verdade e a realidade. Mas o que é que conecta ou relaciona, de
modo geral, um portador-de-valor-de-verdade à realidade? Em outras
palavras, o que é a noção de correspondência?
Discutiremos duas interpretações sobre essa noção: a correspondência como correlação, também conhecida como relação fraca, e a
correspondência como congruência, também conhecida como relação
forte (Grayling, 1997, p. 142-143; Pitcher, 1964, p. 9-14).
A correlação pode ser entendida como o emparelhamento de
itens, ou membros de dois ou mais grupos de coisas, um-para-um, de
acordo com algumas regras ou princípios. Podemos considerar, por
3 Portadores-de-valor-de-verdade secundários são derivados de valores-deverdade de portadores-de-valor-de-verdade primários, cujos valores-de-verdade não
são derivados de nenhum outro portador-de-valor-de-verdade.
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A concepção semântica da verdade e a teoria da verdade-como-correspondência
exemplo, o sentido de correspondência um-para-um dos matemáticos. Suponhamos que coloquemos a série de números naturais com
uma correspondência um-para-um com a série dos números naturais
pares. Assim,
Números naturais:
Números naturais pares:
1
|
2
2
|
4
3
|
6
4
|
8
5 ... n
| |
10 ... 2n
Podemos dizer que da série dos naturais o número 1 corresponde
para o número 2 da série dos naturais pares, 4 da série dos naturais
corresponde para o 8 da série dos naturais pares, e assim por diante.
Isso segue do seguinte raciocínio: dado um número xi de um grupo,
no caso, o conjunto dos números naturais, e a regra y = 2x, há um
único membro yi do outro grupo, no caso, o conjunto dos números
naturais pares. E tudo isso significa dizer que xi corresponde para yi,
ou seja, xi do conjunto dos números naturais e yi do conjunto dos
números naturais pares estão correlacionados ou emparelhados um
com o outro em concordância com a regra estipulada. Claramente, nós
temos especificado uma regra ou princípio para a correspondência,
dado que na ausência de um contexto, ou na ausência da indicação
de um grupo, ou na ausência da explicitação de uma regra, dizer “5
corresponde para 10” não fica compreensivo.
Segundo Kirkham (1992, p. 174), Aristóteles foi o primeiro a
apresentar uma concepção da verdade-como-correspondência como
correlação, em sua formulação: “Dizer daquilo que é que não é, ou
daquilo que não é que é, é falso, enquanto dizer daquilo que é que é,
ou daquilo que não é que não é, é verdadeiro”.
Outro filósofo que defende a visão de correspondência como
correlação é J. L. Austin (1950). Sua visão é a de que todo portadorde-valor-de-verdade está correlacionado a um fato possível; se esse
fato possível realmente acontece, então o portador-de-valor-de-verdade é verdadeiro; caso contrário, é falso. A verdade, para Austin, é
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considerada como uma relação quaternária entre uma afirmação (é a
informação transmitida por uma sentença declarativa), uma sentença,
um estado de coisas (um fato possível), e um tipo de estado de coisas.
A correspondência é determinada por convenções linguísticas, que
especificam se o estado de coisas ao qual uma sentença se refere é do
tipo apropriado para torná-la verdadeira. Para Austin (1950, p. 28), as
palavras e o mundo são correlacionados de duas formas:
• por meio de convenções descritivas, correlacionando palavras (sentenças) com tipos de situações encontrados no mundo (estados de
coisas), e
• por convenções demonstrativas, correlacionando palavras (afirmações, isto é, sentenças realmente emitidas) com situações de fato
encontradas no mundo em ocasiões particulares.
Assim, uma afirmação é considerada verdadeira quando “o estado de coisas particular ao qual está correlacionada pelas convenções
demonstrativas” é de um tipo segundo o qual a sentença usada para
fazê-la está correlacionada pelas convenções descritivas. Por exemplo,
suponhamos que alguém, S, em um instante t, diga “X está dormindo”. As convenções descritivas correlacionam as palavras com situações em que as pessoas dormem, e as convenções demonstrativas
correlacionam as palavras com a real atividade de X no instante t. O
que S diz em t será verdadeiro se a situação real, correlacionada com
as palavras que S profere pelas convenções demonstrativas, é do tipo
correlacionado com aquelas palavras pelas convenções descritivas.
Por outro lado, a correspondência como congruência pode ser
entendida em termos de “encaixar” ou “ajustar”, como quando nós
dizemos que extremidades reunidas de um pedaço de papel rasgado
se encaixam ou se ajustam. Tais teorias da verdade alegam que há um
isomorfismo estrutural entre os portadores-de-valor-de-verdade e os
fatos aos quais eles correspondem quando o portador-de-valor-deverdade é verdadeiro.
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A concepção semântica da verdade e a teoria da verdade-como-correspondência
Segundo Bertrand Russell, em seus artigos “Da Natureza da
Verdade e da Falsidade”, de 1910, e “Verdade e Falsidade”, de 1912,
a correspondência consiste em um isomorfismo estrutural entre as
partes de uma crença e as partes de um fato; é a correspondência daquilo que se acredita ser verdadeiro ou falso com os fatos que tornam
as crenças verdadeiras ou falsas.
Para Russell (1910, p. 155-157; 1912, p. 21), acreditar consiste em
uma relação do crente com vários objetos unidos por outra relação.
Por exemplo, a crença
A acredita que B ama C,
consiste no A (o sujeito) relacionado a B (um termo-objeto), C (outro termo-objeto) e na relação amar (a relação-objeto). O sujeito A
anuncia a crença de que “B ama C” e esse enunciado será verdadeiro
“quando uma pessoa que acredita nele acredita de modo verdadeiro
e, falso, quando uma pessoa que acredita nele acredita de modo falso”
(RUSSELL, 1910, p. 152). Dessa forma, Russell restringe a natureza da
verdade à verdade das crenças, uma vez que a verdade dos enunciados
é uma noção derivada da verdade das crenças.
Um problema ocorre quando o enunciado é apenas um objeto
(RUSSELL, 1910, p. 155). Por exemplo, a crença “Rodrigo acredita
que Sócrates não existiu” é composta apenas do sujeito “Rodrigo”, do
objeto “Sócrates não existiu” e da relação de acreditar. O enunciado,
nesse caso, é o objeto “Sócrates não existiu”, que pode ser verdadeiro
ou falso, dependendo se existe o fato que Sócrates existiu. O problema
surge quando a veracidade e a falsidade da crença estão dependendo
da existência ou não de uma única entidade, no caso, “Sócrates”.
Russell considera, nesse caso, a crença verdadeira sustentável, pois a
crença é a relação da mente do sujeito com o objeto que existe. Mas
quando é falsa é insustentável, pois a relação da crença não pode ser
uma relação com nada. E ele conclui:
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Devemos portanto abandonar a perspectiva de que as crenças consistem numa relação com um único objeto. Não podemos sustentar esta
perspectiva com relação às crenças verdadeiras enquanto a rejeitamos
com relação às falsas, pois isto faria uma diferença intrínseca entre
crenças verdadeiras e falsas, e permite que descubramos (o que é obviamente impossível) a verdade ou a falsidade de uma crença simplesmente
por exame da natureza intrínseca da crença. Desta forma devemos nos
dirigir à teoria de que nenhuma crença consiste numa relação com um
único objeto (RUSSELL, 1910, p. 155, grifo do autor).
Assim, o problema está em admitir que, quando acreditamos de
modo falso, não existe nada em que estamos acreditando. A maneira
de escapar a essa dificuldade consiste em sustentar que, se acreditamos
de modo verdadeiro ou se acreditamos de modo falso, não existe uma
única coisa em que estamos acreditando. Quando acreditamos que “B
ama C”, temos diante de nós não um objeto, mas vários. Dessa forma,
a crença é uma relação da mente com vários outros termos: quando
esses outros termos têm entre si uma relação “correspondente”, a
crença é verdadeira; quando não, ela é falsa.
A descrição da verdade, segundo Russell, requer uma congruência
entre a relação da crença e uma segunda relação chamada “um fato”.
No caso, a crença “A acredita que B ama C” requer uma congruência
entre os termos da crença (A, acreditar, B, amar, C – nessa ordem) com
o fato que tem B, amar e C (nessa ordem) como seus termos. Isto é,
os objetos relacionados dessa forma constituem uma “unidade complexa”, que, quando relacionados na mesma ordem em que também
estão na minha crença, constituem o “fato correspondente à crença”.
Logo, uma crença é verdadeira quando corresponde a certa unidade
complexa – um fato – e é falsa quando não corresponde. Vejamos
um exemplo concreto (RUSSELL, 1912, p. 20-21),
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A concepção semântica da verdade e a teoria da verdade-como-correspondência
Do lado esquerdo da figura está a crença – Othello acredita que
Desdemona ama Cássio – com seus cinco termos e a seta vertical,
que simboliza a direção da relação. Do lado direito está o fato de
que Desdemona ama Cássio, com seus três termos e uma seta vertical indicando sua direção. Pode-se dizer que as duas relações – a
crença e o fato – se encaixam, porque cada um dos dois termosobjeto (Desdemona e Cássio) aparecem em ambas as relações, e a
relação-objeto (amar) aparece em ambas, e a crença e o fato têm a
mesma direção. Se uma dessas condições não fosse satisfeita, a crença e o fato não se encaixariam e a crença seria falsa. Dessa forma,
a crença seria falsa se a direção do fato fosse diferente (se Cássio
amasse Desdemona), se um dos termos-objeto fosse diferente (se
Desdemona amasse Rafael) ou se a relação-objeto fosse diferente
(se Desdemona odiasse Cássio).
A correlação e a congruência parecem ser diferentes concepções
de correspondência (GRAYLING, 1997, p. 143). Isso é indicado pelo
fato de que podemos dizer que as metades de uma folha de papel
rasgada se ajustam (correspondem) exatamente ou perfeitamente
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quando reunidas. Porém, não podemos dizer de 3, da série de números
naturais, que corresponde exatamente ou perfeitamente para o 6, da
série dos números naturais pares.
Estas duas interpretações da relação de correspondência trazem
dificuldades particulares. A maior dificuldade para elaborarmos ou
entendermos uma teoria baseada na correlação está na regra ou no
princípio que norteia a correspondência entre portador-de-valorde-verdade e o fato. Para tentarmos entender uma teoria desse tipo
devemos compreender a regra de correspondência. Nas teorias baseadas na congruência, dificuldades aparecem na conexão entre as
partes de um portador-de-valor-de-verdade e as partes do fato que
ele descreve, visto que o portador-de-valor-de-verdade como um
todo é congruente com o fato como um todo. Podemos questionar
qual é a relação entre essas partes, que tipos de coisas podem ser
constituintes de um portador-de-valor-de-verdade ou de um fato,
como fazer para determinar quantos constituintes um portador-devalor-de-verdade ou um fato tem e quais as regras para fazê-lo.
1.3 Realidade – realismo e não-realismo
Vimos que a correspondência relaciona um portador-de-valor-deverdade com a realidade, e essa relação se dá, sob pelo menos as duas
possíveis interpretações descritas, por correlação ou congruência.
Assim, falta-nos compreender o significado de “realidade”.
A realidade ou parte dela é tratada, geralmente, sob os nomes:
“fatos” ou “estados de coisas”. Kirkham (1992) caracteriza estado de
coisas e fatos da seguinte maneira:
Utilizo o termo “estado de coisas” no seu sentido filosófico (que não é o
usual): “estado de coisas” não é um sinônimo para “fato” ou “situação”,
porque fatos potenciais mas não realizados são também estados de coisas.
Até mesmo fatos impossíveis contam como estados de coisas, embora
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A concepção semântica da verdade e a teoria da verdade-como-correspondência
esses estados de coisas nunca ocorram em nenhum mundo possível.
Talvez a melhor maneira de se definir “estados de coisas” seja dizer que
qualquer coisa cuja ocorrência possa ser asseverada (com verdade ou
falsidade) por meio de uma sentença declarativa conta como um estado
de coisas, sendo que nada mais, além disso, conta. [...]. Um fato, então,
é um estado de coisas que ocorre no mundo real (KIRKHAM, 1992,
p. 109-110).
Discussões filosóficas sobre a realidade podem ser subordinadas
a discussões sobre o realismo e o não-realismo. E muitas ideias sobre
o realismo e o não-realismo estão relacionadas com as ideias sobre
verdade.
Segundo Dummett (apud Grayling, 1997, p. 254), realismo
é a tese de que o mundo existe e tem características independentes
de algum conhecimento ou experiência. Assim, portadores-de-valorde-verdade sobre o mundo são verdadeiros ou falsos em virtude
do modo como as coisas estão no mundo, quer nós não saibamos
ou possamos vir a saber como as coisas são no mundo e, portanto,
independentemente de sabermos ou não o valor-de-verdade desses
portadores-de-valor-de-verdade.
Dessa forma, uma teoria realista da verdade parece impor certa
condição ontológica à verdade de um portador-de-valor-de-verdade.
Segundo Putnam (apud Grayling, 1997, p. 285-286), o realismo
metafísico é a tese de que o mundo consiste de uma totalidade fixa
de objetos independentes da mente. E argumenta que quem sustenta
essa visão acredita que há exatamente uma verdade e uma descrição
completa do mundo; então, verdade consiste em uma forma de correspondência entre a descrição e o mundo.
Para Putnam, verdade-como-correspondência exibe independência (do que o homem sabe ou pode vir a saber), bivalência (uma
sentença apenas pode ser verdadeira ou falsa) e singularidade (não
pode ser mais que uma verdade ou descrição completa da realidade).
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E também, para Dummett, a bivalência é uma característica marcante
do realismo.
Segundo os realistas, verdade e falsidade independem de nossa
capacidade de decidir qual o valor de qualquer portador-de-valor-deverdade.
Em resumo, uma teoria da verdade realista sustenta que, para que
um portador-de-valor-de-verdade seja verdadeiro, um certo estado de
coisas deve ocorrer de modo independente da mente. Por exemplo, a
crença de que “a neve é branca” é verdadeira se, e somente se, a neve
for branca. De acordo com o realismo, “a neve é branca” é verdadeira
se, e somente se, a neve é branca no mundo externo, independente
das nossas mentes.
Uma teoria não-realista é qualquer teoria que negue o realismo,
ou seja, nega que, se o mundo existe, ele tem características independentes de algum conhecimento ou experiência. Ou seja, a existência
daquilo que dizemos ser “do mundo” depende da percepção por
alguma mente. Assim, não é uma condição para a verdade da crença
“a neve é branca” que neve realmente seja branca em um mundo
externo.
2 A concepção semântica da verdade
segundo Alfred Tarski
O lógico e matemático polonês Alfred Tarski inicia, após 1920, o
projeto de fornecer rigorosas definições para noções úteis em metodologia científica. Em 1933 ele publica o artigo “O Conceito de Verdade em Linguagens Formalizadas”, em que discute o critério segundo
o qual uma definição de “sentença verdadeira” deve satisfazer e dá
exemplos de tais definições para linguagens formais particulares.
A teoria da verdade de Alfred Tarski apresentada nesse artigo e
as teorias de seus sucessores desfrutam de um curioso duplo estado.
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A concepção semântica da verdade e a teoria da verdade-como-correspondência
Por um lado, são teorias matemáticas caracterizadas por ricas classes
de resultados matemáticos. Por outro, são creditadas por filósofos
por trazerem uma análise filosoficamente significativa da natureza da
verdade (SOAMES, 1984, p. 397).
Segundo Soames (1984, p. 400-401), Tarski possuía duas motivações:
1. remover a dúvida de certas noções científicas de verdade e
2. eliminar o que ele toma ser a incoerência implicada por nossa
noção ordinária de verdade trazida pela antinomia do mentiroso.
Para Tarski, estas duas motivações são conectadas, dado que a antinomia constitui uma das origens do ceticismo sobre a possibilidade
de construção das concepções da verdade.
Tarski empreendeu três tarefas (LYNCH, 2001, p. 324):
1. Dizer o que pode contar como uma definição satisfatória de
“sentença verdadeira” para uma dada linguagem formal e
construir uma teoria da verdade que seja formalmente correta
e materialmente adequada.
2. Fazer um conceito de verdade fisicamente respeitável.
3. Fazer uma teoria que seja imune à antinomia do mentiroso.
Assim, para Tarski (1944, p. 9-10), o problema principal é dar uma
definição satisfatória da verdade, é construir uma definição que seja
materialmente adequada e formalmente correta, ou seja, que preserve
o real e intuitivo significado da noção de verdade e que respeite as
regras formais a que deveremos submetê-la. Isso levando em consideração a sua adesão ao fisicalismo.
O fisicalismo é a tese de que a linguagem da física é uma “linguagem
universal”, que serve para a expressão de toda a ciência empírica
(SANTOS, 2003, p. 123). Não significa isso que, de fato, a química, a
biologia, a psicologia, a sociologia etc. utilizem a linguagem da física
para expressar as suas teorias (ou sequer que a devam utilizar). O que
se defende é, antes, que qualquer sentença desses outros domínios da
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ciência possa ser traduzida (segundo regras de dedutibilidade recíproca)
numa sentença materialmente equivalente da linguagem da física.
Para que esta traduzibilidade seja garantida, será preciso que todos os
conceitos e expressões de qualquer área científica possam ser definidos
usando-se apenas conceitos e expressões da física (eventualmente, com
o auxílio também de alguma terminologia lógico-matemática).
Segundo Soames (1984, p. 401), a versão do fisicalismo de Tarski é
“moderada”, permitindo tanto elementos físicos quanto matemáticos.
Aproximadamente, este “fisicalismo moderado” afirma que:
• Todos os fatos são físicos ou matemáticos.
• Todas as afirmações científicas (ou descritivas) são redutíveis
a características físicas ou matemáticas.
• Todos os conceitos científicos (ou descritivos) são definidos
em termos de conceitos físicos ou matemáticos.
Tarski (1944, p. 17) propõe o nome “Concepção Semântica da
Verdade” para designar a sua teoria da verdade. Sobre semântica, ele
tinha em mente o seguinte: “A semântica é uma disciplina que – grosso modo – se ocupa de certas relações entre as expressões de uma
linguagem e os objetos (ou ‘estado de coisas’) a que se ‘referem’ essas
expressões” (TARSKI, 1944, p. 17). Ele chama o conceito de verdade
de conceito semântico, porque ela pode ser definida em termos de
outros conceitos semânticos, especialmente do conceito de satisfação
(a respeito do qual falaremos mais tarde). Assim, para assegurar que
a semântica se enquadrasse dentro do seu fisicalismo, Tarski precisou
reduzir todos os conceitos semânticos a conceitos físicos ou lógicomatemáticos. Sua estratégia era definir todos os conceitos semânticos,
exceto satisfação, em termos de verdade. A verdade era então definida
em termos de satisfação, e esta era definida somente em termos de
conceitos físicos e lógico-matemáticos (KIRKHAM, 1992, p. 204).
Por essas razões, Tarski afirma que “o problema de definir a verdade
se mostra estreitamente relacionado com o problema mais geral de
aplicar os fundamentos da semântica teórica” (1944, p. 18).
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A concepção semântica da verdade e a teoria da verdade-como-correspondência
Assim, também, o portador-de-valor-de-verdade escolhido por
Tarski precisa necessariamente ser algo físico (uma cadeia de sons
ou de sinais concretos) ou lógico-matemático, o qual, então, será as
expressões linguísticas, mais especificamente, as sentenças (TARSKI,
1933, p. 156; TARSKI, 1944, p. 10-11).
Como as sentenças, as linguagens possuem um papel fundamental
na construção da sua concepção. Nas palavras do próprio Tarski: “[...]
sempre devemos relacionar a noção de verdade, assim como a sentença, a uma linguagem específica; pois é óbvio que a mesma expressão
que é uma sentença verdadeira em uma linguagem pode ser falsa ou
sem sentido em outra” (TARSKI, 1944, p. 11).
Para Tarski (1969, p. 113), a definição de verdade deve ser relativa
a uma linguagem particular. Ele afirma que a verdade é um atributo
das sentenças (enquanto objetos físicos, ou classes de tais objetos),
mas acrescenta que ela é um atributo que as sentenças possuem ou
não possuem, dependendo, entre outras coisas, do seu significado e
da sua estrutura gramatical na linguagem em questão.
Por isso, de certa maneira, não é correto falar da “definição de
verdade de Tarski”, mas sempre uma definição de verdade referente
a uma dada linguagem. No famoso artigo de 1933, o que Tarski faz é
apresentar a definição de verdade para uma linguagem particular, no
caso, a linguagem do Cálculo de Classes, e depois descreve, de um
modo geral, como é que o mesmo método de construção da definição
pode ser aplicado a outras linguagens com uma estrutura mais ou
menos semelhante. Nas palavras dele: “Não pretenderemos de todo
dar aqui uma definição geral única do termo [“sentença verdadeira”].
O problema que nos interessa será dividido numa série de problemas
separados, cada um dos quais relativo a uma só linguagem” (TARSKI,
1933, p. 153).
Portanto, não há apenas uma definição da verdade. De fato, nem
mesmo temos duas ou mais concepções da verdade aqui. O que temos
é uma concepção da “verdade-em-L1”, uma concepção da “verdadeem-L2”, e assim por diante.
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A relativização é necessária pelo fato de que as linguagens tratadas
são diferentes em significado e estrutura e, principalmente, porque
Tarski deseja eliminar termos semânticos primitivos, pois considera que
nenhuma das noções semânticas é, pré-teoricamente, suficientemente
clara para ser empregada com segurança (HAACK, 1978, p. 151).
Assim, procurando evitar termos semânticos primitivos e considerando suas condições de definição da verdade – formalmente
correta e materialmente adequada –, Tarski restringe consideravelmente as linguagens de sua investigação. Em outras palavras, ele
deseja construir uma concepção infalível, neutra em relação a outras
concepções e teorias, mesmo que isso torne a concepção da verdade
exclusiva de poucas linguagens.
Por exemplo, as línguas naturais não respeitam as condições
impostas; consequentemente, falham na construção da concepção
semântica da verdade. Nas palavras de Tarski,
[...] para todas as linguagens naturais ou faladas – o significado do problema [da definição da verdade] é mais ou menos vago, e sua solução
apenas poderá ter um caráter aproximado (TARSKI, 1944, p. 21).
Desse modo, Tarski se dedica principalmente ao estudo das linguagens formais. Ele é um daqueles pensadores que veem nas línguas
naturais um meio inadequado para a expressão e o desenvolvimento
da ciência e que acalentam a esperança de que linguagens mais apropriadas a esse fim possam finalmente substituir a linguagem de todos
os dias no discurso científico (TARSKI, 1944, p. 21; TARSKI, 1969,
p. 112-113). E chega a afirmar:
Linguagens formalizadas são completamente adequadas para a apresentação da lógica e de teorias matemáticas; e me parece que não há
nenhuma razão essencial porque elas não podem ser adaptadas para uso
em outras disciplinas científicas e em particular para o desenvolvimento
das partes teóricas das ciências empíricas (TARSKI, 1969, p. 114).
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A concepção semântica da verdade e a teoria da verdade-como-correspondência
Tarski (1969, p. 116) acentua que sua definição da verdade, em
especial para linguagens científicas, não trata de um critério de verdade, ou seja, a definição em si não é um critério prático para decidir se
uma sentença particular em uma linguagem é verdadeira ou falsa. Esta
é uma tarefa da própria ciência, e não da lógica ou de uma teoria da
verdade. Ele exemplifica esse fato a partir da seguinte sentença: “As
três bissetrizes de todo triângulo se encontram em um único ponto”.
Se estamos interessados em saber se essa sentença é verdadeira e se
queremos uma resposta a partir da definição da verdade, a única informação que encontraremos é que a sentença é verdadeira se as três
bissetrizes de um triângulo sempre se encontram em um ponto, e é
falsa se elas não se encontram. Apenas uma investigação geométrica
nos permitirá decidir qual é realmente o caso.
Assim, ele cita a noção de prova ou demonstração como um procedimento de averiguação da verdade para sentenças. Segundo Tarski
(1969, p. 117-120), essa noção passou por duas etapas. Inicialmente,
Uma demonstração era uma atividade intelectual que tinha como objetivo
convencer a nós próprios e aos outros da verdade de uma sentença em
discussão; mais especificamente, ao desenvolver uma teoria matemática,
eram usadas demonstrações para convencer a nós próprios e aos outros
de que uma sentença sob discussão tinha de ser aceita como verdadeira
a partir do momento em que algumas outras sentenças tivessem sido
previamente aceitas como tais. Não se colocavam quaisquer restrições
aos argumentos usados nas demonstrações, exceto a de que eles tinham
de ser intuitivamente convincentes (TARSKI, 1969, p. 118).
A necessidade que então surgiu de submeter a noção de demonstração a uma análise mais profunda é uma segunda etapa num processo que teve seu início com a criação do método axiomático. Desse
modo, a noção intuitiva de demonstração é substituída por uma nova
noção, e exatamente definida como demonstração formal. Mas para
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que, relativamente a uma certa teoria, se possa caracterizar de modo
puramente formal a noção de demonstração, é preciso começar por
proceder à formalização da linguagem da teoria.
Enfim, relacionando as noções de prova e verdade, Tarski faz a
seguinte pergunta: “O conjunto de todas as sentenças formalmente
demonstráveis coincide com o conjunto de todas as sentenças verdadeiras?” (1969, p. 121). A conclusão dele é que a resposta é negativa.
Sendo assim, uma importante contribuição da concepção semântica
da verdade é a apresentação da noção de verdade como estando relacionada à noção de prova, mas, ao mesmo tempo, sendo distinta
desta. Em Tarski (1933, p. 198), a resposta dessa pergunta é dada em
forma de dois teoremas e um lema:
Teorema 5: Toda sentença demonstrável é uma sentença verdadeira.
Lema D: Todo axioma é uma sentença verdadeira.
Teorema 6: Existem sentenças verdadeiras que não são demonstráveis.4
Ou seja, há sentenças formuladas na linguagem que são verdadeiras, mas não podem ser demonstradas na base dos axiomas e regras
de prova. Os próprios axiomas não podem ser demonstrados, mas são
verdadeiros (Lema D). Assim, a noção de verdade alarga o conjunto de
sentenças verdadeiras, que incluem sentenças demonstráveis e sentenças não demonstráveis mas verdadeiras. E Tarski finaliza dizendo que
“não há conflito entre noção de verdade e prova no desenvolvimento
da matemática; as duas noções não estão em guerra, mas vivem em
tranquila coexistência” (1969, p. 125).
As demonstrações desses teoremas se encontram em Tarski, 1933, p. 198-199.
4
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A concepção semântica da verdade e a teoria da verdade-como-correspondência
2.1 Definição de verdade
Para Tarski, uma definição satisfatória de verdade será uma definição materialmente adequada e formalmente correta. Desse modo,
em primeiro lugar, devemos especificar a estrutura da linguagem e,
em segundo lugar, estabelecer o critério para a adequação material,
conhecido como convenção T. A definição geral da verdade será uma
conjunção lógica de todas as sentenças-T da linguagem (TARSKI,
1944, p. 16).
Vejamos um exemplo:
Vamos estabelecer a nossa linguagem formalmente correta, que
chamaremos de L1, de um caso particular do Cálculo Sentencial de
1ª ordem:
Vocabulário de L1:
Conectivos sentenciais: Λ, V
Parênteses: ( , )
A definição de sentenças de L1 é dada a seguir:
Usaremos A e B para representar sentenças.
i. A é uma sentença atômica.
ii. B é uma sentença atômica.
iii. Toda sentença atômica é uma sentença.
iv. (A Λ B) é uma sentença.
v. (A V B) é uma sentença.
vi. Nada mais é uma sentença.
Assim, as únicas sentenças que nossa linguagem L1 possui são:
A, B, (A Λ B) e (A V B).
Então, queremos uma teoria que implique todas as sentenças-T
seguintes:
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“A” é verdadeira se, e somente se, A.
“B” é verdadeira se, e somente se, B.
“(A Λ B)” é verdadeira se, e somente se, (A Λ B).
“(A V B)” é verdadeira se, e somente se, (A V B).
Portanto, uma definição completa da verdade para essa linguagem
seria uma conjunção lógica de todas essas sentenças-T. A conjunção
seguinte é exatamente esse tipo de conjunção lógica:
Para toda sentença s da linguagem L1, s é verdadeira se, e somente se,
A, e s é idêntico a “A”,
ou B, e s é idêntico a “B”,
ou (A Λ B), e s é idêntico a “(A Λ B)”,
ou (A V B), e s é idêntico a “(A V B)”.
Nós, assim, chegamos à sentença que pode realmente ser aceita
como a desejada definição geral da verdade: ela é formalmente correta e
adequada no sentido que implica todas as equivalências da convenção T.
A linguagem escolhida possui um vocabulário mínimo para reduzir o trabalho que deve ser realizado para definir a verdade. Mas ela é
o suficiente para observarmos que a conjunção lógica de um número
limitado de sentenças é viável. Porém, se houvesse um número infinito
de sentenças, essa conjunção lógica seria inviável.
A questão é a seguinte: de que modo podemos expressar para cada
sentença de uma linguagem L, formalizada e com meios para formar
um número infinito de sentenças, a sentença-T que lhe corresponde?
Uma vez que L tenha infinitas sentenças, o método de formar a conjunção de todas as sentenças-T é inaplicável. Mas se as sentenças de
L forem formadas por aplicações sucessivas de um conjunto finito de
operações a um conjunto finito de sentenças simples e se for possível
determinar de que modo a verdade ou a falsidade das sentenças compostas dependem da verdade ou da falsidade das sentenças simples,
a dificuldade pode ser vencida. Assim, para resolver esse problema,
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A concepção semântica da verdade e a teoria da verdade-como-correspondência
Tarski desvia sua atenção para outro conceito: o de satisfação. Pois,
satisfação pode ser definido através do método recursivo, utilizando
objetos concretos (sequências de objetos) e por ser independente do
termo “verdadeiro”. A ideia é definir o conceito semântico de satisfação e depois definir verdade em termos de satisfação.
3 Comparando a concepção de Tarski
com a teoria da correspondência
Os textos de Tarski não são conclusivos em relação à pergunta se
sua concepção semântica da verdade é uma concepção da verdadecomo-correspondência. Em certos momentos afirma que sua concepção deve caracterizar a noção cotidiana de verdade e que não pretende
construir nova noção, mas sim capturar o real significado da noção
clássica de verdade (1944, p. 9-10). Por outro lado, Tarski também
deixa claro que nenhuma das formulações da concepção da verdadecomo-correspondência é satisfatória,5 inclusive a aristotélica.
Enfim,
(1)Tarski pretendia escrever uma concepção da verdade como
uma concepção da verdade-como-correspondência?
(2)Independentemente de suas intenções, a concepção da verdade
de Tarski é uma concepção da verdade-como-correspondência?
5 Como formulações representativas da concepção da verdade-comocorrespondência, Tarski menciona as seguintes (TARSKI, 1933, p. 153-155; TARSKI,
1944, p. 12; TARSKI, 1969, p. 102): (1) Dizer daquilo que é que não é, ou daquilo que
não é que é, é falso, enquanto dizer daquilo que é que é, ou daquilo que não é que não
é, é verdadeiro (Aristóteles). (2) Uma sentença verdadeira é uma sentença que diz que o
estado de coisas é tal e tal e o estado de coisas é efetivamente tal e tal. (3) A verdade de
uma sentença consiste na sua concordância (ou conformidade, ou correspondência) com
a realidade. (4) Uma sentença é verdadeira se designa um estado de coisas existente.
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Essas duas perguntas dividem filósofos, que discutem e discordam
sobre as respostas dadas em relação a (1), a (2) e inclusive a ambas.
Richard Kirkham cita alguns exemplos de filósofos que se pronunciaram diante dessas questões:
J. L. Mackie, Susan Haack e Herbert Keuth defendem respostas negativas a essas questões, enquanto Donald Davidson, Karl Popper,
Wilfred Sellars e Mark Platts as respondem afirmativamente. Gerald
Vision dá uma resposta negativa a (2), enquanto Hartry Field e A. J.
Ayer a respondem com um sim (KIRKHAM, 1992, 242).
O próprio Kirkham responde sim à questão (1), mas deixa dúvidas em relação à resposta da segunda.
Agora tentaremos comparar a concepção de Tarski com a concepção correspondentista, mas com o intuito principal de expor o
valor da concepção semântica da verdade.
Para compararmos a concepção da verdade de Tarski com as
teorias da verdade-como-correspondência, devemos nos ater aos três
aspectos básicos das teorias da correspondência:
1. o portador-de-valor-de-verdade;
2. a correspondência, ou seja, a relação de verdade;
3. a “realidade” à qual corresponde o portador-de-valor-deverdade.
Em relação ao portador-de-valor-de-verdade, pouca influência
há nessa comparação, pois Tarski se utiliza das “sentenças”, e muitos
outros autores de teorias da correspondência aceitam esse portadorde-valor-de-verdade. O problema está na relação de correspondência
e no que podemos conceber por realidade em linguagens formais.
Primeiramente, alguns críticos acreditam que a relação de correspondência está na definição de verdade através do conceito de
satisfação. Porém, a definição de satisfação é mero artifício para a
construção da definição da verdade (KEUTH, 1978, p. 423). Ou seja,
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A concepção semântica da verdade e a teoria da verdade-como-correspondência
a definição de satisfação não apaga a definição da verdade dada pela
convenção T. Não está contida na definição de satisfação a essência da
definição da verdade de Tarski.Desse modo, a discussão deve versar
apenas em cima da convenção T:
(T) X é verdadeira se, e somente se, p,
em que a letra “p” deve ser substituída por qualquer sentença da
linguagem, e “X”, por um nome dessa sentença.
A característica da convenção T que expressa a relação de correspondência deve figurar no contraste entre o lado esquerdo (“X é
verdadeira”) e direito (“p”) das instâncias da sentença-T. Entretanto,
se o lado direito da bicondicional corresponde à realidade expressando uma condição necessária e suficiente para a verdade da sentença
mencionada no lado esquerdo,então “p” o expressa de modo trivial,
e não informativo. Não fica claro o que é “correspondência”, ou seja,
a convenção T não ameniza a perplexidade desse termo semântico. A
única informação que temos é que há uma relação extensional (TARSKI, 1944, p. 35). Tentarmos revelar algo mais dessa bicondicional é
tirarmos conclusões que não estão expressas nos textos de Tarski.
Ao tratarmos de realidade na convenção T, devemos lembrar
que Tarski estava interessado apenas nas linguagens formalizadas.
Tais linguagens não possuem exclusivamente objetos empíricos, mas
também objetos ideais, como, por exemplo, os objetos da geometria
euclidiana (ponto, reta e plano, entre outros). A ideia de realidade
para esses tipos de linguagem é problemática, principalmente quando
tentamos especificá-la como realista ou não. Assim, devemos retomar
Tarski e lembrar que ele afirma que a concepção semântica da verdade é completamente neutra em respeito à posição do realismo, à do
idealismo, à do empirismo ou à da metafísica.
Essas discussões nos levam a concluir que Tarski não estava preocupado em chegar a uma conclusão exata sobre a questão se a concepção
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semântica da verdade é uma concepção da verdade-como-correspondência. Seu texto parece sempre deixar margem para dúvidas, e isso nos
sugere que provavelmente ele tenha tido um motivo para tal.
Talvez ele não estivesse preocupado em “reabilitar” a teoria da
correspondência, mas apenas intencionasse buscar um sentido preciso
e formal que alcançasse o significado comum do termo “verdade”,
tendo, para tanto, partido da teoria clássica, sem necessariamente estar preocupado em permanecer nos moldes de uma teoria filosófica
específica; daí sua afirmação de neutralidade.
Portanto, não é relevante a definição tarskiana de que ela seja enquadrada em algum movimento filosófico, e não altera a essência da
definição pensá-la como sendo da linha da correspondência ou não.
Isso é fato, pois, se concluímos que ela é uma teoria da verdade-comocorrespondência, aceitamos que há uma relação de correspondência
na convenção T e que isso não infringe sua condição de adequação
material e correção formal. E se concluímos que não é uma definição
correspondentista, ela, então, simplesmente expressa uma definição
extensional da verdade, nada mais. Desse modo, o trabalho de Tarski
não esclarece a noção de correspondência, e a ausência de tal esclarecimento é precisamente uma posição filosófica por ele assumida
(RODRIGUES FILHO, 2006, p. 26). Logo, a questão, agora, deve
ser outra: Qual era a intenção de Tarski ao buscar construir uma
concepção da verdade nesses moldes?
A essa pergunta, Tarski responde concluindo com a neutralidade
de sua concepção:
Tem-se sustentado que – a causa de que uma sentença tal como “a neve
é branca” é considerada semanticamente verdadeira se a neve é de fato
branca – a lógica se encontra envolta de um realismo extremadamente
acrítico.
