Capítulo 13 Insuficiência Renal Aguda Nestor Schor* Oscar Fernando Pavão dos Santos Mirian Aparecida Boim A insuficiência renal aguda (IRA) é caracterizada por uma redução abrupta da função renal, que se mantém por períodos variáveis de tempo, resultando na incapacidade de os rins exercerem suas funções básicas de excreção e manutenção da homeostase hidroeletrolítica do organismo. Apesar do substancial avanço no entendimento dos mecanismos fisiopatológicos da IRA, bem como no tratamento desta patologia, os índices de mortalidade ainda continuam excessivamente elevados, em torno de 50%. Etiologia As causas de insuficiência aguda podem ser de origem renal, pré-renal ou pós-renal. A IRA pré-renal é rapidamente reversível, se corrigida a causa, e resulta principalmente de uma redução na perfusão renal, causada por uma série de eventos que culminam sobretudo com a redução do volume circulante efetivo e portanto do fluxo sangüíneo renal. As causas mais freqüentes são desidratação (vômito, diarréia, febre), uso de diuréticos e insuficiência cardíaca. A IRA, causada por fatores intrínsecos ao rim, é classificada de acordo com o principal local afetado: túbulos, interstício, vasos ou glomérulo. A causa mais comum de dano tubular é de origem isquêmica ou tóxica. Entretanto, a necrose tubular isquêmica pode ter origem pré-renal como uma conseqüência da redução do fluxo, especialmente se houver comprometimento suficiente para provocar a morte das células tubulares. Assim, o aparecimento de necrose cortical irreversível pode ocorrer na vigência de isquemia severa, particularmente se o processo fisiopatológico incluir coagulação microvascular, como por exemplo, nas complicações obstétricas, acidentes ofídicos e na síndrome hemolítica e urêmica. As nefrotoxinas representam, depois da isquemia, a causa mais freqüente de IRA. Os antibióticos aminoglicosídeos, os contrastes urográficos e os quimioterápicos, como, por exemplo, a cisplatina, estão entre as drogas que podem causar dano tubular diretamente, embora também tenham participa- *Endereço para correspondência: Rua Botucatu, 740 04023-900 - São Paulo - SP Tel.: (0--11) 574-6300 - Fax: (0--11) 573-9652 E-mail: [email protected] ção substancial nas alterações da hemodinâmica glomerular. Por outro lado, drogas imunossupressoras como a ciclosporina e o FK 506, os inibidores da enzima de conversão da angiotensina e as drogas antiinflamatórias não-esteróides podem causar IRA por induzir preponderantemente modificações hemodinâmicas. A IRA em razão da nefrite intersticial é mais freqüentemente causada por reações alérgicas a drogas. As causas menos freqüentes incluem doenças auto-imunes (lúpus eritematoso) e agentes infecciosos (sepse, Hanta vírus). Apesar da predominância de um mecanismo fisiopatológico, a insuficiência renal aguda por drogas nefrotóxicas é freqüentemente causada por associação de um ou mais mecanismos, conforme sumarizado na tabela 1. Mais ainda, a associação de isquemia e nefrotoxinas é comumente observada na prática médica como causa de IRA, especialmente em pacientes mais graves. Tabela 1 MECANISMOS FISIOPATOLÓGICOS DE IRA ASSOCIADA A DROGAS Mecanismo predominante Droga Redução na perfusão renal e Ciclosporina, inibidores da enzima alterações na hemodinâmica conversora, antiinflamatórios nãorenal esteróides, contrastes radiológicos, anfotericina B Toxicidade tubular direta Antibióticos aminoglicosídeos, contrastes radiológicos, cisplatina, ciclosporina, anfotericina B, solventes orgânicos, metais pesados, pentamidina Toxicidade tubular rabdomiólise cocaína, etanol, lovastatina Obstrução intratubular precipitação Aciclovir, sulfonamidas, etilenoglicol, quimioterápicos Nefrite intersticial alérgica Penicilinas, cefalosporinas, sulfonamidas, ciprofloxacino, diuréticos tiazídicos, furosemida, cimetidina, alopurinol Síndrome hemolítica urêmica ciclosporina, mitomicina, cocaína, quinina GUIA PRÁTICO DE UROLOGIA Cap 13 - Insu renal Aguda.pm6 65 13/06/00, 13:13 65 A IRA pós-renal ocorre na vigência de obstrução do trato urinário. A obstrução das vias urinárias pode ser conseqüência