O que significa traduzir hoje a dramaturgia shakespeariana

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O que significa traduzir hoje a dramaturgia shakespeariana
Beatriz Viégas-Faria*
Quem se aventura na empreitada de traduzir as peças teatrais de William
Shakespeare conta com um universo quase que imensurável de recursos dos quais pode
lançar mão: estudos de pesquisadores que se debruçaram sobre vida e obra do dramaturgo,
descrições do funcionamento do teatro elisabetano, análises de linguagem e estilo da
dramaturgia vigente na Inglaterra daquela época, dicionários especializados cujos verbetes
são os vocábulos tanto utilizados quanto inventados por Shakespeare, e assim por diante,
inclusive compilações de imagens inspiradas nas personagens do autor ou derivadas de
montagens cênicas (pinturas, desenhos, esboços, gravuras, fotos). Existem até mesmo
volumes dedicados tão somente aos termos chulos e/ou aos trocadilhos sexuais que se
encontram nos textos shakespearianos.
Quando alguma passagem do texto que está traduzindo parece obscura ou ambígua,
ou exibe uma estrutura frasal truncada, o tradutor pode e deve se valer desses estudos – que
irão auxiliá-lo a recriar na língua alvo a mesma obscuridade ou ambiguidade ou sintaxe
truncada. O estudo minucioso das edições anotadas em língua inglesa também pode levar
ao descobrimento, por exemplo, de certos trocadilhos que pertencem ao uso da língua
inglesa da época de Shakespeare e que, com o tempo, deixaram de ser compreendidos em
sua intenção original de construir dentro do texto um significado subjacente – cômico,
obsceno, sarcástico etc.
No caso de trocadilhos, se o tradutor está vertendo Shakespeare em prosa, ele pode
se dar ao luxo de ampliar o texto para acomodar o segundo sentido pretendido pelo autor
quando não conseguir trocadilho similar em conteúdo ou mesmo equiparável em forma.
Usando de uma estratégia de compensação, o tradutor também pode não ter um trocadilho
em certo ponto do texto mas vir a criar um trocadilho mais adiante, em passagem onde não
*
Tradutora, poeta, doutora em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, com
pesquisa em Estudos da Tradução (University of Warwick, Inglaterra). Prêmio Açorianos de Literatura em
2000 e 2007, pelas traduções de Otelo e de Trabalhos de amor perdidos, respectivamente. Membro da AGEs
(Associação Gaúcha de Escritores), da ABRATES (Associação Brasileira de Tradutores) e do CESh (Centro
de Estudos Shakespearianos do Brasil). Professora adjunta da Universidade Federal de Pelotas.
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aparece nenhum jogo de palavras no texto fonte. De qualquer forma, é admirável ver as
soluções para trocadilhos tecidas por tradutores que nos entregam a dramaturgia de
Shakespeare em verso, como o fazem José Roberto O’Shea e Barbara Heliodora e como o
fez Manuel Bandeira ao traduzir Macbeth. Vejamos um exemplo, de Romeu e Julieta (1.4):
ROMEO
A torch for me: let wantons light of heart
Tickle the senseless rushes with their heels,
For I am proverb'd with a grandsire phrase;
I'll be a candle-holder, and look on.
The game was ne'er so fair, and I am done.
MERCUTIO
Tut, dun's the mouse, the constable's own word:
If thou art dun, we'll draw thee from the mire
Of this sir-reverence love, wherein thou stick'st
Up to the ears. Come, we burn daylight, ho!1
Na tradução de Barbara Heliodora (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p.51), temos:
ROMEU
Quero uma tocha. Que corações leves
Usem seus calcanhares insensíveis.
Como um ditado velho já dizia –
Seguro a vela e fico só olhando.
É hora de parar, ’stou acabando.
MERCUCIO
Bando é de rato, até segundo a lei.
Se virou rato, nós vamos puxá-lo
Pra fora desse charco que é o amor,
E onde está afundado. Vamos logo.
Sendo o inglês língua de vasto vocabulário de palavras monossilábicas, o tradutor
que mantém a forma versificada das falas das personagens sem expandir o número de
versos precisa exercitar uma invejável capacidade de síntese. Para nos atermos a um único
exemplo, “heart” é palavra de 1 sílaba, enquanto em português precisamos de 3 sílabas para
dizer “coração”. Pode-se dizer que o processo tradutório que tem por objetivo seguir a
métrica transforma-se em tarefa de quem tem pleno domínio das técnicas de produção
textual, e esses tradutores são necessariamente virtuoses da palavra.
Há, contudo, projetos de tradução que não se debruçam sobre a forma versificada
das peças shakespearianas (à exceção de canções e algumas outras passagens que se dão
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com métrica e rima – por exemplo, cartas trocadas entre as personagens). Traduções em
prosa tendem a privilegiar todos os detalhes do conteúdo do texto em suas várias camadas
de significação semântica e pragmática (o dito e o não-dito, ou seja: a fala construída [rearquitetada em tradução] para deixar-se ler carregada de subentendidos). E, ainda assim,
são traduções que podem preservar certas significações formais (como aliterações, rimas,
ecos), criando eventualmente uma prosa poética para certas personagens.