Se eu tivesse a oportunidade de discutir essa objeção com o autor [...]
lhe pediria que eliminasse as palavras “de fato”, que não figuram na
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A concepção semântica da verdade e a teoria da verdade-como-correspondência
formulação original e são equivocadas, ainda quando não afetam o
conteúdo. Pois estas palavras produzem a impressão de que a concepção
semântica da verdade tem por finalidade estabelecer as condições em que
teremos a garantia de poder afirmar qualquer sentença e, em particular,
qualquer sentença empírica.
Em efeito, a definição semântica da verdade nada implica em respeito
às condições em que pode afirmar uma sentença tal como (1) A neve é
branca. Apenas implica que, sempre que afirmamos ou rejeitamos essa
sentença, devemos estar atentos para afirmar ou rejeitar a sentença correlacionada (2) A sentença “a neve é branca” é verdadeira.
De maneira que podemos aceitar a concepção semântica da verdade sem
abandonar nenhuma atitude gnosiológica que possamos ter tido; seguimos sendo realistas ingênuos, realistas críticos ou idealistas, empiristas
ou metafísicos: o que tenhamos sido antes. A concepção semântica é
completamente neutra no que faz respeito a todas essas posições (TARSKI, 1944, p. 55).
Uma instância do esquema (T) não fornece um critério que possibilite decidir se a sentença é verdadeira ou falsa, mas apresenta as
condições sob as quais podemos definir a verdade e o faz utilizando
as próprias sentenças da linguagem. Assim, um ponto essencial do
argumento de Tarski é que as instâncias de (T) são definições de verdade satisfatórias, independentemente de qualquer posição filosófica,
porque fornecer um tal critério de decisão não é tarefa de uma definição da verdade (RODRIGUES FILHO, 2006, p. 46). O’Connor
(1975) em seu livro The correspondence theory of truth expressa isso de
maneira significativa:
Como sabemos que, por exemplo, a neve satisfaz “x é branca” sem já
sabermos que a sentença “a neve é branca” é verdadeira [?] [...]. De
fato, é óbvio que não podemos identificar as coisas individuais que
satisfazem uma sentença aberta sem conhecer os valores de verdade
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das sentenças fechadas resultantes de substituirmos, nas sentenças
abertas, as variáveis não ligadas por nomes de coisas individuais. Sendo
assim, não é uma explicação da verdade e da falsidade em termos de
satisfação claramente circular?
A essa objeção, um defensor da teoria semântica da verdade responderá
que a teoria pretende apenas fornecer uma definição clara e precisa de
verdade. Ela não pretende oferecer um método para determinar quais
sentenças particulares são verdadeiras e quais são falsas. A resposta
é justificada, mas aponta para uma característica da teoria que limita
seriamente seu interesse filosófico. Pode-se pensar que é um tipo bem
estranho de definição, uma definição que não nos ajuda a identificar os
elementos da classe definida (O’CONNOR apud Kirkham, 1992,
p. 250-251).
Mas a definição de Tarski da verdade é de muita ajuda para
identificar elementos da classe que ela define, como é qualquer outra
definição de qualquer outro conceito. Para identificar os elementos
da classe dos “pássaros”, precisa-se primeiro de uma listagem dos elementos que podem ser candidatos a ser pássaro. Mas será preciso, então, sairmos e examinarmos os vários elementos para vermos se para
cada elemento dado ele atende ou não a certas condições. A definição
ajuda, ao nos dizer o que devemos procurar. Da mesma forma, para
determinar se uma sentença é verdadeira ou não, precisamos de dois
elementos: uma definição de verdade nos dizendo o que procurar e
um método de observação ou justificação por meio do qual possamos
fazer a procura. Devemos notar que, sem uma definição de verdade,
não saberíamos se deveríamos ou não examinar a neve e determinar
sua cor. A prova de que a teoria de Tarski fornece toda a ajuda que
qualquer outra definição de qualquer outro conceito fornece é que sua
teoria nos diz qual dessas coisas devemos fazer: nos diz o que procurar. A prova de que ela não nos fornece mais ajuda do que qualquer
outra definição é que, se estamos realmente na dúvida a respeito do
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A concepção semântica da verdade e a teoria da verdade-como-correspondência
valor de verdade de “a neve é branca”, ainda teremos de ir examinar
a neve e determinar sua cor (KIRKHAM, 1992, p. 251).
Em resumo, a definição da verdade tarskiana é dada através de
uma conjunção lógica das sentenças-T. Desse modo, ela exibe todas
as sentenças de uma linguagem formal ou, pelo menos, a forma geral
de cada uma delas em se tratando de linguagens com número infinito
de sentenças, as quais podem receber o valor de verdadeiro ou falso.
A definição em si não diz quais são verdadeiras e quais são falsas, mas
nos guia dizendo-nos quais são as possíveis candidatas. Cabe, então,
a uma “prova” ou “demonstração formal”, verificar quais delas são
verdadeiras e quais são falsas.
Considerações finais
O trabalho de Tarski não traz a solução final para a dificuldade
de definir a verdade, mas constitui um passo a mais para a discussão
da formalidade e da adequação da definição de verdade no campo
das investigações científicas. Sinal disso é a influência tarskiana nos
trabalhos de muitos outros pensadores, como:
• O autor Donald Davidson (2002), com sua “teoria do significado”.
Davidson descreve uma teoria do significado a partir das ideias
apresentadas por Tarski e acentua sua defesa em relação à importância
filosófica do trabalho de Tarski.
[...] uma teoria do significado para uma linguagem L mostra “como os
significados das sentenças dependem dos significados das palavras” se
ela contiver uma definição (recursiva) da verdade-em-L. [...]. Espero
que o que estou dizendo possa ser descrito em parte como uma defesa
da importância filosófica do conceito semântico de verdade de Tarski
(DAVIDSON, 2002, p. 30-31).
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Davidson tinha a intenção de explorar linguagens que Tarski havia
abandonado, como a linguagem natural. E alega que é possível aplicar
as técnicas de Tarski a essa linguagem e que fazer isso traz um surpreendente benefício: uma teoria da verdade para uma linguagem natural
é uma teoria do significado para essa linguagem. Em suas palavras,
“uma teoria do significado (em meu sentido perverso) é uma teoria
empírica, e sua ambição é explicar o funcionamento de uma linguagem
natural” (2002, p. 32). E mais, “[...] a condição que colocamos sobre
as teorias satisfatórias do significado é, em essência, a convenção T
de Tarski, que testa a adequação de uma definição semântica formal
da verdade” (2002, p. 30).
Kirkham, em seu comentário sobre a teoria do significado, acentua a semelhança dela com a teoria tarskiana da verdade.
Com relação a uma linguagem matemática simples, tal como aquelas
com as quais Tarski estava preocupado, uma teoria davidsoniana do
significado para essa linguagem (exceto pela transformação de uma definição de muitas cláusulas numa série de axiomas) pareceria exatamente
a mesma que uma teoria tarskiana da verdade para essa linguagem.
De modo similar, uma teoria davidsoniana do significado para uma
linguagem natural diferiria de uma teoria tarskiana da verdade, à parte
da mudança do tratamento em termos de definição para o tratamento
axiomático, somente no sentido de acrescentar axiomas (para nomes,
advérbios, functores etc.) àqueles já existentes. O instrumental lógico
da definição de Tarski e as sentenças-T geradas por ela [...] permanecem os mesmos, mas nós os vemos agora como realizando uma tarefa
diferente (KIRKHAM, 1992, p. 321).
E afirma que, se Davidson estiver certo, “seria difícil exagerar a
importância do seu insight” (1992, p. 311). E “que nós ainda não temos uma teoria completa do significado, mas, pelo menos, sabemos
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A concepção semântica da verdade e a teoria da verdade-como-correspondência
como construir uma. Sabemos como trabalhar com a semântica. Se
Davidson está certo” (1992, p. 311).
• O autor Quine (1990), com seu “descitacionalismo”.
Quine descreve sua teoria do descitacionalismo a partir da transparência da verdade expressa na convenção T. Por exemplo, se considerarmos que é verdadeiro que “rosas são vermelhas”, parece que
podemos ver através de sua veracidade e considerar simplesmente que
rosas são vermelhas com um simples tirar as aspas. Inferimos que é
verdadeiro que rosas são vermelhas a partir da proposição “rosas são
vermelhas”, e vice-versa.
Ainda há validade subjacente às teorias da verdade-como-correspondência, como Tarski tem nos ensinado. Por exemplo, dizer que “a
neve é branca” é verdadeira se e somente se ela é um fato que a neve é
branca, nós podemos simplesmente tirar ‘ela é um fato que’ por causa
de sua vacuidade, e dizer “A neve é branca” é verdadeira se somente se
a neve é branca. Atribuir verdade para uma sentença é atribuir brancura
para a neve; tal é a correspondência nesse exemplo. A atribuição de
verdade é apenas um retirar as aspas. Verdade é des-citação (QUINE,
1990, p. 475).
Enfim, estas foram algumas das discussões empreendidas na
nossa busca pela compreensão da Concepção Semântica da Verdade
escrita por Alfred Tarski.
Concordando com o otimismo de Tarski, afirmamos que a pesquisa sobre a verdade é necessária e pode chegar uma época em que
nos veremos diante de várias concepções da verdade incompatíveis,
porém, igualmente claras e precisas.
Parece-me que nenhuma destas concepções que tem sido formulada,
até agora, é inteligível e inequívoca. Porém, isso pode mudar; pode vir
uma época em que nos veremos frente a várias concepções da verdade,
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incompatíveis, mas igualmente claras e precisas. Será, então, necessário
abandonar o uso ambíguo do termo “verdade”, introduzindo em seu
lugar diversos termos, cada um dos quais denotando uma diferente
noção (TARSKI, 1944, p. 43).
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________. [1969]. Truth and proof. Scientific American, n. 220, p. 6377. In: Hughes, 1993, p. 99-125.
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Renato Machado Pereira
THE SEMANTIC CONCEPTION OF TRUTH AND THE THEORY OF TRUTH-AS-CORRESPONDENCE
Abstract
This article aims to analyze the problem of truth in the essay presented by
Alfred Tarski, called Semantic conception of truth. We will discuss philosophically the conception presented by Tarski, we will compare his conception
to the conception of the truth-as-correspondence and we will seek to
describe its philosophic value.
Key words: Truth. Semantic. Correspondence. Tarski.
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RUBEM ALVES E A RELIGIÃO:
UMA ANÁLISE DA PRIMEIRA E DA SEGUNDA
FASE DE SEU ITINERÁRIO REFLEXIVO
Antônio Vidal Nunes*
Resumo
O presente texto1 postula duas etapas importantes no itinerário reflexivo
de Rubem Alves. No primeiro momento encontramos o jovem teólogo
empenhado na elaboração de um pensamento religioso que justifique a
inserção e participação dos cristãos na ordem do mundo. No segundo, após
uma avaliação crítica das ideias passadas, estabelecerá o seu humanismo e
nele, a origem e o sentido da religião.
Palavras-chave: Rubem Alves. Religião. Desejo. Homem.
Introdução
Rubem Alves, intelectual brasileiro, é um dos mais importantes nomes do pensamento religioso protestante no Brasil e na América Latina.
As investigações a respeito de sua obra transcendem o território latinoamericano. Seus livros já foram traduzidos em vários países. Embora
ele tenha abandonado suas pesquisas acadêmicas há mais de 20 anos, os
resultados de suas atividades reflexivas, que marcaram profundamente
o protestantismo progressista brasileiro e latino-americano, continuam
a despertar interesse de inúmeros pesquisadores.
Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Espírito
Santo.
1 Trabalho apresentado no II Congresso Brasileiro de Filosofia da Religião
(Anpof), Belo Horizonte, 8 de novembro de 2007.
*
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Inicialmente Rubem Alves foi incompreendido e marginalizado
por uma tradição de pensamento religioso libertário, de matriz católica, que se tornou hegemônica em nosso continente, pois na década de
70 ele introduziu pressupostos e conceitos (tais como corpo, estética,
desejo, ecologia etc.) estranhos ao discurso de emancipação. Logo,
porém, tornou-se reconhecido nacionalmente e até no exterior, e seus
escritos continuam a gozar de atualidade e vitalidade. São vários os
livros e trabalhos acadêmicos que evidenciam o interesse pela obra
desse pensador nascido em Minas Gerais.
Nesta investigação objetivamos destacar as concepções religiosas
que emergem do pensamento de Rubem Alves em duas fases iniciais
de sua reflexão. A primeira, que denominei teológica, iniciou-se após
a sua formação em Teologia, no ano de 1957, no Seminário Presbiteriano de Campinas.
Neste momento, tomaremos como elemento de análise a produção intelectual que ele realizou até 1964, ano em que ocorreu o golpe
militar no Brasil. Ainda que Rubem Alves tenha escrito vários artigos
no jornal Brasil Presbiteriano, órgão oficial da Igreja Presbiteriana do
Brasil, deter-nos-emos no trabalho que julgamos mais importante dessa fase: sua dissertação de mestrado intitulada A theological interpretation
of the meaning of the revolution in Brasil, defendida no Union Theological
Seminary de Nova Iorque em 1964. Essa obra, praticamente desconhecida dos brasileiros, será a nossa referência fundamental para a
análise dessa fase inicial de sua produção.
Com o golpe militar e a perseguição engendrada tanto por sua
Igreja como pelos militares, Alves exilou-se nos Estados Unidos,
onde, a partir de uma avaliação crítica de sua produção intelectual até
então realizada, passou a desenvolver o seu humanismo na fase que
denominei filosófico-poética.
Na primeira fase de seu pensamento havia as atividades de um
teólogo preocupado em abrir caminhos e justificativas para a participação dos cristãos no mundo. Na segunda fase Rubem Alves
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Rubem Alves e a religião: uma análise da primeira e da segunda fase de seu itinerário reflexivo
tornou-se mais filosófico, buscando as origens da religião no próprio
coração do homem. Trata-se de uma etapa em que a temática religiosa
preponderou sobre os demais assuntos a propósito dos quais ele discorria. Na verdade, a busca da compreensão do fenômeno religioso
sempre foi uma das maiores paixões do pensador mineiro: o tema
perpassará toda sua obra.
1 A referência libertária: o compromisso social
A reflexão religiosa de Rubem Alves se coloca no prolongamento
de práticas e reflexões que o antecederam. As Igrejas protestantes
sempre viveram uma tensão permanente entre duas formas de conceber a participação e a intervenção dos cristãos na ordem mundana.
Podemos encontrar duas vertentes: uma mais espiritualista e ortodoxa; outra mais ecumênica, compromissada com o mundo e com os
problemas sociais.
Nesta última perspectiva, teve papel importante o Conselho
Mundial das Igrejas, criado oficialmente em 1948, em Amsterdã,
onde nesse ano se realizou o seu I Congresso Internacional. Nesse
evento participaram 352 delegados de 147 Igrejas de 44 países. Para
se contrapor ao Conselho Mundial das Igrejas, foi criado o Conselho
Internacional das Igrejas, por Carl McIntire, com uma postura conservadora e fundamentalista. A Igreja Presbiteriana – da qual participou
Rubem Alves – institucionalmente, por meio do Supremo Concílio
da Igreja Presbiteriana do Brasil, manteve-se reservada em relação a
assumir as posições defendidas pelo Conselho Mundial das Igrejas.
Muitos de seus líderes se identificavam com os postulados
apregoados pelo Conselho Mundial. Não faltaram manifestações de
dirigentes apoiando a vinculação da Igreja a essa entidade. A própria Confederação Evangélica do Brasil, da qual fazia parte a Igreja
Presbiteriana do Brasil, acabou aderindo ao Conselho Mundial das
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Igrejas. Por mais controle que se procurasse ter sobre seus membros,
foi inevitável que muitas lideranças dessa Igreja se aproximassem das
ideias inovadoras difundidas por esse órgão ecumênico. O próprio
Rubem Alves, por algum tempo, fez parte dessa instituição.
Não poderíamos deixar de lembrar aqui o movimento do Evangelho Social, que, iniciando-se nos Estados Unidos da América, estendeu-se a outros países, inclusive ao Brasil, sobretudo após a Segunda
Guerra Mundial. Esse movimento defendia maior compromisso social
dos cristãos. A visão que então tinha esse grupo de pensadores a respeito do pecado ia além de uma conotação subjetiva e individualista,
para alcançar uma concepção estrutural. O evangelho não deveria se
constituir apenas num meio de transformação individual. Era preciso
intervenção nas estruturas sociais, uma ação eficiente de todos, a fim
de que se obtivessem as mudanças necessárias.
Na base desse movimento encontramos certas ideias presentes no
pensamento teológico do alemão Albrecht Ritschl (1822-1889), que,
negando no homem o pecado original, colocou-o na ordem social e
em suas estruturas. Esse posicionamento abriu caminho para a estruturação simbólica realizada por Walter Rauschenbusch (1861-1918), a
partir do seu diálogo com as ciências sociais. Segundo Alves (1997, p.
13), “as igrejas, através dos séculos, se preocuparam especialmente com
os pecados individuais, pecados que se curam com o arrependimento e
penitências. Rauschenbusch se preocupava especialmente com os pecados sociais, isto é, aqueles pecados que se encarnam na sociedade”.
Rauschenbusch, tido como um dos arautos do evangelho social,
engajou-se na busca da realização de uma nova sociedade, na árdua
defesa do ecumenismo, e passou a criticar duramente o evangelismo
(SILVA, 1996, p. 63). Ele explicitava nos evangelhos e no posicionamento de Jesus os princípios sociais e éticos que deveriam levar os
cristãos à promoção da responsabilidade social. Christianity and the social
crises (1907), The social principles of Jesus (1916) e A teology for the social
gospel (1917) são suas obras mais importantes.
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Rubem Alves e a religião: uma análise da primeira e da segunda fase de seu itinerário reflexivo
Os pioneiros do evangelho social achavam que o ponto crucial do desajuste industrial residia no conflito entre o capital e o trabalho. Insistiam
que as relações entre ambos constituíam uma questão moral. A igreja,
portanto, forçosamente teria de ter uma resposta aos problemas morais
que denegriam a sociedade. Trataram então de formular uma nova ética
social cristã que exigisse uma maior participação da igreja e uma tomada
de consciência na amplitude de sua função (SILVA, 1996, p. 65).
Nos Estados Unidos um grande número de pessoas se engajou
na promoção e vivência dos ideais defendidos por esse movimento,
sobretudo por meio de novelas evangélicas, gênero literário por intermédio do qual, de forma simples e popular, se procurava explicitar
os princípios éticos no cotidiano das pessoas.
No Brasil, um dos livros vinculados a esse gênero literário bastante difundido foi Em seus passos o que faria Jesus?, escrito por Charles
Sheldon. Essa iniciativa, que começou a perder força nos Estados
Unidos a partir de 1930, também chegou ao Brasil e encontrou receptividade em muitos jovens sensíveis aos problemas sociais vividos
neste país. Não obstante as fracas reverberações que aqui causou,
mereceu toda atenção dos fundamentalistas e dos órgãos oficiais
da Igreja Presbiteriana, que procuraram, por meio dos veículos de
comunicação disponíveis, lançar as suas críticas contra tal novidade e
desqualificá-la, sob a alegação de que esse evangelho cometia desvios
em relação à reta doutrina. Sobre isso Alves (1984, p. 268) declarou
que “[...] o evangelho social foi um movimento que nunca chegou ao
Brasil. No entanto chegaram até nós as suas reverberações e o horror
ante tão radical adulteração do evangelho”.
Embora o movimento do Evangelho Social não tenha sido assumido aqui pelas instituições religiosas, ele despertou na consciência de
muitos jovens a necessidade da experiência de uma fé comprometida
com uma nova ordem social. Não resta dúvida de que o pensamento
religioso de Alves, imbuído de preocupações sociais, ainda que tecido
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com um quadro conceitual novo e atualizado, se coloca no prolongamento da reflexão anteriormente realizada.
Tal reflexão se vincula a Richard Shaull, o grande mestre de Alves,
que estabeleceu diálogo com o marxismo, coisa que estava distante
dos idealizadores do Evangelho Social. Em torno de Shaull, a partir
do início de 1950, estava não apenas Rubem Alves, mas muitos jovens
que, identificados com os princípios do Evangelho Social, procuravam, nos espaços institucionais destinados à juventude, participar
ativamente do processo de reconstrução nacional.
Shaull sabia dos limites do referencial interpretativo presente no
movimento, por isso tratou de estabelecer novos paradigmas que
pudessem fornecer uma melhor interpretação e orientação para uma
práxis cristã mais bem fundamentada e pertinente ao contexto, abrindo
caminho para aquilo que posteriormente será denominado Teologia da
Libertação. Em relação a essa articulação entre o movimento do Evangelho Social e a Teologia da Libertação, ressaltou Alves (1997, p. 14):
Walter Rauschenbusch, pastor batista dos Estados Unidos, foi o líder
de um movimento que tomou o nome de “Evangelho Social” – isso
muito antes que as ideias de Marx fossem conhecidas, e 20 anos antes
da revolução bolchevista. A vocação cristã pela justiça antecede o
marxismo por muitos séculos. O “Evangelho Social” pode ser assim
considerado como a versão protestante, solitária, precoce, daquilo que
cerca de 60 anos depois recebeu o nome de Teologia da Libertação.
2 A fase da juventude: o teólogo da revolução
Tal como assinalamos antes, consideramos o período da juventude do pensamento de Rubem Alves aquele que se iniciou com a sua
saída do seminário presbiteriano de Campinas em 1957, quando então
ele concluiu o seu curso teológico. A partir desse momento, Alves
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Rubem Alves e a religião: uma análise da primeira e da segunda fase de seu itinerário reflexivo
passou a escrever e publicar suas reflexões com base nos diálogos estabelecidos durante o tempo de sua formação teológica. Inicialmente
podemos encontrar seus textos no jornal Presbiteriano, órgão oficial
da Igreja Presbiteriana do Brasil. A preocupação com a participação
e envolvimento dos cristãos e da Igreja nos problemas do mundo
estava presente em suas elaborações. O postulado subjacente aos seus
escritos é o de que a experiência de fé não deveria retirar os cristãos
do mundo, mas comprometer-se com ele, a fim de poder transformar
as estruturas sociais injustas e desumanas, substituindo-as por uma
nova ordem social mais justa e humana.
Não nos deteremos, neste momento de nosso percurso reflexivo,
numa análise pormenorizada desses escritos. Fixar-nos-emos, como já
indicamos anteriormente, num dos trabalhos mais importantes dessa
fase do pensador mineiro, que é a sua dissertação de mestrado concluída em 1964. Parece-nos ser esse o trabalho exemplar dessa fase.
Nele Alves expressou as suas convicções de forma mais completa e
detalhada. Esse trabalho se tornou possível graças a uma bolsa de
estudos que ele recebeu nos Estados Unidos.
Sua dissertação ficou desconhecida dos brasileiros por aproximadamente 40 anos. Com o golpe militar ocorrido no Brasil em abril de 1964,
poucos dias antes da defesa da dissertação de Rubem Alves nos Estados
Unidos, sua publicação tornou-se impossível em nossa pátria. Posteriormente o próprio autor perdeu interesse em publicá-la, pois, mediante
uma avaliação crítica, concluiu que não tinha mais identificação com
muitas das ideias ali defendidas; além disso, a obra perdera o seu tempo
e o seu contexto de origem, mantendo apenas um significado de valor
histórico. Ela foi publicada apenas em 2004, pelo Instituto de Filosofia
e Teologia da Arquidiocese de Vitória, como um número especial da
revista Redes, sob este título: “A teologia da libertação em suas origens:
por uma interpretação da revolução e do pensamento no Brasil”.
Como já ressaltamos, essa obra foi escrita na década de 1960, período de efervescência cultural e política. Os trabalhadores do campo
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e da cidade, os estudantes, uma parte dos militares, os empresários e
os intelectuais visualizavam novas possibilidades para a pátria. Nesse
contexto original e importante deu-se a contribuição do Instituto de
Estudos Brasileiros (Iseb), que pretendia estabelecer novos caminhos
para o país. Constituído de pensadores de várias áreas dos saber –
economia, histórica, sociologia, filosofia –, o Iseb buscou repensar
caminhos de autonomia para o país em face da subserviência vivida
em relação às nações colonizadoras que o exploraram.
Rubem Alves, assim como Paulo Freire, manteve diálogo com
alguns pensadores do referido centro de pesquisa. Ressaltam-se, na
reflexão alvesiana, as contribuições especialmente de Nelson Werneck
Sodré, Guerreiro Ramos e do filósofo Álvaro Vieira Pinto. Eles deram
os elementos teórico-metodológicos necessários para sua interpretação da realidade brasileira.
Rubem Alves pretendia, com o seu labor teológico, contribuir
para esses processos de mudanças, ou melhor, estabelecer uma fundamentação teológica que possibilitasse a inserção dos cristãos e da
Igreja numa nova realidade histórica que surgia. O Brasil passava por
um processo revolucionário, que poderia levar a uma ruptura com
o passado colonialista. Após vários séculos de dominação, a nação
poderia alcançar um novo momento em seu processo histórico. Até
então o País vivera em função das grandes potências. Não tinha vida
própria, não tinha um projeto para si. A qualidade da vida nacional
até então era do tipo “vida reflexa” tanto da economia como da
política e da ideologia. Respondíamos a comandos externos. Essa
situação de subserviência da nação, ou seja, o período pré-revolucionário, estaria em vias de superação com a realidade revolucionária
emergente. Interpretando aquele momento histórico, Alves (2004,
p. 53) profetizava: a
[...] situação revolucionária do Brasil está girando em torno de dois
polos. O primeiro é a questão da desumanização. Desumanização é a
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Rubem Alves e a religião: uma análise da primeira e da segunda fase de seu itinerário reflexivo
categoria que descreve o conteúdo da vida brasileira porque o seu resultado, alienação do natural, é consequência inevitável da vida reflexa. O
segundo é o fato de que uma nova realidade, em descontinuidade com
as estrutura da “vida reflexa”, emergiu como um poder revolucionário:
o povo. O que caracteriza o povo é a descoberta dele mesmo. O sentido
de pertença, e a decisão de plano para ele mesmo. O conteúdo deste
plano é a reversão do processo de desumanização.
A desumanização vinculava-se, para ele, à exclusão do homem na
participação do natural, ou seja, daquilo que lhe era necessário para
uma vida digna. A situação de dominação vivida pelo povo brasileiro
lhe tirou, em razão de todo tipo de espoliação experimentada, as
possibilidades de atendimento às suas necessidades básicas. Para isso,
era necessário mudanças qualitativas profundas em nossas estruturas
econômicas e políticas. A Igreja e os cristãos não se encontravam fora
ou acima dessa realidade. Assim, a sua busca de sentido para sua ação
no mundo teria de levar em conta esse quadro social.
A questão que Alves colocava poderia ser formulada desta maneira: Que sentidos poderiam estabelecer a Igreja e o cristão para a
sua ação neste mundo concreto? Que significação poderia orientar o
agir da Igreja, que, inserida neste mundo, deveria também trazer uma
resposta ao quadro dramático e desumanizante da realidade brasileira?
É com essas questões que Alves aspirou a caminhos ou justificativas
novas para os cristãos, situados nessa ordem mundana particular e específica. Essa busca se colocou no contexto da linguagem teológica.
3 A busca de sentido
A referência fundamental para a busca de sentido é a revelação, e
ela se coloca na dimensão da transcendência: uma transcendência que
não perde o mundo, antes indica ao homem os caminhos necessários
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para a práxis e para a organização humana. É ela que deveria
estabelecer orientações em termos de significações para o processo
revolucionário brasileiro, de tal forma que esse processo servisse à
vida e à reconstrução de uma nova sociedade.
Assim, a articulação entre a ordem temporal e a transcendente
e eterna, entre a realidade política e a teológica se impunha como
necessária, mas os caminhos propostos eram vários. Primeiramente
Alves refutou as possibilidades colocadas pelo caminho ou modelo
essencialista proposto pelo paradigma da lei natural. Esse modelo tinha
seus pressupostos na filosofia grega, e servia de base para a atividade
teológica católica. Segundo essa perspectiva, há uma ordem dada subjacente ao mundo existente, acessível ao homem por meio da atividade
racional. Esta, quando bem orientada, deveria revelar ao homem o
sentido da sua ação e do mundo. Para Alves (2004, p. 56),
a lei natural é baseada em dois princípios. O primeiro princípio é que o
todo da realidade é unificado pela base racional, que, por sua vez, está
em harmonia com a mente de Deus. E o segundo: a razão humana é um
instrumento eficiente para descobrir esta racionalidade. Como Maritain
pontua aqui, “uma ordem ou uma disposição a qual a razão humana pode
descobrir, estar de acordo, e a partir da qual o ser humano deve agir”.
No entender do pensador mineiro, essa postura é marcada por
uma confiança exagerada na razão, assim como por uma modalidade
explicativa que enfraquece a revelação e a teologia. Para ele, não é mais
possível ter uma confiança cega na razão, nem se pode corroborar a
absolutização do poder que lha deram. Reclamando a perda de historicidade da razão, o filósofo em estudo adverte que ela não escapa aos
contextos existenciais concretos. Alves (2004, p. 57) argumenta que
postular a razão ancorada numa realidade última como um dado universal é algo muito arriscado, sobretudo depois das contribuições de
Kierkegaard, Marx e Freud. Mas o pensador mineiro também mostra
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Rubem Alves e a religião: uma análise da primeira e da segunda fase de seu itinerário reflexivo
os limites da proposta de Karl Barth para a busca de sentido centrada
no conceito de analogia. Embora Barth tenha avançado em relação
ao paradigma da lei natural, anteriormente assinalado, centrando-se
numa proposta cristológica, Alves acredita que ele continua platônico (ALVES, 2004, p. 61). Seu conceito de reino de Deus é rígido,
separado das ambiguidades do mundo. Sua proposta não realiza de
maneira adequada uma articulação entre a esfera do transcendente e
a da ordem mundana.
Nem a primeira proposta, a da lei natural, nem a segunda, a da
relação analógica, seria, para Alves, adequada. Na primeira,
[...] a revelação desaparece no começo, e o terreno para o sentido
é encontrado em conceitos da filosofia grega. No segundo caso, o
conceito bíblico de revelação extingue-se no processo, estabelecendo
uma relação estática e duvidosa entre alegoria e analogia (ALVES,
2004, p. 62).
Como já sugerimos, para Alves, o sentido deveria ser encontrado
na revelação bíblica, que, no dizer dele, se constituiria num milagre,
pois ela está para além de todas as possibilidades históricas. Da mesma
forma que transcende a nossa finitude, a revelação bíblica também se
põe em descontinuidade absoluta com as várias dimensões do nosso
existir, por isso ela, como declara o filósofo, paradoxalmente está
suspensa sobre o abismo, pois não se encontra no prolongamento
daquilo que faz parte deste mundo, e não podemos explicitá-la de
forma dedutiva.
Não obstante tal descontinuidade, é essa revelação que envolve
o homem e o ilumina. Não sendo uma categoria do tempo nem do
conhecimento, ela se encontra em meio aos homens, ela os perpassa
(ALVES, 2004, p. 63). O sentido maior da revelação poderia ser descrito da seguinte forma: “Deus age na história”. Ele sempre lhe indica
algo que está para além da própria história.
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É o transcendente que irrompe na história. Alves fez questão de
mostrar que isso se trata de coisa bem distinta das religiões da natureza. “Elas viam a vida e a história como produtos da ordem cosmológica. Na visão bíblica, porém, o natural, o cosmo, é um símbolo de
um significado transcendente” (ALVES, 2004, p.64). Dessa forma, o
sentido se apresenta não como algo imanente à história, mas evento de
graça. Por isso, ele é sempre mistério que não pode ser alcançado pela
razão, engaiolado em conceitos que dissecam o presente. Os profetas
olhavam para o futuro a partir dos propósitos divinos, da dádiva de
Deus. Eles “[...] não fechavam os olhos para a história. Eles olhavam
através dela” (ALVES, 2004, p. 64).
Mas é preciso ressaltar uma diferença entre a escatologia presente no Velho Testamento e a manifestada no Novo Testamento. Na
primeira, a esperança messiânica aponta para o futuro, há uma espera
no futuro, o reino virá; na segunda, o reino já se encontra entre nós.
Está às mãos. Cristo, a partir de seu nascimento, passa a ser o sentido
da história. Ele é uma invasão na história da dádiva divina. E a
[...] universalidade de Jesus é encontrada no fato de que, neste acontecimento particular, Deus revela-se como o senhor de todos os acontecimentos. O poder e o sentido dados a todos os acontecimentos da
história são revelados na vida deste homem. O caminho para o sentido
não é a verdade universal: é este indivíduo. O caminho para o sentido
não é a correspondência entre acontecimentos e sentidos. É o caminho
da fé, isto é, da transparência. Na fé cristã, portanto, Jesus Cristo é o fim
da generalização e da opacidade, na busca de sentido. Ele é o indivíduo
que traz transparência à vida e à história (ALVES, 2004, p. 67).
Dialogando com Bonhoeffer, Niebuhr, Cullman e outros, Alves
(2004, p. 70) evidenciou que, com o nascimento de Jesus de Nazaré,
Deus se torna homem e assume em tudo a condição humana. Ele não
apareceu no meio dos homens, mas surgiu a partir dos homens. Viveu
em tudo as ambiguidades e os limites da vida natural. Teve fome, sono,
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Rubem Alves e a religião: uma análise da primeira e da segunda fase de seu itinerário reflexivo
cansaço, sede, medo, amigos, inimigos, irritações etc. Nem mesmo da
dimensão mais trágica do existir, que é a própria morte, ele escapou.
Ele se insere no natural e, assumindo-o, indica-lhe os limites e sentidos. Sendo Ele concebido pelo poder do Espírito Santo, aponta para
algo que transcende o natural como dádiva de Deus. O natural é o
penúltimo e, portanto, precede o último. É no último que o penúltimo
encontra o seu sentido. É preciso lembrar que Jesus de Nazaré, após
assumir todas as consequências de sua pertença ao natural, inclusive a
própria morte, ressuscitou. Há aí uma descontinuidade com o natural,
com o penúltimo.
Jesus afirma o natural, coloca-o como dádiva e revela que o seu
sentido se encontra para além do natural. Assim, a pretensão de querer absolutizar o natural torna-se uma idolatria. Mas privar o homem
do natural pode redundar em desumanização. Negar ao ser humano
a participação adequada nos bens naturais que lhe permitam uma
sobrevivência digna constitui algo pecaminoso, pois “[...] podemos
dizer, então, à luz da vida de Jesus de Nazaré, que a humanização
depende do envolvimento do homem com o natural como dádiva,
como penúltimo” (ALVES, 2004, p. 74).
Em relação à morte de Jesus de Nazaré, ressaltou Alves (2004) que
ela ocorreu como fenômeno do natural que foi assumido por Ele. Mas
há mais a se considerar: Ele não apenas morreu, mas foi brutamente
executado pelos poderes do mundo que não o aceitaram. Não foi
morte por indivíduos, mas por estruturas políticas que o rejeitaram.
Assim sendo, as estruturas de poder passaram a ocupar o lugar do
último, tornaram-se absolutas. Na condição de ídolos, esses poderes
realizam todo tipo de desumanização, inclusive negando ao homem a
participação nas dádivas do natural. Segundo Alves (2004, p. 77),
a busca de sentido na vida de Jesus Cristo é respondida em termos de
aceitação do natural como uma dádiva, penúltimo, ao mesmo tempo
aberto para o transcendente último. Este é o conteúdo positivo de sua
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vida. Este é o seu sim. Por outro lado, ele diz um decisivo não a todas
as formas de idolatria que neguem ou absolutizam o natural. [...]. Ele
destrói os falsos deuses e seus poderes. Assim fazendo, reafirma o
natural como dádiva, como um penúltimo aberto à graça do último.
Para Alves (2004, p. 81), o Estado, quando não se torna ídolo e
não vive na idolatria, encontra seu sentido em Jesus Cristo e como
tal deve servi-lo. Isso se realiza à medida que ele possibilita a todos a
dádiva do natural, já que a “[...] função primária do Estado é fazer a
dádiva do natural disponível a todos”. Com isso, a humanização tornase possível, dada a sua abertura ao que é o último e transcendente.
Já não é a instância de adoração e de desumanização, mas, enquanto
guiado pelo sentido cristológico, coloca-se a serviço de todos.
Todavia, a essa altura de sua reflexão, pergunta-se Alves: como
compreender o Estado brasileiro? Como interpretá-lo à luz do
paradigma bíblico e de uma reflexão cristológica? A resposta era
taxativa: o Estado no Brasil, controlado por forças econômicas e
políticas demoníacas, nunca esteve a serviço do povo, pelo contrário,
deixou-o passar privações do natural. As estruturas políticas são
desumanas e ilegítimas, pois ferem o sentido maior e não garantem
ao povo a participação no natural. Mas o Estado também é apresentado como um usurpador de Deus, pois a dádiva divina não é
distribuída e repassada a todos. Ele deverá ser julgado e derrubado
pelo poder divino.
