0 UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL CAMPUS DO PANTANAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO EM EDUCAÇÃO TAMMI FLÁVIE PERES BORGES “TODO MUNDO TÁ FELIZ?” AS PERCEPÇÕES DAS CRIANÇAS SOBRE A EDUCAÇÃO INFANTIL NAS PESQUISAS CIENTÍFICAS BRASILEIRAS CORUMBÁ-MS 2015 1 TAMMI FLÁVIE PERES BORGES “TODO MUNDO TÁ FELIZ?” AS PERCEPÇÕES DAS CRIANÇAS SOBRE A EDUCAÇÃO INFANTIL NAS PESQUISAS CIENTÍFICAS BRASILEIRAS Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Educação - Área de concentração Educação Social – Mestrado, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Campus do Pantanal, como exigência para a obtenção do título de Mestre em Educação. Orientadora: Profª. Drª. Anamaria Santana da Silva. CORUMBÁ-MS 2015 2 Dissertação intitulada “Todo mundo tá feliz?” As percepções das crianças sobre Educação Infantil nas pesquisas científicas brasileiras, apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Educação, área de concentração em Educação Social, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campus do Pantanal, como requisito para obtenção do Título de Mestre em Educação. Aprovada em: ___/___/____ BANCA EXAMINADORA _____________________________________________________ Profª. Drª. Anamaria Santana da Silva (Orientadora) (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS) _____________________________________________________ Profª. Drª. Silvia Helena Vieira Cruz (Membro Titular) (Universidade Federal do Ceará - UFC) _____________________________________________________ Profª. Drª. Ana Lucia Espíndola (Membro Titular) (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS) _______________________________________________________ Profª. Drª. Regina Aparecida Marques de Souza (Membro Suplente) (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS) CORUMBÁ-MS 2015 3 A todos os bebês e crianças pequenas que sonham com uma Educação Infantil recheada de qualidade 4 AGRADECIMENTOS Muito sonhei com o realizar desta tarefa... Esta dissertação é fruto de intensos esforços, mas estes, sem dúvida, foram extremamente gratificantes. No tempo de sua edificação, contei com a presença direta e indireta de muitas pessoas que, às suas maneiras, contribuíram com orientações, apoios, inventivos, amparos, cuidados, agrados, paciência, olhares, escutas... A todas elas serei eternamente grata... À minha orientadora, Anamaria Santana da Silva, por tudo o que me ensinou sobre infâncias, crianças e educação infantil, por tudo o que compartilhou nesta e em outras experiências de pesquisa; por suportar minhas “inquietudes” muitas vezes revestidas de “ansiedade”; pela atenção, amizade e confiança e, especialmente, por mais uma vez aceitar o desafio de orientar um estudo fruto de um desejo inesperado. À professora Silvia Helena Vieira Cruz, pela generosidade e disponibilidade com que contribuiu para a construção desta dissertação e pela competência e dedicação notável nos estudos que realiza com crianças, razões de meu respeito e admiração. À professora Ana Lucia Espíndola, que, desde o primeiro momento, aceitou o convite para embarcar nesta viagem científica rumo a uma Educação Infantil diferente das que costuma fazer nos caminhos da Alfabetização, mostrando-se totalmente pronta para compartilhar o muito que sabe. À amiga Silvia Rodrigues, por não medir esforços para não me deixar desistir de iniciar e concluir esse projeto; por me estender a mão e, com olhar atento, ouvidos cuidadosos e dizeres perspicazes, não se negar a responder as minhas questões infindáveis; pelo muito do que me ensinou da “vida” e de “afetividade”. Ao Bruno Marini, meu amigo de fé, meu irmão camarada, por tudo o que aprendemos e vivenciamos ao longo desses dois anos juntos; por aturar as minhas oscilações de humor, pelos inúmeros agrados e cuidados e, especialmente, pela irmandade que levarei sempre comigo, do lado esquerdo do peito. À minha família, por mais uma vez apoiar as minhas decisões e alimentar os meus sonhos. Ao meu pai, à minha mãe e ao meu irmão, porque, mesmo distantes, se fizeram presentes nos incentivos ou amparos naqueles momentos tempestuosos que me impediam de querer ir adiante e, sobretudo, por estarem sempre dispostos a me ouvir e a me amar com todas as minhas idiossincrasias. À minha avó Sebastiana, ao meu avó Nego Maia e às minhas primas Maíra e Naísa, por suportarem a saudade e não deixarem de acreditar que eu concretizaria mais 5 esta etapa. À minha avó Cornecy (in memoriam) e ao meu tio Felix (in memoriam), que em vida me garantiram lembranças envoltas com muito amor. Ao meu amado Anderson Queiroz, pelas palavras de incentivo diárias e por suportar com paciência todas as minhas ausências. À minha sogra, Noêmia, e ao meu sogro, Wilson, que por vezes viabilizaram “mimos e agrados” para amenizar o peso dos dias intensos de reflexões e escrita. Às amigas Fátima Ribeiro e Arlei Guedes, que, durante esse percurso, não deixaram de me amparar, cuidar e motivar, pela presença constante e pelos auxílios dispendidos a mim e ao meu projeto de vida. Às queridas Danielle Thaís e Jordana Cristielly pela amizade sincera e permanente, por ouvirem com paciência as minhas lamúrias, acadêmicas ou não, pelos apoios e zelos constantes e pela doçura com a qual me cuidam mesmo à distância. Aos queridos vizinhos Alexandre Cougo, Leandro da Costa, Eiza Nágila e Fabiana Portela, pelas angústias e conquistas acadêmicas divididas pelos corredores da “nossa” vila. A toda a equipe do Centro de Educação Infantil Profª. Hélia da Costa Reis, sobretudo à Gestora Janil Souza, pelo incentivo e pelos vários momentos de apoio que viabilizaram esta escrita; às Coordenadoras Luciene e Regina, pela compreensão e confiança; às professoras Silvana, Arlei, Cássia, Luiza, Gilce, Jeonilce, Elaine, Marivânia, Laura e à estimada cozinheira Fátima, pelos amparos emocionais, momentos de descontração e torcida para a finalização desse trabalho. Às amigas corumbaenses Paula Moron, Tia Tami, Mariane Mesquita, Silvia Baracat e Caroline Mônaco, pelo carinho, pela força e pela amizade que espero levar por onde for.... A todo o corpo docente e administrativo do Programa de Pós-Graduação em Educação – UFMS/CPAN. Aos meus colegas do curso de Mestrado em Educação - UFMS, Layze Cassanha, Camila Leijoto, Simone Yara, Elzanir Leandro, Telma, Bruno Marini, Jeane Cristina, Vanessa Costa, Francisca Stefanelli, Valéria Cabral e, em especial, à doce Cristine Rocha (in memoriam), o meu “obrigada” pelos momentos de elaborações intelectuais e descontrações filosóficas. À Elisa, por me ouvir, me confortar e me incentivar a não desistir desta caminhada... A todas as crianças de quem, embora as desconheça pessoalmente, me tornei “íntima” por terem se disponibilizado a falar sobre a EI, e aos pesquisadores que se dedicaram a ouvilas. Aos meus afilhados, Luís Felipe e Eloah, por encantarem e colorirem a minha vida e por preencherem-na com amor verdadeiro. 6 Às “minhas” crianças, turminha com a qual convivo no CEI, pelas inúmeras experiências vividas, brincadas, cantadas e compartilhadas no decurso deste ano e por amenizarem os meus momentos de “cansaço” com sorrisos, carinhos e flores. Muitas flores... À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, pela assistência financeira. 