de hipertrofia prostática, câncer de próstata ou cervical, e desordens retroperitoneais ou bexiga neurogênica (causa funcional). Outras causas de insuficiência pós-renal incluem fatores intraluminais (cálculo renal bilateral, necrose papilar, carcinoma de bexiga etc.) ou extraluminais (fibrose retroperitoneal, tumor colo-retal etc.). A obstrução intratubular também é causa de IRA, e pode ser conseqüência da precipitação de cristais como ácido úrico, oxalato de cálcio, aciclovir (droga antiviral) e sulfonamida, dentre outros. Vale salientar que a reversibilidade da IRA pós-renal se relaciona ao tempo de duração da obstrução. Curso clínico da IRA com ênfase na necrose tubular aguda (NTA) O curso clínico da IRA tem sido tradicionalmente subdividido em quatro fases distintas: fase inicial, fase de oligúria, fase de poliúria e fase de recuperação funcional. A fase inicial começa a partir do período de exposição a drogas nefróticas ou a um surto isquêmico. Sua duração é variável e depende do tempo de exposição ao agente causador. Nas situações de isquemia ela pode ser muito curta, enquanto no caso de drogas nefróticas a fase inicial pode durar alguns dias. O volume urinário pode estar normal ou diminuído, porém o rim começa a perder a adequada capacidade de excreção de compostos nitrogenados. A fase oligúrica é também variável em grau e duração. Uma vez que a produção de constituintes osmoticamente ativos é ao redor de 600 mOsm ao dia e a capacidade máxima de concentração urinária é de 1.200 mOsm/litro, um volume urinário inferior a 500 ml/dia é insuficiente para excretar as quantidades necessárias de soluto. Portanto, definimos oligúria como um volume urinário menor que 500 ml/dia. Nesta segunda fase da IRA o sedimento urinário pode conter hemácias, leucócitos e células epiteliais isoladas ou em cilindros, havendo também pequena perda protéica. Normalmente, a razão da concentração urinária sobre a concentração plasmática de uréia varia de 50-100:1. Na IRA, pela diminuição da concentração urinária e progressiva elevação sérica de uréia, a razão diminui para 10:1 ou menos, quanto maior e mais severa for a azotemia. Adicionalmente, por lesão tubular, a concentração urinária de Na é freqüentemente maior que 20 mEq/l, sendo este valor importante no diagnóstico diferencial de oligúria pré-renal. A maioria dos pacientes que se recuperam desenvolvem aumento do volume urinário após duas a quatro semanas do início da oligúria. Ocasionalmente o volume urinário não está diminuído na presença de IRA e azotemia. Nestas situações, refere-se a IRA como não-oligúrica e justifica-se a presença de volume urinário normal por uma grande elevação na fração de filtração de água apesar de pe- 66 Cap 13 - Insu renal Aguda.pm6 quena filtração glomerular, ou seja, apesar de uma filtração glomerular reduzida, a reabsorção tubular de líquido é pequena, ocorrendo um fluxo urinário não-oligúrico. Esse tipo de IRA é freqüentemente observado em associação com drogas nefróticas, sepse ou agentes anestésicos. A terceira fase, diurética, pode ser marcada por uma rápida elevação do volume urinário. A magnitude da diurese independe do estado de hidratação do paciente e habitualmente representa uma incapacidade de os túbulos regenerados reabsorverem sal e água. A excreção urinária de compostos nitrogenados não acompanha inicialmente o aumento da excreção urinária de sal e água. Como conseqüência, a concentração plasmática de uréia e creatinina continua a aumentar. Portanto, nessa fase, os sintomas urêmicos podem persistir e a indicação de diálise pode se tornar necessária, apesar do aumento do volume urinário. Considera-se crítica essa fase da IRA, com cerca de 25% de mortes no período de elevação da diurese. Ocasionalmente o volume urinário pode aumentar gradativamente, cerca de 100 a 200 ml/dia. Tal padrão é visto em pacientes com cuidadoso controle hidroeletrolítico e adequada indicação de tratamento dialítico. Entretanto, se após uma elevação inicial da diurese o volume urinário atingir um estágio constante e inferior ao normal, a recuperação total da função renal