A revolução já se constitui num julgamento divino, no momento
em que, enquanto parte do natural, não se absolutiza, mas realiza as
possibilidades de uma nova humanidade. A revolução emerge com
o surgimento do povo, com poder de mudar a situação, de estabelecer uma descontinuidade com as estruturas de poder existentes.
A revolução não é um fim em si mesmo, mas deve ser uma ação a
serviço da instauração de uma nova ordem adequada aos desígnios
divinos.
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Rubem Alves e a religião: uma análise da primeira e da segunda fase de seu itinerário reflexivo
4 Marxismo, Igreja e revolução
Alves (2004, p. 67), em sua reflexão desse momento, ressaltou a
importância do marxismo, por oferecer instrumentos interpretativos
sobre a realidade brasileira, tendo, assim, contribuído para a revolução. Na verdade, o marxismo não criou a revolução. Esta surgiu em
decorrência da privação do natural imposta ao homem. O marxismo
apenas “[...] derrubou os mitos que justificavam o status quo, introduzindo, então, uma nova realidade na apreensão intelectual da situação
pelo povo”.
Rubem Alves não desconhecia as reservas da Igreja em relação ao
marxismo, mas sabia que não havia como identificá-lo com o demoníaco, como se tentou fazer. Era preciso levar a sério a contribuição
marxista; ela forçava a Igreja a se posicionar diante do mundo, a não
perder de vista a realidade dada, com suas contradições. A sua preocupação com o natural era legítima e tinha razão de ser. As críticas do
marxismo em relação à Igreja precisavam ser consideradas. A religião
também pode se tornar uma ideologia e perder a dimensão bíblica
de Jesus como doador do natural e, de forma acomodada, justificar a
ordem estabelecida. Sobre isso escreveu Alves (2004, p. 91):
[...] muito frequentemente a religião torna-se ideologia, quer dizer, a
justificação para a qualidade de existência em que está envolvida. A
religião pode tornar-se um ídolo objetivo por meio do qual os homens
tentam vencer as inseguranças de nossa existência. A religião pode ser
uma compensação psicológica. Então, o psicológico tanto quanto a
crítica marxista da religião são válidos.
Quando o marxismo atacava a religião, atribuindo-lhe a condição
de ópio do povo, poderia estar correto, sobretudo quando a Igreja
deixava de considerar ou não levar a sério a dádiva do natural, contribuindo para manter o povo na alienação do natural. Dessa forma, o
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marxismo poderia ser possuidor de um significado teológico, à medida
que buscava inserir todos na participação do natural.
Mas essa doutrina também não pôde deixar de correr riscos,
assumindo o lugar do religioso ou, então, reivindicando para si um
caráter metafísico, um fim em si mesmo. Assim, deixou de servir à
humanização e contribuir, de uma forma adequada, com a revolução.
Esta, por sua vez, também se encontrava marcada pela ambivalência e
pela ambiguidade. Não obstante a sua importância como julgamento
de Deus sobre as pretensões humanas, a revolução corre o risco de
se desviar dos desígnios divinos e se tornar, também, como já assinalamos antes, um ídolo. Aí, ela perde o seu caráter libertador. Nesse
sentido, advertiu Alves (2004, p. 96-97):
A ambiguidade e a ambivalência da revolução são consequências do
fato de que na revolução as estruturas de poder estão em conflito.
Uma nova realidade está nascendo. Quando as velhas estruturas que
pelo seu poder alienaram os homens do natural são destronadas, novas
possibilidades de humanização emergem aos homens. Porém, o novo
poder sempre corre o risco de criar novos ídolos. [...]. A possibilidade
redentora da revolução é o seu poder de derrubar os ídolos. A possibilidade demoníaca da revolução é a idealização de seu poder.
Quando for libertadora, a revolução também será julgamento
para a Igreja, que, muitas vezes, perdendo sua dimensão profética,
acomoda-se às benesses do Estado e do status quo. Já não se comporta
como peregrina, mas passa a relevar a procura de segurança e de sua
sobrevivência. Embora fale de morte e ressurreição, ela se recusa
a morrer para poder renascer. Ela se torna idólatra quando passa a
legitimar a ideologia do Estado demoníaco em troca de segurança. Dessa
forma, a “[...] rejeição da igreja à revolução está baseada primeiramente
no medo e não na lucidez profética” (ALVES, 2004, 99).
Nesse sentido, a revolução é julgamento da Igreja quando esta
se silencia diante de um Estado desumanizador para não perder suas
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Rubem Alves e a religião: uma análise da primeira e da segunda fase de seu itinerário reflexivo
regalias. Mas, se a Igreja for serva de Cristo, ela deverá impedir que a
revolução se torne idólatra, que se desvie das suas funções redentoras.
A Igreja torna-se, desse modo, a voz de Deus na revolução. O julgamento da Igreja pela revolução e da revolução pela Igreja constitui
o caminho de humanização. Alves finaliza sua dissertação com as
seguintes palavras: “[...] só nesta dialética pode a humanização, como
expressa na vida de Jesus Cristo, encontrar o seu caminho na presente
situação histórica no Brasil” (ALVES, 2004, p. 102).
Pelo que pudemos expor até este momento de nosso labor reflexivo, dessa primeira etapa da reflexão religiosa de Alves pode-se
dizer que se constitui numa atividade teológica centrada na revelação
e de cunho transcendentalista, que visa a encontrar as justificativas necessárias à participação da Igreja e dos cristãos no processo
revolucionário que o Brasil estava vivendo na década de 1960. As
ciências sociais são requisitadas a subsidiar esse processo, com os
instrumentos necessários de compreensão da realidade brasileira; a
revelação deve proporcionar os elementos de sentido que apontam
novas possibilidades para nossa sociedade em vias de superação da
dominação colonialista, que sempre impediu a nação de executar um
projeto para si e que manteve o povo privado da dádiva do natural,
levando-o a desumanização. Até aqui, o sentido foi dado por Jesus
Cristo, que, enquanto Deus, tornou-se humano.
Há uma recusa da razão como instrumento suficiente de significação para o mundo. Embora não lhe negue o seu papel, Alves
suprime-lhe qualquer tipo de absolutização. A razão não se encontra
acima da história e de seus condicionamentos. Essa convicção permaneceu inalterada em toda a trajetória reflexiva de Alves. O que se
alterou foi a forma de justificá-la.
Ainda encontramos, no que vimos até agora, Alves evidenciando
os limites não apenas da metafísica clássica, mas, também, de sua
possível presença em concepções que poderiam contribuir com o processo revolucionário. Ele destacou o risco de o marxismo constituir-se
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numa metafísica e perder a oportunidade de contribuir para o bem
da sociedade brasileira.
Passaremos agora a considerar o segundo momento de sua elaboração religiosa, que passou por algumas transformações em relação à
primeira fase, sobretudo quanto a um otimismo ingênuo que perpassava a reflexão do jovem teólogo.
5 A reflexão da maturidade: o coração
do homem como residência divina
Concluída sua dissertação de mestrado, Rubem Alves retornou
ao Brasil. Nosso país passava por momentos difíceis: os militares
haviam assumido o poder, engendrando um golpe de Estado. Alves
tomou conhecimento da perseguição e prisão de alguns amigos com
os quais tinha identificação política e teológica, mas não poderia deixar
de retornar, pois, quando fora para os Estados Unidos, deixara sua
família no Brasil. Teria de correr os riscos.
Os últimos acontecimentos em sua pátria encontravam-se na contramão de tudo aquilo que ele havia pensado em relação à sociedade
brasileira. Era um duro golpe para o jovem pensador, que estivera
convencido de que sua nação, de forma inevitável, estava na iminência
de passar por mudanças profundas em sua estrutura socioeconômica.
De alguma forma, ele tinha trabalhado em suas reflexões teológicas no
sentido de despertar as consciências, sobretudo as dos cristãos, para os
novos tempos. Via agora o projeto desejado, que acalentou os sonhos
de muitos brasileiros, abortado pelos militares que tomaram o poder.
A situação ficou ainda mais dramática quando, após o seu retorno ao Brasil, começou a ser perseguido por sua própria Igreja. Alves
era acusado de herege e comunista num documento elaborado por
autoridades religiosas de sua Igreja. Tal documento o incriminava
juntamente com outros colegas que até então mantinham um posi96
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Rubem Alves e a religião: uma análise da primeira e da segunda fase de seu itinerário reflexivo
cionamento progressista em suas atividades teológicas.
De certa maneira, Alves sentiu-se só e abandonado num contexto
político incerto e ameaçador. A sua Igreja – interessada em usufruir
algumas benesses e vantagens com os novos donos do poder, como
já ressaltamos – tratou de expurgar todos aqueles que não pensavam
a partir da ortodoxia. Houve uma virada conservadora no interior da
instituição religiosa da qual ele fazia parte. Já existia uma tensão permanente entre uma tendência conservadora e outra mais heterodoxa,
como também já assinalamos em nossa reflexão, no interior da Igreja
Presbiteriana. O golpe militar propiciou condições objetivas para que
as autoridades religiosas conservadoras conseguissem impor sua hegemonia. Nessas condições, um documento elaborado por membros
de sua própria Igreja, contendo acusações contra o pensador mineiro,
chegou às mãos dos militares.
A partir de então, além da perseguição que lhe empreendiam alguns
componentes de sua própria Igreja, havia outra, comandada pelos militares. Em meio a essa situação dramática e perigosa, o apoio veio de
amigos de outro país, que, sabendo dos riscos que Rubem Alves corria,
resolveram retirá-lo do Brasil, conferindo-lhe uma bolsa de estudos,
obtida em Nova Jersey. Assim, Alves, pelo aeroporto de Viracopos,
em Campinas, conseguiu se retirar para o exílio, onde desenvolveria
o seu humanismo e uma nova forma de compreender a experiência
religiosa.
Essa partida ele a descreverá com as seguintes palavras:
[...] não me esqueço nunca do momento preciso quando o avião
decolou. Respirei fundo e sorri, descontraído, na deliciosa euforia da
liberdade. Ainda hoje, quando um avião decola, sinto de novo aquele
momento (ALVES, 1987, p. 31).
Esse momento foi precedido por outro de muita tensão. Quando
Alves apresentou o passaporte; ele sabia dos riscos de ser preso, pois
era indiciado pelos militares no Estado de Minas Gerais.
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A experiência vivida diante dos novos rumos impostos à sua
pátria e aquela que passou no interior de sua Igreja possibilitaram a
Alves uma reflexão crítica sobre as convicções e representações que
até então estiveram a tecer tudo o que ele escreveria. Assim, aos poucos, no exílio inevitável, ele passaria a construir uma nova constelação
simbólica, que se distanciaria daquilo em que antes ele acreditava.
Nesse novo momento Rubem Alves se tornou mais filosófico. Postulamos que ele, em sua metamorfose intelectual, caminhou de uma
reflexão teológica para uma filosófica. A religião continuou a merecer
sua atenção e interesse, porém, agora, a referência básica não era mais
a revelação, mas o próprio homem.
A partir de uma compreensão do homem, ele decifrará o significado da religião. A revelação, que anteriormente lhe serviu de base,
continuará a ser evocada em sua reflexão, mas como uma manifestação dos anseios vividos pelo homem num dado contexto histórico. Ela
seria a expressão das buscas e dos sonhos do homem. Assim sendo,
sugerimos que já não era a revelação em si que definiria o agir humano,
mas seria o agir humano, com base nos seus sonhos e utopias, que a
tornaria compreensível.
Houve uma inversão em relação ao primeiro momento de sua
atividade intelectual. Ele continuaria a usar os símbolos de sua tradição cristã, mas estes ganharão um novo significado, a partir da nova
hermenêutica de que Alves fará uso daquele momento em diante. A
religião revela os desejos humanos em contextos concretos do seu
existir. Deus passa a ser o nome da beleza que habita os universos
recônditos do coração humano. Em suma, Deus não pode ser compreendido como algo existente independentemente dos sonhos que
habitam o coração humano. É nesse horizonte que Alves passa a
compreender a religião articulada ao projeto libertador do homem
que se põe em experiência de opressão e dominação.
Após os primeiros anos no exílio, Alves começou a delinear o seu
humanismo e, com ele, uma nova forma de compreender a religião. Em
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Rubem Alves e a religião: uma análise da primeira e da segunda fase de seu itinerário reflexivo
seu livro Da esperança, publicado nos Estados Unidos em 1969, que na
verdade foi sua tese de doutorado, começaram a aparecer os primeiros
caracteres simbólicos do seu humanismo. Ajuntando alguns conceitos
velhos de sua tradição cristã, mas com novos conteúdos semânticos
adicionados a outros novos que ele passaria a usar, ganhou forma uma
nova concepção de homem, que, depois, ele a estenderia para além da
compreensão da religião, a exemplo da ciência e da educação.
Entre as palavras novas que usou para expressar sua concepção
de homem, algumas soaram estranhas a muitos pensadores, sobretudo aos teólogos que tinham, como Alves, ideias libertárias. Corpo,
desejo, prazer, estética e utopia lhes pareciam conceitos inadequados
e indevidos num discurso que se pretendia libertador. Essas palavras
pertenciam ao rol dos termos burgueses. Nesse sentido, não puderam
apreciar adequadamente o novo modo de conceber o homem e a
religião proposto por Alves.
Somente muitos anos depois alguns desses pensadores começaram a perceber a intuição do visionário de Boa Esperança. Entre
eles encontramos até mesmo aqueles que chegaram a trilhar os seus
caminhos e passaram a pronunciar as palavras antes amaldiçoadas.
6 O homem enquanto ser simbólico e de desejo
Como já ressaltamos anteriormente, o exílio possibilitou a Rubem Alves um afastamento forçado de sua pátria. Distante de sua
terra, teve a oportunidade de rever seus pensamentos. Com isso,
distanciou-se daquela preocupação imediata com o processo concreto vivido pelo Brasil. Passou, então, à busca de melhor compreensão
do homem. Do homem concreto, não do homem abstrato e nãohistórico. Ocupou-se, ao invés, de compreender o homem situado,
datado, inserido no mundo e que, a partir das opressões do presente,
buscava a realização de uma ordo amoris.
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Alves estabelecerá diálogo com Marx, coisa que já havia iniciado
na primeira fase com Freud, Nietzsche, Kierkegaard, Feuerbach e
alguns poetas. Isso sem contar alguns pensadores de sua tradição
religiosa com os quais já tinha mantido contato desde o período de
sua formação seminarística.
O homem passou a ser apresentado como um ser histórico,
inconcluso, aberto ao futuro. À inconclusão do homem juntou-se
a do mundo, com o qual o ser humano se encontra intimamente
articulado. A respeito dessa articulação entre homem e mundo disse
Alves (1987, p. 45):
O homem é um ser histórico. Ele não nasce no mundo das coisas, das
pessoas e do tempo como um produto acabado. Seu ser não preexiste
à história. Torna-se o que é através da história de suas relações com
o Meio Ambiente. Não é, por conseguinte, apenas um ser no mundo:
torna-se um ser com o mundo. Homem e mundo não se juntam como
duas entidades estranhas que estão eventualmente numa relação de
contato, como se fosse uma mente ou ego que simplesmente notasse
aquilo que se lhe contrapõe, ou seja, matéria.
Ao mesmo tempo em que é um ser histórico, portanto, distinto
dos outros animais, pois estes não têm um passado e muito menos
sonham com o futuro, o homem habita a linguagem. É nela que ele
se constitui humano, ao receber, através da tradição, um legado que
o torna diferente entre os viventes. Ao mesmo tempo, é por meio
da linguagem que o homem é capaz de nomear o novo e as novas
possibilidades para o seu mundo.
Em meio às palavras nascem os homens, com as quais eles se
tornam criadores de mundos, de novas possibilidades para sua vida.
Dessa forma, o homem não é um ser enquadrado em um mundo
dado, com pretensões de eternidade e naturalidade. Visto que são
nítidos os símbolos que o aprisiona, ele pode criar um novo verbo
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Rubem Alves e a religião: uma análise da primeira e da segunda fase de seu itinerário reflexivo
que nomeie novas veredas para o seu existir. Rubem Alves distingue
dois tipos de linguagens: uma, histórica; outra, não-histórica. Aquela
se cristalizou e perdeu o seu tempo, que se encontra em descompasso com o movimento da história; esta, fluida, viva e aberta, indica o
advento de uma nova ordem. Assim, para Alves (1987, p. 46),
[...] a linguagem do homem constitui um espelho de sua historicidade.
Ela não emerge simplesmente do metabolismo que se dá entre o ser
humano e o mundo, mas é proferida como uma resposta às situações
concretas. É óbvio que linguagem nem sempre consiste na expressão
da historicidade humana. [...]. Quando a linguagem é histórica, no
entanto, ela conta a história humana, o que não implica uma simples
descrição. Ela contém a interpretação humana da mensagem e do
desafio que este lança ao mundo, afirmando o que acredita que seja a
sua vocação, o seu lugar, as suas possibilidades, a sua direção e a sua
função no mundo.
Simultaneamente ao fato de o homem constituir um ser de linguagem, ele também é um ser de desejo. Em vários momentos da reflexão
que ele faz nessa fase Alves definirá o homem como uma mistura de
desejo e linguagem. Se, por um lado, a linguagem amarra os desejos,
por outro lado, os desejos libertam os símbolos e os tornam vivos e
fluidos. Definir o homem como ser de desejo já é um posicionamento
adverso em relação a boa parte da tradição filosófica ocidental, que
menosprezou e desqualificou os elementos afetivos e emotivos da
experiência humana.
Há em Rubem Alves um resgate dos sentidos, da sensibilidade.
São eles que nos movem, que nos possibilitam transformar nosso
mundo. Mas não podemos atribuir a esse pensador uma postura
subjetivista; ele não é ingênuo para deixar de perceber a importância
do contexto, da realidade em que se insere o homem na condição de
ser histórico.
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Em meio às contradições do mundo, os sonhos emergem e o
corpo indica novas possibilidades. Corpo é uma categoria nova, que
passará a ser usada por Alves. Ele não entenderá o corpo como uma
realidade puramente biológica, mas como algo construído com os
ingredientes antes ressaltados, ou seja, a linguagem e os sonhos. É
por meio do corpo que o homem estabelece contato com o mundo.
Propugnará que,
[...] por meio do seu corpo, o homem descobre a natureza como seu
corpo. Portanto, o corpo não consiste em algo estranho. É, sim, amigável, carinhoso, um lugar de alegria e felicidade: o seu lar. Através de
seus sentidos corporais, o ser humano é capaz de se deleitar na natureza.
Descobre-se num jardim, num lugar de gozo estético. Um jardim é
uma combinação de cores, formas, odores, movimentos ritmos e sons.
Num jardim, as possibilidades sensoriais do homem são estimuladas
ao máximo. Ele se vê forçado a refletir sobre si mesmo e se torna
aberto como um horizonte para o que lhe vem do exterior. Aquele
mundo que está lá fora, através do corpo humano converte-se numa
parte do homem. [...]. Através de seu corpo, ele é capaz de fertilizar e
transformar o mundo (ALVES, 1987, p. 20).
Não há como conhecer o mundo sem o corpo. O corpo é o
centro a partir do qual tudo se irradia. É por meio dele que sentimos,
amamos, beijamos, nos alimentamos, acariciamos, nos defendemos,
garantimos nosso sustento, fazemos revolução, conhecemos, como
o corroboram estes dizeres de Alves (1982, p.37):
Cada corpo é o centro do mundo. Quaisquer que sejam as realidades
que me atingem, nada sei sobre elas em si mesmas. Só as conheço
como reverberações do meu corpo. Os limites do meu corpo denotam
os limites do meu mundo. Por que vejo as estrelas poderei dizer, com
Bergson, que o meu corpo vai até elas. [...]. O mundo estrutura em
torno do corpo. Cada corpo é o centro do universo.
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Rubem Alves e a religião: uma análise da primeira e da segunda fase de seu itinerário reflexivo
Aliada ao corpo, encontra-se a imaginação. Ela permite ao homem
as possibilidades de transcendência em relação ao seu mundo; busca
os mundos possíveis; e migra para lugares ainda não nomeados da
realidade. Alves está convencido de que, “[...] através da imaginação,
o homem transcende a facticidade bruta da realidade, que é imediatamente dada, e afirma que o que é não deveria ser, e o que ainda não
é deverá ser” (ALVES, 1975, p. 20).
Visto que o homem é um ser histórico, é pela imaginação que ele
vai criando e recriando o seu mundo. Muitas vezes, o mundo se torna
pequeno ou inadequado para os propósitos que habitam nossas entranhas. As realidades novas surgem primeiramente dentro de nós, e nos
tornamos grávidos delas. Assim, antes de existirem concretamente,
elas fazem moradia em nossa interioridade. Quando isso ocorre,
[...] somos capazes de gerar estrelas, imaginar utopias, dar à luz deuses. O
mundo é muito pequeno para o nosso corpo. O nosso desejo é grande
demais para nossos limites. Como se estivéssemos numa prisão e sentíssemos uma terrível claustrofobia, porque o desejo se sente sufocado e
procura espaços, horizontes diferentes. Somos seres grávidos e dentro de
nós cresce um mundo novo, mundo que o corpo passa a amar, mundo
a que o corpo passa a se entregar (ALVES, 1983, p. 36).
O corpo se entrega porque há promessas de felicidade, de prazer.
Viver é muito mais do que sobreviver, é buscar a plenitude do corpo.
Alves buscava ressaltar o caráter dionisíaco da vida. O sentido erótico
da vida não deveria ser buscado no fim do processo, mas na travessia.
A vida seria em si essencialmente travessia, não se poderia perder o
tempo que flui e passa. Seria bom que a experiência do presente fosse
um aperitivo para o futuro. Alves (1987, p. 172) fala da prioridade
axiológica do transbordamento, do deleite, do prazer, neste excerto:
O corpo não quer simplesmente viver. Se assim fosse, a vida não seria
mais que uma função vegetativa. O corpo quer viver em prazer. A vontade
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de viver brota de um determinante erótico [...]. Eros indica uma atividade
humana longe de condições para que o corpo encontre satisfação em
objetos que lhe deem prazer, sejam estéticos, sejam valores morais, sejam
religiosos. Da busca de prazer, surge a necessidade de agir.
Neste momento de nosso itinerário reflexivo estivemos a falar da
centralidade que o homem ganha no pensamento de Rubem Alves. O
homem é definido como ser de desejo, de sonho. Mas duas questões
poderiam nos conduzir ao foco de nosso problema nesta reflexão: o
que seria a religião para Alves, nesse momento? Que relação haveria
entre sua concepção antropológica e a religião?
Posto que sua paixão pela religião é permanente, a forma de
concebê-la passa por mudanças. Com a convivência e o estudo dos
teólogos de sua tradição cristã durante o período de formação teológica, Alves avançará em suas representações religiosas, rompendo
com muitas das suas convicções oriundas da sua formação inicial na
família e na comunidade das quais participou, como algumas daquelas
concepções presentes na sua primeira fase reflexiva.
Após o exílio ele estabelecerá diálogo com alguns pensadores
que contribuirão não apenas para a sua compreensão do homem,
mas, também, para a renovação da sua inteligibilidade do fenômeno
religioso. Entre esses pensadores, muitos tiveram interesse por esse
fenômeno, seja para afirmá-lo, seja para desqualificá-lo enquanto
prática humana. Entre tais interlocutores podemos citar Comte,
Freud, Feuerbach, Marx, Peter Berger, Manheim, Durkheimm e
Wittgenstein.
Para o pensador em discussão, a religião colocava-se, antes de
tudo, como um enigma a ser decifrado. Contudo, para ele, os vários
discursos estabelecidos não conseguiram, de forma adequada, a realização desse objetivo. Isso não significa que não tenham trazido contribuições à sua compreensão, mas ficaram aquém quando pretenderam
desvelar o fenômeno religioso que tanto fascina o homem.
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Rubem Alves e a religião: uma análise da primeira e da segunda fase de seu itinerário reflexivo
A ciência moderna possibilitou, a partir das mais variadas linguagens e perspectivas científicas, uma avalanche de críticas à religião.
Tudo indicava que o fenômeno religioso, uma vez decifrado cientificamente, não sobreviveria. O novo saber que chegava aos tempos
modernos, e que já havia investigado o mundo da natureza, agora
chegava ao homem para revelá-lo em seus segredos milenares, na sua
constituição interna, nas suas práticas sociais. Comte, Freud e Marx,
cada um a seu modo, trataram de esclarecer as razões da religião e o
seu fim próximo. Tudo fazia crer que os funerais da religião se concretizariam. Isso era uma questão de tempo. Mas Alves (1988b, p. 36),
olhando para além de seu tempo, observou que:
A história, entretanto, parece que se deleita em zombar de nossas previsões científicas. Quando tudo parecia anunciar os funerais de Deus
e o fim da religião, o mundo foi invadido por uma infinidade de novos
deuses e demônios, e de um novo fervor religioso que totalmente desconhecíamos tanto pela intensidade quanto pela variedade de suas formas, encheu os espaços do mundo, que se proclamava secularizado.
Quando tudo indicava a morte certa da religião, ela renasceu com
vigor e força; talvez, não com as roupagens simbólicas tradicionais,
mas com outras. Foi expulsa pela porta da frente, mas entrou pelas
janelas dos fundos. Para Alves, o que se impõe é uma compreensão
adequada desse fenômeno presente na vida humana em todas as
épocas e lugares. Não há como dizer, com isso, que ela é nada e sem
sentido. Segundo ele, a religião não foi bem compreendida por aqueles que se dispuseram a decifrá-la. Dessa forma, Alves (1988b, p. 24)
iniciou a sua tentativa pessoal – no diálogo com muitos desses pensadores, para entendê-la –, com base num postulado fundamental de
que o homem é um ser de desejo, de sonho e imaginação: “[...] o que
é a religião senão uma forma de imaginação? A religião é imaginação
e, inversamente, a imaginação tem sempre uma função religiosa para
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o homem. É evidente que a religião não pretende descrever aquilo
que é dado na experiência”.
Nesse sentido, Alves se aproxima de Feuerbach, por quem sempre
nutriu uma grande admiração. A exemplo de Alves, Feuerbach foi um
apaixonado pela religião. Isso o moveu a compreendê-la de forma
obstinada e original. Essa paixão era contrária às formas dominantes de sua época, fato reconhecido por Alves (1988a) nas seguintes
observações:
[...] somente um apaixonado pela religião se daria ao trabalho de uma
análise tão minuciosa como a que encontramos em “Essência do cristianismo”. Somente um apaixonado pela religião teria a coragem de
escrever um livro que lhe custaria a carreira acadêmica e o condenaria
ao ostracismo intelectual pelo resto da vida. Nem mesmo Kant teve tal
coragem. Diante das reações desfavoráveis provocadas pela primeira
edição da Crítica da razão pura, em verdade a destruição da teologia
tradicional que ela contém, ele escreveu habilidosamente no prefácio à
2a edição: “Achei, portanto, necessário negar o conhecimento/Deus a
fim de fazer lugar para a fé”. Nada disso encontramos em Feuerbach.
Nenhuma concessão. Nenhuma retratação. “O clamor provocado pelo
presente trabalho” – diz ele no prefácio à segunda edição – não me surpreende e, consequentemente, em nada modificou a minha posição.
Com Feuerbach, Alves descobriu a grandeza e a força dos sonhos
humanos. Aprendeu que uma e outra expressam alguma coisa que
nem mesmo os crentes são capazes de perceber. Portanto, a religião é
um canto de esperança de uma alma solitária, uma confissão silenciosa
e inconsciente dos segredos que se ocultam na alma. Para ele, a religião
nos revela o projeto que o homem tem para sua própria vida. É isso
que o homem não percebe em sua experiência religiosa.
A religião, como nos diz Feuerbach, nada sabe desse antropomorfismo; a sua essência está oculta para o homem religioso. É isso que
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Rubem Alves e a religião: uma análise da primeira e da segunda fase de seu itinerário reflexivo
deve ser desvelado, mostrado nesse projeto feuerbachiano: “[...] nada
mais faço à religião – também à teologia ou à filosofia especulativa –
do que abrir os seus olhos, ou melhor, voltar para fora os seus olhos
que estão voltados para dentro, i. é., apenas transformando o objeto
da fantasia no objeto da realidade” (FEUERBACH 1988, p. 31).
Aprendemos – pela tradição cristã – que Deus, por bondade,
criou o homem à sua imagem e semelhança. Feuerbach (1988, p. 77)
o inverte, dizendo-nos que, na verdade, é Deus uma criação do homem à sua imagem e semelhança. Os atributos humanos colocados
em Deus, subtraídos dos limites humanos e ampliados ao infinito pela
imaginação, tornam-se qualidades de Deus:
Deus não é o que o homem é, o homem não é o que Deus é. Deus é
um ser infinito, o homem finito; Deus é perfeito, o homem imperfeito;
Deus é eterno, o homem transitório; Deus é plenipotente, o homem
impotente; Deus é santo, o homem pecador.
O ser real, existindo independente do homem, para Feuerbach
(1988, p. 55), é uma idolatria. A religião não nos fala de um ser distante, mas do próprio homem, ainda que este não tenha consciência
do fato. Conhecer Deus enquanto criação humana é o caminho do
autoconhecimento, pois
[...] a consciência de Deus é a consciência que homem tem de si mesmo,
o conhecimento de Deus é o conhecimento que o homem tem de si
mesmo. Pelo Deus conhece o homem e vice-versa pelo homem conheces
o seu Deus; ambos são a mesma coisa. O que é Deus para o homem é o
seu espírito, a sua alma o que é para o homem o seu espírito, sua alma,
seu coração, isto é também o seu Deus: Deus é a intimidade revelada,
o pronunciamento do Eu do homem; a religião é uma revelação solene
das preciosidades ocultas do homem, a confissão dos seus mais íntimos
pensamentos, a manifestação pública dos seu segredos de amor.
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Feuerbach (1988) posiciona-se de maneira contrária à de muitos
pensadores modernos em relação à ciência. A religião não deve ser
negada, mas compreendida no seu sentido mais profundo e essencial.
A alienação religiosa se configura à medida que atribuímos a Deus
aquilo que é nosso, constitutivo de nossa essência. Mas essa alienação
não se resolve – e aqui vai a crítica de Alves (1988b, p. 75-76) a Feuerbach – apenas pelo exercício crítico da filosofia, como acreditava
o pensador alemão, mesmo porque não existe uma essência humana
a-histórica subsistente por si mesma.
Com a contribuição de Marx, Alves evidenciou que o homem é
um ser histórico, concreto, que possui as marcas de uma historicidade
e de seu mundo social. As ilusões não são acontecimentos apenas subjetivos, corrigíveis pela filosofia, mas decorrências de fatores externos
à própria consciência, que precisam ser suprimidos para a superação
da alienação. Em outras palavras, a superação de certas ilusões só é
possível à medida que são superadas as situações que se encontram
na base dessa alienação.
Nesse sentido, segundo Marx (Apud ALVES, 1984, p. 54),
[...] o sofrimento religioso é ao mesmo tempo a expressão de sofrimento
real e protesto contra o sofrimento real. Ela [a religião] é o suspiro da
criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, da mesma forma
que ela é o espírito de uma situação sem espírito. Ela é ópio do povo.
Religião é um sintoma. Resultado de uma situação, ela é desprovida de sentido próprio e de importância política. Não há hermenêutica
possível de ser realizada, como o fez Feuerbach, que viu na religião
algo a ser decifrado.
Após analisar profundamente o conceito de alienação em Marx,
Alves (1984) sugeriu que a religião não deve ser simplesmente entendida como reflexo invertido da realidade, mas o “suspiro e o protesto”
do oprimido; seria a expressão da resistência à ordem imposta:
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Rubem Alves e a religião: uma análise da primeira e da segunda fase de seu itinerário reflexivo
Não basta ignorar a religião como reflexo impotente de uma causa
econômica. Seria necessário revelar o seu segredo de projeto político
reprimido e de expressão de um sujeito que, sob condições de alienação
objetiva, mantém ao nível da imaginação os espaços de liberdade que
direcionam suas atividades (ALVES, 1984, p. 75).
Embora Marx tenha trazido contribuições importantes em relação a Feuerbach, Alves (1984, p. 75) acredita que havia “[...] algo de
Feuerbach perdido, a ser recuperado; o sonho do poder histórico, da
imaginação não mais como pura alienação, mas como protesto contra
a alienação”.
Para Alves (1984, p. 50), Feuerbach e Marx se complementariam:
“[...] em Feuerbach, abre-se para a política através da psicologia. Em
Marx, abre-se o caminho da psicologia para a política”. Se houver um
conflito entre os desejos humanos e a ordem social estabelecida, o
que se imporá será a busca dos caminhos de uma nova ordem social
desejada pelos oprimidos.
E a religião? Para Alves (1984, p. 50), ela “[...] nada mais seria
do que uma forma simbólica que toma essas aspirações”. Mas Alves
(1984, p. 50) ainda se pergunta: não seria possível encarar a religião
de uma nova forma, ou seja,
[...] não seria possível encarar a religião, como realidade espiritual, como
expressão de um projeto utópico da superação das condições objetivas,
sendo que estas, por sua vez, nos forneceriam os dados do problema a
ser resolvido e, ao mesmo tempo, o instrumento para a solução?
Alves acredita que qualquer resposta política que objetive mudanças necessárias em contexto concreto e que não levarem em conta os
desejos e aspirações dos envolvidos, será insatisfatória.
Então, a religião, tendo como solo o coração do homem, emerge
a partir das dores e dos sofrimentos do presente. A religião não escapa
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ao drama da existência humana. Por isso, com razão expressou Alves
(1988b, p. 20):
[...] é necessário reconhecer as origens humanas da religião. Se houvesse
tal coisa como uma religião que não nascesse da situação existencial do
homem, como poderia eu entendê-la? Como poderia ela ser objeto de
amor.
Assim sendo, a religião não se refere a algo distante e desvinculado
da experiência humana, antes ela se refere aos sonhos dos homens a
partir de situações existenciais concretas.
O que se torna necessário é aprender a decifrar esses sonhos de
forma adequada, coisa que Freud não soube realizar, no entender de
Alves. É conhecida a crítica à religião realizada por Freud.
Segundo Freud (2001), a religião não passa de um infantilismo
que nos faria reviver certas experiências da infância. Contra esse posicionamento, levanta-se Rubem Alves. Segundo Alves (1988b), Freud
foi capaz de interpretar os sonhos individuais, mas não foi capaz de
compreender a religião enquanto um grande sonho coletivo; não ousou empregar os instrumentos que ele mesmo criou para compreender
o fenômeno religioso enquanto um sonho coletivo, pois
[...] o que é a religião, senão um sonho de grupos humanos inteiros?
A religião é para a sociedade aquilo que o sonho é para o indivíduo.
Se isso for verdade, então cometeremos um grande erro ao classificála como uma forma de falsa consciência. A religião revela a lógica do
coração, a dinâmica do “princípio do prazer”, na medida em que ela luta por
transformar um caso não-humano ao seu redor uma “ordo amoris” (ALVES,
1988b, p. 27, grifo do autor).
Freud, na compreensão de Alves, acabou sucumbindo à racionalidade científica e iluminista tal como o fizera o próprio Marx. Em
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Rubem Alves e a religião: uma análise da primeira e da segunda fase de seu itinerário reflexivo
Freud, o “princípio do prazer” foi suplantado pelo “princípio da
realidade”. Sobre isso afirmou Alves (1986, p. 78) que
Freud descobriu que os homens, contrariamente ao que o iluminismo
nos havia legado, não agem racionalmente. O que os impulsiona são
motivos inconscientes, eróticos, que habitam as profundezas da alma.
Mas ao invés de partir daí para a formulação de uma teoria positiva do
inconsciente, como tentaram fazer os românticos, Freud conclui como
um estoico moralista – o inconsciente deve ser reprimido.
Conclusões provisórias
Com base na reflexão que realizamos até agora, tentando explicitar as representações de Rubem Alves em relação ao religioso nos dois
momentos distintos do seu itinerário reflexivo, podemos dizer isto:
no primeiro, Alves – posicionando-se como teólogo, com pretensão
de contribuir para o processo revolucionário brasileiro – explicita um
sentido, a ser encontrado através da revelação, para a realidade nacional e para a participação dos cristãos no mundo; no segundo, com um
discurso filosófico, sua busca de sentido não recai sobre a revelação
bíblica, mas sobre o homem como ser de desejo e sonho.
Na fase inicial, há uma afirmação da transcendência, que, em
descontinuidade com o mundo, irrompe em meio a ele e lhe revela os
desígnios divinos; na reflexão da maturidade, a transcendência passa a
ser compreendida a partir da imanência do próprio homem, que aparece
como único absoluto. No primeiro momento a revelação é a referência
básica; no segundo, ela se constitui como manifestação que brota do
sonho e da utopia humana em situações históricas concretas.