7 Os adultos pensam que nos conhecem muito bem. O que pode haver de interessante numa criança? Viveu pouco, pouco sabe, pouco entende. Mas todos esquecem como eram quando crianças, e pensam que de repente são inteligentíssimos. Janusz Korczak 8 RESUMO Este trabalho, vinculado à linha de pesquisa Políticas, Práticas Institucionais e Exclusão/Inclusão Social, apresenta os resultados de uma investigação acerca das percepções das crianças sobre a instituição de Educação Infantil (EI). Estudos recentes, advindos de diversas áreas do conhecimento, com destaque para aqueles orientados pela Sociologia da (SI) têm gradualmente reforçado e complementado a concepção da criança como ser competente, ativo, crítico e comunicativo, consequentemente capaz de se posicionar a respeito das situações e relações que mais diretamente a afetam. Desse modo, com base nos pressupostos teóricos que ancoram esta abordagem, buscou-se conhecer as opiniões das crianças, sobre EI, trazidas nas pesquisas científicas brasileiras, estabelecendo os seguintes objetivos específicos: verificar a dimensão quantitativa dos trabalhos que ouviram crianças sobre EI produzidos entre os anos de 2003 a 2012 e disponibilizados no Portal da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES); apreender as percepções das crianças de diferentes contextos do país, referentes às instituições de EI, trazidas nesses trabalhos (aspectos positivos e aspectos negativos); identificar quais são os elementos importantes e necessários da EI para as crianças, em termos pedagógicos e de infraestrutura (reivindicações), apontados nos textos. Para a realização da pesquisa, orientada por uma abordagem qualitativa, fez-se um levantamento, do tipo “Estado do conhecimento”, de teses e dissertações produzidas em programas de pósgraduação em Educação, produzidas no período entre os anos de 2003 e 2012 e disponibilizadas no Portal da CAPES, que ouviram as considerações das crianças sobre a EI. Foram localizados vinte e três trabalhos sobre a temática e, a partir da análise das opções metodológicas, identificou-se que: as pesquisas abrangeram variados contextos; as crianças na idade préescolar foram privilegiadas nas escutas; os pesquisadores adotaram vários instrumentos e procedimentos metodológicos para captar as perspectivas das crianças, valendo-se do conhecimento das múltiplas formas de expressão infantis. A sistematização dos dados evidenciou que as crianças apontaram, em todos os textos, aspectos que consideravam positivos e negativos sobre a EI, no entanto suas reivindicações foram contempladas em dezesseis trabalhos. Embora todas as pesquisas aspirassem olhar para a qualidade nas instituições de EI, certos pontos centrais foram determinados para conduzir algumas das investigações: espaços, tempo/rotina, relações/interações e o brincar. Assim, as crianças revelaram as suas perspectivas com base nos recortes propostos pelos pesquisadores, e, por esse motivo, algumas questões foram contempladas em maior dimensão do que outras. As crianças anunciam que gostam da EI e das diversas possibilidades que esse contexto lhes oferece: brincar, aprender, conviver com diferentes pares e adultos, comer, entre muitas outras. Todavia, elas também denunciam que essa vivência é atravancada por práticas pedagógicas que não levam em conta as suas reais necessidades e desejos. Portanto, constatou-se que, nas suas reivindicações para a EI, elas desejam, somente, poder vivenciar com qualidade tudo o que já têm garantido por direito e que está prescrito nos documentos que regem a EI. Ou seja: é necessário que as prescrições saiam do papel e que se lhes faça, cotidianamente, uma visita. Palavras-chave: Crianças. Educação Infantil. Sociologia da Infância. Estado do Conhecimento 9 ABSTRACT This work, linked to the line of research Policies, Institutional Practices and Social Exclusion/Inclusion, presents research findings about children's perceptions of childhood education institution (EI). Recent studies, coming from different areas of knowledge, especially those driven by the sociology of childhood, has gradually strengthened and complemented the conception of the child as competent, active, critical and communicative thus able to position about the situations and relationships that most directly affect it. Thus, based on theoretical assumptions of this approach, we sought the views of children on EI, brought in Brazilians scientific research, establishing the following specific objectives: to assess the quantitative dimension of the work that children heard about EI produced between the years 2003-2012 available on the Portal of Higher Education Personnel Improvement Coordination (CAPES); grasp the perceptions of children of different country contexts related to EI institutions brought these works (positives and negatives); identify what are the important and necessary elements of EI for children in education alters and infrastructure (claims) indicated in the texts. For its realization, through qualitative approach, there was a literature view of the "state of knowledge" theses and dissertations produced in the Graduate Program in Education who heard the children's consideration of the EI produced in the period between 2003 and 2012 available in the portal of CAPES. Twenty-three works on this them ewe relocated. From the analysis of methodological options it was identified that: research covered different contexts; children in preschool were privileged in tapping; there searchers adopted several instruments and methodological procedures to capture the perspectives of children, taking advantage of the knowledge of the multiple forms of children's speech. The systematization of the data showed that children pointed in all aspects texts they considered positive and negative about EI, however, their claims were included in sixteen jobs. While all research aimed at looking for quality in ECE institutions, certain central points were determined to conduct some investigations, such as space, time / routine, relationships / interactions and play. So children revealed their prospects based on cuts proposed by their searchers, and for this reason, some issues have been addressed in larger than others. Children announce who like EI and the various possibilities that this context to offers them, play, learn, socialize with different peers and adults, eat, and many others. However, they also report that this is cluttered experiences for pedagogical practices that do not take into account their real needs and desires. Therefore, it was found that their demands for EI they want, only be able to live with quality everything they have already guaranteed by law and what is prescribed in the documents govern in the EI. I e you need is out of paper and ask them, everyday, a visit. Keywords: Children, Childhood Education, Sociology of childhood. Statement of Knowledge 10 SUMÁRIO “AI EU ENTREI NA RODA, PARA VER COMO SE DANÇA...” PALAVRAS INICIAIS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12 1.1 “Vai abóbora, vai melão, de melão, vai melancia...” Apresentando a temática: problema, referencial, concepções e intenções. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14 1 ERA UMA CASA MUITO ENGRAÇADA NÃO TINHA TETO, NÃO TINHA NADA...” ENTRELAÇANDO REFLEXÕES SOBRE HISTÓRIA, INFÂNCIA E EDUCAÇÃO INFANTIL. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17 2.1 “Ninguém podia entrar nela não, porque na casa não tinha chão...” Aspectos históricos da institucionalização da infância. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17 2.2 “Mas era feita com muito esmero...” Educação Infantil: passos e impasses legais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25 2 “CIRANDA, CIRANDINHA, VAMOS TODOS CIRANDAR...” SOCIOLOGIA DA INFÂNCIA COMO AREA DE CONHECIMENTO: GÊNESE, RUPTURAS, DESAFIOS E PERSPECTIVAS DO CAMPO EMERGENTE. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34 3.1 “Já passou a chuva, o sol já vai surgindo...” Criança e Infância sob a perspectiva do novo paradigma sociológico: a evolução do objeto e a autonomia conceitual. . . . . . . . 35 3 3.2 “Guerreiros, com guerreiros, fazem zigueziguezá” O contexto originário e os autores expoentes. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39 3.3 “Poti, poti, perna de pau, olho de vidro e nariz de pica-pau, pau pau...” Perspectivas teóricas: categorias e correntes. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 44 3.4 “Motorista, motorista, olha a pista, olha a pista” A Sociologia da Infância no Brasil: um campo de estudos em construção. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51 “PELA ESTRADA AFORA, EU VOU BEM SOZINHA...” CAMINHOS TRILHADOS E MATERIAL ENCONTRADO NO PERCURSO. . . . . . . . . . . . . . . 58 4.1 “Ela mora longe e o caminho é deserto...” A configuração do estudo e o percurso metodológico. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58 4.2 “Achei linda morena, que no Tororó deixei...” O levantamento de fontes. . . . . . . . . . . . 60 4 4.3 “Como poderei viver, sem a tua companhia, é por isso que eu reclamo dessa tua companhia...” Pesquisas com crianças sobre Educação Infantil: contextos, estratégias e sujeitos ou, onde, como e com quem. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 62 “OLHOS, ORELHAS, BOCA E NARIZ...” SENTIDOS, SENSAÇÕES E SONHOS A RESPEITO DA EDUCAÇÃO INFANTIL CONFORME OS DONOS DESSE DIREITO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69 5.1 “Palma, palma, palma, pé, pé, pé, viva a nossa escola que bonita que ela é!” Aspectos positivos da Educação Infantil para as crianças. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69 5.2 “A canoa virou, quem deixou ela virar...?” Aspectos negativos da EI para as 5 crianças.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79 11 5.3 “Se essa rua, se essa rua fosse minha, eu mandava eu mandava ladrilhar, com pedrinhas, com pedrinhas de brilhante...” Reivindicações das crianças para a EI que idealizam... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 88 6 “VAMOS DAR A MEIA VOLTA, VOLTA E MEIA VAMOS DAR...” PALAVRAS FINAIS... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95 REFERÊNCIAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105 APENDICE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113 APENDICE A – Referencias dos trabalhos analisados . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 114 12 1 “AI, EU ENTREI NA RODA, PARA VER COMO SE DANÇA...”1 PALAVRAS INICIAIS Muitas foram as emoções e razões que me guiaram até esse projeto, que, para além de uma realização profissional, também se destaca em meio aos meus planos pessoais. Dessa forma, por ora, dedico-me à exposição das experiências significativas que me conduziram ao encontro e súbito envolvimento com a temática estudada.2 Desde os quatro anos, idade em que fui inserida no contexto educativo da Educação Infantil, a profissão docente já me afetava de forma bastante positiva. O prazer em estar ali compartilhando as tardes com outras crianças e com aquela adulta diferente, tão dedicada a nos ensinar, despertava em mim a vontade de “ser professora”. E assim, durante um bom tempo, essa foi a resposta dada à insistente pergunta que me faziam os adultos: “O que você vai ser quando crescer?” Anos mais tarde, um misto de emoções me tomava por conseguir concretizar o primeiro passo rumo à profissão que desde muito cedo almejei. Universidade, Pedagogia, quantas utopias e curiosidades me moviam... Nesse espaço de formação, encontros e desencontros, dúvidas e certezas fizeram-se presentes; no entanto as disciplinas que tratavam da(s) criança(s) e da(s) infância(s) em seus aspectos mais amplos (desenvolvimento, aprendizagem, educação, socialização) logo no primeiro ano me encantaram... Ao longo dos quatro anos de graduação, fui-me constituindo uma nova pessoa, conheci a pesquisa e me apaixonei pela Educação Infantil (EI). Desse modo, no segundo ano do curso participei da proposta de elaboração e da efetivação de um grupo de estudos denominado GEPIEI- Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Infância e Educação Infantil 3. Esse ambiente proporcionou-me, além de trocas enriquecedoras, a configuração de um novo olhar acerca da temática estudada, gerado a partir do encontro com os postulados da Sociologia da Infância (SI)4, um novo campo de estudo, constituído a partir de 1980. Do encantamento imediato com essa abordagem que concebe a criança como um ser completo, competente, ativo, crítico e comunicativo, consequentemente capaz de se posicionar a respeito das situações e relações que mais diretamente a afetam, surgiu a audaciosa vontade Trecho da cantiga: “Ai, eu entrei na roda” autoria desconhecida. Neste momento, peço licença aos leitores para escrever na primeira pessoa do singular, relatando certas experiências pessoais. 3 O grupo em questão ainda se reúne quinzenalmente na UFMS-CPAN, no LAPEIC- Laboratório de Pesquisa e Estudos sobre Infância e Criança-, e, mesmo após a minha formação, continuo participando dos encontros. 4 A SI buscaresgatar a infância das perspectivas que a compreendem como um simples período maturacional do desenvolvimento humano que se construiria independentemente das condições históricas, culturais e sociais dos indivíduos. Sobre esta questão, conferir Borba (2008). 1 2 13 de aceitar o desafio de privilegiar, no meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC)5, a escuta de crianças a respeito das suas concepções e perspectivas sobre a EI. Em suma, ouvir as crianças pequenas no estudo mencionado reforçou a ideia das suas competências, assim como apontou para a necessidade imprescindível de que sejam eleitas informantes fundamentais sobre seus processos de vida e seus contextos particulares de desenvolvimento e aprendizagens. (OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2008). Concluída a graduação, sentia-me no ápice do esplendor: ora, pois! Era formalmente, cientificamente, apaixonadamente, Pedagoga! A defesa do TCC caracterizava o fim dessa etapa de formação e a ratificação da certeza de que esse processo deveria ser continuado e (re)significado constantemente em minha vida. E assim tem sido... Concomitantemente à minha entrada no Mestrado, iniciei a jornada em um Curso de Especialização em Docência na Educação Infantil6 e, alguns meses depois, fui conclamada a tomar posse e assumir um concurso municipal no cargo de Professora de EI em um Centro de Educação Infantil (CEI). Após a etapa de qualificação desse trabalho de mestrado, concluí o curso de Especialização e continuei com os estudos que me dão bases epistemológicas para a (re)significação da minha prática docente, em tempos em que há a exigência de uma nova postura diante da realidade educacional... Destarte, buscando uma aproximação com o universo lúdico da EI e com as experiências brincadas, cantadas e compartilhadas por bebês e crianças nesse contexto, decidi trazer, nos títulos que compõem esta dissertação, músicas6 e cantigas de roda7 infantis que, cotidianamente, embalam as vivências desses sujeitos em muitas instituições8... Conferir: SOUZA, T. F. P. B. A escola dos “meus” sonhos: há “luxo” no fim do túnel? 2011. 49f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Pedagogia). Universidade Federal do Mato Grosso do Sul – Campus do Pantanal, Corumbá, 2011. 6 O trecho escolhido para o Título da dissertação faz parte da música: “Tindolelê”, composta por Cid Guerreiro. 