é menos provável. A última fase, a de recuperação funcional, ocorre após vários dias de diurese normal, com redução gradual de uréia e creatinina plasmática. Em cerca de 30% dos doentes ocorre uma discreta redução na filtração glomerular que pode persistir, sendo que uma minoria deles exibe contínua diminuição do “clearance” de creatinina em níveis inferiores a 20 ml/min. Em adição às anormalidades na função glomerular, defeitos tubulares podem persistir por meses ou anos, sendo o mais freqüente uma permanente deficiência na capacidade de concentração urinária. Alterações hidroeletrolíticas e envolvimento sistêmico Eletrólitos e água n Balanço de água - Normalmente as perdas de água atingem 0,5 a 0,6 ml por quilo de peso por hora no indivíduo adulto (850 ml/dia). Considerando a produção endógena de água – decorrente da oxidação de proteínas, gorduras e carboidratos – como sendo de 450 ml/dia, a ingesta de água no paciente oligúrico deve permanecer ao redor de 400 ml/dia, acrescida de volume igual à diurese emitida. Para se prevenir a hiponatremia dilucional por excessivo aporte hídrico, o peso do paciente deve ser mantido igual ou com perda de até 300 g/dia. n Balanço de sódio - Durante a fase oligúrica, um balanço positivo de sódio pode levar à expansão de volume, hipertensão e insuficiência cardíaca. GUIA PRÁTICO DE UROLOGIA 66 13/06/00, 13:13 Em contraste, um menor aporte de sódio, principalmente na fase poliúrica, pode provocar depleção de volume e hipotensão. Estes últimos podem retardar a recuperação da função renal. Acreditamos que durante a fase oligúrica a oferta de solução salina isotônica (300 ml/dia) associada a controle rigoroso de peso é suficiente para equilibrar o balanço de sódio. Paralelamente, na fase poliúrica, a monitorização hídrica e eletrolítica é necessária para a adequada reposição desses elementos. n Balanço de potássio - A hipercalemia é a principal causa metabólica que leva o paciente com IRA ao óbito. Considerando que somente 2% do potássio corporal total se encontra fora da célula, pequenas alterações no conteúdo extracelular de potássio provocam profundos efeitos na excitabilidade neuromuscular. A elevação do K sérico pode ocorrer na IRA por aumento do catabolismo endógeno de proteínas, por dano tissular e sangramento gastrintestinal, bem como por movimentação do K do espaço intra para o extracelular pelo mecanismo tampão de estados acidóticos. A mais temível complicação da hipercalemia é sua toxicidade cardíaca, manifestada por alterações eletrocardiográficas. Inicialmente, há o surgimento de ondas T pontiagudas, seguido de alargamento do complexo QRS, alargamento do intervalo PR e desaparecimento de onda P. Seguem-se, então, arritmias ventriculares que, se não prontamente corrigidas, podem levar rapidamente ao óbito. Por esta razão é necessário rigoroso controle eletrocardiográfico e de K sérico no paciente com IRA. Na presença de alterações eletrocardiográficas ou de severa hipercalemia (K > 6,5 mEq/l) algumas medidas terapêuticas devem ser utilizadas. A administração endovenosa de gluconato de cálcio 10% (10-30 ml) pode reverter prontamente as alterações verificadas, porém a duração é de poucos minutos. Se houver necessidade de efeito protetor mais prolongado, deve-se utilizar bicarbonato de sódio, caso esteja ocorrendo concomitantemente um estado acidótico. Adicionalmente, podem ser utilizadas resinas trocadas de K (kayaxalate ou Sorcal) e/ou solução polarizante contendo 200-500 ml de solução glicosada a 10%, com uma unidade de insulina simples para cada 5 g de glicose. A solução polarizante aumenta a captação de K pela célula e reduz seu nível plasmático. Assim, exceto as resinas trocadoras, kayaxalate (troca K por Na) ou Sorcal (troca K por Ca), todas as demais medidas terapêuticas resultam apenas no remanejamento do potássio extracelular para o intracelular, sem contudo diminuir o K corporal total. A hemodiálise e a diálise peritoneal, isoladas ou em associação com as medidas acima referidas, são freqüentemente requeridas para melhor controle eletrolítico e efetivamente diminuir o conteúdo