A Bíblia passa a ser um grande livro poético, que fala dos anseios
e das expectativas de um homem concreto em meio ao sofrimento e
à dor. Não se entende o homem e a história a partir da Bíblia, mas a
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Bíblia a partir do homem situado e datado historicamente. Deus não
é um ser transcendente distante, que se encarna na história e na vida
humana, mas um ser que brota dos desejos e dos sonhos humanos;
Ele é o nome dos anseios mais belos e grandiosos perseguidos pelo
homem; portanto, Sua existência não é como as demais existências,
que são externas; Ele nasce a partir de dentro, com base na miserabilidade humana e na sua busca pelo infinito.
Alves (1984) postulou ainda que Marx, Comte e Freud, não obstante suas contribuições, acabaram por reduzir a experiência religiosa
à alienação, à falta de sentido, ao infantilismo, não compreendendo o
seu significado mais profundo na vida de um ser que se define como
alguém constituído de desejo, eternamente desajustado num mundo
sempre distante dos seus ideais de felicidade.
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RUBEM ALVES AND THE RELIGION: AN ANALISIS OF THE
FIRST AND SECOND PHASES FO HIS REFLEXIVE ROUTE
Abstract
The present text postulates two important stages in the reflexive route of
Rubem Alves. At the first moment we find the young theologian engaged
in the elaboration of a religious thought that justifies the insertion and participation of Christians in the order of the world. At the second one, after
a critical evaluation of the past ideas, it will be determined his humanism
and in it, the origin and the sense of religion.
Key words: Rubem Alves. Religion. Desire. Man.
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DER MENSCH UND SEINE OPFERRITUALE
Joachim G. Piepke
Resumo
O sacrifício e os ritos sacrificais fazem parte dos atos simbólicos mais antigos
da humanidade e possuem o seu poder inquebrado até hoje. Este fato se mostra tanto nos arcaicos ritos sacrificais do Candomblé, ainda hoje praticados,
quanto nos autossacrifícios modernos de islamistas radicais. A interpretação
do sacrifício nas ciências antropológicas abrange um vasto espectro de conteúdos possíveis: ato de suborno de Deus (E. B. Tylor), sacralização e dessacralização do profano (H. Hubert e M. Mauss), mito de origem (A. Jensen),
garantia da communitas (V. Turner), complexo de Édipo (S. Freud), violência
mimética (R. Girard) e arquétipo de vida e de morte (C. G. Jung). A tradição
cristã usou modelos da história da religião e interpretou a morte de Jesus na
cruz como reparação infinita de um pecado original hipotético. Seria mais
perto do espírito cristão ver a morte de Jesus como entrega da vida solidária
com a humanidade sofrida, em que se presenteia a vida através da morte.
Palavras-chave: Rituais sacrificais. Teorias de sacrifício. Bode expiatório.
Sacrifício de Cristo.
1 Der ethnographische Befund
In den Jahren 1990/91 hatte ich Gelegenheit, als Gast bei verschiedenen Candomblé-Gemein-schaften in Brasilien an ihrem Leben
und Ritualen teilnehmen zu dürfen. Candomblé bezeichnet eine afroamerikanische Religionsform, abgeleitet vom afrikanischen Bantuwort
candombe, der Name für die Perkussionsinstrumente des Kultes. Die
Wurzeln des Candomblé liegen bei den Yoruba in Westafrika, den
heutigen Ländern Nigeria, Benin und Togo. Ähnlich verhält es sich
mit dem Kult der macumba, der auf eine angolanische Bantuwurzel
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zurückgehend die halb-religiösen Tänze der cumbas, der Tänzer und
zugleich Fetischpriester oder Medizinmänner der Bantu bezeichnet.
Diese Tradition geht auf die Bantustämme von Kamerun, Gabun,
Kongo, Botswana, Sambia, Angola und Mozambique zurück.
Zu Beginn meiner Forschungen musste ich durch einen Initiationsritus in die Kultgemeinschaft aufgenommen werden, um
dadurch meinem Forschungsobjekt, den Geistern und Göttern der
Kultgemeinschaft, offiziell vorgestellt zu werden. Das Ritual bestand aus einem Speiseopfer, dem sogenannten Ebó, portugiesisch
„despacho“ genannt, das wörtlich „Abfertigung, Versand“ bedeutet.
Meine Informantin und „Mãe de Santo“ mit Namen Palmeirinda,
eine Fetischpriesterin des Kultes, hatte vorweg meine für mich zuständigen Geister ausfindig gemacht, die mich auf meiner Mission
begleiten würden. Für mich als katholischen Priester waren Oxalá,
der Geist des Himmels, sowie Xangô, der Blitz- und Donnergeist,
zuständig. Das Opfer für Oxalá bestand aus gekochtem weißen Mais
in einer weißen Porzellanschale, weil Oxalá nur „Weißes“ akzeptiert,
für Xangô aus einer Mischung von kleingehacktem und gekochtem
Quiabo (Abelmoschus esculentus, Okraschoten), Zwiebeln, Knoblauch
und Krabben, wobei 6 Schoten unzerkleinert und aufrecht stehend
im Kreis am Tonschalenrand angeordnet wurden. Laut Erklärung
Palmeirindas muss Xangô ein irdenes Tongefäß erhalten, weil es in
Afrika ursprünglich aus Holz war. Da aber ein Gefäß aus Holz für den
Normalverbraucher in Brasilien unerschwinglich ist, muss mindestens
die Farbe des Gefäßes dem Holz ähnlich sein. Die 6 unzerkleinerten
Schoten stellen in reduzierter Weise symbolisch die 12 Apostel dar,
wodurch man sich ihrer Macht versichern will. Das Speiseopfer wurde am Hausaltar Palmeirindas 3 Tage lang stehen gelassen und dann
in den Busch gekippt. Während der Darbringung des Opfers wurde
gebetet und jeder der Anwesenden konnte still einen Wunsch oder
eine Bitte an die Geister formulieren.
Das kultische Fest (xirê) im Terreiro, der Kultstätte, begann am
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Der mensch und seine opferrituale
Ostersamstag, weil während der christlichen Fastenzeit die Geister
ruhen und nicht gestört werden dürfen. Am Anfang stand die Schlachtung der Opfertiere. Opfertiere sind Tauben, Hühner, Enten,
Schildkröten, Ziegen und Rinder, wobei letztere selten sind, da ihre
Anschaffung zu teuer ist. Jeder Orixá, d.h. jeder Geist, besitzt die
ihm spezifischen Opfertiere, wobei das Geschlecht und die Farbe der
Tiere symbolische Bedeutung haben. Oxalá beispielsweise akzeptiert
nur weißes Federvieh oder eine weiße Ziege, Exu dagegen, dem
Götterboten und Trickster, muss dunkles Federvieh oder ein dunkler
Ziegenbock dargebracht werden. Vor dem Opfer werden den Tieren
sorgfältig die Pfoten gewaschen, damit sie vom Schmutz der Erde gereinigt in die Sphäre des Sakralen, des Heiligen, eintreten können. Die
teilnehmende Kultgemeinde wird von Kopf bis Fuß mit dem noch
lebenden Federvieh bestrichen, wobei die Schuld und die Unreinheit
der Menschen auf die Opfertiere übergehen und damit im Akt des
Opferns mit in die sakrale Sphäre hinübergenommen werden. Die
Ehrfurcht vor der Gegenwart der Geister in diesem heiligen Raum
überwältigt die Menschen. Sie werfen sich vor den Geistern auf den
Boden, in Anerkennung der eigenen Niedrigkeit und Schwachheit
gegenüber der größeren Macht der Orixás. Das Opfertier wird durch
den Opferpriester, den axogun, geschächtet und das Blut über die heiligen Steine der Orixás, ihrer Skulpturen und Symbolfiguren vergossen
und in Tonschalen aufgefangen. Herz, Nieren und Leber bleiben 3
Tage lang im heiligen Hain und werden danach vergraben. Das essbare Fleisch wird schon während der laufenden Opferhandlung für
das Festmahl zubereitet, das unmittelbar nach dem ca. dreistündigen
Opferritual beginnt. Am Abend nach der Opferhandlung versammelt
sich die Kultgemeinde im sogenannten Barracão, dem Festsaal oder
der Kultstätte. Die Musiker stimmen zuerst die Lieder Exus an, der
als Erster geehrt werden muss, um sich seiner Dienstbotenrolle zu
versichern. Dieses sogenannte Padê de Exu (wörtlich: die Aussendung
Exus) wird durch Opfergaben von geröstetem Maismehl, kleinen
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Maiskuchen, Palmöl und Brandwein begleitet.
Szenenwechsel. Auf der Insel Flores in Indonesien werden bis
heute die Felder für die Aussaat von Reis und Mais durch Abbrennen
des Buschwerks und der Unkräuter gesäubert. Danach beginnt man
die traditionellen Opferrituale, um ein gutes Wachstum und eine reiche Ernte zu garantieren. Die Ältesten bekleiden sich festlich mit ihrer
schwarzen Adatbluse und einem roten Ikatsarong, einer Art langem
Rock, und begeben sich zum Feld des Erdherrn, wo sie repräsentativ
für alle Felder die Zeremonie vornehmen. Der Ethnologe Karl-Heinz
Kohl beschreibt sie folgendermaßen: „Sie beginnt mit der rituellen
Schlachtung und Zerlegung eines Schweinchens und einer Ziege. Ort
der Opferhandlung sind die Sitzsteine der Tonu Wujo, die sich in der
Mitte des mã nikoleũ [des Feldes] befinden und die dort bei der Erstanlage des Feldes zur Erinnerung an das Selbstopfer der Reisjungfrau
auf die Erde gelegt worden waren. Ganz wie im Tonu Wujo-Mythos
beschrieben, werden die Gliedmaßen der beiden Tiere über die vier
Seiten des geschwendeten Brachfelds verteilt. Ebenso verfährt man
mit einer Anzahl von Eiern, von kleinen Palmblattpäckchen und
Bambussegmenten, die man zuvor mit gekochtem und ungekochtem
Reis, Wasser und Palmwein gefüllt hat. Ein Teil der Opfergaben ist
für die Gunadewa der Winde, ein weiterer Teil für die Mäuse, Vögel
und anderen kleineren Feldschädlinge gedacht, die in den Gebeten
beschworen werden, sich von der Saat fern zu halten. Der Erdherr
stimmt einen neuen Gebetszyklus an und versichert der Reisjungfrau,
dass ihre Brüder alles getan hätten, um sie vor den wilden Tieren
des Waldes zu schützen. Zum Abschluss der Zeremonie werden die
schwarze Bluse und der Sarong auf die Sitzsteine der Tonu Wujo
gelegt“ (Kohl 1998: 230).
Der ideologische Hintergrund dieser Zeremonie ist der Mythos
vom Tod der Reisjungfrau mit Namen Tonu Wujo, der als Zerstückelungsmythos zur Kategorie der Ursprungsmythen gehört. Karl-Heinz
Kohl hat ihn folgendermaßen wiedergegeben: „Festlich hatten sie die
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Der mensch und seine opferrituale
Schwester [Tonu Wujo] gekleidet, der Saum des Sarongs fiel bis zur
Erde, die Bluse schützte sie vor den heißen Sonnenstrahlen, Reifen aus
Elfenbein trug sie an den Armen, Silberringe schmückten ihre Ohren.
‚Ihr meine Brüder habt mich schön gekleidet, festlich gewandet habt
ihr mich. So holt denn das chinesische Schwert, nehmt den Dolch aus
Java, wie einer Kokosnuss sollt ihr mir das Haupt spalten, wie einer
Bananenstaude sollt ihr mir den Bauch durchschneiden.‘ Ihr jüngster
Bruder, der als letzter an der Brust der Mutter lag, er durchtrennte ihr
den Hals, der durchschnitt ihr die Kehle. Dann zerteilte er ihren Leib,
hackte ihn in Stücke. Die verteilte er über das ganze Feld, legte sie an
dessen vier Ecken aus. Da erhob sich vom Sitzplatz der Reisjungfrau
noch einmal deren Stimme und sprach zu ihnen: ‚Nach vier Nächten
und fünf Tagen sollt ihr, meine Brüder, wieder hoch in den Garten
steigen. Kommt herbei und geht mich suchen, kommt und seht nach
Nogo Emas zerstückeltem und in die Erde gepflanztem Leib‘“ (Kohl
1998: 218). Die Brüder kehrten nach der gesetzten Frist zurück und
fanden auf dem Feld die ersten sprossenden Schösslinge. Da opferten
sie noch ein Schwein und eine Ziege, um das Wachstum der Halme
zu beschleunigen. Die Ernte war so überwältigend, dass sie sieben
Hütten und fünf Speicher damit füllen konnten.
Einen ähnlichen Mythos von der angrenzenden Insel Solor hatte
bereits P. Paul Arndt 1951 aufgezeichnet: „Es war einmal eine Mutter
mit sieben Söhnen und einer Tochter. Der Vater war schon tot. Die
Söhne arbeiteten im Feld. Sie hatten aber kein Saatgetreide dafür. Da
sagte die Mutter ihren Söhnen: ‚Wenn ihr keine Saat habt, tötet mich
und gebraucht mich als Saatgut.‘ Da töteten sie ihre Mutter, zerhackten sie fein und streuten sie aufs Feld. Den Kopf legten sie nach
der Anweisung der Mutter auf einen Stein in der Mitte des Feldes, die
Füße an den unteren Rand de Feldes, die Hände an das obere Ende.
Darauf begaben sie sich nach Hause und warteten acht Tage, was mit
dem Felde geschehen würde. Nach acht Tagen gingen sie zum Feld
und sahen zu ihrem großen Erstaunen, dass das Feld mit allen Arten
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von Feldfrüchten bestanden war. In großer Freude kehrten sie nach
Hause zurück. Als sie dann die Feldfrüchte reifen sahen, bauten sie
ein Feldhaus und fertigten alle Körbe und Behältnisse an, die für die
Ernte und das Bergen der Früchte erforderlich sind. Nachdem sie
alles fertig hatten, kamen die Feldfrüchte alle von selber vom Feld
und sammelten sich im Feldhaus... Der Kopf der Mutter blieb auf
dem Stein in der Mitte des Feldes. Dort wurden Ziegen und Schweine
geschlachtet; das Blut wurde auf und um den Stein gespritzt und ihm
wurde der Name Nubanara gegeben“ (Arndt 1951: 222). Bis heute
werden von den Bauern Reiskörner, die Leber eine geschlachteten
Schweines, Betelnuss, Kalk, Tabak und Palmwein zum Opferplatz
gebracht. Der Palmwein wird über den Stein gegossen, die übrigen
Gaben darauf gelegt.
Machen wir einen Sprung zurück in die Geschichte der Menschheit. Als im 16. Jahrhundert die spanischen Eroberer Mexiko entdeckten, nahmen sie gewahr, dass die einheimischen Bewohner, die
Maya und Azteken, seit Jahrhunderten ihren Göttern Menschenopfer
darbrachten. Fray Bernardino de Sahagún, ein gelehrter Franziskanermönch, der 1529 nach Mexiko kam und die Sprache der Azteken,
Nahuatl, erlernte, schildert im Florentiner Codex die Jahresfeste eines
jeden Monats. Der erste Monat beginnt mit dem Fest des Regengottes
Tlaloc. Das Fest ‚Die Bäume erheben sich‘ fand statt am 20. Februar.
Er schreibt: „Und an diesem Fest wurden die Regengötter gefeiert.
Man brachte Opfer überall auf den Bergen dar und hing Opferpapiere
auf. Man brachte Opfer auf dem Tepetzinco, oder dort mitten in der
Lagune an der Stelle, die Pantitlan genannt wird. Dorthin brachte
man die Opferpapiere, und dort errichtete man Bäume, wie es heißt,
[nämlich] sehr lange Pfähle. An ihnen befinden sich [die Opferpapiere], durch die alles grün wird, sprießt und wächst. Und dorthin
brachte man auch die kleinen Kinder, die ‚Menschen-Opferstreifen‘
genannt wurden. Und zwar solche, die zwei Haarwirbel auf dem
Scheitel hatten, die unter einem guten Zeichen geboren waren. Überall
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wurden solche gesucht und gekauft. Man sagte, dass das sehr kostbare
Opfer seien, dass [die Regengötter] sie gern entgegennähmen, damit
zufrieden seien, dadurch befriedigt würden, dass mit ihnen Regen
erfleht wird... Und alle haben ihre eigentümliche Frisur, in der einzelne
Quetzalfedern stecken. Sie haben Halsketten aus grünen Steinperlen
und tragen Armbänder, sie tragen grüne Steinperlen als Armbänder.
Sie sind im Gesicht mit Kautschuk bemalt und haben im Gesicht
einen runden Fleck aus Teig von zerquetschten Mohnsamen. Und sie
tragen mit Kautschuk betropfte Sandalen... Man macht ihnen Flügel
aus Papier, sie tragen Flügel aus Papier. Man trug sie auf Tragbahren,
die an der Stelle, wo [die Opfer] sich befanden, mit einem Dach aus
Quetzalfedern versehen waren, und machte ihnen Musik mit Blasinstrumenten. Sie erregten großes Mitleid, brachten die Leute zum
Weinen, brachten allgemeinen Tränenausbruch hervor, verursachten
allgemeine Trübsal, man seufzte über sie... Und wenn die Kindchen
weinen, wenn ihre Tränen schnell hervorstürzen, wenn ihnen die
Tränen an den Augen hängen, so sagte man: ‚Es wird regnen‘; ihre
Tränen bedeuteten Regen. Darüber freute man sich, damit war man
zufrieden. Man sagte: ‚Der Regen wird sich gleich einstellen, wir werden gleich Regen erhalten‘“ (Seler 1927: 55-58).
Das zweite Jahresfest ist das Fest der Opferung der Kriegsgefangenen. Sahagún berichtet: „Das Fest, das man ‚Menschenschinden‘
nennt, wurde in folgender Weise gefeiert: In dieser Zeit werden allen
Gefangenen geopfert, die gesamte Beute, die man gemacht hat, Männer, Weiber und Kinder. Die Krieger, die einen Gefangenen haben,
wenn am anderen Tage ihre Gefangenen geopfert werden sollen,
fangen an, ihren Siegestanz zu tanzen, zu der Zeit, da die Sonne sich
neigt. Und die ganze Nacht lassen sie die Gefangenen wachen in dem
Gemeindehause des Distrikts. Und dort nehmen sie ihnen das Haar
von dem Wirbel des Scheitels weg, und legen es vor dem Feuerherde
nieder, zur Zeit, da die Nacht sich scheidet [um Mitternacht], wenn
man sich kasteite. Und wenn der Morgen angebrochen ist, lassen sie
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sie zum Opfer aufbrechen, wenn die Zeit zum Opfer da ist, an dem
eigentlichen Festtage. Und an diesem ganzen Fest zogen sie allen
Opfern die Haut ab: darum hieß es Menschenschinden (...) Es töteten
sie die Priester, nicht die Krieger, die die Gefangenen gemacht hatten. Diese brachten sie nur hin, überlieferten sie nur [den Priestern],
packten sie am Schopf, nahmen sie am Kopf und brachten sie so die
Stufen des Tempels hinauf. Und wenn ein Gefangener ohnmächtig
wird und die Besinnung verliert, so wird er geschleift, so schleppen
sie ihn hinauf... Und nachdem man sie in dieser Weise hinaufgebracht
hat vor das Angesicht Uitzilopochtlis, legt man sie, einen nach dem
andern, auf den Opferstein, übergibt sie den Priestern, sechsen derselben übergibt man sie. Die legen sie mit der Brust nach oben und
schneiden ihnen die Brust auf mit einem dicken breiten Feuersteinmesser. Und das Herz der Gefangenen nennt man Adlerfrucht, Edelstein. Sie heben es weihend zur Sonne empor, zu dem ‚Türkisprinzen‘
[dem jungen Feuergott], dem ‚aufsteigenden Adler‘, geben es ihr,
nähren sie damit. Und nachdem es dargebracht worden ist, legt man
es in das Quauhxicalli [die Adlerschale] nieder. Und die Gefangenen,
die geopfert worden, nennt man ‚die aus dem Adlerlande‘ [oder die
Adlerleute]. Darnach rollt man sie herab, stürzt sie [die Stufen des
Tempels] herab. Sie klappern, kugeln gleich Kürbissen herab, schlagen auf, wälzen sich um und um, bis sie unten auf dem Apetlac [der
Vorterrasse am Fuß der Stufenreihe] ankommen. Und dort nimmt
man sie auf und übergibt sie den alten Männern (...) Die bringen sie
nach ihrem Gemeindehause, wohin der Besitzer des Gefangenen [der
Krieger, der ihn gemacht hat] es bestimmte und gelobte. Dort holt
man es [das Fleisch] und bringt es nach Hause, um es zu verzehren.
Dort zerteilt, zerschneidet, zerlegt man es“ (Seler 1927: 62-64).
Es folgt dann eine detaillierte Auflistung der Körperteile, wem
welches zukommt, das ich Ihnen an dieser Stelle ersparen möchte.
Am Ende kocht man eine Art Gulasch mit Maiskörnern, worin sich
für jeden ein Stückchen von dem Fleisch des Gefangenen befindet.
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Sahagún schildert in allen Einzelheiten alle zwanzig Opferfeste. Die
gewöhnliche Art und Weise, das Opfer zu töten, bestand darin, das
Herz aus dem auf dem Opferstein ausgestreckten lebendigen Körper
herauszuschneiden. Die Opfer des sechsten Festes wurden ertränkt,
die des neunten Festes verbrannt, die des elften enthauptet. Eine
besonders schmerzhafte Variante bestand darin, die Opfer zuerst ins
Feuer zu werfen, noch lebend herauszuziehen und dann das Herz
herauszuschneiden. Als mannhaftes Zeichen galt es, die Schmerzen in
Würde zu ertragen und sich selbst als Opfer der Gottheit anzubieten.
Ein wesentlicher Teil des Opferrituals bestand darin, die Reste des
getöteten Körpers als Reliquien aufzubewahren. Die abgezogene Haut
des Opfers wurde tagelang von den Siegern übergestülpt und wie eine
zweite Haut getragen. Die Oberschenkelknochen gehörten traditionellerweise dem Krieger, der den Gefangenen gemacht hatte. Männliche Priester pflegten die Haut einer Frau, die als Göttin Toci getötet
worden war, tagelang anzuziehen (vgl. Davies 1981: 250-251).
Machen wir wieder einen Sprung in die Gegenwart. In einer Untersuchung mit dem Titel „Von Marionetten, Helden und Terroristen“
charakterisiert Edda Heiligsetzer das Selbstopfer der Palästinenser:
„Jung ist er, sehr jung. Fast etwas Kindliches hat sein Gesicht noch.
Doch trägt er bereits den Bart, der ihn als traditionell gläubigen
Muslim ausweist. Jetzt ist er ruhig und gefasst. Mehr noch: er ist in
Hochstimmung. Die Vorbereitungen sind fast abgeschlossen. 62
Stunden hat er nun allein verbracht. Ununterbrochen, Tag und Nacht,
hat er durch lautes Beten und religiöse Gesänge sich in die jetzige
Stimmung versetzt, jenen eigentümlichen Zustand, jene Mischung aus
Trance und unnatürlich gesteigerter Präsenz. Doch nun ist er bereit.
Er hat gebadet, sich den Kopf geschoren – das Zeichen des shahid
– des Auserwählten, des Märtyrers für Allah. Nun kleidet er sich an.
Es ist die Uniform der israelischen Streitkräfte. Und auch der Bart ist
jetzt ab. Man wird ihn nicht erkennen, keinen Verdacht schöpfen...
Noch ein letztes Mal wird er beten und sich dann mit den Helfern
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treffen, die ihn an den Ort seiner Bestimmung bringen. Sie haben ihn
noch nie gesehen, wissen nicht, wer er ist, und auch er weiß nichts
von ihnen. Alle haben erst an diesem Morgen Treffpunkt, Zeit und
Einsatzort erfahren. Sobald sie in dessen Nähe angekommen sind,
werden die Helfer ihn sofort verlassen. Er wird allein sein Ziel erreichen, zu Fuß oder mit dem öffentlichen Bus; allein wird er sein, mitten
unter seinen Todfeinden. Aber er ist ganz ruhig, er wird sich nicht
verraten, und niemand wird auch nur ahnen, was bevorsteht: Wie es
vereinbart ist und wie er es in der letzten Woche gelernt hat, wird er
die vielen Stangen Dynamit an seinem Körper zünden. Ein kleiner
simpler Schalter in seiner Hosentasche ist über ein Drähtchen mit dem
Sprengstoff verbunden. Er wird sterben, sterben in einem riesigen
Feuersturm, sterben für Allah, für seinen Glauben und sein Volk. Und
er wird viele, sehr viele seiner Feinde mit in den Tod reißen. Er ist
glücklich. Er lächelt...“ (Heiligsetzer 1998). Augenzeugen berichten
überraschenderweise nicht selten, der Attentäter hätte unmittelbar
vor der Tat einen regelrecht vor Glück strahlenden Gesichtsausdruck
gezeigt – dieses Glück hat sogar einen eigenen Namen: „das Lächeln
der Freude”. Auch die bis vor einiger Zeit üblichen selbst gedrehten
Abschieds-Videos der Attentäter für ihre Angehörigen bestätigen diesen Eindruck. Der Opfertod für den Glauben ist nach islamistischer
Ideologie ein freudiges Ereignis, das Martyrium wird als Geschenk
für Allah empfunden.
Neu ist die Erscheinung des freiwilligen Selbstopfers um religiöser oder religiös-nationaler Überzeugungen willen nicht. Man denke
nur an den Heldentod „für Gott, Kaiser und Vaterland”, dessen
jeweiligen Varianten wir in vielen Ländern vorfinden, wie bei den
japanischen Kamikaze-Piloten im Zweiten Weltkrieg. Für ihr Land
und ihren Gott-Kaiser stürzten sie sich mit Bomben beladen auf
die feindlichen Kriegsschiffe, den sicheren Tod vor Augen. Oder die
sogenannten Assassinen, um ein Beispiel aus dem Vorderen Orient
zu nennen. Entstanden im 11. Jahrhundert, kämpfte die schiitische
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Sekte, bewundert von der Bevölkerung, mit Intrigen, Meuchelmorden
und Selbstmordattentaten gegen die verhassten Kreuzritter und Abtrünnige aus dem eigenen islamischen Lager. Der jeweilige Attentäter
war ganz bewusst allein mit einem Dolch bewaffnet, um auf jeden
Fall nicht lebend aus der Sache herauszukommen. Seine Tat, zu der
er sich angeblich mit Haschisch stimuliert haben soll (daher auch der
Name hashashun, wörtlich: Hanf-Esser), sah er als religiösen Akt, als
Opfer für den Glauben an. Selbstopfer genießen in der Regel eine
fast abgöttische Verehrung in der eigenen Gruppe oder Gesellschaft.
Auch die palästinensischen Selbstmordattentäter machen keine Ausnahme: Sie sind die Idole der Kinder und Jugendlichen, die ihre Bilder
sammeln wie unsere Kinder die von Fußballspielern und Popstars
(vgl. Heiligsetzer 1998).
2 Die Ethnologen
Schon bei der Etymologie des Wortes „Opfer“ sind sich die Ethnologen und Philologen uneins: Die einen leiten es vom lateinischen
Verb operari (= verrichten, arbeiten), die anderen vom lateinischen
offerre (= darbringen) ab. Die Lateiner haben es da leichter, denn das
Wort „Sacrificium“ leitet sich aus sacrum (= das Heilige) und facere
(= tun, handeln) ab. Genauso uneinig sind sich die Ethnologen in
der inhaltlichen Bestimmung des Begriffs. Josef Drexler schlägt in
seiner 1993 erschienenen Dissertation sogar vor, den Begriff ganz
zu eliminieren, da er nur zur Verwirrung beiträgt. Ich halte mich eher
an meinen Kollegen und Mitbruder Anton Quack, der im „Opfer“
rituelle Handlungen sieht, bei denen übermenschlichen Wesen Gaben
dargebracht werden, die dem Menschen wertvoll sind und auf deren
Gebrauch er verzichtet, um damit in Kontakt zur Transzendenz zu
treten (vgl. Quack 2004: 156).
Opfertheorien beschäftigen die Ethnologen seit Beginn ihrer
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Wissenschaft. Edward Burnett Tylor (1832-1917), ein erklärter
Evolutionist in Sachen Religionsethnologie, erklärte in seinem Werk
Primitive Culture, erschienen 1871, das Opfer als Bestechungsakt des
Menschen gegenüber der Gottheit. Der lateinische Grundsatz do ut
des (= ich gebe dir etwas, damit du mir etwas zurückgibst) liegt allen
Opferhandlungen zu Grunde. Erst im Laufe der Entwicklung der
Religion traten dann auch Aspekte der Verehrung und des Verzichts
hinzu. Tylors Gedanken basieren auf der Idee der Kulturevolution als
eines mechanistischen Uhrwerks, das in der Evolution der Kulturen,
einmal in Gang gesetzt, unaufhaltsam seinen Gang von einfachen zu
komplexeren Formen nimmt. Angewandt auf die Religionsentwicklung hieße dies Entwicklung von primitiven materialistischen zu
höheren vergeistigten Formen des Religiösen, vom Animismus zum
Ein-Gott-Glauben.
James George Frazer (1854-1941) in seinem Hauptwerk „The
Golden Bough“ (= Der Goldene Zweig) entwickelte ein Erklärungsmodell des Opfers, das sich auf die Idee des magischen Handelns
reduzieren lässt. Alle Formen der Opferrituale sind auf magische
Vorstellungen zurückzuführen. Vegetations- und Speiseopfer beruhen
auf der Vorstellung der sympathetischen Magie, d.h. gute Früchte, die
geopfert werden, garantieren durch ihr Vorbild eine neue gute Ernte, Blutopfer verleihen der Erde Fruchtbarkeitskraft oder verjüngen
die Kraft der Fruchtbarkeitsgottheit. So interpretiert er den rituellen
Königsmord, eine in Afrika weit verbreitete Form des Opfers, als
„magische Verjüngungspraktik“: Der König, von dessen Lebenskraft
die Fruchtbarkeit von Mensch, Tier und Pflanzen abhängen, wurde
getötet, wenn auf Grund seines Alters oder seiner Krankheit eine
Schwächung seiner kosmischen Lebenskraft befürchtet und de facto
auch festgestellt werden konnte. Ein neuer, junger König sollte neue
Lebenskraft garantieren. Der alte König als Inkarnation des „Korngeistes“ wurde getötet, um die Gottheit vor Senilität zu bewahren und
damit die Körnerfrüchte vor einem hohen Alter zu bewahren – nach
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Frazer ein eklatantes Beispiel für imitative Magie. Ebenso interpretiert
er das Sündenbockmotiv nicht etwa als Sühne- und Versöhnungsopfer, sondern als einen Akt der Kontaktmagie: Das Berühren des Sündenbocks durch die Hände der Menschen ist kein symbolischer Akt
der Schuldübertragung, sondern ein handfestes materielles Abladen
der Schuld auf ein anderes Lebewesen. Die Etikettierung mit dem
Begriff der „Magie“ erklärt aber nicht das Opfer, sondern bringt eher
noch mehr Verwirrung in die Sachlage.
W. Robertson Smith (1846-1894) entwickelte einen ganz anderen Ansatzpunkt. In seiner Schrift „Lectures on the Religion of
the Semites“ (1889) legt er für seine Opfertheorie eine Blutsverwandtschaft von Nomadenstämmen mit einer tierähnlichen Gottheit zu
Grunde, was man mit dem Fachausdruck des Totemismus bezeichnet. Dieses Totemtier darf normalerweise nicht getötet werden, da
es heilig ist. Nun fand er aber gewisse Ausnahmeriten bei Nomaden
auf der Sinaihalbinsel, in denen gerade das Totemtier, ein Kamel,
feierlich geschlachtet und in einem gemeinsamen Mahl verzehrt
wurde. Durch dieses Mahl traten die Feiernden in eine „totemistische Kommunion“ mit dem Totemtier, d.h. in eine durch das Blut
besiegelte Gemeinschaft mit der Gottheit, wurden somit von ihrer
Schuld entsühnt und in ihrer Gemeinschaft erneuert. Das Problem
Smiths liegt nun darin, dass er sich bei seinen Überlegungen auf eine
Überlieferung des Hl. Nilus aus dem 4. Jahrhundert stützt, der von
einem solchen Kamelopfer im Sinai berichtet. Joseph Henninger hat
bereits 1955 nachgewiesen, dass es sich bei dieser Nilus-Geschichte
um ein Klischee spätgriechischer Romanliteratur handelt.
P. Wilhelm Schmidt (1868-1954), Gründer des hiesigen Anthropos Instituts, fußte seine Opfertheorie auf die in den sogenannten
Primärkulturen, den Jäger- und Sammlerkulturen, dargebrachten
Speiseopfer. Das ursprüngliche Opfer nach Schmidt ist das Primitialopfer, das Erstlingsopfer oder die Erstlingsgabe. Es handelt sich
hierbei um Lebensmittel, die durch die Jagd oder das Sammeln von
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wilden Früchten erworben sind und von denen der Mensch vor dem
Verzehr eine kleine symbolische Portion der Gottheit darbringt, um
ihr dadurch Ehrfurcht und Dank zu erweisen. Gleichzeitig stellt es
eine Anerkennung der Oberhoheit der Gottheit dar, die Herr über das
Leben ist. Da aber Lebensmittel auch durch Töten von Lebendigem
geliefert werden, tritt der Sühnegedanke auf, denn der Mensch hat sich
durch das Töten schuldig gemacht. Das Vergießen des eigenen Bluts
ist für Schmidt keine eigentliche Opferhandlung, sondern eher eine
symbolische Anerkennung, dass der Mensch durch seine Sünde sein
Leben verwirkt hat, denn Blut stellt in diesem Sinn kein Lebensmittel
dar. Die Erklärung Schmidts ist dadurch eingeschränkt, dass sie alles
Opfern auf den Genuss von Lebensmitteln und ihre symbolische
Abgabe an den Herrn des Lebens zurückführen will, ohne in Betracht
zu ziehen, dass auch ganze Tiere oder Menschen als Opfer verbrannt,
ertränkt oder erschlagen werden, ohne dass der Mensch davon etwas
verzehrt (Vorbichler 1956: 121-129).
Henri Hubert (1872-1927) und Marcel Mauss (1872-1950)
entwickelten 1899 in einem Artikel über die Natur und die Funktion
des Opfers die Theorie eines Übergangsritus vom Profanen zum
Sakralen und vice versa. So heißt es dort: „Ganz gewiss steht fest,
dass das Opfer immer eine Weihe mit einschließt; bei jedem Opfer
geht ein Objekt aus dem profanen Bereich in den religiösen über; es
ist geweiht“ (Hubert-Mauss 1899: 36) und daraus folgt für sie die Definition: „Das Opfer ist ein religiöser Akt, der durch die Weihe eines
Opferobjekts die Beschaffenheit der moralischen Person verändert,
die ihn durchführt, oder die bestimmter Objekte, auf die er ausgerichtet ist“ (Hubert-Mauss 1899: 41). Das Opferobjekt ist nicht wie bei
Smith von Natur aus heilig, sondern es wird erst durch die Vernichtung
geheiligt. Die Verbindung mit der Transzendenz wird durch das heilige
Mahl vollendet. Eine zweite Opferform ist die des „Entweihens“,
wenn sich der Opferer in einem Zustand der kultischen Unreinheit
befindet und er sich dieser Unreinheit entledigen muss. Er überträgt
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dann seine Sünde durch ein Sühneopfer oder seine Krankheit durch ein Heilungsopfer auf das Opfertier, das zum Sündenbock wird
und vernichtet werden muss. Hier sprechen Hubert und Mauss von
einem Akt der „Desakralisation“, einem Reinigungsopfer. Dabei ist
zu beachten, dass Hubert und Mauss in der Linie der soziologischen
Schule Émile Durkheims die sakrale Welt nicht als objektive reale
annehmen, sondern als reine Projektion der profanen Gesellschaft.
Profane Gesellschaften projizieren Götter in den Himmel, machen
in ihrer Vorstellungskraft aus ihnen ideale Gemeinschaften, die fiktiv
sind. Das Opfer ist dann ein Akt der Selbstverleugnung, durch den
das Individuum seine reale Gesellschaft anerkennt. Es erinnert den
Einzelnen daran, dass kollektive Kräfte vorhanden sind, vertreten
durch ihre Götter und damit mit transzendenter Autorität versehen,
denen er sich unterordnen muss. Evans-Pritchard kritisierte in seiner
Analyse diese Theorie mit den Worten: „Obwohl sie [die Analyse des
Vedischen und Hebräischen Opfers] ein Meisterwerk in sich war, so
sind die Schlussfolgerungen ein nicht überzeugendes Stück soziologistischer Metaphysik... Es sind keine Schlussfolgerungen, die sich
aus der Analyse ergeben, sondern auf Grund einer brillanten Analyse
der Opfermechanismen, oder besser sollte man sagen, auf Grund
einer brillanten Analyse ihrer logischen Struktur oder eher noch ihrer
Grammatik postuliert werden“ (Evans-Pritchard 1965: 70-71).