7 Convém destacar que as cantigas de roda no Brasil possuem grande influência europeia e africana e, por esse motivo, não se tem fácil acesso aos nomes dos compositores. Desse modo, os trechos das cantigas utilizadas ao longo do texto são identificados com os títulos originais e os nomes dos compositores encontrados. 8 A respeito da importância das cantigas de roda na educação infantil, conferir Ribeiro e Euzebio (2013). 5 14 1.1 “Vai abóbora, vai melão, de melão, vai melancia...”9 Apresentando a temática: problema, referencial, concepções e intenções A problemática deste estudo teve origem na realização do referido TCC, consideradas as novas inquietações e a necessidade de continuar no caminho do aprofundamento teóricometodológico da/na área escolhida, advindas desta experiência. Ouvir as crianças pequenas sobre uma determinada realidade de EI levou-me a refletir sobre as possíveis e múltiplas opiniões que poderiam ter decorrido da escuta dos sujeitos inseridos nessa etapa educacional por todo o país. Dessa forma, o despertar de um olhar sensível para a(s) infância(s) e a(s) criança(s), adquirido pelo contato com o referencial teórico da SI, inspirou-me a seguir adiante com a pretensão de conhecer, de modo mais abrangente, as percepções das crianças pequenas acerca de suas experiências dentro do contexto educativo, não por meio do discurso adulto, mas pelo ponto de vista destas, na condição de porta-vozes de si próprias, evidenciado nas produções científicas que se dedicaram a ouvi-las. Em consonância com a perspectiva teórica adotada, assumo então a criança como um ser completo em si mesmo, detentor e produtor de saberes e culturas, ou seja, ator social pleno e de direitos, e a infância como categoria social e plural – infâncias –, tendo em vista a diversidade de características dos contextos que a diferem. Posto isso, faz-se importante também explicitar o entendimento de Educação Infantil, uma vez que ela representa o pano de fundo das discussões e reflexões a serem tecidas nesse estudo. Entendo-a, pois, como espaço coletivo infantil que prevê a possibilidade de múltiplas experiências significativas com base na socialização, confronto e convívio com as diferenças (FINCO, 2010) e, ainda, como contexto em que perpassam as funções indissociáveis de cuidar e educar concernentes aos direitos e às necessidades das crianças. Nessa perspectiva, cabe ainda apontar que, mesmo sendo um direito da criança, a EI exprime as compreensões e expectativas dos adultos, tendo em vista que a sua conquista é resultado de intensas lutas e mobilizações desses, que a pensaram “para” – e não “com” – os sujeitos a quem se destinaria. Destaca-se que, desde a determinação, na Carta Constitucional de 1988, do atendimento nesse espaço como um direito da criança, vários pesquisadores brasileiros dedicaram-se a discuti-lo de pontos de vista diversos e com o enfoque para várias questões: história (KUHLMANN JR., 1998; MONARCHA, 2001; MERISSE; 1997) política (KRAMER, 2006; 9 Trecho da cantiga “Vai abóbora”, de autoria desconhecida. 15 ROSEMBERG, 1992; SILVA, 1997), identidade e especificidades – cuidar e educar (CERISARA, 1999; CAMPOS; 1994), qualidade (CORREA, 2003; CAMPOS; FULLGRAF; WIGGERS, 2006), entre outros. Nos dias atuais, é possível afirmar que a EI brasileira conta com um distinto olhar para a discussão das suas especificidades e respectivas reflexões: o da criança. Isso se vem tornando possível a partir do esforço de pesquisadores que, especialmente embasados pelas novas perspectivas propostas tanto pela SI, como pela Pedagogia da Infância 10, subvertem a lógica da condição de subalternidade, com o intuito de valorizar e efetivar o direito que as crianças pequenas possuem de serem vistas, ouvidas e consideradas informantes principais na consulta sobre temas que lhes dizem respeito. Tais estudos partem do princípio de que a criança, como sujeito central a quem se destina o direito a essa etapa educacional, pode fornecer subsídios relevantes para possíveis direções que propiciem um ambiente agradável, em que sejam cuidadas e educadas e se lhes respeitem mais os seus anseios e particularidades. Nessa linha de pensamento, Cruz (2009, p. 2) aponta os pontos positivos que podem decorrer da valorização dessa escuta: [...] as informações decorrentes da escuta desses sujeitos pode contribuir tanto para se conhecer melhor o que se passa no interior das instituições a que eles têm acesso – as quais deveriam educar e cuidar, com respeito, todas as crianças que a frequentam como também para entender como eles se veem e se sentem na escola face a [sic] rotina que lhes é imposta. A compreensão e a integração dessas vozes a dos adultos, especialmente a dos professores, é fundamental para que creches e pré-escolas venham a se constituir em espaços significativos de enriquecimento, desenvolvimento, aprendizagem e prazer para as crianças. Considerado o exposto e tendo em vista os pressupostos adotados, o objetivo principal desta pesquisa é conhecer as opiniões das crianças sobre educação infantil trazidas nas pesquisas científicas brasileiras. Esse objetivo se divide em três fins específicos: verificar a dimensão quantitativa de trabalhos que ouviram crianças11 sobre EI, produzidos entre os anos de 2003 a 2012 disponibilizados no Portal da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES); apreender as percepções das crianças de diferentes contextos do país referentes às instituições de EI trazidas nesses trabalhos (aspectos positivos e aspectos negativos); identificar quais são os elementos importantes e necessários da Educação Infantil, na perspectiva das crianças (reivindicações), apontados nos textos. 10 Conforme Oliveira-Formosinho (2008), a Pedagogia da Infância tem como referência as crianças, razão por que se propõe observá-la, escutar sua voz e sondar suas intenções, para incorporá-las no processo educativo. 11 Perspectiva proposta pela Sociologia da Infância - procedimentos metodológicos específicos. 16 Definidos os objetivos, os frutos do caminho percorrido estão organizados em seis seções. Na primeira seção, explicito as emoções e razões que me guiaram até esse projeto. Nesse momento, evidencio ainda a origem do problema, o referencial teórico e as concepções que orientam o trabalho. Na segunda, exibo, em linhas gerais, reflexões sobre a história das instituições para a criança. Explicito aspectos históricos que conduzem a compreensão da institucionalização da infância até a proclamação, na carta Constitucional de 88, do direito à educação às crianças de zero a seis anos, bem como, elementos sobre a história recente de nossa EI. Em seguida, na terceira seção, apresento uma discussão teórica sobre as rupturas, desafios e perspectivas do emergente campo da SI adotado como referencial teórico para guiar a pesquisa. Assim, reflito sobre: as transformações no modo de perceber e conceber as crianças e as infâncias, que, a partir dessas rupturas, superam a condição de objeto passivo, adquirindo autonomia conceitual; o contexto originário, bem como os principais pesquisadores e suas contribuições ao novo campo de estudos sociológicos da infância (SI); as categorias fundamentais e as distintas correntes que o orientam; por fim, algumas considerações sobre a disseminação e abrangência da SI no Brasil. No quarta seção, exponho e justifico as opções teórico-metodológicas adotadas, bem como descrevo o caminho percorrido para o levantamento das pesquisas e o resultado desse exercício; trago ainda a descrição e a análise de algumas opções metodológicas dos trabalhos levantados, evidenciando os contextos onde foram produzidos, os sujeitos envolvidos e privilegiados, bem como os procedimentos metodológicos empregados. A sistematização e análise das opiniões das crianças quanto aos aspectos que consideram positivos e negativos nas instituições de EI, bem como as suas reivindicações para um espaço educativo agradável e significativo são apresentadas na quinta seção. Finalmente, na sexta seção, apresento o desfecho da discussão proposta nesta dissertação, com algumas considerações a respeito das perspectivas evidenciadas pelas crianças sobre a EI nas teses e dissertações analisadas e apontamentos pertinentes à importância de se ter a escuta desses sujeitos como um porto seguro para conhecê-los e, a partir disso, contextualizar a ação educativa. 