corporal total de K. n Balanço de cálcio e fósforo - A hipocalcemia é o achado mais freqüente no desequilíbrio do balanço de cálcio. Tetania, espasmos musculares e acentuação dos efeitos cardiotóxicos da hipercalemia podem estar presentes. Ocasionalmente, os níveis de Ca podem estar normais ou elevados, ocorrendo este achado quando a IRA está associada a rabdomiólise ou a injúrias complicadas por calcificação metastática. A hiperfosfatemia também é um achado freqüente em pacientes com IRA, em decorrência de diminuição da filtração glomerular. O uso de quelantes de fosfato (hidróxido de alumínio) é ocasionalmente de interesse terapêutico para diminuir o risco de sangramento gastrintestinal, da hipocalcemia, da osteopatia e de calcificações metastásicas. Diagnóstico Avaliação clínica inicial As primeiras medidas devem ser consideradas no intuito de diferenciar IRA e IRC e determinar se a azotemia é devida a um fator prontamente remediável (depleção de volume, obstrução urinária) ou é decorrência de uma situação clínica intercorrente com IRA já estabelecida. Avalia-se no histórico do paciente a presença de doença sistêmica crônica (diabete ou lúpus, por exemplo). Posteriormente deve-se pesquisar doença sistêmica aguda (glomerulonefrite aguda), além de história de traumatismo recente como potenciais causas primárias de IRA. Adicionalmente, é necessário investigar antecedentes de uropatia obstrutiva (principalmente no homem idoso), uso de drogas nefrotóxicas, uso de drogas com potencial efeito de hipersensibilidade intersticial, bem como verificar a possibilidade de intoxicação acidental ou intencional por metais pesados, solventes orgânicos e outros. A seguir, é preciso obter informações a respeito de depleção hídrica (diurese excessiva, débito de sonda nasogástrica, drenos cirúrgicos, diarréia etc.) em pacientes com pouca ingestão voluntária de água ou que não tenham sido adequadamente hidratados, sobretudo pacientes hospitalizados. Além disso, se o paciente foi submetido a cirurgia recente, deve-se determinar qual o anestésico utilizado e quais intercorrências clínicas seguiram-se, como infecções, hipotensão, balanço hídrico negativo etc, assim como é preciso ter conhecimento sobre o uso de antibióticos (dose, número de dias utilizados) e se houve procedimento radiológico com utilização de meio de contraste no período que antecedeu o desenvolvimento da IRA. Durante o exame físico, avaliar adequadamente o estado de hidratação, através de peso corporal, turgor cutâneo, alterações posturais de pulso e pressão arterial, membranas mucosas e pressão intra-ocular. Entretanto, lembrar que há situações clínicas (cirrose, síndrome nefrótica, ICC) em que o volume extracelular está normal ou aumentado, porém com diminuição do volume sangüíneo efetivo, acarretando uma hipoperfusão renal e conseqüente IRA pré-renal. A seguir, avaliar a possibilidade de obstrução do trato urinário através de cuidadoso exame abdominal (globo vesical palpável, rins hidronefróticos), toque retal no homem (avaliação prostática) e exame ginecológico (bianual) na mulher (presença de massas GUIA PRÁTICO DE UROLOGIA Cap 13 - Insu renal Aguda.pm6 67 13/06/00, 13:13 67 pélvicas). Quando há suspeita de obstrução urinária baixa, proceder a uma cateterização vesical simples e estéril para confirmação diagnóstica. Observar a presença de febre e/ou erupções cutâneas macropapulares ou petequiais que possam sugerir nefrite intersticial aguda por hipersensibilidade a drogas. Por fim, avaliar o estado mental e padrão respiratório para verificar possíveis causas de intoxicação, bem como avaliar qualquer outro sinal clínico que sugira a presença de doença sistêmica como causa da IRA. Diagnóstico laboratorial A primeira amostra de urina emitida ou cateterizada de pacientes com IRA deve ser utilizada para avaliação de índices urinários diagnósticos. Medidas de sódio, uréia, creatinina e osmolaridade urinária, bem como uma amostra de sangue para análise de sódio, uréia e creatinina devem ser coletadas. Na IRA pré-renal a osmolaridade urinária é freqüentemente elevada (> 500 