Adolf E. Jensen (1899-1965), Schüler von Leo Frobenius und
später Leiter des Frobenius-Instituts in Frankfurt, beschäftigte sich
mit den Ergebnissen der Frobenius-Expedition 1937-38 zu den Molukken und Holländisch Neu Guinea, einem Gebiet, in dem die Zerstückelungs-mythen und Fruchtbarkeitsrituale bis heute weit verbreitet
sind. In seinem Hauptwerk „Mythos und Kult bei Naturvölkern“,
erschienen 1951, interpretiert er die agrarischen Opferrituale als
Wiederholung und Gegenwärtigsetzen des Ursprungsmythos: Die
in der Urzeit lebenden halbgottartigen Wesen, die Dema-Gottheiten,
töten aus nicht immer bestimmbaren Motiven eine herausragende
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Dema-Gottheit, aus deren Körperteilen die Nutzpflanzen und Kulturgüter entstehen. Die Dema werden (zur Strafe?) zu Menschen und
zu sterblichen und sich fortpflanzenden Wesen. Sie bewahren das
Andenken an die getötete Gottheit in ihrem Kulthaus auf, durch dessen Betreten sie in das Innere der Gottheit eintreten. Das Essen der
Pflanzen bedeutet mehr als eine reine Nahrungsaufnahme, es ist eine
zeichenhafte Kommunion mit der Gott-heit. Die Menschenopfer in
Altmexiko dagegen haben den Kontakt mit dem Ursprung verloren
und stellen bereits eine Degenerationsphase des Ursprungsopfers dar.
Die hohe Zahl der Menschenopfer deutet darauf hin, dass man den
eigentlichen Sinn des Opfers vergessen hatte und sich im Quantitativen verlor. Jensen spricht von sinnentleerten Überbleibseln des ursprünglichen Rituals. Das Verdienst Jensens besteht sicherlich darin,
dass er die Zusammenhänge zwischen gegenwärtigen Opferritualen
und Ursprungsmythen gesehen hat, wenn auch dieser Zusammenhang
oftmals bei den betreffenden Völkern selbst verloren gegangen ist.
Fraglich dagegen ist die Reduzierung aller Opferrituale auf das DemaPrinzip, als ob dieses das ursprünglichste aller Rituale wäre und alle
übrigen nur degenerierte Formen des einen.
Karl Meuli (1891-1968) untersuchte als Altphilologe griechische
Opferbräuche und stieß auf parallele Gebräuche bei prähistorischen
Jägergruppen. In seinem Buch „Griechische Opferbräuche“, erschienen 1946, streift er durch die Völkerkunde und Prähistorie rund
um den Globus, wo auch immer er Knochenfunde und Tiergräber
findet. Er kommt dann zum Schluss, „dass das olympische Opfer
nichts anderes sei als ein rituelles Schlachten. Das Zere-moniell dieses
Schlachtens hat seine nächste Analogie im Schlacht- und Opferritus
asiatischer Hirtenvölker; dieser Ritus selbst wiederum geht auf Jägerbrauch zurück... Im olympischen Opferritual haben die Griechen ein
angestammtes Erbstück aus eben dieser vorgeschichtlichen Hirten –,
weiterhin aus der urzeitlichen Jägerkultur bewahrt, und zwar haben
sie es reiner und treuer bewahrt als alle indogermanischen Brüders130
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tämme.“ (Meuli 1945: 223-224). Das olympische Opfer bestand in
der Form eines festlichen Mahles, bei dem nur die weißen, in Fett
gewickelten Knochen den Göttern gegeben wurden, denn das Fleisch
wurde von den Teilnehmern des Mahles selber verzehrt. Das Faktum,
dass es genaue Vorschriften gab, wo das Bein für die Opfergabe abgetrennt werden musste und was das Mindestgewicht der Opfergabe
sein sollte, schreibt Meuli dem späteren Einfluss der Opferpriester
zu, die nicht von den bloßen Knochen leben konnten (ebd. 215-217).
Demnach ist das olympische Opfer kein eigentliches Opfer gewesen,
sondern die Erinnerung an die Sitte der urzeitlichen Jäger, dem Tier
wieder sein Knochengerüst zurückzugeben, damit es zu neuem Leben
erstehen könne. Schädel- und Knochenfunde aus prähistorischer Zeit
deuten auf Tierfriedhöfe hin, die genau zu diesem Zweck angelegt
wurden. Hinter den Jägerritualen steht nicht der Glaube an eine
Gottheit, sondern der Glaube an die Heiligkeit und Unverlierbarkeit
des Lebens, der später, seines eigentlichen Sinnes entleert, zu Opfern
umgedeutet wurde (ebd. 282-283). Die prähistorische Theorie Meulis
wurde mit dem Etikett „Nebel des Paläolithikums“ versehen, denn
sie stellt eine unbewiesene und unbeweisbare hypothetische Konstruktion dar.
Die Gedanken Meulis führte Walter Burkert (geb. 1931) in seinem Werk mit dem Titel „Homo Necans“ („Der Mensch, der tötet“,
1972) weiter. Er übernimmt die urzeitliche Jägertheorie und sieht
die Opfertötung als das Grunderlebnis des „Heiligen“. „Der homo
religiosus agiert“, so schreibt er, „und wird sich seiner selbst bewusst
als homo necans. Dies ist ja ‚Handeln‘ schlechthin, r`έζειν, operari –
woraus das Lehnwort ‚Opfer‘ übernommen ist –, eine Benennung,
die den Kern dieses ‚Handelns‘ euphemistisch verschweigt“ (Burkert
1972: 9-10). Die Jagd ist das entscheidende Element, auf Grund
dessen die menschliche Gesellschaft entstanden ist. Durch sie wurde der raubtierähnliche Aggressionstrieb des Menschen kanalisiert,
nach außen auf ein gemeinsames Ziel gelenkt und somit von der
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eigenen Gesellschaft abgelenkt. Die Opferhandlung verfolgt einen
ähnlichen Zweck. Den kollektiven Aggressionen kommt eine bandstiftende Funktion zu, denn im kollektiven Tötungsrausch verschafft
sich die Gruppe eine kathartische, reinigende Aggressionsentladung.
„Man könnte freilich versuchen“, so schreibt er, „durch begriffliche
Distinktionen diese Zusammenhänge zu durchschneiden und die
Jagd vom Opfer scharf zu trennen: das Töten bei der Jagd ist nicht
Zeremoniell, sondern praktisches, zufallsabhängiges Handeln, und
Sinn und Zweck ist ganz diesseitig, die Gewinnung von Fleisch zur
Nahrung. Mit dem ‚Wild‘ kontrastiert das gezähmte Haustier. Doch
zeigt eben die Konvergenz von Jagd- und Opferbräuchen, dass eine
solche Trennung falsch ist“ (ebd. 22-23). Im Opferritual bleibt im
Mittelpunkt das Erlebnis des Todes, „veran-staltet durch Gewalttat
des Menschen kraft vorgegebener Notwendigkeit; und fast immer
ist damit das andere, das menschlich-allzumenschliche verbunden:
das Essen, das festliche Opfermahl der dafür und dadurch Geheiligten“ (ebd. 1972: 20).
Als letzten aus der Reihe der Ethnologen und Religionswissenschaftler möchte ich noch kurz Victor Turner (1920-1983) erwähnen, denn Turner bemühte sich, über die Beschreibung der Phänomene hinaus eine Deutung des Opfers zu geben. Er unternahm
Feldstudien unter den Ndembu in Sambia und unterscheidet dort
zwei Kategorien des Opfers, einmal das Opfern in Lebenskrisen
(life-crisis-rituals) (was van Gennep als „rites de passage“ bezeichnet hat) und zum anderen das Opfern in Situationen der Not wie
Krankheit, Unfruchtbarkeit und Misserfolg (rituals of affliction).
Die Ursache der Notsituation wird in einer Verfehlung gegenüber
den Verstorbenen, den Ahnen gesehen oder in der Verletzung sozialer Normen, die zu Missstimmung und Streitigkeit führen. Die
Gemeinschaft gerät dadurch in einen unstabilen Zustand und droht
auseinanderzubrechen. In dieser Situation stellt das Opferritual den
sozialen Kitt dar, der die Gemeinschaft wieder versöhnt und damit
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Der mensch und seine opferrituale
zusammenhält. Das Ritual ermöglicht die Kommunikation zwischen der sichtbaren und unsichtbaren Welt, weil durch den Tod des
Opfertiers ein Kanal zwischen den beiden Bereichen eröffnet wird.
„Beim Tier- oder Menschenopfer beendet das Töten das Leben
des Opfers vollständig, vielleicht als Ersatz für das des Opfernden.
Aber es schenkt auch Leben … man könnte auch sagen, dass es
das wiederbelebt, was schon tot ist, und dem das Leben nimmt, das
noch lebendig ist. Die Tatsache, dass Blut bei der Geburt wie auch
beim Schlachten auftritt, verleiht dem blutigen Opfer die Qualität
des Neugeborenwerdens wie auch des Leben Beendens“ (Turner
1977: 202). Der Kommentar von Turners einheimischen Informanten dazu lautet: „Opfern bedeutet Leben für alle“ (ebd.). Daher
verwandelt das Opfer die Beteiligten nicht allmählich, stufenweise,
sondern gewaltsam und auf einmal durch den Akt des Schlachtens.
Der hastige und extreme Charakter des blutigen Opfers steht wahrscheinlich in Verbindung mit der Notwendigkeit, die soziale Krise
schnell und schmerzhaft zu beenden. Die Neugeburt des Selbst
und der Communitas sowie die Erneuerung der gesellschaftlichen
Grenzen und Regeln sichern den Fortbestand der Gesellschaft (vgl.
Turner 1977: 215).
Mit Turner möchte ich zusammenfassen, dass die Ethnologen
sich bemüht haben, alle funktionalen Aspekte des Opferrituals
aufzulisten – Verehrung einer höheren Macht, Unterwerfung
unter höhere Mächte, Abwehr böser Mächte, Kommunion mit
der Gottheit, Sühneleistung und Versöhnung, Kraftübertragung,
Abgabenleistung, der Austausch von Geschenken, Reinigung, Wiedergutmachung oder Erbitten von Gnadenerweisen –, sodass ein
jeder aus einem dieser Aspekte eine Gesamttheorie erarbeitet hat.
Es handelt sich aber beim Opfer um einen komplexen Vorgang, der
nicht auf eine oder mehrere dieser funktionalen Aspekte reduziert
werden kann. Auf der Ebene der Funktionen ist der Opfervorgang
in seiner Ursächlichkeit nicht erklärbar.
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3 Die Psychoanalytiker
Unter den Vätern der Psychoanalyse hat sich Sigmund Freud
(1856-1939) mit dem Thema Opfer in seinem Buch „Totem und
Tabu“, erschienen 1913, befasst. Bezeichnenderweise trägt es den
Untertitel „Einige Übereinstimmungen im Seelenleben der Wilden
und der Neurotiker“. Freud stützt sich dabei auf die Abhandlungen
Smiths über den Totemismus und Frazers über das magische Denken.
Als Evolutionist postuliert er den inneren Zusammenhang von ontogenetischer Entwicklung des Individuums und phylogenetischer Entwicklung der menschlichen Gesellschaft. Die drei libidinösen Phasen
des Individuums – Narzissmus, Abgrenzung von der Elternfixierung
und Reifezustand – haben ihre parallelen Phasen in der geistigen
Entwicklung der Kulturstufen – nämlich vom magischen Animismus
der Primitiven, über die Phase der Religion der Gottglaubenden zur
höchsten Entwicklungsstufe, der Wissenschaft. Religion ist für ihn
eine kollektive Zwangsneurose, die sich ursprünglich aus Schuldgefühlen entwickelte und sich bis heute davon ernährt. Am Anfang der
Kultur steht ein Urverbrechen, der Vatermord. In der Urhorde der
ersten Menschen besaß der Patriarch das Monopol auf alle Frauen.
Seine Söhne erhoben sich gegen ihn, weil sie ebenfalls in den Genuss
der Frauen kommen wollten, so töteten sie ihn und verspeisten ihn
anschließend, in einer symbolischen Identifikation mit ihm. Es regt
sich jedoch das Schuldbewusstsein und sie belegen das Totemtier,
das den toten Vater repräsentiert, mit einem Esstabu. In Erinnerung
an dieses erste große Opfer wird aber im Zyklus der Jahreszeiten das
Totemtier dennoch rituell geschlachtet und feierlich verzehrt. So zeigen sich im Ursprung des Opfers und der Religion die grundlegenden
Elemente der religiösen Neurose: das rituelle Schlachten des Opfers,
das Schuldeingeständnis der Täter und die Erneuerung des Lebens
in der mahlzeitlichen Communio. Der einst ermordete und verspeiste
Vater wird mit der Zeit zu einer Gottheit hochstilisiert. Diese Urtat
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vererbt sich genetisch auf die ganze Menschheit und wird im griechischen Ödipusmythos historisch sichtbar.
Die Freudsche Hypothese lässt sich heute nicht mehr halten. Abgesehen von der willkürlichen Konstruktion einer Urhorde und deren
Sexualverhalten wird kein Wissenschaftler heute annehmen, dass sich
moralische Handlungen auf die Genetik der Erbmasse übertragen
können. Evans-Pritchard kommentiert die Freudsche Hypothese mit
der Bemerkung, dass bis heute nichts entdeckt worden ist, „was dieser
zyklopischen Familie entspräche“ (vgl. Drexler 1993: 49). Trotz aller
berechtigten Einwände gegen Freud muss man dennoch anerkennen,
dass er den Schlüssel zum Verständnis des Opferrituals nicht in den
von den einzelnen Kulturen verschieden interpretierten Funktionen
des Opfers sieht, sondern in der Psyche des Menschseins. Und die
Psyche des Menschseins bringt er in Verbindung mit dem Mythos, in
dem sich die psychischen Bilder und Vorgänge des Individuums in
kollektiven Erinnerungen kristallisiert haben.
Den Gedanken Freuds eines ursprünglichen Gewaltaktes, der sich
in die Psyche eingegraben hat, führte in gewisser Weise René Girard
(geb. 1923) weiter, wenn er den Gewaltakt in der jedem Menschen
eingeschriebenen Rivalität zu seinem Bruder oder Nächsten sieht. Das
Paradebeispiel dieser Gewalt findet er in der biblischen Darstellung
des ersten Brudermords: Kain erschlägt seinen jüngeren Bruder Abel,
weil dieser ein perfekteres Opfer Gott darbringt als er selber es vermag. Der jüngere Bruder hat durch seine „Mimesis“, wie Girard es
nennt, d.h. seinen Nachahmungstrieb seinen älteren Bruder überholt
und vor Gott ausgestochen. Hier liegt das Motiv zur Gewaltanwendung und zum Brudermord. Damit sich aber dieser Mord nicht endlos
in Blutrachefehden fortsetzt, setzt Gott der Gewalttat ein Ende: Er
selber markiert Kain mit einem Zeichen, das ihn vor der Rache der
Nachkommen Abels schützen wird (vgl. Girard 1983: 147-153).
Den Nachahmungstrieb, vom griechischen Wort mi,mhsij übernommen, sieht er bei allen höheren Säugetieren gegeben: „Wenn ein
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Individuum einen Artgenossen die Hand nach einem Gegenstand
ausstrecken sieht, ist es sogleich versucht, dessen Geste nachzuahmen“, schreibt Girard (Girard 1983: 19-20). Er begründet es mit des
von Kindheit an vorhandenen Nachahmungstriebs des Aneignens,
d.h. was ich im Besitz des Anderen sehe, möchte auch ich besitzen.
Gerät der mimetische Prozess in die Krise, d.h. wächst er sich zu
einem ernsten Eklat aus, der selbst vor Mord nicht zurückscheut (s.
Kain und Abel), so tritt, um den Lynchmord zu vermeiden, an seine
Stelle die Opferung. Er schreibt wörtlich: „Im Opferakt bekräftigt
sich die Einheit einer Gemeinschaft, und diese Einheit tritt hervor
gerade auf dem Höhepunkt der Spaltung, gerade dann, wenn die
Gemeinschaft sich so darstellt, als sei sie nun durch den mimetischen
Zwist völlig zerrissen und dem endlosen Teufelskreis der rächenden
Repressalien heillos ausgeliefert. Auf die Opposition jedes gegen
jeden folgt brüsk die Opposition aller gegen einen… Es leuchtet ohne
weiteres ein, wieso dieses Opfer die Lösung bringt: Die ganze Gemeinschaft ist wieder solidarisch auf Kosten eines Opfers, das nicht
nur unfähig ist, sich zu verteidigen, es ist auch viel zu machtlos, um
Rache heraufzubeschwören… Der Opferakt ist nur eine Gewalttat
mehr, eine Gewalttat, die zu anderen Gewalttaten hinzukommt, aber
sie ist die letzte Gewalttat, das letzte Wort der Gewalttätigkeit“ (ebd.
35). Girard kehrt die Reihenfolge der Gesellschaftsgründung Freuds
um: der Mord steht nicht am Anfang der Gesellschaft, sondern am
Ende des mimetischen Prozesses als Lösung der Gesellschaftskrise.
Die versöhnende Wirkung des stellvertretenden Opfers gewinnt
an Ausdehnung und Dauer durch die Eindämmung der mimetischen
Kräfte auf Grund von Verboten und durch die Kanalisation des
Gewaltpotentials in den Riten. „Das Religiöse ist nichts anderes als
diese ungeheure Anstrengung, den Frieden aufrechtzuerhalten. Das
Sakrale ist die Gewalt, doch wenn das Religiöse die Gewalt verehrt, dann
immer nur deshalb, weil es von ihr annimmt, dass sie den Frieden
bringe; das Religiöse ist gänzlich auf den Frieden ausgerichtet, aber
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die Wege zu diesem Frieden sind nicht von gewaltsamen Opferungen
frei“ (ebd. 43). Girard sieht hier einen spontanen psychologischen
Mechanismus am Werk, der sich einen stellvertretenden Sündenbock sucht, um die Zerstörung der Gesellschaft durch das mimetische
Gewaltpotential abzuwenden.
Der Begriff des „Sündenbocks“ geht auf die Übersetzung der
Vulgata von Leviticus Kapitel 16 zurück, in der das griechische apopompai/oj (= der weggeleitet wird) der Septuaginta durch das lateinische caper emissarius übersetzt ist, der aber im Hebräischen „für Asasel
bestimmt“ genannt wird. Asasel aber ist ein alter Wüstendämon. Ihm
wird das Leben dieses Opfertieres angeboten, denn, einmal in die
Wüste getrieben, hat der Bock keine Überlebenschance. Im Begriff
des Sündenbocks ist das Rituelle und das Psychologische miteinander
verbunden, was von der Ethnologie in dieser Weise nie anerkannt
worden ist, nämlich dass ein innerer Zusammenhang zwischen dem
Rituellen und der psychischen Neigung des Menschen, seine Ängste
und Konflikte auf willkürliche Opfer zu übertragen, besteht (vgl.
Girard 1983: 136). Es handelt sich also nicht um eine bildhaft dargestellte Übertragung von moralischer Schuld oder seelischer Angst
auf ein Opfertier, sondern um eine wirkliche Transferenz durch den
rituellen Akt, wodurch ebenso real Ent-Schuldung, Vergebung und
Versöhnung erreicht wird.
Der Schweizer Psychoanalytiker und Schüler Freuds Carl
Gustav Jung (1875-1961), der selber ethnologische Forschungen
in Kenia unternommen hatte, legte seinen Gedanken über 30.000
Traumanalysen zugrunde. Bei seinen Analysen dieser Träume stieß
er darauf, dass viele dieser Traumbilder, gerade wenn es sich um stark
emotionelle Träume handelte, nicht aus der persönlichen Erfahrung
des Träumenden abgeleitet werden konnten. Freud hatte dieses Phänomen ebenfalls beobachtet, es rein evolutionistisch als „archaische
Überreste“ aus den Anfängen der Menschheit gedeutet. Jung dagegen
findet darin Formen, die offenbar dem menschlichen Geist angeboren
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sind. Er schreibt: „Wie der menschliche Körper ein ganzes Museum
von Organen darstellt, von denen jedes eine lange Entwicklungsgeschichte hinter sich hat, so können wir auch erwarten, dass unser
Geist in ähnlicher Weise organisiert ist. Er kann ebenso wenig wie
der Körper, in dem er existiert, ein Produkt ohne Geschichte sein.
Mit ‚Geschichte‘ meine ich nicht die bewusste Beziehung unseres
Geistes auf seine Vergangenheit in Sprache und anderen kulturellen
Traditionen. Ich meine die biologische, prähistorische, unbewusste
Entwicklung des Geistes im archaischen Menschen, dessen Psyche
der des Tieres noch sehr ähnlich war. Diese unermesslich alte Psyche
bildet die Grundlage unseres Geistes… Der erfahrene Erforscher der
Seele erkennt die Analogien zwischen den Traumbildern des modernen Menschen und den Erzeugnissen des primitiven Geistes, seinen
‚kollektiven Bildern‘ und seinen mythologischen Motiven… Der
Psychologe muss nicht nur über ausreichende Erfahrung mit Träumen und anderen Produkten unbewusster Tätigkeit, sondern auch
über mythologisches Wissen verfügen. Ohne dieses Rüstzeug kann
er wichtige Analogien nicht erkennen… (Jung 1986: 67). Jung nennt
diese archaischen Formen der Seele „Archetypen“ oder „Urbilder“.
Der Ausdruck „Archetyp“ wird oft missverstanden, so als ob es sich
dabei um bestimmte mythologische Bilder handeln würde, die vererbt
würden. Archetypen sind vielmehr angeborene Tendenzen, solche
Bilder zu produzieren, die im Detail von-einander abweichen können,
aber dennoch dieselbe Grundstruktur aufweisen. Es gibt beispielsweise sehr verschiedene Bilder der verschlingenden Muttergottheit, aber
ihre Grund-struktur ist immer dieselbe: die panische Angst vor dem
sich auftuenden Uterus, der den Betroffenen zu verschlingen droht;
oder das Bild der feindlichen Brüder (Kain und Abel, Esau und Jakob,
Romulus und Remus), bei denen immer die Rivalität zur Krise führt.
Ähnlich wie Instinkte bei Tieren zu vorgegebenen Handlungsmustern
führen, so produzieren Archetypen im Inneren der Psyche Phantasien
und symbolische Bilder. Diese inneren Erscheinungen nennt Jung
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Archetypen. Ihren Ursprung kennt man nicht. Sie sind allgegenwärtig,
zu allen Zeiten und in allen Kulturen vorhanden.
Jung schildert exemplarisch den Fall eines jungen Mädchens: „Einen sehr wichtigen Fall brachte mir ein Mann, der selber Psychiater
war. Er zeigte mir eines Tages ein handgeschriebenes Büchlein, das er
zu Weihnachten von seiner zehnjährigen Tochter geschenkt bekommen hatte. Es enthielt eine ganze Serie von Träumen, die das Mädchen
im Alter von acht Jahren gehabt hatte, und war die merkwürdigste
Traumserie, die ich je gesehen habe. Obgleich kindlich, waren sie doch
unheimlich und enthielten Bilder, deren Ursprung dem Vater völlig
unbegreiflich war. Dies waren die Motive:
• „Das böse Tier“, ein schlangenähnliches Ungeheuer mit vielen
Hörnern, tötet und verschlingt alle anderen Tiere. Aber Gott
kommt, in Gestalt von vier einzelnen Göttern, aus den vier
Ecken und gibt den toten Tieren das Leben wieder.
• Eine Auffahrt in den Himmel, wo heidnische Tänze zelebriert
werden; und ein Abstieg in die Hölle, wo Engel gute Taten
tun.
• Eine Schar kleiner Tiere ängstigt die Träumerin. Die Tiere
werden ungeheuer groß, und eins von ihnen verschlingt das
kleine Mädchen.
• Eine kleine Maus wird von Würmern, Schlangen, Fischen und
Menschen durchdrungen. Dadurch wird die Maus menschlich.
Dies schildert die vier Stadien des Ursprungs der Menschheit.
• Man sieht einen Wassertropfen, wie er erscheint, wenn man
ihn durch ein Mikroskop betrachtet. Das Mädchen sieht, dass
der Tropfen voller Zweige ist. Dies illustriert den Ur-sprung
der Welt.
• Ein ungezogener Junge bewirft alle Leute, die an ihm vorübergehen, mit kleinen Erdklumpen. Dadurch werden alle
Vorübergehenden schlecht.
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• Eine betrunkene Frau fällt ins Wasser und kommt erneuert
und nüchtern wieder heraus.
• Die Szene spielt in Amerika, wo viele Leute auf einem Ameisenhaufen rollen, wobei sie von den Ameisen angegriffen werden. Die Träumerin fällt in panischer Angst in einen Fluss.
• Auf dem Mond gibt es eine Wüste, und die Träumerin sinkt
so tief in den Boden, dass sie in die Hölle gerät.
• In diesem Traum hat das Mädchen eine Vision von einem
leuchtenden Ball. Es berührt ihn. Dämpfe steigen von ihm
auf. Ein Mann kommt und tötet es.
• Das Mädchen träumt, es sei gefährlich krank. Plötzlich kommen Vögel aus seiner Haut und bedecken es vollständig.
• Mückenschwärme verdunkeln die Sonne, den Mond und die
Sterne, bis auf einen. Dieser eine Stern fällt auf die Träumerin.
In dem ungekürzten Originaltext beginnt jeder Traum mit den
einleitenden Worten der Märchen: ‚Es war einmal…‘ Mit diesen
Worten deutet die kleine Träumerin an, jeder Traum solle eine Art
Märchen darstellen, das sie ihrem Vater als Weihnachtsgeschenk
erzählen möchte. Der Vater versuchte, die Träume innerhalb ihres
Zusammenhangs zu deuten. Er konnte es aber nicht, weil keine persönlichen Anknüpfungspunkte vorhanden zu sein schienen. … [Das
Mädchen] starb, etwa ein Jahr nach diesem Weihnachtsfest, an einer
Infektionskrankheit“ (Jung 1986: 69-72).
Ich kann an dieser Stelle nicht im Einzelnen auf diese Traumbilder eingehen, sie alle aber handeln vom Thema der Zerstörung
und Wiederherstellung des Lebens, von Tod und Wiedergeburt, von
Vergehen und Auferstehen. Bilder der universalen Mythologie tauchen
auf, kosmogonische und apokalyptische Bilder. Wenn auch einige
christliche Motive wie Himmel und Hölle, Engel und Teufel erscheinen, so deuten die Bilder auf einen nicht-christlichen Ursprung hin.
Das Mädchen erlebte in ihren Träumen die drohende Ankündigung
ihres nahen Todes; es formten sich uralte Bilder in ihrer Seele, die
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durch den Tod hindurch das Leben erblickten; ihr Lebensopfer war
im Unbewussten von der Erneuerung des Lebens durchdrungen. Die
lebensbedrohende, aber noch unbewusst schlummernde Krankheit
erzeugte auf der einen Seite grausame und beängstigende Bilder der
Zerstörung, auf der anderen Seite aber Bilder des unzerstörbaren
Lebens. Hier liegt m. E. der Ansatz zu einem tieferen Verständnis
der Opferrituale der Menschheit: Der Mensch „weiß“ aus seinen
Archetypen seit Anbeginn um die Fragilität des Lebens, das immer
und überall vom Tod bedroht ist. Er „weiß“ aus seinen Archetypen
auch um die Möglichkeit des Überlebens – durch den Tod und die
offensicht-liche Zerstörung hindurch. Daher sucht er im Opferritual
seine Zerstörung stellvertretend vorwegzunehmen, um dadurch sein
Überleben zu garantieren. Da er aber seine eigene Begrenztheit hinsichtlich des Todes Tag für Tag in dieser Welt erfährt, garantiert nur
die sterbende und getötete Gottheit in der unzerstörbaren Welt der
Transzendenz oder Traumzeit das Überleben der irdischen. Diese seelischen Bilder des Menschen haben sich im Laufe der Jahrtausende in
den Mythen der Urzeit niedergeschlagen, die nichts Anderes darstellen
als das Sedimentgestein jahrtausendalter Erfahrung von Leben und
Tod. Jedes dargebrachte Opfer, in welcher Form auch immer, stellt
die sterbende Gottheit dar, die das alte, zerbrechliche Leben immer
wieder im Jahres- und Lebenszyklus erneuert und endgültiges neues
Leben garantiert.
4 Der christliche sterbende Gott
Auch die christliche Gottheit in der Person Jesu stirbt als Opfer
der Gewalt – nicht auf einem kultischen Altar, sondern als religiös
motivierter politischer Aufwiegler. Jesu öffentliches Auftreten, seine
Botschaft vom Kommen des Gottesreiches und seine heilenden Handlungen standen von Anfang an unter dem Zeichen eines gewaltsamen
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Endes. Jesus wäre naiv gewesen, hätte er nicht die Gefangennahme
und Enthauptung Johannes des Täufers durch Herodes Antipas als
Vorzeichen für sein eigenes Schicksal gesehen, denn Herodes stand
das sogenannte römische „Jus gladii“, das Recht auf Todesstrafe, zu.
Außerdem war ihm bewusst, dass seine Verkündigung eine direkte
Provokation der jüdischen religiösen Elite darstellte, denn sie sah
sich – als Verfechterin des wahren Heilswegs durch die gewissenhafte
Befolgung der Tora – durch Jesu Botschaft der radikalen Liebe zu
Gott und dem Nächsten vom eschatologischen Heil ausgeschlossen.
Jesu Religionskritik wurde durchaus wahrgenommen und auch ernst
genommen (vgl. die „Weh-Rufe“ gegen die Pharisäer und Schriftgelehrten in der Bergpredigt bei Mt 5-7 und Lk 11,37-12,12). Der
jüdische Sanhedrin besaß schließlich das Recht auf Steinigung bei
religiös-moralischen Vergehen (s. die Ehebrecherin oder Stephanus).
Auch muss die Gefahr einer Identifizierung Jesu mit einer revolutionär-zelotischen Gruppierung nicht ausgeschlossen gewesen sein,
denn sowohl Judas Iskariot (= Sikarier, „Dolchträger“) wie auch die
sogenannten „Donnersöhne“ (= Boanerges: Jakobus und Johannes)
deuten auf Verbindungen mit diesem terroristischen Milieu hin. Wenn
auch sich Jesu Worte und Taten ausdrücklich von jeder konkret politischen Konnotation absetzten, so konnten sie dennoch nicht eine solche
Interpretation vermeiden, wie es sich dann konkret bei seinem Prozess
vor den Römern gezeigt hat. Somit musste Jesus mit Verfolgung, Verurteilung und dem Tod am Kreuz rechnen. Er stirbt den Kreuzestod
wie viele andere Rebellen und Kriminelle um das Jahr 30.
Jesu Tod kommt als geschichtliches Ereignis einer menschlichen
Absage an seine Botschaft und Person gleich. Er geht bewusst seinen
Weg der Gewaltlosigkeit auf einen gewaltsamen Tod hin weiter. Von
daher muss er dem Tod einen Sinn beigemessen haben, der nicht im
Widerspruch zu seinem Lebenswerk stand, sondern innerhalb dieses
Lebenswerks einen sinnvollen Stellenwert einnehmen konnte. Für
ihn stellt der gewaltsame Tod die radikalste Form seines Dienstes an
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der Menschheit dar: „Denn auch der Menschensohn ist nicht gekommen, sich dienen zu lassen, sondern um zu dienen und sein Leben
hinzugeben als Lösegeld für viele“ (Mk 10,45). Im Johannesevangelium erscheint unmittelbar vor seinem Tod anstatt der Erzählung des
Paschamahls der ausführliche Bericht über die Fußwaschung an den
Jüngern – als Zeichen des radikalen Dienens im Kontext des gewaltsamen Endes Jesu (Joh 13,1-20).
In der Folgezeit versuchen die ersten Gemeinden, den Tod Jesu
auf dem Hintergrund von Israels Heilsgeschichte zu verstehen. In der
lukanischen Tradition erleidet Jesus den Märtyrer-tod des Propheten:
„Zu dieser Zeit kamen einige Pharisäer zu ihm und sagten: Geh weg,
verlass dieses Gebiet, denn Herodes will dich töten. Er antwortete
ihnen: Geht und sagt diesem Fuchs: Ich treibe Dämonen aus und
heile Kranke, heute und morgen, und am dritten Tag werde ich mein
Werk vollenden. Doch heute und morgen und am folgenden Tag
muss ich weiterwandern; denn ein Prophet darf nirgendwo anders als
in Jerusalem umkommen. Jerusalem, Jerusalem, du tötest Propheten
und steinigst die Boten, die zu dir gesandt sind“ (Lk 13,31-34). Jesus
erleidet das authentische Prophetenschicksal. Als eschatologischer
Prophet löst er in seiner Person die Heilsrelevanz der Tora ab. In der
markinischen Tradition wird sein Tod als notwendiges Ereignis der
Heilsgeschichte gedeutet: „Dann begann er, sie darüber zu belehren,
der Menschensohn müsse vieles erleiden und von den Ältesten, den
Hohepriestern und den Schriftgelehrten verworfen werden; er werde
getötet, aber nach drei Tagen werde er auferstehen. Und er redete
ganz offen darüber. Da nahm ihn Petrus beiseite und machte ihm
Vorwürfe. Jesus wandte sich um, sah seine Jünger an und wies Petrus
mit den Worten zurecht: Weg mit dir, Satan, geh mir aus den Augen!
Denn du hast nicht im Sinn, was Gott will, sondern was die Menschen wollen“ (Mk 8,31-33). Der Gerechte muss viel leiden und wird
dadurch in die Herrlichkeit Gottes eingehen. Sein Tod erhält keine
besondere Heilsfunktion, sondern wird als das von Gott geplante und
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gewollte Durchgangsstadium zum Leben gesehen. Das Leid ist ein
Zeichen von Gottes Gegenwart. Die paulinische und johanneische
Traditionen schließlich sehen seinen Tod als Sühneopfer für die Sünde der Welt: „Gott aber hat seine Liebe zu uns darin erwiesen, dass
Christus für uns gestorben ist, als wir noch Sünder waren. Nachdem
wir jetzt durch sein Blut gerecht gemacht sind, werden wir durch
ihn erst recht vor dem Gericht Gottes gerettet werden. Da wir mit
Gott versöhnt wurden durch den Tod seines Sohnes, als wir noch
Gottes Feinde waren, werden wir erst recht, nachdem wir versöhnt
sind, gerettet werden durch sein Leben“ (Röm 5,8-10). Der Tod ist
hier das letzte Glied eines gewaltlosen Lebens und gleichzeitig sein
Höhepunkt. Gottes Heil für den Menschen offenbart sich bis zum
bitteren Ende als ein Angebot in Freiheit, ohne selbst menschliche
Machtmechanismen oder religiöse Gewalt für den Sendungserfolg seines Sohnes in Anspruch zu nehmen. Erst im Tod für alle erweist sich
Gottes Macht als die größere, denn er erschafft durch ihn hindurch
neues Leben. Die Lebensgeschichte Jesu wird eine Geschichte für die
Anderen und wegen der Anderen. Seine grausam abgebrochene Lebensgeschichte wird die Lebensgeschichte aller Leidenden, von Gewalt
und Tod Gezeichneten. Sie ist Gottes tiefste Solidarität mit einer
durch die Gewalttätigkeit der Natur und des Menschen verwundeten
und letztendlich hilflosen Menschheit. Darin geschieht Versöhnung
mit Gott und Leben in Vollendung.
In der Westkirche vergaß man bald den heilsgeschichtlichen
Kontext der Lebensgeschichte Jesu und entwickelte in der Patristik
unter dem Einfluss des Neuplatonismus, des römischen Rechtsdenkens und der Opferpraktiken des Altertums eine ontologische
Heilslehre vom Kreuz. Der Gottmensch hat die Menschheit aus der
Gewalt des Teufels losgekauft, indem er sein Blut am Kreuz dafür
hingegeben hat. Jesus wird im wörtlichen Sinn das Sühneopfer für
die von der Menschheit verursachte Erbschuld oder die endgültige
Wiedergutmachung einer verletzten Rechtsordnung Gottes. Anselm
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Der mensch und seine opferrituale
von Canterbury (1033-1109) erarbeitete schließlich im Hochmittelalter in seinem zweibändigen Werk „Cur Deus Homo?“ (1098) eine
systematische Erlösungslehre, in der er auf die grundsätzliche Frage
eingeht: Zeigt nicht die Erlösung durch den Kreuzestod Jesu eine
Grausamkeit Gottes, die mit dem Gutsein Gottes nicht vereinbar ist?