17 2 “ERA UMA CASA MUITO ENGRAÇADA NÃO TINHA TETO, NÃO TINHA NADA...”12 ENTRELAÇANDO REFLEXÕES SOBRE HISTÓRIA, INFÂNCIA E EDUCAÇÃO INFANTIL Esta seção tem como finalidade expor, em linhas gerais, reflexões preliminares sobre a história da institucionalização da infância, a partir de um levantamento de bibliografia e de pesquisas sobre o assunto, para que se possa compreender o processo de constituição das instituições destinadas às crianças pequenas brasileiras ao longo dos séculos XIX, XX e XXI. Destacam-se as concepções e os princípios que vêm norteando a organização desses espaços, que foram pensados e estruturados segundo a perspectiva dos adultos. Para tanto, toma-se como ponto de partida a ideia trazida por Kuhlmann Jr. (1998, p. 13) de que a história precisa ser adotada como útil, pois “o estudo do passado pode, sim, suscitar reflexões que sirvam para aqueles que trabalham com a infância e a sua educação nos dias de hoje, contribuindo para sua formação e aprimoramento profissional”. Acredita-se que o tema possa ser apreendido em duas subseções: “Aspectos históricos da institucionalização da infância” e “Educação Infantil: passos e impasses legais”. Na primeira, aborda-se uma etapa que se estende do reconhecimento da necessidade de se criar um espaço sistematizado de aprendizado e conhecimento para as crianças pequenas ao contexto de lutas e reivindicações que se mostrou suficientemente forte para estabelecer o direito das crianças à Educação Infantil na Constituição Federal de 1988 (CF/88). A segunda versa sobre pontos positivos e negativos da legislação para a garantia do acesso e da institucionalização do atendimento à criança pequena, trazendo elementos sobre a história recente de nossa Educação Infantil, amparada por normatizações, documentos, programas e projetos que, nos dias atuais, defendem a tônica da qualidade como imprescindível e a criança pequena como sujeito central. 2.1 “Ninguém podia entrar nela não, porque na casa não tinha chão...”13 Aspectos históricos da institucionalização da infância É possível afirmar que, ao longo da história, o reconhecimento da necessidade de criar um espaço sistematizado de aprendizado e conhecimento às crianças pequenas se dá a partir de mudanças econômicas, políticas, culturais e sociais, bem como, por meio da transformação do 12 13 Trecho da Música: “A Casa”, composta por Sergio Bardotti e Vinícius de Moraes. Trecho da Música: “A Casa”, composta por Sergio Bardotti e Vinícius de Moraes. 18 olhar para a infância e do seu papel em cada sociedade. Nessa direção, Ariès (1981, p. 110) afirma que: Essa evolução da instituição escolar está ligada a uma evolução paralela do sentimento das idades e da infância. No início o senso comum aceitava sem dificuldade a mistura das idades. Chegou um momento em que surgiu uma repugnância nesse sentido, de início em favor das crianças menores. Logo, antes da expansão e popularização da instituição escolar, o processo educativo das crianças pequenas esteve centrado, predominantemente, no âmbito caseiro, sob o encargo exclusivo da família. Isso porque a idade escolar sempre foi entendida como “a partir dos 7 anos de idade”, no fim da primeira infância, quando, segundo algumas teorias filosóficas, a criança atinge a idade da razão14. Nessa trilha de proposições, Sarmento (2004) aponta que, no início da Modernidade, a institucionalização da infância efetivou-se por meio da conjugação de vários fatores: a criação da escola (expansão e universalização); o recentramento do núcleo familiar no cuidado dos filhos (as famílias reordenaram os seus dispositivos de apoio e controle infantil); a produção de disciplinas e saberes específicos (os saberes disciplinares sobre a criança adquiririam autonomia e desenvolveram-se exponencialmente) e, por fim, a promoção da administração simbólica da infância (novos instrumentos reguladores, configuradores de uma infância global, no plano normativo). Sobre esse cenário, Veiga (2010, p. 34) afirma que a “difusão da escolarização para todas as crianças se apresentou como um novo lugar de socialização da infância como prévia de organização das coletividades do futuro”. Complementa a autora: Na medida em que a escolarização das crianças foi se fixando na sociedade como atividade de integração e inserção social, o que se apresenta como problema para os adultos não é mais a distinção das gerações. As próprias inovações pedagógicas direcionadas ao público infantil contribuíram para problematizar as especificidades e características individuais das crianças que as tornam diferentes umas das outras. E isso será a grande questão posta pelos educadores da época, uma vez que o esforço da escola era acentuado pela sua característica homogeneizadora de costumes e comportamentos, como estratégia de universalização da infância como geração distinta (VEIGA, 2010, p. 32). Cabe então dizer que as transformações relacionadas às formas de conceber a criança pequena, ocorridas em um longo percurso da Modernidade, favoreceram a abertura de novos caminhos e possibilidades para a formação das intenções pedagógicas e inserções sociais voltadas para a infância e o seu grupo geracional. Por outro lado, convém destacar a problematização das ideias de Philippe, que, segundo Kuhlmann Jr. (1998), não é uma boa referência para se pensar a infância no Brasil, pois, na sua 14 Ideia também afirmada pela Igreja Católica e posteriormente ratificada por algumas teorias psicológicas. 19 visão, pela ausência do sentimento de infância, o período enfatizado pelo historiador Ariès não existiu em nosso país. De acordo com Kuhlmann Jr. (1998, p. 22), os sinais do desenvolvimento de um sentimento da infância estiveram presentes no Brasil já no século XVI, pois os jesuítas, em sua proposta educacional, atribuíam valor às crianças e à infância em seu projeto de colonização e evangelização “quando desenvolveram a estratégia de sua catequese alicerçada na educação dos pequenos indígenas, e trouxeram crianças órfãs de Portugal para atuarem como mediadoras nessa relação”, ou ainda com a inovação dos colégios, ao estabelecerem as classes separadas por idade e a disciplina, a partir do programa educacional Ratio Studiorum. Pautado nessa perspectiva, o autor destaca que: A visão linear do desenvolvimento histórico, de Ariès, ganha um caráter ainda mais abstrato quando da sua transposição para outros contextos. É o caso dos estudos que pretendem identificar o desabrochar do sentimento de infância no Brasil do final do século XIX. Postulando que nessa época se estaria vivendo um processo semelhante ao que teria ocorrido na França do século XVII – que é onde e quando Ariès localiza o início de uma mudança mais definitiva com relação ao sentimento da infância - essas correspondências entre períodos históricos diferenciados partem da arbitrariedade de que há um caminho pronto para se trilhar na História, e nele, uma defasagem de quase