mOsm) enquanto na IRA renal ou pósrenal tende a ser isosmótica ao plasma (< 350 mOsm). O Na urinário costuma estar elevado (> 40 mEq/l) na IRA renal pela lesão tubular, enquanto na IRA pré-renal ele é baixo (< 20 mEq/l) em virtude da ávida retenção de Na e H2O pela hipoperfusão renal. As relações U urinária/U plasmática e C urinária/C plasmática estão freqüentemente elevadas na IRA pré-renal (> 60 e > 40 respectivamente) em decorrência da absorção tubular de Na e H2O e conseqüente aumento da concentração urinária de uréia e creatinina. Inversamente, esta relação está diminuída na IRA (< 30 e < 20 respectivamente) pela presença de dano tubular. É importante ter em mente que o uso de diuréticos pode invalidar a utilidade destes índices por até 24 horas. Valores intermediários podem ser encontrados tanto na IRA pós-renal como na transição de IRA prérenal para renal. A análise do sedimento urinário pode ser de auxílio no diagnóstico da IRA. Cilindros hialinos ocorrem mais freqüentemente na IRA pré-renal, enquanto cilindros granulosos e a observação de discreta leucocitúria e grande quantidade de células tubulares podem ser vistos na IRA (sedimento “sujo”) renal. A presença de hemácias dismórficas e/ou cilindros hemáticos sugere a existência de uma glomerulonefrite aguda, podendo ser acompanhada de proteinúria moderada ou elevada. Entretanto, proteinúria leve (traços) pode ser compatível com IRA pré-renal ou mesmo renal. Fitas reagentes urinárias positivas para o sangue, sem presença concomitante de hematúria no sedimento podem sugerir rabdomiólise com mioglobinúria, sendo esse diagnóstico fortalecido pela presença de CPK e aldolase elevadas no soro. Adicionalmente, diante da suspeita de nefrite intersticial aguda, a presença de eosinofilia no sangue periférico em associação com sedimento urinário contendo hematúria e leucocitúria (com predomínio de eosinófilos) pode sugerir fortemente esse diagnóstico. Diagnóstico por imagem O mais simples procedimento é a radiografia de abdome. Com ela obtemos informações a respeito do tamanho renal para procurar diferenciar a azotemia em aguda ou crônica. 68 Cap 13 - Insu renal Aguda.pm6 Tendo em vista a nefrotoxicidade dos meios de contraste, a urografia excretora vem sendo abandonada definitivamente em detrimento de métodos não-invasivos como a ultrasonografia que, além de nos fornecer o tamanho renal, nos dá informações a respeito de obstruções nas vias urinárias, presença ou não de cálculos, bem como avaliação do parênquima renal. Portanto, é possível diferenciar IRA de IRC e, adicionalmente, pela diferenciação da relação parênquima/sinusal e tamanho cortical, sugerir IRC com rins de tamanho normal (diabete, mieloma). Alternativamente, o uso da cintilografia renal pode auxiliar na avaliação da perfusão renal. Em casos de forte suspeita ou confirmação de obstrução urinária, estudos urológicos, como a cistoscopia e a pielografia ascendente, estão indicados. Além de ter fins diagnósticos (obstrução por cálculos, tumores ou coágulos) são úteis na colocação de cateteres ureterais para desobstrução e como avaliação pré-operatória nos casos de desvio do fluxo urinário. Biópsia renal A biópsia renal precoce (um a cinco dias) está indicada quando há suspeita de a IRA ser decorrente de uma doença sistêmica (por exemplo: vasculite), de uma glomerulonefrite aguda (por exemplo: lúpus), de uma nefrite intersticial aguda em que houver suspeita de necrose bilateral, ou na ausência de diagnóstico clínico provável. A biópsia nos fornecerá bases para justificar uma terapêutica mais agressiva (corticóides, agentes citotóxicos, plasmaferese) bem como nos trará uma indicação prognóstica pela avaliação histológica de componentes inflamatórios e fibróticos. Nos casos habituais de NTA aguarda-se de quatro a cinco semanas para recuperação da IRA antes de se proceder a biópsia. Se a deficiência de função renal se estender por esse período, indica-se então a biópsia renal para determinar se um diagnóstico menos favorável, necrose cortical por exemplo, não é causa da persistência da IRA. Tratamento Uso de diuréticos com