Denn er lässt seinen eigenen Sohn auf dem Opferaltar schlachten,
um Genugtuung für die an ihm verbrochenen Frevel zu erlangen. Anselm löst das Problem, indem er die Welt-ordnung als eine von Gott
verfasste Rechtsordnung auffasst, die durch die Sünde des Menschen
grundlegend gestört ist. Denn durch die Sünde kam der Tod, der
ohne die Sünde nicht stattgefunden hätte. Gott aber wollte sich sein
Schöpfungswerk durch des Menschen Frevel nicht zunichte machen
lassen, weshalb er durch einen Akt der Wiedergutmachung die ursprüngliche Schöpfungsordnung wieder herstellen lassen wollte. Für
die Wiederherstellung der Schöpfungsordnung aber hat der Mensch
Gott nichts Äquivalentes anzubieten, denn die Gabe muss ontologisch Gottes Ordnung entsprechen, d.h. unendlich sein. Da nach
dem Verursacherprinzip der Mensch für den angerichteten Schaden
verantwortlich zeichnet, muss es ein Mensch sein, der den Schaden
wieder gutmacht. Da der Mensch aus ontologischen Gründen es nicht
vermag, muss es einen Gottmenschen geben, der diese Wiedergutmachung leisten kann. Zur Wiedergutmachung reicht aber nicht ein
frommes und untadeliges Leben hin, denn das ist der Gottmensch
ohnehin Gott geschuldet, sondern es muss der Tod sein, den er Gott
nicht schuldet, weil er als sündloser nicht der Strafe des Todes verfallen ist. Die ungeschuldete, freiwillige Hingabe seines Lebens im Tod
bedeutet dann die unendliche, Gott gemäße Wiedergutmachung der
gestörten Seinsordnung. Mit dieser Anselmschen Satisfaktionslehre
stehen wir wieder inmitten des religionsgeschichtlichen sakrifiziellen
Denkens. Gott braucht den blutigen Opfertod eines Gottes, um dem
Menschen neues Leben zu gewähren. Die sakrale Gewalt ist wieder
legitimiert, ja sogar ontologisiert.
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Ich möchte hier noch einmal René Girard zitieren: „Durch ein
unerhörtes Paradox, doch ganz dem sakrifiziellen Leitfaden unserer
Menschheit entsprechend, macht die Logik des gewalttätigen Logos
[gemeint ist damit die Gottheit], die sakrifizielle Deutung, den aufgedeckten Mechanismus zu einer Art Opfer- und Kultgrundlage.
Auf dieser Grundlage ruhten bis jetzt die ‚Christenheit‘ und die
moderne Welt auf. Man kann, so denke ich, aufzeigen, dass das
historische Christentum, insoweit es sich als Verfolger betätigt hat,
mit der sakrifiziellen Deutung der Passion und Erlösung zusammenhängt. Sämtliche Aspekte der sakrifiziellen Deutung hängen
miteinander zusammen. Dass man in die Gottheit wieder die Gewalt
hineinbringt, kann nicht ohne Auswirkung auf das ganze System
bleiben, denn damit entlastet man die Menschheit zum Teil von einer
Verantwortung, die für alle eine und dieselbe sein müsste“ Girard
1983: 232-233). Allein die Übernahme des alttestamentlichen Opferbegriffs auf Jesu Kreuzestod barg bereits in sich die Übernahme der
sakrifiziellen Bedeutung. Die Konsequenzen der institutionalisierten
Gewalt haben wir zur Genüge in der Geschichte der Christenheit
erfahren: Kreuzzüge, Inquisition, Hexenwahn, Conquista-Mission
oder absolutistischer Kirchenstaat – immer wurden unschuldige
Menschen im Namen Christi und seines Kreuzesopfers hingeschlachtet, wohl gemerkt zur Bewahrung der Wahrheit und des rechten
Glaubens. Die Scheiterhaufen für die Ketzer, Häretiker und Hexen
mussten brennen, um die inneren Zwiespälte der Gesellschaft auf
einen gemeinsamen Sündenbock hin zu kanalisieren. Nur so ist
der schauspielhafte Charakter der öffentlichen Blutopfer und die
begeisterte Anteilnahme aller Schichten des Volkes zu erklären. Alle
waren Opferer, einig in der Tatsache, ihre eigene Verantwortung auf
den Sündenbock abzuwälzen, um wieder gereinigt aus der Bluttat
aufer-stehen zu können.
Alexander Schuller, Soziologe aus Berlin, schrieb unter dem Titel
„Wir suchen im Blutopfer nach Rettung“ in der Frankfurter Allge146
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Der mensch und seine opferrituale
meinen Sonntagszeitung anlässlich des Massakers in einer Erfurter
Schule durch einen Jugendlichen im Jahr 2002: „Das Muster kennen
wir, und es ist uralt: eine Messe, eine Opfermesse, ein Schlachtfest,
älter als Bibel und Koran, älter als Olympia und Babylon. Diese Messe
findet im öffentlichen Raum statt, oft genug unter freiem Himmel,
unter den Augen aller, in Hotelhallen und Bahnhöfen, in Schulen und
Synagogen. Aber nicht die Früchte des Feldes und nicht die Tiere
der Herde werden dargebracht, sondern Menschen wie du und ich.
Unser dunkler, unser scheinbar vergessener Ursprung ist universale
Gegenwart“ (Schuller 2002: 11).
Es ist hoch an der Zeit, das Opfer Jesu zu entmythologisieren
oder besser gesagt, von seinem Ballast der Religionsgeschichte zu befreien und ihm die eigentliche Bedeutung wieder zurückzugeben. Das
Kreuz steht als Widerspruch gegen das Leben und gegen die Vernunft.
Es beinhaltet die gewalttätige Ablehnung eines neuen Lebensprojekts, der Gottesherrschaft, und damit auch die Ablehnung Gottes
selbst. Das Kreuz steht gegen Gott und sein Heil für den Menschen.
Jesus geht dennoch den Weg zum Kreuz als einzige Möglichkeit der
gewaltfreien Liebe. Die Hingabe seines Lebens ist ein Opfer, das er
zu bringen gewillt ist, nämlich das Scheitern seiner gesamten Existenz, die er in die Hand Gottes legt. In dieser radikalen Annahme
der menschlichen Ohnmacht allein im Vertrauen auf Gott schafft
Gott neues Leben in der Person Christi, das wir Auferweckung oder
Auferstehung nennen, wenngleich diese Begriffe nicht das Eigentliche
aussagen. Denn neues Leben in Gott bedeutet eine neue Seinsweise
des Lebens, die außerhalb unserer natürlichen Wahrnehmung liegt.
Der glaubende Mensch muss Jesu Lebensopfer auf seine je eigene
Weise nachvollziehen. Das ist keine Verherrlichung des Leidens oder
ein feiger Masochismus im Angesicht der Macht der Gewalt, sondern
ein Gewaltverzicht, der Leben spendet in der größeren Logik des
Schöpfers. Das solidarische Leiden und Sterben für das Leben der
Welt ist die erlösende Aktivität des Widerspruchs gegen die Gewalt.
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HUMANKIND AND ITS SACRIFICIAL RITUALS
Abstract
The sacrifices and the sacrificial rites are part of the most ancient symbolic
acts of humankind and they have their unbroken power until nowadays.
This fact appears both in the archaic sacrificial rites of Candomblé, still
practiced today, and in the modern auto sacrifices of radical Muslims. The
interpretation of sacrifice in the anthropological sciences encompasses a
wide spectrum of possible contents: act of bribery of God (E. B. Tylor),
sacralization and dissacralization of profane (H. Hubert and M. Mauss),
myth of origin (A. Jensen), guarantee of communitas (V. Turner), Oedipus
complex (S. Freud), mimetic violence (R. Girard) e archetype of life and
of death (C. G. Jung). The Christian tradition used models of history of
religion and interpreted Jesus’ death on the cross as infinite reparation of
a hypothetical original sin. It would be closer to the Christian spirit to see
Jesus’ death as surrender of life sympathetic to the suffering humanity, in
which it is offered life through death.
Key words: Sacrificial rituals, theories of sacrifice, scapegoat, Christ’s sacrifice.
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A CONCEPÇÃO DE DEUS EM IMMANUEL KANT
NA CRÍTICA DA RAZÃO PURA
Ângelo José Salvador*
Resumo
A metafísica medieval girou em torno de uma ideia geral: Deus. Kant coloca
em xeque todo esse edifício; Immanuel se posiciona como alguém que quer
investigar os limites da razão no processo do conhecimento; é o Deus produzido pela filosofia, até então vigente em seu tempo, que Kant destrona. O
filósofo prova que o mundo dos fenômenos é o campo para o abastecimento
das intuições sensíveis do homem, que, por sua vez, são usadas pelo entendimento (intelecto) para construir o conhecimento. Para além do mundo
fenomênico não há como conhecer, pois de onde o sujeito tiraria material
para produzir conhecimento? A razão, quando pretende ir além dos limites
do conhecimento, cai em erros, elaborando ideias destituídas de verdade. A
ideia de Deus é uma delas. A razão supõe que pode conhecer Deus. Para
Kant, podemos apenas pensar Deus, mas não conhecê-lo; isso na obra Crítica
da razão pura.
Palavras-chave: Estética transcendental. Analítica transcendental. Dialética
transcendental. Metafísica. Deus.
Introdução
Conhecer as causas possibilitava, no pensamento da Idade Média,
“chegar até Deus”. A dedução é clara: o mundo deve ter uma causa,
um ente supremo que criou tudo o que existe. Kant problematizará tal
Graduado em filosofia pela Faculdade Salesiana de Vitória e aluno do Curso
de Teologia do Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória (Iftav).
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conceito “provando” que isso só é possível no mundo dos fenômenos, portanto, passar desse mundo – mundo das causas – para outra
realidade – mundo suprafísico – é ilegítimo; diante disso, a metafísica
sofre forte abalo perante a nova ótica à qual Kant a submete.
1 A revolução copernicana de Kant
No decorrer do trabalho elaborado por Immanuel Kant, sua paixão pela metafísica fica explícita. Não é sua pretensão derrubá-la, mas
investigar sua possibilidade enquanto ciência bem fundada. Admite,
porém, que até “os dias de hoje” aquela ainda não conseguiu se firmar
como conhecimento seguro, ou seja, seus fundamentos estavam desde
o início corroídos pelo dogmatismo. Diante de tal situação, Kant se
pronuncia da seguinte forma: “[...] Pois a razão emperra continuamente na metafísica mesmo quando quer discernir a priori (como se
arroga) aquelas leis que a experiência mais comum confirma” (KANT,
1996, p. 38, grifo do autor).
Para Kant, a Crítica da razão pura tem o seguinte projeto: “O assunto desta crítica da razão pura especulativa consiste naquela tentativa
de transformar o procedimento tradicional da Metafísica e promover
através disso uma completa revolução na mesma [...]” (KANT, 1996, p.
41). Kant propõe, em contraposição à metafísica clássica, uma inversão
radical no modo como o homem se comporta no processo do conhecimento, definido por ele como uma revolução comparada à que Copérnico realizou no campo da astronomia. Ao invés de o sujeito se regular
pelos objetos, são estes que se regulam pelos modos da razão humana.
Immanuel exprime essa sua descoberta na seguinte passagem:
Por isso tente-se ver uma vez se não progredimos melhor nas tarefas
da metafísica admitindo que os objetos têm que se regular pelo nosso
conhecimento, o que assim já concorda melhor com a requerida possi152
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A concepção de Deus em Immanuel Kant: uma abordagem da crítica da razão pura
bilidade de um conhecimento a priori dos mesmos que deve estabelecer
algo sobre os objetos antes de nos serem dados. O mesmo aconteceu
com os primeiros pensamentos de Copérnico que, depois das coisas
não quererem andar muito bem com a explicação dos movimentos
celestes admitindo-se que todo o exército de astros girava em torno
do espectador, tentou ver se não seria mais bem-sucedido se deixasse
o expectador mover-se e, em contrapartida, os astros em repouso
(KANT, 1996, p. 39, grifo do autor).
Todo o conhecimento começa com a experiência, pois, do contrário, como a faculdade do conhecimento seria despertada para a
atividade senão por meio de objetos que tocam os sentidos? No entanto, mesmo admitindo que o conhecimento tenha seu início com a
experiência, não quer dizer que ele esteja confinado a tal afirmação;
existem conhecimentos que não estão presos à experiência, chamados
a priori, totalmente distintos dos empíricos, que são a posteriori, cujas
fontes residem na experiência. “[...] portanto, [por] conhecimentos
a priori entenderemos não os que ocorrem de modo independente
desta ou daquela experiência, mas absolutamente independente de
toda a experiência” (KANT, 1996, p. 54, grifo do autor). A Crítica
da razão pura pretende purificar os conhecimentos produzidos pela
Razão, quando esta pretende alçar voo além de suas possibilidades,
não sendo possível fundar uma ciência segura. Por exemplo, a ideia
de Deus que será estudada na Dialética Transcendental.
Para empreender tal tarefa, Kant parte da distinção tradicional entre
juízos analíticos e juízos sintéticos. Juízos analíticos são aqueles com base nos
quais a ligação do predicado com o seu sujeito é formulada por processo
de identidade, ou seja, num enunciado não há contradição entre sujeito
e predicado; um é espelho do outro e vice-versa. Este tipo de juízo nada
acrescenta ao conhecimento; noutras palavras, não traz nada de novo ao
conceito de sujeito. Quando se diz: – “todos os corpos são extensos”
–, fala-se de um juízo analítico. Com efeito, não há necessidade de ir
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além do conceito para encontrar a sua extensão, pois esta já se encontra
contida no sujeito do enunciado. Os juízos analíticos não são juízos de
experiência; são de natureza a priori. Os juízos sintéticos, por sua vez,
não trabalham com o princípio de identidade. Logo, o predicado sempre
diz algo para além do sujeito. Na afirmação: – “todos os corpos são
pesados” – o predicado é algo bem diverso daquilo que penso no mero
conceito de corpo. Este tipo de juízo é baseado na experiência. Nem
os juízos analíticos nem os sintéticos fornecem bases sólidas para a
ciência, pois os juízos analíticos não trazem nada de novo, embora sejam
universais e necessários. Os juízos sintéticos acrescentam conhecimento,
mas estão presos à experiência, não permitindo a universalidade e a
necessidade.
Diante da insuficiência dos juízos analíticos e sintéticos para
fundamentar a ciência, que tipo de juízo daria conta de tal demanda?
Kant irá descobrir que os juízos sintéticos a priori dariam base para
essa tarefa. Estes são universais e necessários (a priori) e produzem
conhecimento (juízos sintéticos). Kant elucida a nova luz com o
seguinte exemplo:
Tudo o que acontece tem sua causa. No conceito de algo que acontece penso, na verdade, uma existência à qual precede um tempo etc. e
disso é possível extrair juízos analíticos. Mas o conceito de causa jaz
completamente fora daquele conceito e indica algo distinto daquilo
que acontece; não está, portanto, absolutamente contido nesta última
representação (KANT, 1996, p. 59).
As ciências teóricas da razão estão embasadas por juízos sintéticos a priori. A matemática formula proposições não empíricas. Ex.: a
proposição 7+5 = 12; esta operação não é analítica; é necessário sair
de um desses conceitos (7 ou 5) e ser guiado pela intuição correspondente a um dos dois, por exemplo, os cinco dedos da mão, e desse
modo somar sucessivamente as unidades do número cinco obtido na
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A concepção de Deus em Immanuel Kant: uma abordagem da crítica da razão pura
intuição ao conceito de sete. O que é pensado se restringe na soma
de 7+5, mas não significa que esta adição seja igual ao número 12.
A geometria pura, a física e a metafísica seguem o mesmo caminho;
entretanto, resta saber se esta última pode de fato estar embasada em
juízos sintéticos a priori, ou seja, se a metafísica é possível enquanto
ciência. Do contrário, a ideia de Deus tomará novo significado e sofrerá forte mudança de sentido.
A Crítica da razão leva precisamente à Ciência; o uso da razão
com ausência de Crítica, ao contrário, conduz a erros destituídos de
qualquer fundamento. É necessário ter coragem para avançar na tentativa de tratar a metafísica criticamente, promovendo seu crescimento,
pois ela é uma ciência indispensável à razão humana.
Antes de continuar o exame da razão, Kant introduz alguns de
seus conceitos, que são importantes para a boa compreensão de
seu trabalho. A palavra transcendental não significa algo para além do
mundo físico, mas, sim, o modo como o sujeito conhece o objeto,
de acordo com que este for possível a priori. Este novo método – ou,
no dizer de Kant, sistema – denomina-se filosofia transcendental. Esta
estuda as possibilidades e os modos mediante os quais o sujeito
pode conhecer o objeto. Para Kant, esta é uma nova ciência, para a
qual a Crítica da razão pura deverá apontar todo o seu projeto. Como
introdução à filosofia transcendental, o filósofo irá dizer que existem
dois caminhos do conhecimento humano que nascem de uma raiz
comum, mas obscura, que são a sensibilidade (estética transcendental)
e o entendimento (analítica transcendental): por aquela os objetos são
dados; por este, são pensados.
1.1 A estética transcendental
Há uma relação entre sujeito e objeto que Kant tentará explicar
de modo sistemático. A estética transcendental irá trabalhar tal questão no sentido de que o homem apreende o objeto do conhecimento
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mediante categorias. É o que será exposto a seguir. O pensamento
possui uma espécie de força que visa ao objeto a ser apreendido; Kant
chama esta “força” de intuição. Para que isso aconteça é necessário que
um objeto seja dado; é preciso que haja um sujeito e um objeto. Este
afeta a mente humana, ou seja, toca o aparelho sensorial de alguma
maneira. Para Immanuel, o objeto é obtido por meio de representação,
devido a este “afeto” causado por ele; tal capacidade é denominada
sensibilidade. É por meio dela que os objetos nos são dados e é através
dela que são fornecidas as intuições.
O homem não alcança o objeto em si, mas sua representação.
E o efeito de um objeto sobre essa representação, aceitando que
somos afetados pelos objetos, é denominado sensação. Uma intuição
empírica ocorre quando esta trata de objetos. E fenômeno é o objeto
indeterminado de uma intuição empírica. A estética transcendental
estuda a sensibilidade e suas leis. “Denomino estética transcendental uma
ciência de todos os princípios da sensibilidade a priori” (KANT, 1996,
p. 72, grifo do autor). Kant esclarecerá, na estética transcendental,
que há duas formas puras de intuição sensível: tempo e espaço, que são
os princípios do conhecimento a priori, isto é, do conhecimento puro.
O primeiro a ser trabalhado é o conceito de espaço. Este é representação a priori que se põe antes de todas as intuições externas. Ele
é a condição da possibilidade dos fenômenos. O espaço é intuição
e deve estar presente no sujeito a priori, ou seja, anterior a qualquer
percepção de um objeto. Enfim, o espaço é uma intuição pura. Diante de
tais afirmações pode-se concluir que: 1) O espaço não representa as
coisas em si mesmas; 2) o espaço é a forma dos fenômenos externos;
é uma condição subjetiva da sensibilidade, a qual possibilita a intuição
externa (KANT, 1996, p. 75).
Para Kant, não é possível negar a subjetividade, ou melhor, a
condição subjetiva no conceito de espaço. É ela que possibilita a
intuição dos objetos fora do sujeito. Ele resume tal pensamento do
seguinte modo:
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A concepção de Deus em Immanuel Kant: uma abordagem da crítica da razão pura
[...] o conceito transcendental dos fenômenos no espaço é uma advertência crítica de que em geral nada intuído no espaço é uma coisa
em si e de que o espaço tampouco é uma forma das coisas que lhes é
própria quiçá em si mesmas, mas sim que os objetos em si de modo
algum nos são conhecidos e que os por nós denominados objetos
externos não passam de meras representações da nossa sensibilidade,
cuja forma é o espaço e cujo verdadeiro correlatum, contudo, isto é, a
coisa em si mesma, não é nem pode ser conhecida com a mesma e
pela qual também jamais se pergunta na experiência (KANT, 1996, p.
77, grifo do autor).
Após refletir sobre o espaço, Kant expõe suas teses a respeito do
tempo. Este, assim como o espaço, não é uma entidade que existe por
si mesma ou que se faz presente nas coisas objetivamente. Se estas
afirmações fossem válidas, o tempo seria algo real mesmo sem objeto,
que é o primeiro caso; no segundo, ou seja, o tempo como propriedade
das coisas, não poderia preceder, de forma alguma, os objetos como sua
condição, muito menos ser intuído e conhecido a priori por enunciados
sintéticos. Kant afirma que ocorre o contrário: “Isso pode muito bem
ocorrer se o tempo nada mais for senão a condição subjetiva sob a qual
podem ocorrer em nós todas as intuições. Pois então essa forma da intuição interna pode ser representada antes dos objetos, por conseguinte
a priori” (KANT, 1996, p. 79, grifo do autor). O tempo é a forma do
sentido interno, ou seja, é o sujeito que intui a si mesmo e seu estado
interno. O tempo não é algo inerente aos fenômenos externos, mas,
sim, à possibilidade a priori dos fenômenos, inclusive os internos, isto
é, da alma humana (KANT, 1996, p. 80). Conforme observa Höffe,
“espaço e tempo pertencem a duas esferas distintas. O espaço é a
forma intuitiva do sentido externo, que nos fornece, através dos cinco
sentidos, as impressões acústicas, óticas, gustativas..., enquanto o tempo
pertence ao sentido interno com suas representações, inclinações e seus
sentimentos” (HÖFFE, 2005, p. 71).
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Em conclusão, espaço e tempo são categorias que possibilitam
conhecimentos sintéticos a priori; a matemática pura é um bom
exemplo quando se pensa no conhecimento do espaço juntamente
com suas relações. Espaço e tempo, portanto, são formas puras de
toda intuição sensível, e dessa maneira deixam o campo aberto para
proposições sintéticas a priori.
2 A analítica transcendental
Segundo Kant, o conhecimento surge de duas fontes da mente,
a saber: a receptividade das impressões, que recebe as representações;
e a espontaneidade dos conceitos, que conhece os objetos fornecidos pela
receptividade das impressões. Pela primeira os objetos são simplesmente dados; pela segunda são pensados. O conhecimento elementar
consiste na síntese entre os conceitos e as intuições.
O homem é constituído de uma intuição, que é sempre sensível
(recebe os objetos provenientes dos sentidos), e de um entendimento, que pensa os objetos da intuição sensível. A intuição não é mais
importante do que o entendimento, e este, não mais que a intuição.
“Pensamentos sem conteúdo são vazios, intuições sem conceitos são
cegas” (KANT, 1996, p. 92). E continua Kant ilustrando a importância
de não trocar as funções das faculdades cognitivas do homem:
[...] tanto é necessário tornar os conceitos sensíveis (isto é, acrescentarlhes o objeto na intuição) quanto tornar as suas intuições compreensíveis (isto é, pô-las sob conceitos). Estas duas faculdades ou capacidades
também não podem trocar as suas funções. O entendimento nada pode
intuir e os sentidos nada pensar. O conhecimento só pode surgir da sua
reunião. Por isso, não se deve confundir a contribuição de ambos, mas
há boas razões para separar e distinguir cuidadosamente um do outro.
Consequentemente, distinguimos as ciências das regras da sensibilidade
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A concepção de Deus em Immanuel Kant: uma abordagem da crítica da razão pura
em geral, isto é, a Estética, da ciência das regras do entendimento em
geral, isto é, a lógica (KANT, 1996, p. 92).
Como foi visto, Kant chama de lógica as regras do entendimento
ou faculdade de pensar. Aquela pode ser encarada com dois objetos
distintos: primeiro, uma lógica geral; segundo, uma lógica particular
do entendimento. A primeira trata das regras do pensar, não levando
em conta a multiplicidade dos objetos aos quais se dirige; já a segunda
possui as regras para pensar adequadamente os objetos. A lógica geral
trata somente da forma do entendimento.
Ao invés de trabalhar com uma lógica árida, totalmente isolada
dos conteúdos, Kant quer provar, na primeira parte da analítica transcendental, ou seja, na analítica dos conceitos, que há uma lógica que
pretende provar que os conceitos do pensamento não são vazios, mas
se reportam aos objetos provindos das intuições sensíveis espaçotempo; tal lógica é chamada de lógica transcendental. É uma nova lógica,
que supera a lógica dos antigos, sendo esta apenas formal (a lógica
geral explicitada acima).
A lógica transcendental é considerada por Kant uma nova ciência,
que estabelece os limites do conhecimento humano com respeito ao
objeto. O filósofo ilustra na seguinte passagem seu novo empreendimento:
Uma tal ciência, que determinasse a origem, o âmbito e a validade objetiva
de tais conhecimentos, teria que se denominar lógica transcendental porque
só se ocupa com as leis do entendimento e da razão, mas unicamente
na medida em que é referida a priori a objetos e não, como a lógica geral,
indistintamente tanto aos conhecimentos empíricos quanto aos conhecimentos puros da razão (KANT, 1996, p. 95, grifo do autor).
O filósofo de Königsberg se dirige com dureza à lógica geral,
porque esta trata apenas da simples forma do conhecimento, sendo
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incapaz de se referir aos objetos. Ela foi utilizada arbitrariamente
como órganon na produção de conhecimento. Em conclusão, tal
lógica, como órganon, chama-se dialética, ou lógica da ilusão. Nada diz
sobre os conteúdos do conhecimento, mas apenas sobre as condições
formais da harmonia com o entendimento, sendo alheias aos objetos,
não passando, desse modo, de pura verbosidade.
A lógica transcendental inaugura definitivamente uma crítica
à lógica formal destituída de conteúdo. Aquela pode ser dividida
em analítica transcendental e dialética transcendental. (Esta última
comporta a concepção de Deus, na qual o respectivo trabalho se sustenta). A parte da lógica transcendental que analisa os elementos do
conhecimento puro do entendimento e os princípios que possibilitam
a pensabilidade dos objetos é a analítica transcendental, chamada por
Kant de lógica da verdade (KANT, 1996, p. 97). Em contraposição,
quando se usa arbitrariamente os princípios puros do entendimento,
ultrapassando os limites da experiência possível, corre-se sério risco de
tornar-se obsoleto e vazio de conteúdo, quando, por meio de sofismas
totalmente ressecados, faz-se um uso material de princípios formais da
capacidade de pensar (entendimento) e julgar individualmente sobre
o material fornecido pelas intuições espaço-tempo. A lógica transcendental é mal usada quando se arroga como órganon de um uso geral e
ilimitado e pretende, só com a capacidade de pensar, afirmar e julgar
sobre objetos. Quando isso acontece, dá-se o nome de dialética. Kant
reserva a segunda parte da lógica transcendental à crítica da ilusão
dialética, chamada de dialética transcendental.
A dialética transcendental é uma crítica do entendimento e da razão quando esta é usada hiperfisicamente – ou seja, além da experiência
possível –, na tentativa de desvendar sua falsa aparência no processo do
conhecimento. (Inclui-se aqui o conhecimento do Ser Divino através
de provas).
A analítica é a decomposição do conhecimento a priori nos elementos do conhecimento puro do entendimento. Este não é uma
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A concepção de Deus em Immanuel Kant: uma abordagem da crítica da razão pura
capacidade de intuição, mas de pensar o múltiplo dado pela intuição.
Em palavras simples, o homem é dotado de um “aparelho” que organiza o material fornecido pelas intuições espaço-tempo, chamado de
entendimento. Nisso reside o processo de conhecer. Os elementos do
entendimento são os conceitos que medeiam ou que traduzem os objetos sensíveis. “Conceitos, portanto, fundam-se sobre a espontaneidade
do pensamento [...]. O entendimento não pode fazer outro uso desses
conceitos a não ser julgar através deles” (KANT, 1996, p. 102).
Adverte Kant que nenhum conceito é remetido a um objeto,
mas antes a uma representação deste. É aí que entra o juízo, que é
um conhecimento mediato do objeto. O juízo é uma representação
fornecida pela intuição sensível (KANT, 1996, p. 102).
Em todo juízo há um conceito legítimo para muitos outros conceitos e que sob tais concebe uma representação dada que é reportada
rapidamente ao objeto. Tomemos, por exemplo, o juízo: “Todos os
corpos são divisíveis”. Aqui, o conceito de divisível remete a diversos
outros conceitos. E um entre estes se refere ao conceito de corpo.
Portanto, os juízos possuem a tarefa de unificar as representações
fornecidas pelas intuições. Faz-se necessário deixar o próprio Kant
explicar a função do juízo e do conceito:
Podemos, porém, reduzir todas as ações do entendimento a juízos, de
modo que o entendimento em geral pode ser representado como uma faculdade de julgar. Com efeito, segundo o visto acima ele é uma faculdade
de pensar. O pensamento é o conhecimento mediante conceitos. Como
predicados de juízos possíveis, porém, os conceitos se referem a uma
representação qualquer de um objeto ainda indeterminado. Assim o conceito de corpo, por exemplo, metal significa algo que pode ser concebido
por meio desse conceito. Portanto, só é conceito por nele estarem contidas outras representações pelas quais pode se referir a objetos. Trata-se,
por conseguinte, do predicado de um juízo possível, por exemplo de que
todo metal é um corpo. As funções do entendimento podem, portanto,
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ser todas encontradas desde que se possa apresentar completamente as
funções da unidade nos juízos (KANT, 1996, p. 103).
Marcondes elucida a passagem acima da seguinte forma:
Kant deriva os conceitos dos juízos, dando com isso prioridade aos
juízos sobre os conceitos. Não pode haver nenhuma combinação de
conceitos se não houver uma unidade originária que o permita. Dado o
caráter predicativo dos conceitos, estes só podem ser entendidos a partir
de seu papel nos juízos. Os juízos possuem uma unidade, ou seja, uma
forma lógica que independe de seu conteúdo. Os conceitos enquanto
predicados de juízos possíveis relacionam-se a uma representação de
um objeto ainda não determinado (MARCONDES, 2004, p. 210).
As representações sensíveis fornecidas pelas intuições sensíveis
espaço-tempo não são suficientes para produzir conhecimento se
não forem apreendidas por conceitos e se esses conceitos não forem
combinados num juízo. Por isso Kant problematiza o conhecimento
de Deus após estar convencido de que só se pode conhecer dentro do
mundo dos fenômenos mediante conceitos. Quando a razão tenta sair
desse espaço e postular o conhecimento de coisas além da experiência
possível, cai em erros escandalosos.
Para ilustrar os juízos e as categorias ou conceitos puros do entendimento, Kant elabora uma tábua dos juízos e das categorias, que
é apresentado a seguir:
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JUÍZOS
CATEGORIAS
Quantidade dos juízos
Universais
Particulares
Singulares
Da quantidade
unidade
pluralidade
totalidade
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A concepção de Deus em Immanuel Kant: uma abordagem da crítica da razão pura
Qualidade
Afirmativos
Negativos
Infinitos
Da qualidade
realidade
negação
limitação
Relação
Categórico
Hipotético
Da relação
inerência e substância
causalidade e dependência
(causa e efeito)
comunidade (ação recíproca
entre agente e paciente)
Disjuntivos
Modalidade
Problemáticos
Assertórios
Apodíticos
Da modalidade
possibilidade – impossibilidade
existência – não-ser
necessidade – contingência
Kant pretende, com o quadro acima, fornecer o mapa das possibilidades do pensar, demonstrando que os conceitos puros do entendimento (categorias) são válidos somente na medida em que são
dirigidos à representação dos objetos e, como já se sabe, fornecidos
pelo espaço-tempo. Existe um múltiplo a ser ordenado da sensibilidade a priori para dar aos conceitos uma matéria; o pensamento necessita
que o múltiplo seja ligado, formando uma síntese. “Por síntese entendo,
no sentido mais amplo, a ação de acrescentar diversas representações
umas às outras e de conceber a sua multiplicidade num conhecimento”
(KANT, 1996, p. 107).
O que deve ficar claro é que não se pode conhecer negando a
importância de uma ou de outra faculdade pertencente ao ser humano. As intuições fornecem objetos; os conceitos pensam estes, possibilitando o conhecimento. Dois grandes rios da modernidade são
sintetizados com tal afirmação, a saber, o racionalismo e o empirismo.
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Ao afirmar que o homem não pode pensar diretamente os objetos
sem intuições sensíveis (pois não haveria objeto para ser pensado)
e que os objetos, por sua vez, não podem ganhar sistematização
negando o intelecto, Immanuel “resolve” boa parte do problema
relativo ao conhecimento. Resta saber quais são as consequências de
tal descoberta na sua concepção de Deus dentro dos limites da Crítica
da razão pura. O caminho está preparado para a próxima etapa, que é
a concepção de Deus em Kant.
O que foi exposto até o momento tem caráter sintético das ideias
principais do filósofo de Königsberg; tanto é que a questão da imaginação no processo do conhecimento e do Eu Penso1 foi suprimida, por
não ser de fundamental importância para este trabalho. Caso contrário, a
linha de pensamento poderia chegar a lugares indesejados, atrapalhando
o objetivo estabelecido, não chegando à meta almejada. Não quero, de
maneira alguma, afirmar que tais assuntos não sejam importantes. Eles
o são. Contudo, como já foi frisado, não o são para esta pesquisa.
3 A dialética transcendental
Após examinar a estética transcendental e a analítica transcendental,
Immanuel Kant empreende sua última batalha e retoma o problema
inicial, que deu origem à crítica da razão: indagando se a metafísica é
possível enquanto ciência, chega à conclusão de que ela produz verdades fantasmas, ou seja, destituídas de todo e qualquer fundamento
válido para uma ciência segura. Tudo isso é realizado na terceira parte
da Crítica da razão pura, que compreende a Dialética Transcendental.
Esta estuda a “razão e suas estruturas” (REALE, 2005, p. 891) e é o
lugar onde se encontra a concepção kantiana de Deus (lembrando que
1
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O Eu Penso será sucintamente tratado na Dialética Transcendental.
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A concepção de Deus em Immanuel Kant: uma abordagem da crítica da razão pura
essa concepção é somente dentro dos limites da Crítica da razão pura). A
razão, diferentemente do entendimento, salta arbitrariamente do mundo
dos fenômenos para o mundo metafenomênico; aquela não se satisfaz
apenas com o sensível, mas sua tendência natural é elevar-se até a um
nível onde não há mais nada de empírico.
Como fora explicitado na Estética Transcendental, as intuições
sensíveis espaço-tempo fornecem material para as categorias do entendimento, que foram estudadas na Analítica Transcendental. Sem
intuições os conceitos são vazios, e sem os conceitos as intuições se
tornam cegas (conforme foi visto).
A Dialética Transcendental, portanto, estudará as ideias da razão
quando estas tentam se elevar do sensível para o inteligível ilegitimamente, pretendendo conhecer para além da experiência possível
(intuições e conceitos). Ela se ergue naturalmente em busca do incondicionado, imaginando alcançá-lo, caindo, dessa forma, em ilusões
cada vez mais escandalosas e desmedidas.
A Dialética Transcendental pretende elucidar os juízos emitidos
pela razão quando esta extrapola o mundo dos fenômenos de forma
arbitrária:
Nossa tarefa aqui não consiste em tratar da ilusão empírica (por exemplo,
óptica) [...] e sim em tratar unicamente da ilusão transcendental, que influi
sobre princípios cujo uso jamais se apoia na experiência – caso este em
que teríamos pelo menos uma pedra de toque de sua correção – mas,
contra todas as advertências da Crítica, conduz-nos inteiramente para
além do uso empírico das categorias e entretém-nos com a fantasmagoria
de uma ampliação do entendimento puro (KANT, 1996, p. 230, grifo do
autor).
Kant chama de transcendentes os princípios da razão que ultrapassam
os limites da experiência. Transcendental e transcendente são termos
completamente diferentes; o primeiro – como já se sabe – diz sobre as
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possibilidades do sujeito de conhecer, ou investigação sobre; o segundo
trata de princípios que ultrapassam qualquer obstáculo, para se aventurar
em lugares onde qualquer limite é desconhecido; são lugares onde não
há condições de experiência. Por tal motivo, transcendente e transcendental não são termos semelhantes (KANT, 1996, p. 230-231).
A dialética transcendental pode tornar evidentes as ilusões da razão,
mas não tem condições de fazer com que elas sejam eliminadas por
completo. É uma ilusão natural e impossível de ser evitada, tendo como
base princípios subjetivos, dando a estes caráter de objetividade, ou
seja, de conhecimento seguro sobre a realidade. “Existe, portanto, uma
dialética natural e inevitável da razão pura” (KANT, 1996, p. 231).
Na analítica transcendental o entendimento foi demonstrado
como faculdade das regras ou de conhecimentos que se referem às
representações de um objeto. A razão, por sua vez, é denominada
por Kant como faculdade dos princípios. Estes são conhecimentos a
partir de conceitos, nada mais do que isso. O entendimento não pode
fornecer conhecimentos sintéticos a partir de meros conceitos; estes
são apenas princípios. A razão unifica as regras do entendimento sob
princípios, para poder perceber toda a realidade de forma coerente
e significativa:
Se o entendimento é uma faculdade da unidade dos fenômenos mediante
regras, a razão é a faculdade da unidade das regras do entendimento sob
princípios. Portanto, ela jamais se refere imediatamente à experiência ou a
qualquer objeto, mas ao entendimento, para dar aos seus múltiplos conhecimentos unidade a priori mediante conceitos, a qual pode denominar-se
unidade da razão e é de natureza completamente diferente da que pode
ser produzida pelo entendimento (KANT, 1996, p. 234).