dois séculos a nos separar da realidade europeia (KUHLMANN JR., 1998, p. 21-22). Nesse sentido, Heywood (2004) entende que seria simplista considerar a ausência ou presença do sentimento da infância em um ou outro período da história. Para ele, a história da infância assume uma forma cíclica, e não linear, tendo em vista que, em cada sociedade, em diferentes tempos e lugares, existem concepções contrastantes de infância. Não obstante, alguns autores dedicados ao estudo da história da criança e da infância no Brasil trazem, em suas pesquisas, indícios de que o que foi apontado por Ariès com relação à ausência do sentimento de infância na realidade moderna europeia também ocorreu em terras brasileiras. É o caso de Del Priore (1991) que traz uma visão distinta a respeito do processo de catequização iniciado pelos jesuítas no Brasil Colônia apontando que esses, ao acreditarem que seria mais fácil atingir aquele gentio sem fé a partir dos indiozinhos, levavam as crianças indígenas para as Casas dos muchachos, a fim de impor a Doutrina Cristã. Segundo Del Priore (1991) a psicologia de fundamento moral e religioso, fortemente arraigada na época, influenciou e instituiu as bases do projeto de educação dos jesuítas que previa acima de tudo a disciplina e o repudio a qualquer situação extremista de afeto, incluindo o mimo, que devia ser repelido com castigos, ameaças e sermões com a finalidade de inculcar o temor e a obediência nos pequenos nativos. 20 Nessa direção, ao analisar a história da infância escrava no Brasil colonial, Mattoso (1991) descreve-a como um período de transição, um tempo sem especificidade, uma esperança de vida, haja vista, a alta taxa de mortalidade infantil. A autora afirma que nesse período, em que a sociedade era dominada pelos senhores de engenho e por muitos outros donos de escravos, as crianças negras eram maltratadas e tinham valor de mercadoria para seu senhor, isto é, não eram vistas como crianças, mas, como escravo em redução, diferente do escravo adulto que mais tarde seria, somente, pelo tamanho e pela força. Em estudo similar, Góes e Florentino (2010) comparam a tormenta e o calvário dos escravos e dos seus filhos com o trabalho com a cana-de-açúcar que: devia ser batida, torcida, cortada em pedaços, arrastada, moída, espremida e fervida... Nesse bojo, faz-se importante destacar que com a breve exposição dos diferentes posicionamentos abordados por alguns autores com relação à ausência ou presença de um sentimento de infância, não se pretende ratificar uma ideia ou outra, mas incitar uma necessária reflexão baseada na consideração de todos os fatos e esclarecimentos. Desta forma, pondera-se que o surgimento de tal sentimento não pode ser expresso de forma unitária na história, e que, na contrapartida, os indícios de um não reconhecimento também devem ser considerados. Essas discussões trazem aspectos introdutórios sobre o cenário no qual a história das instituições de educação infantil está contextualizada, bem como alguns subsídios das polêmicas que as rodeiam. De tal forma, ressalta-se que as transformações desencadeadas ao longo dos séculos, no que diz respeito ao tratamento designado às crianças e ao modo de conceber o seu universo, influenciado pelas noções e pensamentos de cada época, promoveram mudanças no atendimento a crianças e na especificidade da educação infantil. No que se refere ao Brasil, pode-se dizer que a história do atendimento a infância é relativamente recente. Ademais, destaca-se que as primeiras instituições voltadas a esse atendimento foram fortemente marcadas por ações de cunho assistencialista e protetivo aos necessitados. Nesse sentido, Merisse (1997) indica que poderíamos encontrar a origem remota de todas as atuais instituições médico-assistenciais e educacionais nos abrigos ou asilos, cuja proposta consistia, desde a Idade Média, em amparar a infância pobre por meio do acolhimento de todos os diferentes tipos de desvalidos, para que pudessem ser alimentados e guardados das intempéries. Nesse contexto, importados da Europa e instalados no Brasil a partir do século XVIII, os asilos infantis serviam como depósitos de bebês e crianças enjeitados e abandonados em 21 portões de casas, jogados em terrenos baldios ou em montes de lixo, compondo um trágico quadro da infância desamparada. 15 (MERISSE, 1997). O mesmo autor aponta que o abandono ocorria com tamanha frequência e em tão grande número que, em 1738, no Rio de Janeiro, foi criada a primeira Roda dos Expostos, também chamada de Casa dos Enjeitados, ou ainda Casa da Roda.16 Com base em serviços filantrópicos, caritativos e assistenciais, o propósito dessa “instituição” seria proteger a vida da criança e, assim, reduzir os altos índices de mortalidade infantil por meio do acolhimento das chamadas crianças expostas. Leite (1991, p. 99) complementa essa afirmação dizendo, no entanto, que: A Roda dos Expostos foi uma instituição que existiu e foi extinta na França, que existiu em Portugal e foi trazida para o Brasil no século XVIII. Os governantes a criavam com o objetivo de salvar a vida de recém-nascidos abandonados, para encaminhá-los depois para trabalhos produtivos e forçados. Foi uma das iniciativas sociais de orientar a população pobre no sentido de transformá-la em classe trabalhadora e afastá-las da perigosa camada envolvida na prostituição e na vadiagem. Abramowicz e Moruzzi (2010), por seu turno, assinalam que, em meados da década de 1880, em decorrência de alguns acontecimentos importantes em nossa sociedade, houve um crescimento ainda maior do número de crianças deixadas nas rodas dos expostos. De acordo com as autoras, a sanção da Lei do Ventre Livre (1871) e a posterior aprovação da Lei Áurea (1888) promoveram uma nova demanda social no país. Mães negras, agora livres, necessitavam trabalhar e, por isso, muitas vezes eram obrigadas a abandonar os seus filhos, e, quando isso não acontecia, as crianças passavam o dia perambulando pelas ruas, carentes de cuidados e proteção. Tais fatos fariam emergir a necessidade da criação de instituições voltadas ao atendimento específico para filhos e filhas dessas mulheres trabalhadoras. É nesse contexto que surgem as primeiras instituições de tipo parcial, focadas no cuidado e na assistência às crianças pobres. Nessa direção, Merisse (1997) salienta que, tanto no contexto europeu quanto no Brasil, a creche surge em um cenário em que as instituições asilares eram referência para entidades de atendimento à população, porém, com novas características, que, aos poucos, vão conformando outro tipo de instituição. 15 Conforme Merisse (1997), naquele momento, a sociedade colonial brasileira dividia-se, basicamente, em senhores feudais e escravos. Desse modo, o sistema escravocrata facilitava muito a promiscuidade masculina e a prostituição, sendo constantes os casos de abusos e de exploração de mulheres menos abastadas e escravas. Por isso, o elevado número de bebês e crianças, frutos inconvenientes de relações não legitimadas e, sobretudo, da exploração sexual dos senhores sobre suas escravas, abandonadas às intempéries e muitas vezes à morte. 16 Cilindro oco de madeira, com uma pequena abertura, que girava em torno de um eixo horizontal. Para depositar uma criança, bastava colocá-la dentro da caixa, girar o dispositivo (a roda) e apertar a campainha. Desse modo, garantia-se o anonimato ao abandono de crianças (ABRAMOWICZ; MORUZZI, 2010). 