finalidade preventiva A finalidade do uso de diuréticos no tratamento da IRA é uma questão incerta. Têm-se utilizado muito o manitol, a furosemida e o ácido etacrínico para reverter quadro de IRA estabelecida ou para encurtar seu curso natural. Acreditamos que em situações de risco para o desenvolvimento de necrose tubular aguda, a profilaxia com o uso de manitol deva ser utilizada. Em cirurgias extensas, com estudos radiológicos com altas doses de contraste, durante tratamento com anfotericina B, cisplatina e outras drogas nefrotóxicas, a administração de manitol pode reduzir o risco de desenvolvimento de NTA. Cuidados devem ser observados com manitol, uma vez que, por tratar-se de uma solução hipertônica, aumenta o volume plasmático e pode precipitar edema pulmonar. Entretanto, se o manitol não promover diurese, diuréticos de alça podem ser utilizados, com a vantagem de não causar expansão de volume. Os resultados são insatisfatórios, principalmente GUIA PRÁTICO DE UROLOGIA 68 13/06/00, 13:13 se a IRA já se estabeleceu há mais de 36 horas ou se a creatinina já é superior a 5 mg%. Deve-se estar alerta para o potencial efeito sinérgico na nefrotoxicidade e ototoxicidade dos aminoglicosídeos quando associados com furosemida e ácido etacrínico. Apesar dos possíveis e discutidos benefícios da terapêutica diurética, o cuidado clínico intensivo do estado de hidratação e equilíbrio eletrolítico deve ser a principal atenção médica ao paciente com oligúria. Tratamento da IRA pré-renal Quando a IRA decorrer de deficiência no volume extracelular, a reposição hídrica deve ser feita de modo a restabelecer a quantidade de líquido perdida, associando-se com adequada correção eletrolítica. Metade da deficiência hídrica estimada deve ser reposta nas primeiras 24 horas e, usualmente, o volume urinário aumenta dentro de quatro horas. Todavia, em pacientes idosos ou com doença renal prévia, a oligúria pode persistir por mais tempo. Nas situações em que a IRA pré-renal se deve à diminuição do volume sangüíneo efetivo, a terapêutica se orienta pela fisiopatologia da doença desencadeante, como referido abaixo: n ICC - Uso de inotrópicos positivos. Quando necessário, associar o uso de drogas vasodilatadoras para diminuir a pós-carga. Freqüentemente o uso combinado restaura a diurese por causa da melhor perfusão renal. Entretanto, em alguns pacientes pode haver persistência de algum grau de azotemia pré-renal, o que deve ser encarado pelo médico como um problema participante do quadro clínico e perfeitamente controlável. n Síndrome nefrótica - A terapêutica mais racional é orientada para a correção da doença de base, seja pelo uso de corticóides ou de drogas citotóxicas. Entretanto, em determinados estados patológicos primários que se manifestam por síndrome nefrótica (glomerulonefrite membranosa, diabete), o tratamento pode se restringir somente ao controle de hidratação e uso criterioso de diuréticos. n Cirrose - Evitar desequilíbrios hemodinâmicos é fundamental para impedir a evolução do paciente cirrótico para síndrome hepatorrenal. Quando já estabelecida, o prognóstico se torna muito pobre com evolução para óbito em mais de 90% dos casos. Em situações de oligúria, cuidadosa expansão salina e uso de espironolactona, isoladamente ou em associação com furosemida, melhoram a diurese em até 80% dos doentes. Freqüentemente a observação do paciente com azotemia pré-renal é feita apenas com o exame clínico. Entretanto, monitorização invasiva pode ser necessária quando vigorosa terapia hídrica é requerida ou se desconheça a tolerância do paciente a grandes reposições de volume. Nessas situações indica-se a utilização de cateter venoso central para medida de pressão venosa de átrio direito (PVC), ou mesmo um cateter de Swan-Ganz (pressão do capilar pulmonar) para melhor avaliação hemodinâmica. Tratamento da IRA renal Como referimos anteriormente, diuréticos de alça ou manitol podem ser utilizados para diagnóstico. Atualmente, a maior parte das observações sugere que não há benefício na utilização destes medicamentos após estabelecida a IRA, e que uma vez