Observe-se também que o tradutor de Shakespeare lida com uma língua inglesa que
não está em vigência – executa uma tradução diacrônica – e lida com textos de uma
dramaturgia igualmente em desuso, escrita e encenada para uma plateia que, por exemplo,
ria de piadas que hoje não têm mais graça. Para dificultar ainda mais o processo tradutório,
existem termos, expressões e frases que já se encontram cristalizados como parte da história
do teatro shakespeariano, no nosso caso, em língua portuguesa do Brasil. Um exemplo é
“admirável mundo novo”, tradução de “brave new world”, que aparece em fala de Miranda
na peça A tempestade. “Brave” não precisaria necessariamente ser traduzido como
“admirável”. Como neste, em vários outros casos cabe ao tradutor decidir – dentro do longo
processo de tomada de decisões que caracteriza a atividade tradutória – se se mantém (ou
não) a expressão consagrada. Minha particular preferência é por manter as expressões já
cristalizadas na língua, pois é minha intenção que o leitor de Shakespeare reconheça esses
trechos como sendo aqueles que nos acompanham ao longo de uma vida inteira como se
fossem expressões idiomáticas e que, na verdade, tiveram sua origem em textos
shakespearianos, como no caso de “e o resto é silêncio”.
A tradução do humor é tarefa particularmente demorada. Muitas vezes, nas
comédias shakespearianas, o cômico está nas falas de personagens analfabetas ou de
escassa instrução, como se pode observar em A megera domada (1.2):
GRÚMIO – Não, não tem pobrema, sir, o que ele tá lhe discursionando em latim. Se isso
não é uma lergítima causa pra mim deixar esse serviço, sir, o senhor então me diz:
ele me manda bater nele e bater nele com pancadaria, sir. Bom, isso é coisa de um
criado fazer? Rebusar assim do seu amo, que pode ser que, pelo jeito, já tá nos
trinta? No fim das conta, por Deus que eu devia ter batido nele antes, porque assim
pode ser que Grúmio não tinha se dado mal.2
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Convém aqui salientar que o tradutor precisa ter “ouvido” (ou melhor, olho treinado de
leitor especializado) para as idiossincrasias das falas de cada personagem. As personagens
bem construídas diferenciam-se entre si pelo perfil psicológico, pela indumentária, pelo
gestual, pelas atitudes e comportamento – e também pelo modo de falar. Além disso, como
os diálogos são escritos para serem interpretados por atores no palco, os textos
dramatúrgicos trazem marcas de oralidade (mesmo aqueles escritos em verso, como é o
caso das peças shakespearianas).
Em Shakespeare, como em outros autores ocidentais de séculos passados, temos por
vezes um fator agravante à tradução das passagens cômicas: o humor pode estar datado. É o
caso de uma passagem, por exemplo, em Romeu e Julieta (2.4), quando Romeu diz à Ama
de Julieta: “Eu posso dizer-lhe [onde encontrar o jovem Romeu]. Mas o jovem Romeu
estará mais velho quando o encontrar do que ele era quando a senhora começou a procurálo”. Contam os pesquisadores que a plateia de Shakespeare achava hilariante essa fala.
Entretanto, é interessante notar que as passagens carregadas de sentidos obscenos
continuam funcionando hoje tão bem como há quatrocentos anos. É o caso de uma fala de
Mercúcio em Romeu e Julieta (2.4): “[...] the bawdy hand of the dial is now upon the prick
of noon”, onde, numa primeira leitura, “hand” é o ponteiro do relógio de sol e “prick” é, no
mostrador de um relógio de sol, cada uma das marcas de hora e/ou minutos. Mercúcio
parece estar falando das horas, em resposta a uma pergunta que lhe havia feito a Ama de
Julieta. Contudo, a presença do adjetivo “bawdy” sinaliza para a Ama que a frase de
Mercúcio não é inocente, pois “hand” e “prick” também são palavras que, fora do contexto
do relógio de sol, podem significar “mão” e “pênis” – “[...] a mão obscena que é a sombra
do ponteiro do relógio de sol encontra-se agora sobre o pau que traça o meio-dia”.3
Qualquer tradução dessa fala de Mercúcio precisa solucionar o trocadilho duplo, pois, na
continuidade do diálogo, temos que a reação da Ama é de quem entendeu muito bem o
segundo sentido.