22 A esse respeito, convém destacar mais uma vez o posicionamento divergente de Kuhmann Jr. (1998) em face do de muitos outros autores. Para ele, tais instituições não poderiam ser consideradas apenas como assistenciais, já que havia evidências, no seu ponto de vista, de algumas intenções educativas. Nessas instituições, as crianças receberiam instruções para perderem os maus hábitos, isto é, para aprenderem a se comportar, se alimentar, se vestir, se higienizar e até mesmo a pensar, portanto, a guarda “[...] era vista como um elemento ativo na educação dessas crianças” (KUHMANN JR., 1998, p. 183). Ressalta o autor que a nova instituição para crianças de 0 a 3 anos foi apresentada em substituição ou oposição a Casas dos Expostos para que as mães não abandonassem seus filhos pequenos. Argumenta ainda que a creche, as escolas maternais e jardins de infância, muito mais do que um espaço de aperfeiçoamento das ideias propostas nos asilos, foram resultados “da articulação de interesses jurídicos, empresariais, políticos, médicos, pedagógicos e religiosos, em torno de três influências básicas: a jurídico-policial, a médico-higienista e a religiosa”. (KUHLMANN JR. 1998, p. 81). Nessa linha de raciocínio, Merisse (1997) descreve o contexto social originário da creche com base nas contribuições do estudo de Rosa Maria Geis, que, por sua vez, identifica quatro fases distintas na trajetória do atendimento à infância brasileira: a primeira, de caráter exclusivamente filantrópico; a segunda, em que se apresenta uma preocupação higiênicosanitária; a terceira, de caráter marcadamente assistencial; finalmente, a quarta, marcada pelo surgimento de uma dimensão educacional, que permanece até os dias atuais. Logo, acerca desse cenário pode-se dizer basicamente que a primeira e mais extensa fase teve início no século XVI, quando o Pe. Anchieta passou a acolher órfãos vindos de Portugal e crianças indígenas rejeitadas. O modelo típico de atendimento desse período foi o da Casa da Roda, por meio de um trabalho realizado fundamentalmente sob o domínio da Igreja Católica e de grupos leigos de caráter filantrópico, sob a égide da caridade. A segunda fase, apoiada por um forte movimento de médicos, embasados por conhecimentos e técnicas provenientes do avanço da ciência, ocorreu ao longo do século XIX e início do século XX e tinha como metas primordiais o controle da mortalidade infantil e a disseminação de novos hábitos higiênicos. A terceira fase foi marcada por um crescimento demográfico significativo de creches e de órgãos voltados à assistência infantil, amparada pelo paternalismo do Estado, preocupado com as crianças filhas da classe trabalhadora, consideradas mão de obra futura. Na quarta fase, a creche passaria a ser destacada tanto por seu caráter compensatório, como pela sua suposta intenção pedagógica. (MERISSE, 1997). 23 Nesse sentido, o autor supramencionado afirma que as primeiras referências à creche em nosso país podem ser identificadas em um artigo no ano de 187917, cujas características encontram-se presentes nessas instituições até os dias atuais, quais sejam: o caráter de um atendimento beneficente, ou seja, gratuito; o período de atendimento prolongado, mas não em regime de internação; e, a qualificação das mães, que deveriam necessitar da guarda dos filhos por serem pobres, de boa conduta e por trabalharem fora de seu domicílio. À vista disso, cabe esclarecer que as crianças menores, ou seja, de 0 a 3 anos só foram institucionalmente atendidas no Brasil em 1899, com a criação de uma creche infantil pela fábrica de Fiação e Tecidos Corcovado, situada no Rio de Janeiro (ABRAMOWICZ; MORUZZI, 2010; KUHLMANN JR., 2009), e, no que diz respeito ao contexto paulistano, esse atendimento só viria a acontecer em 1918 a partir de reivindicações e pressões do movimento operário que pleiteava pela ampliação de benefícios sociais. (MERISSE, 1997). Nessa direção, Rosemberg (2011) esclarece que os primeiros programas nacionais brasileiros de educação infantil de massa receberam uma grande conotação compensatória, haja vista que foram fortemente influenciados pelo ideário divulgado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e pela Organização das Nações Unidas pela Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) pautados na teoria da privação cultural e amparados por investimentos financeiros oriundos dessas agências intergovernamentais. Assim, no decurso das reivindicações e disposições de atendimento à criança pequena, surge em 1977, o primeiro projeto educacional para a educação pré-escolar em massa, conhecido como Projeto Casulo, mantido pela Legião Brasileira de Assistência (LBA) que por sua vez havia sido criada em 1942, associada ao esforço de guerra, como órgão de apoio às famílias18. Segundo Kuhlmann Jr. (2009) a intenção com esse projeto era de que fossem desenvolvidas atividades paralelas de orientação familiar. Desse modo, tendo em vista o quadro de desequilíbrio nas famílias e consequentemente, de desintegração dos lares, o remédio proposto foi a criação de novas vagas para crianças de zero a seis anos, a baixo custo, nos projetos Casulo. Complementando esta ideia, Merisse (1997, p. 47-48) afirma que: 17 Em seus textos, Kuhlmann Jr. (1998) e Rosemberg (1999) trazem excertos das recomendações em pauta. De acordo com Rosemberg (2011), até a implantação do Projeto Casulo, a LBA desenvolveu uma série de programas destinados à maternidade e à infância com base no voluntariado. 18 24 Embora o Projeto Casulo fosse muito ambicioso em termos dos números que pretendia atingir, ele não tinha intenção de cumprir objetivos educacionais como, por exemplo, prepara a criança para uma escolaridade futura: seu propósito limitava-se a proporcionar assistência higiênico-nutricional, além de alguma atividade de cunho recreativo. Pautada nesse cenário, Rosemberg (2011, p. 152) apresenta algumas proposições sobre as causas que de certa forma contribuíram para a implantação em larga escala do projeto: Meu argumento é que esse projeto teve condições de ser implantado em larga escala porque se coadunava com e se constituía como uma expressão da DSN ao: (1) adotar um novo discurso da prevenção; (2) propiciar uma entrada direta e visível do governo federal no nível local, sem passar pelas administrações estaduais; (3) basear-se em pequenos investimentos orçamentários, apesar de ser um programa de massa, adotando a estratégia de participação da comunidade, ajustando-se, pois ao modelo econômico preconizado pelo Estado de Segurança Nacional. Todavia, a autora afirma que a primeira avaliação do projeto, realizada no ano seguinte ao de sua implantação, não se mostrou satisfatória, conforme demonstra a evidência de vários problemas estruturais, tais como: falta de pessoal capacitado; inadequação do espaço físico e falta de água nos locais em que o projeto era implantado; falta de verbas e de recursos humanos, materiais e equipamentos. Percebia-se assim, a dificuldade de implantação de um programa apoiado em grande parte nos recursos de comunidades pobres. Com base nesse cenário, é possível afirmar que os programas e projetos voltados para o atendimento infantil expandiram-se por meio dos modelos ditos alternativos e de baixos custos destinados aos pobres. Logo, evidencia-se que o direito ao atendimento em creches, conquistado, sobretudo, pela reivindicação de mulheres, não era visto como um direito da criança e menos ainda como um dever do Estado, e a sua existência estava à mercê de entidades filantrópicas ou entidades privadas, das quais poderiam usufruir somente as crianças cujas famílias pudessem pagar por esse serviço. Nessa perspectiva, Abramowicz e Moruzzi (2010) apontam que, a partir da década de 1980, começa a tomar corpo no cenário brasileiro uma concepção diferenciada de educação infantil, fomentada por debates nos fóruns, nos movimentos sociais e nas reivindicações acadêmicas, visando a um atendimento que priorizasse, para além do cuidado e da higienização das crianças, um caráter educacional - um lugar para Educar e Cuidar. Nessa direção, as autoras salientam que: Esse “novo olhar” sobre a educação infantil motivou diversos movimentos sociais que lutavam pela educação das crianças pequenas, entre eles estavam: associações de bairro, associações de mulheres, clubes de mães, donas de casa, fóruns estatuais e nacionais, etc. Destaca-se o Movimento de Luta por Creches que, em 1979, durante o I Congresso da Mulher Paulista, reivindicou: creches integralmente financiadas pelo Estado e por empresas, instalações próximas das moradias ou dos trabalhos das mulheres, propostas educacionais consistentes e com a participação dos pais, conduzidas por especialistas em Educação Infantil (ABRAMOWICZ; MORUZZI, 2010, p. 28, grifo das autoras). 