caracterizado tal quadro, rigoroso controle hidroeletrolítico deve ser mantido. A reposição de volume deve ser restringida a 400 ml/dia, acrescida do débito urinário. O balanço de sódio deve ser controlado através de uma dieta pobre em Na (1 g/dia) nos pacientes que não estão sendo submetidos a diálise; porém, pode haver maior liberdade (até 3 g/dia) em relação àqueles que já estão em programa dialítico. Adicionalmente, deve-se corrigir eventual acidose quando o pH plasmático estiver menor do que 7,25 ou HCO3 inferior a 12 mEq/l. É necessário manter em limites normais o nível plasmático de K, através das medidas terapêuticas anteriormente discutidas. Lembrar de ajustar todas as drogas que tenham alteração de seu metabolismo pela presença de alteração na função renal, com destaque para digitálicos e aminoglicosídeos. Ainda há controvérsias a respeito da dieta a ser instituída para pacientes com IRA e retenção de compostos nitrogenados. O principal responsável pela liberação orgânica de resíduos de nitrogênio é o metabolismo de proteínas, resultando em elevação da carga de uréia, de ácidos metabólicos (sulfatos, fosfatos, ácidos orgânicos) e de potássio. Inicialmente, devemos considerar que 100 g/dia de carboidratos são suficientes para diminuir o catabolismo protéico. Além disso, o suprimento adicional de calorias na forma de gorduras e de quantidades adequadas de proteína previne um balanço nitrogenado negativo. Quando o suprimento correto de carboidratos é fornecido em associação com proteínas que contenham aminoácidos de alto valor biológico (essenciais), ocorre um balanço positivo de nitrogênio, com a vantagem de a uréia e outros compostos nitrogenados serem utilizados para a síntese de aminoácidos não-essenciais. Ocorre então concomitante melhora dos sintomas clínicos e diminuição na concentração plasmática de uréia. Portanto, uma dieta com 1.800 a 2.500 kcal/dia e 0,5 g/kg/dia de proteína de alto valor biológico é aconselhável para pacientes com IRA que estejam com boa aceitação oral. Nas situações em que for necessária a utilização de nutrição parenteral, glicose hipertônica e aminoácidos essenciais devem ser administrados. Diferentemente, alguns autores sugerem que a quantidade de proteínas fornecidas deve ser mantida normal (1 g/ kg/dia) e a diálise realizada quando necessário. Haveria menor risco de desnutrição e menor incidência de processos infecciosos. Realmente, quando há estados hipercatabólicos, a necessidade protéica pode se elevar. Nessa situação, a utilização da dieta com aminoácidos totais (essenciais e não-essenciais) parece manter melhor o estado nutricional do paciente com IRA. A diálise peritoneal tem um importante papel no trataGUIA PRÁTICO DE UROLOGIA Cap 13 - Insu renal Aguda.pm6 69 13/06/00, 13:13 69 mento da IRA. As indicações para o seu uso incluem situações que não podem ser controladas por terapêutica clínica conservadora. As principais são: n Uremia • sistema nervoso central: asterixis, sonolência, coma e convulsões; • gastrintestinal: náuseas e vômitos intratáveis e hemorragia digestiva; • cardíaco: pericardite urêmica. n Hipervolemia edema pulmonar e hipertensão arterial incontrolável. n Alterações metabólicas hipercalemia, acidose metabólica severa e hiponatremia dilucional acentuada (Na < 125 mEq/l). Diálise precoce e freqüente deve ser utilizada para manter uréia abaixo de 180 mg% e creatinina inferior a 8 mg%. Esses níveis previnem os sintomas clínicos da uremia, melhoram o estado nutricional do paciente e podem, discutivelmente, diminuir o risco de sangramento e infecções. A escolha entre diálise peritoneal ou hemodiálise e a definição da freqüência de utilização é muitas vezes difícil. A diálise peritoneal é certamente mais efetiva em pacientes que não estejam hipercatabólicos. Oferece vantagens pela simplicidade, mínimo risco de sangramento, pouca chance de ocorrer hipotensão ou síndrome do desequilíbrio da diálise, além de ser relativamente fácil a remoção de líquido do fluido extracelular. A diálise peritoneal também é mais indicada para pacientes com doença cardiovascular instável e