Há questões que aparecem e transparecem nos textos shakespearianos por meio de
uma linguagem que hoje chamaríamos de politicamente incorreta. Temos o uso da palavra
“etíope”, por exemplo, como sinônima de “feia”. Isso porque o ideal de beleza feminina na
Inglaterra elisabetana exigia que a mulher fosse branca, palidamente branca – uma dama
não se expunha ao sol. Em Trabalhos de amor perdidos, temos Dumaine, um lorde a
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serviço do Duque de Navarra, apaixonando-se por Katherine, uma dama a serviço da
princesa da França. Dumaine (4.3) coloca em versos seu amor por Katherine e diz: “Júpiter
por ti juraria / Ser Juno uma negra, um horror, / Ele até se transformaria / Em mortal pelo
teu amor”.4
Por serem traduções que remetem não só a outra cultura, mas também a outros
tempos, os textos shakespearianos abrem espaço para que o tradutor “se faça ouvir”
enquanto autor da tradução – não só no texto propriamente dito, através de suas escolhas
vocabulares e frasais, mas em notas de rodapé ou mesmo em uma Nota do Tradutor que
funcione como texto introdutório à leitura do texto traduzido. Lembro de minha
preocupação, ao traduzir Ricardo III, em deixar claro ao leitor que, se uma pessoa da
realeza sentou-se no chão, esse gesto não quer dizer que não havia onde sentar naquele
cenário, mas que o gesto era simbólico de extrema dor psicológica – um gesto da realidade
da família real inglesa que foi aproveitado por Shakespeare no palco.
É muito comum as pessoas perguntarem “por que mais uma tradução desta (ou
daquela) peça de Shakespeare? Já não está traduzida?” Esta é uma característica inerente à
produção literária: não se mexe nos textos em sua língua original, mas atualizam-se em
novas traduções os textos estrangeiros. Peças teatrais são retraduzidas, em média, a cada
dez anos, isto é, a cada nova geração de espectadores. Assim como os falantes nativos do
inglês têm hoje o privilégio de assistir a uma peça de Shakespeare em seus diálogos
originais (não sem antes estudar a peça para bem acompanhar a ação que se desenrola no
palco), pode-se pensar que os espectadores da mesma peça em línguas outras que não a
inglesa têm o privilégio de ir ao teatro (ou ao cinema, ou mesmo ler a obra) e entender o
que se passa sem a necessidade de estudar previamente o texto. Podemos usufruir do
espetáculo sem a mediação de leituras prévias, porém com a mediação de um processo
igualmente facilitador, qual seja, o ato tradutório. Para que o leitor brasileiro tenha prazer
na leitura de uma peça shakespeariana, o tradutor fez o tema de casa.
Esse tema de casa envolve ler o texto fonte com olhos de escritor, sabendo que a
interpretação das várias camadas de significação abrange bem mais que a superfície
linguística do texto. E a tarefa de reescrever (ou melhor, retextualizar e às vezes
contextualizar via notas de rodapé) uma obra da dramaturgia shakespeariana no Brasil
requer técnica e estratégias de composição que permitam ao público brasileiro fazer uma
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leitura também crivada de significados subjacentes – onde, por exemplo, o humor apareça
sem estar explicado, onde as obscenidades sejam um segundo sentido, onde a ironia ou a
beligerância verbal das personagens possam ser detectadas na reestruturação das falas.
De fato, quanto maior a riqueza literária de um texto, quanto mais intrincada a sua
tessitura, quanto mais lacunas o autor deixa a cargo do leitor, maior o número de traduções
que esse texto comporta, justamente porque permite diferentes interpretações – isto é,
diferentes leituras. As diversas traduções e montagens cênicas de Shakespeare no Brasil de
hoje são prova disso.
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ROMEU – Uma tocha para mim! Deixemos que os dissolutos, de coração leve, dancem, inticando com seus
calcanhares os insensíveis juncos. Quanto a mim, encontro-me num ditado do tempo de meu avô: “Seguro a
vela e observo”. O jogo nunca esteve tão bom, e já estou encurralado.
MERCÚCIO – Ora, de cu ralado está o gato, como disse o próprio guarda. Se tu estás encurralado, vamos te
arrancar miando dessas areias movediças desse tão reverenciado amor onde te enterraste até as orelhas.
Vamos de uma vez, que estamos é perdendo tempo. (Tradução minha. Porto Alegre: L&PM, 1998. p.33.)
2
Em tradução minha, feita especialmente para a montagem da Cia Rústica, com direção de Patrícia Fagundes
(Porto Alegre, 2008). A mesma passagem, em língua inglesa (http://shakespeare.mit.edu):
GRUMIO
Nay, 'tis no matter, sir, what he 'leges in Latin.
if this be not a lawful case for me to leave his
service, look you, sir, he bid me knock him and rap
him soundly, sir: well, was it fit for a servant to
use his master so, being perhaps, for aught I see,
two and thirty, a pip out? Whom would to God I had
well knock'd at first, Then had not Grumio come by the worst.
3
Tradução minha. Porto Alegre, L&PM, 2002. p.68.
4
Tradução minha. Porto Alegre: L&PM, 2006. p.74. Em língua inglesa: “Thou for whom Jove would swear /
Juno but an Ethiope were, / And deny himself for Jove, / Turning mortal for thy love.” In: SHAKESPEARE,
William. Love’s Labours’s Lost. Edited by Barbara A. Mowat and Paul Werstine. New York: Washington
Square Press, 1996. The New Folger Library. p.117.
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