Na verdade, a razão possui uma tendência irrefreável de organizar sob princípios a unidade das regras do entendimento, para que
este entre em harmonia consigo mesmo. Tal princípio, porém, não é
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A concepção de Deus em Immanuel Kant: uma abordagem da crítica da razão pura
direcionado a objetos, nem pretende fazê-lo; sua função é diminuir
o máximo possível os conceitos do entendimento dando-lhes caráter
mais unitivo. “A unidade da razão não é, portanto, unidade de uma
experiência possível, mas é essencialmente distinta desta, que é a
unidade do entendimento” (KANT, 1996, p. 236).
Num primeiro momento Kant admitirá que a razão tem conceitos, mas não como os conceitos do entendimento que pensam sobre
o material fornecido pelas intuições espaço-temporais, e sim como
conceitos inferidos, isto é, chega a conclusões usando apenas a razão,
sem dar espaço para o uso da experiência. Eles não querem ser limitados por ela, pois isso não é o suficiente para os conceitos da razão que
tendem sempre para o hiper­físico. Estes contêm o incondicionado,
demonstrando que toda a experiência está submetida a eles. Kant
chamará tais conceitos da razão de ideias transcendentais.
Kant se aproxima bastante de Platão ao tratar da razão. Tanto um
quanto o outro admitem que a razão “sente” uma necessidade irresistível de alcançar o incondicionado, não se contentando apenas com o
mundo dos fenômenos, ou seja, o mundo sensível. A diferença entre
os dois filósofos é que, para Platão, a ideia reside num plano transcendente e é dever do filósofo alcançá-la; Kant, por sua vez, considera a
ideia como uma necessidade da razão de alcançar o incondicionado,
mas nunca poderá atingi-lo enquanto conhecimento verdadeiro.
A razão, quando raciocina, universaliza o conhecimento na forma
de conceitos (ideias); por exemplo, na premissa: – “Platão é mortal” – o
conhecimento pode, simplesmente, ser extraído da experiência por meio
do entendimento. No entanto, a razão relaciona Platão num conceito
mais elevado, ou seja, o de homem, para depois tirar a conclusão: “Todos
os homens são mortais. Platão é homem. Logo, Platão é mortal”.
Homem é um conceito universal e é uma síntese de todas as
intuições, noutras palavras, a totalidade das condições. O conceito
transcendental da razão é uma totalidade das condições para um
determinado condicionado; apenas o incondicionado torna possível a
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totalidade das condições (ex. a ideia de Deus), isto é, dá coerência e
significado ao mundo dos fenômenos (KANT, 1996, p. 245).
Kant esclarecerá da seguinte forma o que foi dito acima:
Por ideia entendo um conceito necessário da razão ao qual não pode
ser dado nos sentidos nenhum objeto congruente. Portanto, os nossos
conceitos racionais puros ora considerados são ideias transcendentais. Eles
são conceitos da razão pura, pois consideram todo o conhecimento
empírico como determinado por uma absoluta totalidade das condições. Não são inventados arbitrariamente, mas propostos pela natureza
da razão mesma, relacionando-se por isso necessariamente ao uso
total do entendimento. São, por fim, transcendentes e ultrapassam os
limites de toda a experiência, na qual, consequentemente, não poderá
jamais apresentar-se um objeto que seja adequado à ideia transcendental
(KANT, 1996, p. 247-248, grifo do autor).
As ideias da razão, conforme o exemplo do silogismo, sempre buscam a universalidade – que é a totalidade –, chegando ao incondicionado, sanando a voracidade do conhecimento por uma explicação coerente
do mundo dos fenômenos. A admissão de um ente supremo (Deus)
fundamentaria a existência do mundo enquanto contingência.
3.1 As três ideias da razão
Kant reduz todas as ideias transcendentais a três tipos bem distintos: a primeira contém a unidade suprema do sujeito pensante; a
segunda, a unidade suprema da série das condições dos fenômenos; a
terceira, a unidade suprema da condição de todos os objetos do pensamento em geral (KANT, 1996, p. 251). A Psicologia corresponde ao
sujeito pensante; a Cosmologia, ao conjunto de todos os fenômenos; e
por último, a Teologia possui a condição absoluta de tudo o que pode
ser pensado – o ente de todos os entes. “Portanto, a razão pura for168
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A concepção de Deus em Immanuel Kant: uma abordagem da crítica da razão pura
nece a ideia para uma doutrina transcendental da alma (psychologia rationalis), para uma ciência transcendental do mundo (cosmologia rationalis),
finalmente também para um conhecimento transcendental de Deus
(theologia transcendentalis)” (KANT, 1996, p. 251, grifo do autor).
Em consequência disso, as três ideias da razão são: alma, mundo
e Deus; e nesta última o presente trabalho alcança sua meta, ou seja,
nela está contida a concepção de Deus na Crítica da razão pura. Kant é
enfático ao distinguir o entendimento do projeto específico ao qual a
razão se submete. Nenhuma das “ciências” – Deus, alma e mundo – é
produto do entendimento, mas é unicamente um genuíno problema
e produto da razão pura.
Os resultados obtidos pela razão são chamados de silogismos; são
sofisticados modos de obter “conhecimentos”, que não podem ser
retirados com facilidade da razão humana, mas devem ser colocados
sob o crivo da Crítica. Tais silogismos são comparados quase com
sofismas. Todavia, Kant retira esta conotação pejorativa pelo motivo
exposto acima, uma vez que aqueles são produtos da razão natural, e
não algo inventado do acaso.
O primeiro silogismo é o da alma, chamado por Kant de
paralogismo;2 o segundo é o do mundo, que recebe a designação de
antinomias3 da razão pura; e por último, Deus, que recebe o nome
de ideal da razão pura. O paralogismo considera a alma como uma
substância; em outras palavras, a partir do Eu Penso se estabelece a
existência de uma alma substancial. O Eu Penso foi suprimido do
segundo capítulo pela não necessidade direta de sua exposição neste
trabalho; entrementes, para entender a falha do paralogismo, faz-se
necessário dar uma breve elucidação sobre ele.
Conclusões incorretas (Cf. HÖFFE, 2005) ou raciocínio que não é válido
(Cf. Aurélio).
3 Conflito de leis (Cf. HÖFFE, 2005) ou conflito entre duas asserções
demonstradas ou refutadas, aparentemente com igual rigor (Cf. Aurélio).
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O Eu Penso kantiano significa uma unidade originária que
acompanha toda a multiplicidade fornecida pela intuição, transformando-a em conhecimento. É diferente do Eu Penso cartesiano;
mesmo sendo de fundamental importância para o processo de conhecimento, não é uma substância pensante; ele pode ser pensado,
mas não conhecido. O Eu Penso acompanha todas as representações advindas da sensibilidade. Ele é algo que fica na retaguarda
do conhecimento, dando suporte para que este se consolide. Höffe
esclarece da seguinte forma as afirmações descritas acima:
O “Eu” da apercepção transcendental não é o eu pessoal de um indivíduo determinado. Enquanto o si-mesmo individual pertence ao eu
empírico, que vive no mundo em determinado tempo, o “Eu penso” transcendental tem seu lugar metodológico anterior a toda experiência e constitui a origem
da unidade posta em todo juízo (HÖFFE, 2005, p. 100, grifo nosso).
Por puro que o Eu Penso seja (não há nada de empírico), distingue um objeto interno, que é a alma, e um externo, que é o corpo.
Por isso, o Eu já é objeto da psicologia racional, fundada unicamente
como Eu Penso. Não pode ser uma psicologia empírica, ou seja, que
admite material provindo dos sentidos. Em última instância, Kant
quer falar sobre os argumentos da psicologia racional da tradição
cartesiana, a qual considera o Eu enquanto substancialidade. Ora, a
substância é uma das categorias que só pode ser aplicada aos dados
da intuição, e não ao Eu Penso, que é apenas o substrato das próprias categorias (ou o elemento fundante destas). Em suma, se o
Eu é apenas consciência do meu pensamento, não é possível aplicar
ao ente pensante a categoria de substância. Logo, não permite que
haja um sujeito que exista por si mesmo. Kant esclarece melhor o
paralogismo da razão pura com a seguinte passagem:
De tudo isso vê-se que a psicologia racional tem a sua origem num
simples equívoco. A unidade da consciência que subjaz às categorias é
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A concepção de Deus em Immanuel Kant: uma abordagem da crítica da razão pura
tomada aqui por uma intuição do sujeito enquanto objeto, aplicandose-lhe a categoria da substância. A unidade da consciência, todavia, é
somente a unidade no pensamento, pela qual não é dado nenhum objeto
e à qual, portanto, não pode ser aplicada a categoria da substância, que
pressupõe sempre uma intuição dada; tal sujeito, por conseguinte, não
pode absolutamente ser conhecido. O sujeito das categorias pelo fato
de pensá-las não pode, portanto, obter um conceito de si mesmo como
um objeto das categorias (KANT, 1996, p. 267, grifo do autor).
Após explicar o erro do paralogismo, passa-se ao equívoco da
antinomia da razão pura ou cosmologia racional. A razão, como é
sabido, exige uma unidade absoluta de todos os fenômenos. Ora,
existe o condicionado. Logo, deve haver, a partir da soma de todas
as condições, o absolutamente incondicionado. Portanto, as ideias
transcendentais não passam de categorias maximizadas até o incondicionado. As ideias cosmológicas utilizam o método regressivo, quer dizer,
buscam o incondicionado retrocedendo à série causal, até chegarem
ao objetivo desejado. Procuram, em última instância, o fundamento,
e não a consequência.
Por mundo entende-se o conjunto de todos os fenômenos e as
ideias. As ideias só se referem a um incondicionado partindo dos fenômenos. No intuito de descobrir a falha que leva ao incondicionado, Kant
chama tal investigação de antitética transcendental, cuja significação diz
respeito ao conflito entre conhecimentos pretensamente dogmáticos.
“Se para o uso dos princípios do entendimento não aplicamos a nossa
razão meramente a objetos da experiência, mas nos aventuramos a
estendê-la além dos limites desta, então surgem proposições dogmáticas
pseudorracionais, que da experiência não podem nem esperar confirmação
nem temer refutação” (KANT, 1996, p. 281, grifo do autor).
A razão negando toda a experiência possível promulga teses
sem ter comprovação empírica, tentando conciliar suas proposições
entre si mesmas, caindo, desse modo, em antinomias. A proposição:
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– “o mundo tem um início no tempo e é também quanto ao espaço
encerrado dentro de limites” – tem comprovação da razão, mas, se sua
antítese for evocada, também pode ser legitimada pela razão. Desse
modo, ter-se-á a seguinte proposição: “O mundo não possui um início
nem limites no espaço, mas é infinito tanto com respeito ao tempo
quanto com respeito ao espaço”.
Não é possível resolver esta antinomia, porque seus conceitos
ultrapassam os limites da experiência possível, impedindo que possam
ser refutados ou comprovados. “Elas [as antinomias] não permitem
absolutamente que em qualquer experiência possível lhes seja dado
um objeto congruente, nem sequer que a razão as pense de acordo
com leis universais da experiência” (KANT, 1996, p. 303).
3.2 O ideal da razão pura e a concepção de Deus em Kant
Na Estética Transcendental foi amplamente visto que a sensibilidade fornece material para ser representado por meio dos conceitos
puros do entendimento, os quais foram apresentados na analítica
transcendental. Os conceitos só são realmente válidos quando remetidos aos fenômenos, produzindo o conhecimento efetivo do real. As
ideias, por sua vez, se encontram mais distantes da realidade objetiva (mundo fenomênico) do que as categorias, porque as ideias não
podem ser representadas por nenhum fenômeno; estão totalmente
fora de uma experiência possível. Elas possuem uma completude que
nenhum conceito empírico pode alcançar, e a razão, por meio delas,
almeja uma unidade sistemática, na tentativa de aproximar a unidade
empírica, sem poder fazê-lo concretamente.
Existe algo que se encontra ainda mais afastado da realidade
objetiva do que a ideia, chamado por Kant de ideal. É algo individual,
singular, determinado mediante a ideia. O filósofo confessa que a
razão humana não possui apenas ideias, mas também ideais, que possuem uma validade prática, funcionando como princípios regulativos.
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A concepção de Deus em Immanuel Kant: uma abordagem da crítica da razão pura
O ideal se configura como um arquétipo, criando dentro do ser humano um ideal de homem a ser alcançado, através das ações cotidianas.
Tais ideais não são reais; no entanto, são de fundamental importância
para a razão, que necessita do conceito de perfeição para compararse e perceber os seus defeitos. A intenção da razão com o seu ideal
é a determinação completa de todas as coisas, partindo de regras a
priori. Nessa ótica, ela pensa um objeto completamente determinável
segundo princípios, embora na experiência faltem condições para isso,
pois o próprio conceito é transcendente. Em outras palavras, o ideal
não pode determinar o fenômeno, porque é algo alcançado apenas
com a razão, não partindo do mundo fenomênico.
O que a ideia de Deus tem a ver com tudo isso? Na razão teórica Deus não é considerado o ente transcendente da fé (o Deus de
Abraão, de Isaac e de Jacó), mas um ideal transcendental. O ideal que
tinha uma conotação de arquétipo ou modelo para as coisas, acaba
ganhando ares de realidade, até transformar-se – para a razão pura –
num ente real. Com efeito, ele é uma representação a priori que está
para além da experiência. Diante disso, Deus, na concepção de Kant,
é um ideal transcendental, uma mera ideia da razão que determina todo
o fenômeno, e tal ideal é destituído de realidade objetiva. Logo, não
pode ser conhecido, mas apenas pensado. Höffe dá uma boa compreensão do que esta concepção de Deus para Kant representa:
Como nas outras partes da Dialética, a razão se envolve na aparência
dialética logo que toma o ideal transcendental de uma totalidade de todos
os predicados por um princípio constitutivo do conhecimento dos objetos e realiza primeiro a totalidade dos predicados, ou seja, faz dela um
objeto, depois a hipostasia, isto é, a afirma como um objeto que existe
fora do sujeito pensante, e, terceiro, a personifica considerando-a como
pessoa individual, para, finalmente, determinar a pessoa supostamente
objetiva pelas categorias da realidade, da substância, da causalidade e da
necessidade na existência. Na realidade, o ideal transcendental é uma mera
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ideia da razão, enquanto as categorias só são válidas para a experiência
possível e perdem “todo conteúdo quando com elas ouso sair do campo
dos sentidos” (B 707) (HÖFFE, 2005, p. 165-166).
Deus é a totalidade de todos os predicados; é a origem de tudo e
essência de tudo. É necessário que a razão tenha um ente desse porte
para buscar a unidade absoluta de todo o conhecimento. É por isso
que a razão põe para si mesma um ente supremo, algo a ser alcançado por meio de uma busca incessante. Kant se expressa da seguinte
maneira a esse respeito:
Compreende-se por si que para este seu fim, a saber, para representarse unicamente a determinação completa e necessária das coisas, a razão
não pressupõe a existência de um tal ente que é conforme ao ideal, mas
somente a ideia do mesmo para derivar de uma totalidade incondicionada
da determinação completa a totalidade condicionada, isto é, a totalidade
do que é limitado. Para a razão, portanto, o ideal é o modelo (prototypon)
de todas as coisas, as quais em conjunto como cópias imperfeitas (ectypa)
tiram dele a matéria para a sua possibilidade e enquanto se aproximam
mais ou menos dele permanecem sempre infinitamente distantes para
alcançá-lo (KANT, 1996, p. 361, grifo do autor).
Pelo exposto, a possibilidade das coisas é uma derivação de uma
realidade originária. Todas as negações são apenas limitações de uma
realidade superior e suprema. Toda a multiplicidade não passa de um
limitador de Deus (realidade suprema), assim como existem várias
figuras dispostas num espaço infinito.
Consequentemente, o objeto do ideal da razão [...] é também o ente
originário [...]; enquanto não possui nenhum ente acima de si é o ente
supremo [...]; e, enquanto tudo como condicionado está subordinado
a ele, é denominado o ente de todos os entes [...]. Tudo isto, porém, não
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A concepção de Deus em Immanuel Kant: uma abordagem da crítica da razão pura
significa a relação objetiva de um objeto real com outras coisas e sim
da ideia com conceitos (KANT, 1996, p. 361-362, grifo do autor).
Entrementes, tal ente supremo (Deus) não pode de forma alguma
ser conhecido, apenas pensado (como já foi frisado). Após desenvolver a analítica, foi possível provar que conhecer, para Kant, é somente
unir o múltiplo de uma intuição dada num conceito, ou seja, o objeto
provindo do múltiplo é agrupado numa categoria, formando o conhecimento. O ideal da razão está completamente fora dessa ótica,
tratando, desse modo, de uma ilusão, e não do conhecimento de um
ser real. O erro consiste em ter como princípio para todas as coisas
algo que somente o é para objetos. “Em consequência disso, tomamos
o princípio empírico dos nossos conceitos da possibilidade das coisas
como fenômenos, se suprimimos esta limitação, como um princípio
transcendental da possibilidade das coisas em geral” (KANT, 1996,
p. 363).
A seguinte questão pode ser levantada: qual é o caminho que a
razão percorre para chegar a esta ideia de Deus? A razão pressupõe
um ente supremo para servir de fundamento ao entendimento e determinar completamente seus conceitos. Ela percebe no pressuposto
algo de ideal que pode ser contraposto ao de coisas fictícias e, a partir
disso, imaginar e se convencer de que uma coisa que é do próprio
pensamento seja algo real. A partir do regresso das causas condicionadas, a razão busca encontrar uma que é incondicionada, servindo
como fundamento supremo de tudo. Pelo que foi dito, a razão não
inicia sua busca partindo dos conceitos, e sim a partir da experiência,
tendo com base uma coisa existente, como, por exemplo, uma árvore, um cachorro ou uma criança. O xeque-mate está pronto para ser
efetuado: se tais coisas existem, deve-se rigorosamente concordar
que algo existe necessariamente. A árvore, o cachorro e a criança são
contingentes, ou seja, a causa deles existirem está fora (não existem
em si mesmos). A razão, “desesperadamente”, procura uma causa que
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seja incondicionada para dar razão à existência da árvore, da criança
e do cachorro. Esse é o caminho que a razão percorre para afirmar o
ideal que ela mesma põe para si, isto é, Deus.
A razão busca um conceito que seja capaz de alcançar o incondicionado, ou melhor, a causa incondicionada. Sua intenção, entre todos
os conceitos possíveis, é encontrar aquele que não possui nenhum
conflito interno que possa entrar em desacordo com a necessidade
absoluta. Logo após a primeira incursão, a razão conclui que algo deve
existir necessariamente. Ela põe em xeque tudo aquilo que não comunga
com a ideia de necessidade, deixando espaço para apenas uma: o ente
absolutamente necessário, o ideal da razão, em suma, DEUS.
No universo de conceitos de coisas possíveis, o de um ente
composto da realidade suprema conjuga-se da melhor maneira com
o conceito de um ente incondicionadamente necessário. Isso deve ser
aceito quase obrigatoriamente, pois a existência de um ente necessário
não poderia ficar sem algo que a fixasse num ponto seguro. Em uma
passagem da Dialética Transcendental Kant expõe o resumo de tudo
o que foi dito:
Tal é, pois, o caminho natural da razão humana. Primeiramente ela
se convence da existência de um ente necessário qualquer. Neste, ela
reconhece uma existência incondicionada. A seguir procura o conceito
do que é independente de toda condição, e encontra-o naquilo que é
a condição suficiente de todas as outras coisas, isto é, contém toda a
realidade. Mas o todo sem barreiras é unicamente absoluto e comporta o conceito de um ente único, a saber, do ente supremo; e assim a
razão conclui que o ente supremo enquanto fundamento originário
de todas as coisas existe de modo absolutamente necessário (KANT,
1996, p. 365-366).
Mas a razão falha ao tentar alçar voo rumo a tal ente supremo,
pois não pode conhecê-lo adequadamente através da razão teórica.
Quando tenta fazê-lo, cai em dogmatismos e falsos conhecimentos.
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A concepção de Deus em Immanuel Kant: uma abordagem da crítica da razão pura
“O novo paradigma da teologia filosófica, de Kant, se constrói sobre
uma destruição do paradigma antigo segundo o qual seria possível
demonstrar a existência de Deus por via especulativa” (HÖFFE,
2005, p. 161). Todo o processo que a razão fez não passou de pura
especulação, chegando a lugares impensáveis para o conhecimento
possível e efetivo das coisas. Num outro momento, Kant argumentará
que tal razão pode ter sua utilidade concreta, mas isso só é possível
no campo da moral.
Nesse intuito, Immanuel Kant rejeitará as tradicionais provas da
existência de Deus, provando que elas não passam de um uso ilegítimo
da razão, ou seja, seus enunciados estão para além de uma experiência
possível, trabalhando apenas com o raciocínio abstrato, acelerando
sob um terreno movediço que não pode levar a lugar algum.
Para o filósofo, são três as provas da existência de Deus elaboradas pela tradição: a prova ontológica, a cosmológica e a físico-teológica. A
razão se utiliza ou de uma via empírica para comprovar a existência
de Deus ou de um caminho transcendental. Este elimina toda a experiência e infere de maneira a priori o conceito de uma causa suprema
(através de meros conceitos); aquela parte de uma causa contingente
até atingir a causa incondicionada. “Provarei que a razão trabalha em
vão tanto numa direção (a empírica) como em outra (a transcendental), e que ela inutilmente abre as suas asas para mediante a simples
força da especulação ultrapassar o mundo dos sentidos” (KANT,
1996, p. 368).
A prova ontológica. Em todas as épocas o homem falou de um ente
absolutamente necessário – Deus; todavia, nunca se perguntou como tal
ideia pode ser pensada ou se sua existência pode ser provada. Pela
expressão incondicionado as leis do entendimento foram ignoradas; por
meio de exemplos lançados no ar, tentou-se obstinadamente provar
a sua existência. No exemplo da geometria, a afirmação de que um
triângulo é composto de três ângulos é sem sombra de dúvida necessária. Todos os exemplos foram retirados de meros juízos, e não
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das coisas reais. Se um juízo possui uma necessidade incondicionada,
não quer dizer que as coisas são da mesma natureza. A proposição
anterior não afirmou que três ângulos são necessários absolutamente;
é porque existe um triângulo que também existem necessariamente
três ângulos – trata-se de um juízo analítico. Kant ataca com rigor
aqueles que pretendem inferir através desta regra lógica a possibilidade
de demonstrar a existência de um ente absolutamente necessário.
[...] essa necessidade lógica demonstrou tão grande poder de ilusão que
em decorrência, ao se formar um conceito a priori de uma coisa posto de
tal modo que segundo a opinião corrente compreendia sem seu âmbito
também a existência, acreditou-se poder seguramente inferir disso que,
visto a existência ser necessariamente inerente ao objeto desse conceito,
isto é, sob a condição de eu pôr tal coisa como dada (existente), também,
sua existência é posta necessariamente [...], e que esse ente é por isso
ele mesmo absolutamente necessário porque a sua existência é pensada
junto com um conceito admitido a belprazer e sob a condição de que
eu ponha o seu objeto (KANT, 1996, p. 369, grifo nosso).
A existência do ente absolutamente necessário é inferida arbitrariamente, pois não diz respeito a uma coisa real, mas é apenas
um conceito esclerosado da razão. Quando se diz: “aquilo existe” –
dentro de uma realidade possível –, faz-se uma proposição sintética,
pois existência é um conceito das categorias que só funciona quando
remetido à multiplicidade provinda da sensibilidade. O erro basilar
do argumento ontológico consiste em confundir um predicado lógico com um real. O predicado lógico se serve de qualquer coisa, não
acrescentando nada a um juízo. Por exemplo: Ser; não é um predicado
real, pois não acrescenta nada ao conceito de alguma coisa. No juízo:
–“Deus é onipotente” – a partícula é (ser) não passa de uma cópula. A
palavra Deus, junto com todos os seus predicados, continua inalterada.
Deus é justo, infinito, beatíssimo, onipotente, sublime etc. Tudo isso
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A concepção de Deus em Immanuel Kant: uma abordagem da crítica da razão pura
nada traz de novo ao conceito de Deus; é um juízo analítico. Pode-se
pensar um ente supremo, mas não se pode provar se ele existe ou não
(KANT, 1996, p. 371).
Se o objeto posto acima tivesse proveniência dos sentidos, não haveria dificuldade de confundir a existência de algo com o seu simples
conceito. Através deste, o objeto é pensado dentro de uma experiência
possível. Pela existência, entrementes, é pensado como incluído dentro
da experiência total. Portanto, pensar a existência apenas pela categoria
pura impede de provar se algo existe na realidade. Por se tratar de uma
ideia, o ente supremo não pode aumentar o conhecimento humano
em relação a sua existência. Em suma, provar a existência de Deus
através de conceitos puros não é possível; o argumento ontológico
está descartado.
A prova ontológica sucumbiu sob o bombardeio da crítica kantiana. Com a prova cosmológica não será diferente. Para Kant, esta prova
é a mais falaciosa de todas as três: “Neste argumento cosmológico
juntam-se tantos princípios racionalizantes, que a razão especulativa
parece ter nele empregado toda a sua arte dialética para levar a efeito
a maior ilusão transcendental possível” (KANT, 1996, p. 375).
A prova cosmológica na verdade é a prova ontológica disfarçada; a
princípio, ela parte da experiência, pois afirma que se algo existe –
empiricamente –, deve existir algo absolutamente necessário. Tendo
em vista que o objeto de toda a experiência possível chama-se mundo,
a prova é cosmológica. A priori, a prova parece diferente da ontológica, porém, logo se mostra de natureza idêntica: não é possível saltar
do mundo empírico e sob meros conceitos postular a existência de
um ente absolutamente necessário. A necessidade absoluta é uma
existência pautada em meros conceitos; é o mesmo artifício utilizado
pela prova ontológica (KANT, 1996, p. 375).
Resta a prova físico-teológica. Esta se baseia na ideia de que a ordem e a natureza do mundo podem fornecer um argumento seguro
para provar a existência de Deus. Kant trata a prova físico-teológica
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com maior consideração: “Esta prova merece sempre ser citada com
respeito” (KANT, 1996, p. 384). Os principais pontos da prova são
os seguintes: 1) O mundo possui sinais de uma ordem realizada com
grande sabedoria, possuindo um propósito determinado. 2) Tal ordem
finalista é completamente diferente das coisas do mundo, postulando
que elas são apenas contingentes. Logo, deve haver um princípio racional ordenador que possa ter organizado a diversidade das coisas para
fins últimos. 3) Deve existir uma causa sábia e sublime. 4) Tal causa
pode ser inferida, pois o mundo revela um edifício construído com
grandiosa arte. Os argumentos rezam que a natureza, juntamente com
todos os seres, possui uma finalidade.
Kant percebe uma falha na prova físico-teológica: a ordem e a
finalidade do mundo provariam apenas a contingência da forma, mas
a matéria (ou substância do mundo) ficaria totalmente desguarnecida
de sentido. A prova pode, no máximo, revelar um arquiteto do mundo,
mas não um criador do mundo, não servindo para provar o ente absolutamente necessário.
As três provas caíram todas por terra, demonstrando que a razão
especulativa não pode provar a existência de um ente absolutamente
necessário (Deus). A Dialética Transcendental cumpriu seu papel de
investigar a legitimidade dos conhecimentos proferidos pela razão
quando esta salta arbitrariamente do mundo sensível para a produção
de meras ideias destituídas de qualquer conteúdo empírico. Desse
modo, prova que a metafísica não pode ser embasada por juízos
sintéticos a priori, não tendo condições de constituir-se como ciência
segura. O ente supremo mostrou-se apenas um ideal da razão especulativa, um conceito que coroa e conclui a totalidade do conhecimento
humano, cuja realidade não pode ser provada nem refutada.
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A concepção de Deus em Immanuel Kant: uma abordagem da crítica da razão pura
Conclusão
A crítica kantiana ajuda a perceber que o mistério não pode ser
explicado pela simples razão especulativa. Kant abre espaço para a
fé, porque percebe que provar a existência de Deus através de meros
conceitos racionais é demais para uma mente tão pequena. No prefácio da segunda edição da Crítica da razão pura Kant fala a esse respeito:
“Portanto, tive que elevar o saber para obter lugar para a fé”. Tratase mais de um gesto de humildade do que a tentativa desesperada
de negar a existência de Deus. Entrementes, um novo paradigma se
impõe: chegar à existência de Deus por via especulativa não é possível. Diante disso, não há mais um princípio regulador real que se
coloca externamente ao homem – em um mundo suprafísico. O ser
humano, a partir de agora, deve construir seus valores. Não há mais
um “deus” que os possa ditar. Por tais razões, a metafísica sofre uma
envergadura decisiva para o pensamento ocidental, que influenciará
toda uma geração posterior. Mesmo no campo prático, onde Kant
admite Deus, este não é mais fonte de normas; é apenas um ser que
pode garantir a felicidade daquele que age moralmente. O homem
está agora totalmente responsável por seu destino; não há mais leis
eternas baseadas em um ente supremo que o possa reger.
Referências
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Hamm, Valério Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
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KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução de Valério Rohden,
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ZILLES, Urbano. Teoria do conhecimento e teoria da ciência. São Paulo:
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THE CONCEPTION OF GOD IN IMMANUEL KANT IN THE
CRITICS OF PURE REASON
Abstract
The medieval metaphysics moved around a general idea: God. Kant challenges all this construction; Immanuel sets himself as someone who wants
to investigate the limits of reason in the process of knowledge; it is the
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A concepção de Deus em Immanuel Kant: uma abordagem da crítica da razão pura
God produced by the philosophy, until then operative in his time, that Kant
dethrones. The philosopher proves that the world of phenomena is the
field for the supply of the sensitive intuitions of man that, by his turn, are
used by the understanding (intellect) to build the knowledge. For beyond
the phenomenal world there is no way to know, because where would the
subject take material to produce knowledge? The reason, when it is intended
to go beyond the limits of knowledge, commits mistakes, elaborating ideas
deprived of truth. The idea of God is one of them. The reason supposes
that it can know God. For Kant, we can only think God, but not know
Him; it is in the work Critics of pure reason.
Key words: Transcendental aesthetics, transcendental analytics, transcendental dialectics metaphysics, God.
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BIOÉTICA: DESAFIOS DO SÉCULO XXI
Margareth de Oliveira Kuster*
Resumo
Este artigo é uma contribuição para a sociedade em geral, principalmente para
as pessoas que se interessam por bioética, numa reflexão sobre o pensamento
e a cultura ocidental no período compreendido entre o século XVI e o século
XXI. Insere a bioética enquanto ciência do século XX, que chegou para unir
especialidades e trazer de novo a fundamentação filosófica para a análise dos
problemas do tempo atual. A intenção foi elaborar um artigo que pudesse
ser compreendido por todos, sendo esta uma proposta da bioética, unindo
todos os interessados nas discussões que envolvem a vida e o viver, a morte
e o morrer neste século. Os problemas estão colocados, e precisa-se mudar a
forma de pensar e intervir no social maior para um futuro melhor para esta
e para as gerações que estão por vir. É um chamado a uma sociedade mais
participativa e solidária com destino a um mundo melhor para todos.
Palavras-chave: Bioética. Cultura ocidental. Século XXI.
Há já algum tempo eu me apercebi de que, desde meus primeiros
anos, recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras, e de que
aquilo que depois eu fundei em princípios tão mal assegurados,
não podia ser senão mui duvidoso e incerto, de modo que me era
necessário tentar seriamente uma vez em minha vida, desfazerme de todas as opiniões a que até então dera crédito, e começar
tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse estabelecer
algo de firme e de constante nas ciências [....].
(DESCARTES, 1973, p. 93).
* Psicóloga clínica e hospitalar, mestranda em Ética e Gestão pela EST-RS, pósgraduada em Medicina Psicossomática. E-mail: [email protected]
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Introdução
A dúvida cartesiana é o ponto de partida de Descartes (1973)1
para todo o pensamento que desenvolveu e parece que ela o acompanhou ao longo de toda sua vida, pois em Meditações, publicado
nove anos antes de sua morte, em 1641, essa obra permanece como
condição essencial de seu próprio pensar filosófico.
Convido, portanto, os leitores, a uma imaginária volta ao mundo
do século XVI, período em que viveu o filósofo e pensador Descartes
(1596-1650), com as notícias que hoje talvez aparecessem como manchetes dos grandes jornais internacionais: surge o calendário moderno,
o Brasil e a bússola são descobertos, tem início a reforma protestante
na Alemanha, Camões publica Os lusíadas em Portugal, Leonardo da
Vinci, Michelangelo e Rafael imprimem um jeito novo de arte na Itália,
que se expande para o mundo, Copérnico apresenta a hipótese de um
Universo heliocêntrico, causando o rompimento drástico do mundo
antigo e do mundo medieval com a era moderna.
Época das grandes navegações e intercâmbio cultural e científico,
permitindo aos povos influenciar e serem influenciados por outros.
Todo o mundo ficou interdependente, e antigos limites pareciam
não existir mais. Era a revolução científica2 chegando e a filosofia
progressivamente se separando da teologia, fazendo surgir novas
Igrejas, conflitos religiosos e conflitos culturais. Historiadores falam da
emergência de uma nova consciência do ser humano, que se expande
de forma rebelde, ambiciosa e criativa (TARNAS, 2000).
Considerado o pai da filosofia moderna, tornou-se conhecido com a máxima:
“cogito, ergo sum” ou seja, “penso, logo existo”, considerada a primeira grande intuição
da razão, a partir da qual a dúvida começa a ser superada, já que esta é uma verdade
clara, fornecida pela razão.
2 Movimento no século XVII que separa a ciência da filosofia, pretendendo com
isso um conhecimento mais estruturado e prático.
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Bioética: desafios do século XXI
Nesse cenário tenso de novidades e descobertas, desenvolve-se
o Humanismo, movimento de estudiosos da cultura clássica antiga que
enfatiza as necessidades das pessoas, valorizando os direitos e o acesso delas à cultura e ao conhecimento. O humanismo torna-se marca
essencial dos intelectuais da época, principalmente para os italianos
(médicos, sacerdotes e outros, que eram homens de boa conduta, de
grande destaque social e sabedoria) (TARNAS, 2000).
A medicina na época se ocupava da dissecação de cadáveres nas
aulas de anatomia, ganhando impulso com as obras artísticas de Da
Vinci, que também utilizava o nu com interesse artístico, chegando
ele mesmo a dissecar mais de 30 cadáveres. O homem assim descrito
perde seu caráter anterior de mistério divino da criação e assume o
lugar de objeto controlável e manipulável.
O corpo passa a ser compreendido como soma de partes, e
acreditava-se que bastava dividir o objeto de estudo em partes para
compreender o todo. Herança da ciência cartesiana, que divide para
conhecer. Na medicina o compromisso ficou com o biológico do
corpo, separando mente e corpo, e os médicos intervindo no corpo
e considerando as doenças como processos meramente individuais,
naturais e biológicos (SIQUEIRA & ZOBOLI & KIPPER, 2008).
Como consequência na própria formação médica, essa visão
faz crescer o número de especialidades médicas; assim, cada vez se
conhece mais do menos. Era o binóculo cartesiano nas ciências médicas e o predomínio do pensamento essencialmente racional sobre
os fenômenos e as pessoas (SIQUEIRA, 2007).
Exames complementares e equipamentos tecnológicos substituindo a clínica e o avaliar pela história do doente. Mecanicizam-se o
contato e as hipóteses de diagnóstico, ficando estes para as imagens
radiográficas e exames cada vez mais sofisticados. O simples tornou-se
complexo, e o acesso, restrito à minoria (SIQUEIRA, 2000).
Nesse contexto de compreensão da realidade, outro filósofo contemporâneo de Descartes nos aponta que é impossível conhecer as
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partes sem conhecer o todo, tampouco conhecer o todo sem conhecer
as partes: Pascal (2003). O desencantamento em relação ao mundo
era grande, e a expansão científica em todos os campos tornou-se
irrestrita. Havia um fascínio em cada descoberta, e o ser humano foi
colocado como centro do Universo e senhor de todas as coisas. Essa
forma de pensar chama-se antropocentrismo, e o homem é colocado
como um ser racional e que tudo explica pela razão e pela ciência.
Essa forma de pensar se estendeu até o século XX.
1 Racionalidade, tecnologia e consequências
Assistiu-se do século XVI ao século XX a grandes descobertas. Eis
que surge o automóvel, o avião, o voo espacial, o rádio, a TV, o celular
etc. A mulher conquista direitos e independência no mundo do trabalho e nas relações familiares, a arte e o cinema dominam o tema dos
entretenimentos, e inúmeras outras descobertas em todos os aspectos
da vida. O Universo passou a ser indeterminado e infinito, assim como
a realidade ficou mais complexa e pluralizada. O homem e seu saber
científico (comercial, industrial e tecnológico) dominaram o objeto natureza de tal forma que quase a comprometeu totalmente. É o resultado
do antropocentrismo irresponsável e predatório (BOFF, 1999).