pacientes diabéticos. Para diabéticos, a não-anticoagulação sistêmica diminui o risco de ruptura de microaneurismas retinianos. Nos cardíacos, menor chance de arritmias, angina pectoris e infarto são observados pela ausência de súbitas alterações da pressão arterial e de eletrólitos, que podem acometer os pacientes submetidos a esse processo, diferentemente da hemodiálise. A diálise peritoneal deve ser instalada e mantida por um período médio de 24 a 36 horas, com dois litros por banho (ou menos, se ocorrer desconforto respiratório), com permanência na cavidade por 30 a 60 minutos. Embora os cateteres convencionais possam ser colocados na cavidade peritoneal quantas vezes forem necessárias, o implante cirúrgico ou mesmo manual de um cateter fixo de Tenckhoff (o mesmo da diálise peritoneal ambulatorial contínua - CAPD) permite repetidas sessões de diálise por várias 70 Cap 13 - Insu renal Aguda.pm6 semanas, com a vantagem de não se manusear freqüentemente a cavidade abdominal. Há também menor incidência de infecções peritoneais por ser possível utilizar um sistema completamente fechado. Pacientes com significativa destruição tissular (rabdomiólise, traumatismo, queimadura, septicemia, pós-operatório de cirurgias extensas) têm elevada produção de uréia e usualmente necessitam de hemodiálise quando se apresentam com IRA. A hemodiálise também está indicada em quadros de IRA por intoxicação exógena por metanol e etilenoglicol, devido à sua capacidade de remover toxinas rapidamente. O acesso vascular pode ser um “shunt” periférico ou preferencialmente um cateter em veia central. A hemodiálise deve ser mantida por até quatro horas e diariamente, se for necessário. O maior perigo é o sangramento e, portanto, em pacientes de alto risco, doses reduzidas de heparina ou heparinização regional devem ser utilizadas. As complicações hidroeletrolíticas são semelhantes à da diálise peritoneal, porém ocorrem mais agudamente e, assim, requerem pronto tratamento. Nos últimos anos, procedimentos dialíticos ditos “especiais e contínuos” têm conquistado espaço como instrumentos terapêuticos para reposição da função renal na IRA. O surgimento de membranas de alta permeabilidade (poliacrilonitrila, polissulfona etc.) permite que elevadas taxas de ultrafiltração sejam alcançadas e que a diálise por convecção seja realizada continuamente. Assim, a ultrafiltração isolada contínua lenta (SCUF) é capaz de retirar mais de 7 l/dia de líquido, o que garante um “clearance” ao redor de 5 ml/min. Desse modo, a reposição pode ser feita com eletrólitos, drogas vasoativas, colóide e, principalmente, NPP, sem que haja sobrecarga de volume ou a necessidade de freqüentes hemodiálises. Na situação de hipercatabolismo, na qual a ultrafiltração isolada (convecção) não é capaz de manter a uremia sob controle, associa-se a passagem de banho de diálise pelos filtros de alta permeabilidade (difusão). Realiza-se então a hemodiálise contínua lenta a qual engloba convecção e difusão como métodos dialíticos com conseqüente maior capacidade de dialisância e melhor controle da uremia. Esses procedimentos contínuos necessitam de acesso vascular, arteriovenoso ou venovenoso, seja por punção e colocação de cateteres ou pela instalação de um “shunt”. Em todas as situações há a necessidade de heparinização sistêmica ou regional e de rigoroso controle hidroeletrolítico. A grande vantagem dos procedimentos “especiais e contínuos” é justamente a facilidade de realização associada à menor instabilidade hemodinâmica que eles geram pelo fato de serem lentos e contínuos, mimetizando assim a função renal normal. Além disso, parece que a possibilidade de administração de nutrição adequada em volumes necessários pode determinar melhor controle dos pacientes. GUIA PRÁTICO DE UROLOGIA 70 13/06/00, 13:13 Bibliografia recomendada 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. DILON JJ. Continuous renal replacement therapy or hemodialysis for acute renal failure? Int J Artif Organs 1999; 22(3): 125-7. HIRSCHBERG R, KOPPLE J, LIPSETT P et al. 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