Em meio a tudo isso se produziram duas grandes guerras mundiais3, com consequente depressão econômica, ascensão e queda de
ditaduras, holocausto, acesso a armas nucleares, acesso ao lazer etc.
O desmatamento assumiu proporções gigantescas, e o planeta ficou
ameaçado. O mundo até o século XIX era perigoso para todos, e cresceu a corrida armamentista dos países ricos, já se prevenindo de uma
Após a Segunda Guerra Mundial, há grande desenvolvimento dos centros de
reabilitação física, devido ao grande número de lesionados = efeito pós-guerra.
3
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temida terceira guerra. O progresso trouxe consigo consequências
não previstas anteriormente, e a natureza foi imensamente sacrificada
(BOFF, 1999).
Após quatro séculos de mudanças econômicas, políticas e sociais,
o mundo dos homens predominantemente racionais fragiliza-se nas
certezas, e o saber fragmentado não responde mais às demandas
emergentes. De novo recorre-se a Descartes (1973) em suas Meditações,
quando desperta no leitor a constatação de que não existem métodos
fáceis para resolver problemas difíceis (DESCARTES, 1973). É exatamente nesse contexto social que se focará o interesse nas descobertas
mais essenciais no campo das ciências médicas, pois é aqui o propósito
de acompanhá-las para compreender os desafios atuais da bioética.
2 Surgimento da bioética
A bioética surge nos anos 1970 nos Estados Unidos, com amplas
preocupações na maneira de perceber e encarar o mundo, a vida e o
viver (GOLDIM, 2002), a morte e o morrer (SEGRE & COHEN,
1995). Bioética significa, de forma mais simples, a ética da vida, e para
Potter (1971), oncologista americano que assim a definiu na década de
704, a bioética resulta de uma grande preocupação com a interação do
problema ambiental às questões da saúde, da vida e do viver. Para ele,
era preciso combinar o trabalho dos humanistas com o dos cientistas,
porque senão o futuro seria incerto. Ele propôs a bioética como uma
ponte para o futuro, nome inclusive de seu livro.
No ano de 1971, o Kennedy Institute, nos EUA, praticamente
reduziu sua atuação ao campo biomédico e individual para as difíceis
4 A década de 70 também é marcada pelo crescimento dos movimentos e
literatura de autoajuda nos países desenvolvidos, assim como da psicologia de enfoque
comunitário e social.
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questões relacionadas à vida e ao morrer nos hospitais em geral. Passou a ser motivo de grandes reflexões a respeito do uso de tecnologia
médica5 nos pacientes terminais e recebeu em duas décadas muitas
críticas pelo reducionismo prático. Em 1988 o professor Warren Reich
acrescenta à proposta da bioética a abordagem interdisciplinar, pluralista e sistemática, incluindo problemas de meio ambiente e outros,
conforme Potter (1971) defendia. De 1970 a 1988 a bioética assumiu
caráter mais individual, e, para Garrafa (2005), a autonomia6 parece ter
prevalecido à justiça, e o individual foi ocupando o lugar do coletivo.
Era o pragmatismo americano se impondo e os princípios da bioética principialista ganhando espaço com os princípios de autonomia,
beneficência, não maledicência e justiça.
Pode-se dizer que o movimento da bioética surgiu no final dos
anos 60 nos Estados Unidos, como fruto da preocupação com os
pacientes que precisavam fazer hemodiálise, e o número de equipamentos disponíveis era insuficiente; porém, a denominação bioética
se firma nos anos 70 nos EUA, nos anos 80 na Europa e nos anos
90 na Ásia e nos países em desenvolvimento. Com características
distintas e considerando realidades locais, sendo um dos campos mais
crescente em todos os países, principalmente nos países ocidentais,
marcados pelas dificuldades no processo de viver e no processo de
como morrer (PESSINI, 2005).
Nos anos 90 na América Latina surgiu uma nova proposta epistemológica: A Bioética de Intervenção, com base filosófica e consequencialista. Esta proposta apoia-se no filósofo Jonas, que em seu livro El
principio de responsabilitad (1995) defende que não se deve comprometer
as condições de uma continuação infinita da humanidade na terra.
5
vitais.
Alguns aparelhos altamente especializados que fazem a função de certos órgãos
6 Autonomia é o primeiro princípio da abordagem principialista da Bioética de
Beauchamp e Childress, como direitos a liberdade, privacidade, escolha individual e
liberdade da vontade.
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Em 1998, o 4º Congresso Mundial de Bioética, em Tóquio, retoma os princípios do professor Potter (1971) e reafirma suas ideias
iniciais, criando o termo Bioética Global; porém, tal enfoque ficou
confundido com o termo “globalização” e, então, se optou pela definição de Bioética Profunda. Pretendia-se entender o planeta como um
conjunto de sistemas entrelaçados e mutuamente interdependentes,
não tendo o homem como centro, e sim a vida, e esta não somente do homem,
mas de toda espécie viva. É o resgate dos pensamentos iniciais de Potter
(1971), que voltam e assumem destino prático na ordem do cotidiano.
O desafio parece ser o de combinar o conhecimento científico com o
filosófico, para as ações do dia-a-dia em todos os contextos.
Em 2001 a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) define a bioética como área de reflexão da vida, da saúde e do ambiente
de forma ampla, plural, interdisciplinar. Faz críticas em relação aos
abusos dos novos conhecimentos, em todas suas propostas e áreas.
Inclui em suas discussões a questão da prudência como princípio necessário quando se trata de procedimentos dos quais podemos nos
arrepender num futuro próximo. No final do século XX os avanços
das ciências da saúde surpreendem com as novas biotecnologias.
Citem-se o projeto genoma humano, o movimento transumanista7 a
lei de biossegurança, dentre outros fatos (PESSINI, 2005).
Discussões bioéticas assumem espaços interdisciplinares, ao
mesmo tempo em que se expandem e requerem novas adequações.
Os temas são em relação à clonagem humana, aborto, eutanásia, ortotanásia, biodiversidade, finitude da vida, recursos naturais, alimentos
transgênicos, racismo, alocação de recursos para a saúde, engenharia
genética, dentre outros.
Movimento cultural e intelectual surgido nos anos 80 nos EUA que tem por
interesse aprimorar a condição humana através da razão aplicada, usando tecnologia
para aprimorar as capacidades intelectuais, físicas e psicológicas do homem.
Defende libertar a raça humana de seus limites biológicos, numa nova era da espécie
humana.
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Para Lown (1997), um dos mais destacados cardiologistas do século XX, jamais a medicina avançou tanto no campo de diagnóstico
e tratamento das mais variadas doenças como no século passado, e
nunca o ser humano foi tão mal cuidado.
3 Século XXI
Mundo globalizado e intercambiado, e a Internet como ferramenta essencial da vida civilizada. Acordos internacionais propondo
diálogo8 como princípio fundamental de todos os encaminhamentos
dos problemas globais. A economia torna-se recessiva, e aumenta a
distância entre ricos e pobres. Nesse cenário de graves problemas
sociais de difícil solução, iniciativas particulares e não governamentais
propõem o resgate do fazer solidário, da compaixão, da busca de uma
ética para além do instituído e governamental (ASSMAN & SUNG,
2000). Respostas anteriormente válidas não são mais suficientes, e um
novo paradigma se faz emergente, fazendo surgir a esperança por novas
possibilidades.
O filósofo contemporâneo Morrin9 (2001) nos convida a refletirmos a realidade, substituindo o pensamento que isola e separa por
um pensamento que distingue e une (MORRIN, 2006, p. 89), numa
proposta da Teoria da Complexidade. Esta teoria tem visão interdisciplinar acerca dos sistemas complexos e possui sete princípios básicos
do que denominou “o método”.
Muitos dos avanços tecnológicos na área médica são indiscutíveis
quanto aos benefícios em detecção e prevenção de várias doenças,
8 O diálogo é o primeiro princípio da ética oriental, de acordo com o filósofo
Ilkeda, 2008.
9 Edgar Morrin é filósofo, sociólogo, antropólogo e historiador francês.
Considerado um dos maiores pensadores da atualidade. Possui mais de 50 obras
publicadas em vários idiomas, com temas das ciências modernas.
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tratamentos precoces, métodos não invasivos para diversos
procedimentos cirúrgicos e outros. Há também aqueles que causam
discussões e polêmica, dando muito poder a quem os oferece ao
mesmo tempo em que aumenta a distância entre médico e paciente
(SIQUEIRA, 2000 & PESSINI, 2008) e ricos e pobres. Sabe-se que
muitas vezes a resolutividade de problemas na área da saúde está
limitada a quem tem acesso ao sistema, e a distância entre necessidade
e acesso pode significar perda de muitas vidas e sonhos.
Desde a década de 1970 ocorre, na maioria das vezes, de pessoas
morrerem isoladas e até mesmo solitárias nos hospitais, ligadas a
aparelhos, sem a presença de familiares; uma solidão desumanizante.
Alguns recursos tecnológicos muitas vezes são usados sem critérios
claros, e não raro nos parecem desumanos; e, do ponto de vista financeiro, são recursos excessivos10, principalmente para os países em
desenvolvimento, que ainda se veem com problemas de saneamento
básico por resolver. Ainda se morre de desnutrição e gripe em meio a
alta tecnologia com pacientes crônicos e terminais em alguns centros,
o que, a princípio, parece-nos contraditório (SIQUEIRA, 2000).
A medicina moderna amplia o divisor social de quem precisa
do atendimento em saúde, principalmente se pensarmos em saúde
pública. Para o bioeticista Greco (1999, p. 191), para que se possam
controlar as doenças existentes e as que estão por vir, fazem-se necessárias a eliminação da pobreza e a acentuação da ética. A ética da
correta utilização dos recursos públicos, a priorização de aplicação
desses recursos em atividades que beneficiem a maioria da população,
principalmente nas áreas de educação, saúde pública e saneamento
básico. A bioética, nesse contexto, é uma reflexão pertinente a toda
10Alguns pacientes chegam a custar para a rede hospitalar pública mais de R$ 20
mil/mês, e isto muitas vezes por falta de critérios claros no usar ou não alta tecnologia
em pacientes sem perspectiva de melhora ou cura.
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formação profissional, trazendo questões emergentes sérias do contexto da vida e das articulações desta com as ciências e as relações
sociais. É uma postura global e inclusiva para os difíceis problemas
atuais da sociedade.
Em se tratando da bioética clínica, precisa-se ampliar as questões
colocadas, pois ainda as discussões abertas são tímidas para casos
clínicos de difícil manejo, como o uso ou não de alta tecnologia em
pacientes em cuidados paliativos, eutanásia, ortotanásia, aborto, morte encefálica, técnicas de reprodução, entre outras. Enquanto isso,
avançam as descobertas do projeto genoma humano, manipulação do
DNA e a Lei de Biossegurança. No Brasil tem-se, desde 1995, a Lei
de Biossegurança, Lei nº 8.974/95, ligada ao Ministério de Ciência e
Tecnologia, visando à proteção da saúde humana, dos animais, das
plantas e do meio ambiente de forma não hierarquizada. Este último
aspecto representa um fato inédito no país, pois não existia nenhum
outro documento legal que tratasse da questão da saúde ambiental
até então (VALLE, 1998).
A bioética do século XXI adquire identidade pública e não mais dependente da consciência e autonomia das pessoas. Para Garrafa (2005,
p. 132), “[...] ela exige a responsabilidade do Estado frente aos cidadãos,
principalmente aqueles mais frágeis e necessitados, bem como frente à
preservação da biodiversidade e do próprio ecossistema.”
Em 2005 foi aprovada a Declaração Universal sobre Bioética e
Direitos Humanos da UNESCO, consagrando os direitos humanos como
referencial teórico fundamental da bioética, caracterizando-se pelos
direitos ambientais e pela solidariedade, transcendendo a noção de país
e Estado. O Brasil e os outros países em desenvolvimento presentes incluem nas discussões em bioética o campo sanitário, social e ambiental,
em oposição aos países ricos, que queriam novamente restringi-la ao
campo biomédico e biotecnológico (GARRAFA, 2005).
No início deste novo milênio pode-se apontar no mundo ocidental três formas de pensar e atuar em bioética: a americana, mais
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pragmática e que privilegia a autonomia das pessoas para os casos e
procedimentos; a europeia, que vai se ocupar mais com a fundamentação filosófica; e a latino-americana, que tenta conjugar a influência
americana e a europeia com a inclusão dos problemas sociais pertinentes às questões e aos procedimentos (PESSINI, 2005).
4 A crise do paradigma dominante
O modelo do homem antropocêntrico parece não responder mais
aos problemas de difícil manejo do cotidiano. Questões sociais graves assumem manchetes de TV e revistas semanais, e o pensamento
racional parece não ser suficiente para os problemas que se têm e as
soluções que se precisam. Como utilizar o saber profissional, história
de vida, subjetividade, para as intervenções que se fazem necessárias?
Quando se tem por objeto a pessoa humana e seu destino, tal tarefa
é por demais desafiante.
O homem expandiu conhecimentos, enfrentou competições, assumiu poder e dominou impérios, mas se tornou só e solitário. “O mundo
virtual criou um novo habitat para o ser humano, caracterizado pelo
encapsulamento sobre si mesmo e pela falta do toque, do tato e do contato humano” (BOFF, 1999, p. 11). A felicidade inicialmente sonhada
não aconteceu. Felicidade entendida como o mundo de valores, sendo
ela um valor positivo, interpessoal e historicamente determinado.
Como Descartes mesmo nos propõe em Meditações, que se resgatem os
fundamentos do pensamento do homem, encontramos em Aristóteles
(384-322 a.C) que o homem precisa de companhia de outro ser humano para tornar-se mais humano, consequentemente mais solidário.
Precisa-se de mudanças na forma de pensar, de forma estrutural e
epistemológica, percebendo o homem para além do ser competitivo
por natureza, mas ao mesmo tempo solidário por opção, superando a visão meramente economista reducionista dos últimos quatro
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séculos (ASSMAN & SUNG, 2000). A economia cresceu, o mundo
transformou-se, e o conviver humanitário carece de reflexão e novas
tomadas de posição. Momento de avançarmos do modelo cartesiano para uma nova construção do saber, incluindo o desafio do ser
humano complexo e com múltiplas integrações concomitantes. Um
ser integral biopsicossocial-espiritual e preocupado com o habitat e a
qualidade de vida de todos.
5 Nova proposta, novo paradigma11
Assmann e Sung (2000, p. 170) defendem que a felicidade como o
fim essencial do homem está ligada a ele próprio, mas também a todo
o planeta, requerendo para isso que “[...] o desejo de solidariedade
se transforme em necessidade vital personalizada como experiência
própria em um número crescente dos habitantes desse planeta”. A
essência humana é vista não como fundamentada na racionalidade,
mas na capacidade de desejar uns para os outros uma verdadeira
alegria de viver, um amor solidário que se complementa na felicidade
do outro, enquanto o outro igual a si próprio.
O caminho proposto é o do reconhecimento do outro enquanto
outro = alter, de forma inclusiva, participativa, cooperativa e valorativa.
Muda-se o paradigma anterior dominante, pois, se na Idade Média
a confiança estava no poder da Igreja, no mundo atual a confiança
parece se estabelecer em torno do mercado financeiro. As teorias
econômicas possuem estranhos pontos em comum com as teorias
teológicas, e nelas se busca um salvador para todos, num apelo para
uma confiança irrestrita no outro = instituição, Deus.
11Paradigma é um conjunto de princípios, ideias e valores compartilhados por uma
comunidade e que servem de referência e de orientação para o viver. A mudança de
paradigma ocorre quando surgem novas visões da realidade, como está se verificando
atualmente.
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Nessa perspectiva acredita-se que, se o homem é fruto da cultura,
portanto da experiência, pode-se mudar a forma de desejar viver a
experiência, portanto a cultura. A tríade cérebro, enquanto substrato
anatômico e físico; mente, enquanto construção subjetiva a partir da
interação com o meio; e cultura, enquanto elemento da ordem do social
maior, mostra que a humanidade é construção integrada e não única,
imprinting cultural de que fala Morrin (2000, p 28). Um novo paradigma
se faz emergente com a aproximação entre ciência e filosofia, numa
busca de integrar com mais humanidade o saber e construir uma
sociedade com novos valores (CAMUS, 2000).
A sociedade pós-moderna12 precisa ser reconceituada, pois é por
demais marcada pela razão que luta contra a ambivalência a que ela
mesma se impôs. Como consequência, vê-se aumentar a intolerância,
a rigidez e a exclusão entre as pessoas. A cultura atual, na tentativa de
acabar com a ambiguidade inerente à condição humana, faz surgir os
medos e as ansiedades pelos diferentes, e então estes são projetados
nos que estão à margem da ordem social, os excluídos; daí se querer
distância deles, e até mesmo eliminá-los. Assim acontece quando em
bioética alguns bioeticistas defendem que, tendo utilidade e função,
o ser humano estará apto para a vida; negam, com isso, a própria
ambiguidade desta (SINGER, 2002).
É preciso olhar o ser humano e com ele relacionar-se de modo
e razão diferentes, levando-se em conta o aspecto transdisciplinar de
análise, incluindo os temas do desejo, da epistemologia, da sociologia, da psicologia, da antropologia e outros. A solidariedade pode ser
um princípio que facilite as relações entre as pessoas, devendo estar
presente nas discussões dos valores fundamentais da bioética. Faz-se
necessária, nesse novo paradigma emergente, a prática consciente e
constante do diálogo, e para Siqueira (2008, p. 60), “[...] precisamos
12
Sociedade a partir do final do século XVIII até o momento atual.
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nos preparar para o tempo de falar e ouvir.” Propõe o resgate da maiêutica socrática, segundo a qual o diálogo é o instrumento que busca
a verdade. A felicidade da maioria pode ser desejada e afirmada em
possibilidades reais, numa relação mais simétrica e horizontal, numa
busca de vínculos relacionais que promovam crescimento e satisfação
para um maior número de pessoas, para também no futuro não se
meditar sobre as mesmas dúvidas das gerações passadas.
Considerações finais
Analisando historicamente a estrutura do pensamento ocidental
dominante desde o século XVI até o momento atual da bioética enquanto campo de conhecimento de saberes compartilhados, pode-se
concluir que um novo paradigma se faz emergente para dar conta das
angústias e sofrimentos da vida moderna. É necessário o resgate da
sociabilidade cooperativa como princípio articulador da coesão social,
em que o diálogo e a solidariedade sejam os instrumentos para medir
as complexas situações humanas vivenciadas em detrimento da confrontação, da competitividade e da lógica mercantil. Não desaparece
a competitividade, mas o mundo do outro aparece como mundo coafirmado, mundo possível e de pertença igualitária.
Os problemas do tempo atual são complexos e exigem posturas
mais dialogais e consensuais. O saber bipartido busca novas formas de
integração e novas maneiras de lidar com a vida e o morrer, e esses são
imperativos do cotidiano. Certezas rapidamente são transformadas em
questionamentos, e a cautela e a ponderação são valores pertinentes
às questões do dia.
Avanços tecnológicos sem reflexão ética têm se mostrado perniciosos e perversos na economia do mercado vigente. É preciso
discutir com critérios mais claros o que é mais adequado fazer e por
que, sem a sedução das promessas mágicas que vêm junto com cada
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descoberta tecnológica e científica. A bioética do século XXI traz o
resgate da reflexão filosófica para os encaminhamentos práticos que
se precisam ter na ordem do dia. Necessitamos do pensar filosófico
como aquele que perpassa toda ciência, procurando soluções criativas
para os problemas existentes.
Para o filósofo, conversar – falar – argumentar é o exercício de
uma arte que fala de seu amor à sabedoria, para além de qualquer
saber bipartido e linear.
De acordo com Pessini (2008), a filosofia assume seu lugar ao
lado das ciências médicas, apontando outra possibilidade de análise
dos problemas da Bioética clínica, trazendo o paciente como pessoa13
(SALVADOR, 2009), num momento muito oportuno, quando este havia se tornado um número, um órgão ou um consumidor. Pessini (2008)
propõe reflexões éticas não apenas em relação aos seres humanos, mas
a todos os seres vivos, incluindo, em sua análise, as questões dos valores que temos para a vida, do meio ambiente, da cultura, da mediação
com um tipo de progresso que facilita e garante a vida sem ameaçá-la.
É um resgate das ideias iniciais de Potter (1971), seu criador e primeiro
expoente. Por um resgate no século XXI da filosofia com a ciência no
enfrentamento das difíceis questões do mundo globalizado.
Faz-se, portanto, necessária a participação ativa de toda a sociedade, de forma prática e inclusiva, pois boa parte da convivibilidade
que se deseja depende das escolhas que se fazem ao longo da vida e
de como se estabelecem laços comunicativos e formas de pertencimento. É preciso uma ética que leve as pessoas e o Estado a respeitar
acordos internacionais não como normas ou impositivos, mas como
postura diferenciada diante da vida. E, mais que acordos com os
outros, precisa-se de uma nova tomada de posição interna diante da
Pessoa aqui entendida como unidade psicossomático-espiritual aberta ao mundo,
ao outro e ao Absoluto, devendo ser tratada como fim e nunca como meio.
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vida e do Universo, com atitudes cuidadoras que facilitem o conviver
e a inclusão do outro no mundo de significações possíveis.
Como contribuir para que mais pessoas se autoafirmem em
relacionamentos com outras pessoas, incluindo o saber racional e o
saber subjetivo, são construções históricas e afetivas de processos
conscientes e inconscientes que vão facilitar ou dificultar a vida desta
e das futuras gerações. Acredita-se, porém, que essa é uma alternativa
viável e necessária, que inclui e melhora a vida das pessoas. O desafio,
portanto, é de todos.
Concluindo, pode-se dizer que Potter (1971), assim como Descartes no final de sua vida, reconhece que a bioética tornou-se algo
muito além do que se imaginara, e em seus escritos finais de 1998
assim se expressa em Pessini (2008, p. 50): “[...] o que lhes peço é
que pensem a Bioética como uma nova ética científica que combine
a humildade, responsabilidade e competência, numa perspectiva interdisciplinar e intercultural e que potencialize o sentido de humanidade
das pessoas”.
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Margareth de Oliveira Kuster
PESSINI, Leocir. Bioética: das origens a prospecção de alguns
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Bioética: desafios do século XXI
BIOETHICS: CHALLENGES OF THE 21ST CENTURY
Abstract
This article is a contribution for the society in general, mainly for the people
who are interested in Bioethics, in a reflection about the western thought
and culture in the period included between the 16th century and the 21st
century. It inserts Bioethics as a 20th century science that came to unite
specialties and to bring again the philosophic foundation for the analysis
of the problems of our time. The aim was to develop an article which
could be understood by all people, being this a proposal of the Bioethics,
bringing together all interested people in the discussions that involve life
and living, death and dying in this century. The problems are set and it is
necessary to change the form of thinking and to intervene in a bigger social, for a better future for this current generation and for the ones that are
coming. It is a call for a more participative and sympathetic society leading
to a better world for all.
Key words: Bioethics. Western culture. 21st century.
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SÍNODO ARQUIDIOCESANO DE
VITÓRIA DO ESPÍRITO SANTO
Na fidelidade ao passado, mas decididamente aberta ao novo!
Dom Luiz Mancilha Vilela*
Resumo
A Arquidiocese de Vitória do Espírito Santo realizou o Primeiro Sínodo
entre 2006 e 2009, levando em consideração as mudanças sociais e a escuta
ao povo que compõe sua área geográfica, e, a partir dele, traçou seu objetivo de ser sinal de esperança para o povo. No dia 23 de agosto de 2009,
concluiu solenemente Sínodo Arquidiocesano. O Sínodo nos convocava
para uma mística da caminhada, seja no interior da Igreja Particular, seja
no seu diálogo com o mundo.
Palavras-chave: Arquidiocese de Vitória. Sínodo. Igreja. Povo de Deus.
Sínodo é uma reunião do Bispo com seu clero e leigos
comprometidos, por um determinado período, com o objetivo de
perceber a realidade e adequar os processos de evangelização para
que o anúncio de Jesus Cristo aconteça em todos os lugares. A
Arquidiocese de Vitória do Espírito Santo realizou o Primeiro Sínodo
entre 2006 e 2009, levando em consideração as mudanças sociais e a
escuta ao povo que compõe sua área geográfica, e a partir dele traçou
seu objetivo de ser sinal de esperança para o povo.
A Arquidiocese de Vitória do Espírito Santo, no dia 23 de agosto
de 2009, concluiu solenemente um Sínodo Arquidiocesano. Por que
*Arcebispo da Arquidiocese de Vitória (ES).
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Dom Luiz Mancilha Vilela, ss.cc. Arcebispo de Vitória
nós usamos o termo “Sínodo Arquidiocesano”, e não “Assembleia
Arquidiocesana”? Seria apenas uma questão de preferência verbal ou
tínhamos uma intenção específica ao usarmos o termo “sínodo”?
A palavra “assembleia” é uma expressão muito rica em nossa
vida eclesial. É um termo que nos congrega na expressão e na vida
do Mistério de Cristo e de Sua Igreja, Povo de Deus e Corpo Místico.
Ao mesmo tempo é uma palavra cujo sentido original, devido ao uso
constante, foi enfraquecendo.
Hoje é um termo usado com sentidos diferentes. É empregado para
designar desde pequenas reuniões que congreguem pequenos grupos
em torno de temas de interesse desses grupos até grandes reuniões em
torno de grandes temas, de interesse regional, nacional e internacional,
com representações coerentes com os objetivos pretendidos.
Na concepção que caminhamos, optamos pelo Sínodo, gestado em três anos de muito trabalho através de pequenas e grandes
assembleias reflexivas e litúrgicas, que nos permitiram uma compreensão maior dos desafios da evangelização e as intuições para novas
iniciativas. “O Sínodo Diocesano celebra-se quando a juízo do Bispo
Diocesano e ouvido o conselho presbiteral, as circunstâncias o aconselharem” (Dicionário de termos da fé).
Coincidentemente, num tempo que se caracteriza como “tempo
de mudança de época”, surgiu nesta Porção do Povo de Deus a necessidade de, enquanto caminhávamos, lançarmos um olhar estratégico
e místico sobre a Arquidiocese de Vitória do Espírito Santo. Estávamos convictos de que esta Igreja assumiu em seu caminhar evangelizador atitudes proféticas. Sentíamos, no entanto, que ela precisava
revitalizar seu testemunho interno e seu empenho no diálogo com
o mundo nos seus diversos aspectos da realidade urbana e rural e do
agir político e transformador. Fiéis ao conceito de Povo de Deus, que
exige, por isso mesmo, paradas reflexivas, orantes e revitalizadoras,
sentimos que aquele era o momento para essa empreitada corajosa,
quase uma aventura!
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Sínodo Arquidiocesano de Vitória do Espírito Santo
A realização de um “sínodo” nos proporcionaria a oportunidade
que uma “assembleia” não conseguiria. O sínodo nos permitiria, “um
tempo” para a caminhada de comunhão.
Eis porque a convocação de um “sínodo” e não de mera “assembleia”. O Mistério da Igreja Povo de Deus é Mistério do Povo de Deus
que caminha em Comunhão, Mistério de Comunhão!
O caminho pode ser percorrido individualmente, egoisticamente,
ou juntos e comunitariamente. Na caminhada é possível acomodarse nas próprias conquistas, fechar-se em si mesmo, bebendo da água
de poço sem renovação do precioso líquido mantenedor da vida. O
Mistério da Igreja Povo de Deus, porém, é Mistério de Povo de Deus
que caminha em Comunhão, Mistério de Comunhão!
As circunstâncias nos indicavam que devíamos continuar nossa
marcha de Povo de Deus, buscando, porém, viver e anunciar o Reino
de Deus como caminhada de comunhão, buscando águas mais
profundas.
Por isso nossa preocupação central desde o início da convocação
sinodal foi “caminhar juntos na acolhida fraterna e na esperança”.
Este lema resumiu nossa motivação sinodal. O Sínodo nos convocava
para uma mística da caminhada, seja no interior da Igreja Particular,
seja no seu diálogo com o mundo.
Esta foi a essência da intuição sinodal: promover uma caminhada
em comunhão, com a reflexão orante de todos: Grupos de Reflexão,
Comunidades Eclesiais com suas pastorais, associações e movimentos
eclesiais. Estávamos socialmente fechados e eclesialmente desunidos
em nossa missão, embora nosso rosto parecesse belo para os que nos
viam de longe ou mesmo muito feio para outros.
O grande desafio de caminhar juntos precisava de tempo para
estabelecer o diálogo, a reflexão conjunta, os rumos da história e
da caminhada arquidiocesana. A caminhada sinodal permitiu-nos a
experiência.
Formamos comissões de serviço e temáticas. Fizemos pesquisa
técnica. Visitamos as áreas pastorais. Ouvimos a liderança. Definimos
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Dom Luiz Mancilha Vilela, ss.cc. Arcebispo de Vitória
a metodologia de trabalho. Elaboramos regimento. Produzimos textos. Organizamos estudos. Rezamos. Celebramos. Encontramo-nos
em assembleias ou sessões sinodais. Produzimos orientações para
os temas que brotaram dos apelos do povo: Celebração do Mistério
Pascal, Igreja Missionária, Ministerialidade, Família, Cultura de Paz
e Formação.
A escuta deu o “tom” de todo o processo. Ouvimos com humildade (através de pesquisa técnica e na escuta às Comunidades) o que
o povo pensa de nós e deseja de nós. As orientações fundamentaramse nos apelos do Evangelho e orientações da Igreja, na tentativa de
encontrar respostas às angústias que surgiram e aos desafios que se
apresentaram.
O caminhar juntos aconteceu desde a escuta às comunidades,
passou pelas sessões temáticas até à assembleia conclusiva. Uma caminhada, lenta e progressiva, às vezes com entusiasmo, outras com pouco
entusiasmo, com duração de três anos. Três anos em volta da preocupação de caminhar juntos, na acolhida fraterna e na esperança, ouvindo o
povo e tentando responder às suas questões fundamentais.
Vimos, ouvimos e nos abrimos à Palavra de Deus, que lançou
luzes para a nossa ação evangelizadora nos próximos anos.
O que a Igreja se propõe através do sínodo é um vasto trabalho
evangelizador, que exigirá alguns anos de cada discípulo missionário,
de cada comunidade eclesial, desta Igreja Particular.
Entretanto, para não perdermos nosso objetivo, nossa meta de
caminhar juntos, numa profunda mística, deixamos bem claro o que
queremos como Igreja de Vitória do Espírito Santo:
“Ser Sinal de Esperança para o povo, anunciando e testemunhando a Boa Nova de Jesus Cristo, à luz da evangélica opção pelos pobres,
caminhando juntos, na acolhida fraterna” (Doc. Sinodal).
Metodologia de trabalho para a realização do Sínodo:
• Nomeação de uma comissão central (sendo esta composta
por coordenadores das comissões de serviço).
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Sínodo Arquidiocesano de Vitória do Espírito Santo
• Nomeação de comissões de serviço e temáticas.
• Definição dos temas e datas das sessões sinodais.
• Definição de períodos para confecção de materiais de estudo
e para o estudo.
• Definição de datas para retorno dos resultados dos estudos
feitos nas comunidades e grupos e sintetizados pelas paróquias.
• Definição de tempos de trabalho para que as comissões temáticas pudessem preparar a apresentação dos resultados para
as sessões sinodais.
• Realização das sessões.
• Constituição de uma equipe de assessoria para auxiliar o Arcebispo sobre as orientações pastorais de cada sessão.
• Elaboração do documento conclusivo.
ARCHDIOCESAN SYNOD OF VITÓRIA IN ESPÍRITO SANTO
In faithfulness to the past, but certainly open to the new!
Abstract
The Archdiocese of Vitória in Espírito Santo held the First Synod between
2006 and 2009, taking into consideration the social changes and the listening
of the people who constitute its geographic area, and from it planned its
objective of being a hopeful sign for the people. On August 23rd of 2009,
it was concluded solemnly Archdiocesan Synod. The Synod convoked us
for a mystic of walking, either in the interior of the Private Church or in
its dialog with the world.
Key words: Archdiocese of Vitória. Synod. Church. People of God.
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REVISTAS EM PERMUTAS NACIONAIS
Título – Local – Periodicidade
1. Analytica: Revista de Filosofia da UFRJ – Semestral
2. Atualidade Teológica: Revista do Departamento de Teologia da
PUC-Rio – Bimestral
3. Caminhando: Revista da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista – Semestral
4. Revista de Catequese: UNISAL – Trimestral
5. Cognitio: Revista de Filosofia da PUCSP – Semestral
6. Coletânea: Revista de Filosofia e Teologia Faculd. de S. Bento –
RJ. – Semestral
7. Direito: Revista da Faculdade de Direito de Cachoeiro do Itapemerim- ES – Semestral
8.Espaços: Revista de Teologia do Instituto S. Paulo de Estudo
Superior – Semestral
9. Estudos Teológicos: Inst. Ecumênico em Teologia Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil – Semestral
10. Horizonte Teológico: Inst. Santo Tomás de Aquino – ISTA –
Semestral
11. Hypnos: Revista de Filosofia da PUCSP – Semestral
12. Kriterion: Revista de Filosofia da UFMG – Semestral
13. Razão e fé: Revista Inter e Transdisciplinar de Teologia. Filosofia
e Bioética – Semestral
14. Rhema: Revista de Filosofia e Teologia do ITASA – MG – Quadrimestral
15. Religião & Cultura: Revista do Departamento de Teologia e
Ciências da Religião da PUCSP -Semestral
16. Repensar: Revista de Filosofia e Teologia do Inst. Paulo VI – RJ
– Semestral
17. Revista de Ciências da Educação: UNISAL – Semestral
18. Revista Dominicana de Teologia: EDT – Semestral
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Revistas em Permutas
19. Revista Filosofia da PUCPR – Semestral
20.Revista Litterarius: FAPAS RS – Semestral
21. Sapientía Crucís: Revista Filosófico-Teológica – Anápolis – GO
– Anualmente
22.Scientia: Revista Interdisciplinar do Centro Univ. Vila Velha ES –
Semestral
23.Theós: Revista de Reflexão Teológica da Faculdade Teológica
Batista de Campinas – Semestral
24.TQ: Teologia em Questãoda Faculdade Dehoniana SP – Semestral
25.Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da UNESP – Semestral
26.Veritas: Revista de Filosofia da PUCRS – Trimestral
27.Via Teológica: Faculdade Teológica Batista do Paraná – Semestral
REVISTA EM PERMUTA INTERNACIONAL
Título – Local – Periodicidade
1. Stromata: Revista Filosofia y Teologia Universidad Del Salvador
– Argentina – Semestral
REVISTAS NACIONAIS – ASSINATURA
Título – Periodicidade
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
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Caros Amigos – Mensal
Concilium – Bimestral
Estudos Bíblicos – Trimestral
Família Cristã – Mensal
Grande Sinal – Bimestral
Mundo e missão – Mensal
Perspectiva Teológica – Quadrimestral
REB – Revista Eclesiástica Brasileira – Trimestral
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Revistas em Permutas
9. Revista de Liturgia – Bimestral
10. Revista de Cultura Teológica – Trimestral
11. Revista Vitória – Bimestral
12. RIBLA – Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana –
Trimestral
13. SEDOC – Bimestral
14. Tempo e presença – Bimestral
15. Revista de Koinoina – Bimestral
16. Síntese – Quadrimestral
CADERNOS
Título – Periodicidade
1. Cadernos Adenauer – Bimestral
REVISTAS INTERNACIONAIS – ASSINATURAS
Título – Local – Periodicidade
1. Bíblica: Editrice Pontifício Instituto Bíblico – Roma – Bimestral
2. Christus: Revista de Teología y Ciências Humanas – México – Bimestral
3. Diakonia: Internationale Zeitschrift für die Práxis der Kirche –
Bimestral
4. Diakonia: Província Centroamericana de la Companía de Jesús
Centro Ignaciano de Centroamérica – El Salvador – Trimestral
5. Família et Vita: Pontificium Consilium pro Família Stato Città Del
Vaticano – Quadrimestral
6. Il Regno: Bologna – Quinzenal
7. Journal for the Study of the Old Testament – Trimestral
8. Journal for the Study of The New Testament – Trimestral
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Revistas em Permutas
9. Medellín: Teologia y pastoral para américa latina – Colombia –
Trimestral
10. Misiones extranjeras – Madrid – Bimestral
11.Moralia: Revista de ciências Morales Instituto Superior de Ciências
Morales – Madrid – Trimestral
12. Recherches de Science Religiuse – França – Trimestral
13. Revista de Espiritualidad – Madrid – Trimestral
14. Revista Mensaje – Santiago – Trimestral
15. Revue Biblique – L’école Biblique et Archéologique Française
– França – Trimestral
16. Revue d’Histoire Ecclésiatique – França – Trimestral
17. Reseña Bíblica – Asociación Bíblica Española – Trimestral
18. Spiritus: Revue d’ expériences et recherches missionnaires – França
– Trimestral
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