25 Esse contexto de lutas e reivindicações mostrou-se suficientemente forte para estabelecer o direito das crianças à Educação Infantil na Constituição Federal de 1988 (CF/88), e, a partir de então, inicia-se um ciclo, que permanece até os dias atuais, de discussões, estudos e debates em prol do modelo de educação infantil pretendido, que, em suma, não deve ter como único objetivo dar assistência e ensinamentos morais às crianças pobres, mas apresentar a todas as crianças uma educação transformadora, como se aborda na subseção a seguir. 2.2 “Mas era feita com muito esmero...”19 Educação Infantil: passos e impasses legais Como visto na subseção anterior, a especificação das instituições de Educação Infantil como parte dos deveres do Estado com a Educação, proclamada na CF/88, é uma formulação aspirada por diversas mobilizações da sociedade civil, que, notadamente a partir do final da década de 70, tem lutado pela expansão de uma educação de qualidade que considere os direitos das crianças e das famílias. Nas palavras de Campos, Fullgraf e Wiggers (2006, p. 90): A preocupação com a baixa qualidade da educação infantil trouxe a criança para o centro das discussões: percebia-se que era necessário basear o atendimento no respeito aos direitos da criança, em primeiro lugar, para que fosse possível mostrar a legisladores e administradores a importância da garantia de um patamar mínimo de qualidade para creches e pré-escolas. Desse modo, as autoras mencionadas afirmam que foi principalmente pela atuação de grupos ligados à universidade e dos profissionais da educação que se formularam os princípios que seriam acolhidos pela nova CF/88 e que foram em grande parte mantidos na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 (LDB/96). À vista disso, Correa (2007, p. 2-3) salienta que a Educação Infantil amparada sob as normalizações constitucionais conquista uma relevante virada histórica: A promulgação da Constituição Federal de 1988 representou um marco no que se refere às conquistas para a EI no país, pois pela primeira vez em nossa história conseguiu-se, a custas de um amplo movimento de organizações da sociedade civil, inscrever na lei a obrigatoriedade da oferta de vagas em creches e pré-escolas a todas as crianças de zero a seis anos de idade cujas famílias assim o desejassem. Com base nessa conquista, certo otimismo se instalou entre os profissionais e pesquisadores da área, pois, a explicitação na Lei Maior do país, quanto ao dever do Estado, configurava-se como prenúncio de uma grande virada na história dessa etapa educacional. Desta forma, pode-se dizer que a EI preconizada pela CF/88 é duplamente protegida, uma vez que se apresenta tanto como direito subjetivo das crianças com idade entre 0 e 5 anos 19 Trecho da Música “A Casa”, composta por Sergio Bardotti e Vinícius de Moraes. 26 (art.208, IV, alterado recentemente pela Emenda Constitucional EC-000.053-2006), quanto como direito dos(as) trabalhadores(as) urbanos(as) e rurais com assistência gratuita a seus filhos e dependentes desde o nascimento até seis anos de idade em creches e pré-escolas (art.7°, XXV). Nesse bojo, cabe acentuar que todos os princípios constitucionais referentes ao ensino devem ser cumpridos na EI, tais como: equidade no acesso e na permanência, liberdade de ensinar e aprender, pluralismo de ideias e concepções pedagógicas, gratuidade, valorização dos profissionais da educação, gestão democrática e garantia de padrão de qualidade (art.206, I a VII). Isso se aplica também aos direitos previstos na legislação específica de proteção integral à criança e ao adolescente, promulgada em 1990, como regulamentadora dos direitos pressagiados na Constituição - Estatuto da Criança e do Adolescente – (ECA/90): igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; direito de ser respeitado pelos educadores, direito a creche ou pré-escola pública e gratuita próxima de sua residência e direito dos pais ou responsáveis de “ter ciência do processo pedagógico, bem como participar da definição das propostas educacionais” (Lei n° 8.069/1990, Art.53, I, II, V e Parágrafo único). Correa (2007) demonstra-se bastante otimista com o Estatuto, argumentando que o documento, além de reforçar a ideia da ampliação de oferta educacional, por parte do Estado, a todas as crianças de zero a seis anos, colabora com a legalização da proteção a estas em diversos níveis. Tais contribuições materializam-se no estabelecimento, nos artigos 5º e 53º - II, respectivamente, da garantia de proteção contra qualquer forma de “negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”, e do “direito de ser respeitado por seus educadores”, uma vez que se institui a punição como medida a qualquer denúncia de eventuais condutas inadequadas, abusivas e de desmazelo que possam ocorrer em âmbito educacional contra a criança, que, quanto mais nova, menos consegue se autodefender. Nesse sentido, a autora argumenta que: Sabe-se que quanto mais nova a criança, menores são suas condições de autodefesa diante de abusos por parte de quem deveria zelar por sua integridade, incluindo-se aí aqueles que a educam no contexto da instituição educacional e, do mesmo modo, sabese que atitudes inadequadas, por vezes violentas, ainda não estão de todo ausentes das creches e pré-escolas brasileiras. Assim, uma lei que explicite direitos dessa natureza pode em muito colaborar para que, ao menos, aqueles que desrespeitam direitos fundamentais das crianças possam ser devidamente responsabilizados em caso de denúncia e, nesse sentido, pode representar um meio de inibir tais condutas (CORREA, 2007, p. 3). Ademais, destaca-se que, para além dos princípios promulgados pela CF/88 e pelo ECA/90, o direito à EI assegura-se em outras normas nacionais. Uma delas é a nova Lei de 27 Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 – LDB 1996, (Lei n° 9.394/1996), que organiza a educação escolar em dois grandes níveis: educação básica e educação superior, incluindo a EI como primeira etapa do primeiro nível; outra, o Plano Nacional de Educação PNE (Lei n° 10.172/2001) instituído como representante das metas que nortearão as políticas para a educação brasileira. Acerca dessas normalizações, Abramowicz e Moruzzi (2010, p. 2930) assinalam que: O PNE trata-se de um documento importante para a Educação Infantil na medida em que aborda a necessidade de ampliação de atendimento à criança e estabelece também a necessidade de formação específica do profissional para atuar nesse espaço. A última LDB (1996) vem ao encontro com o PNE ao estabelecer que todo profissional do ensino básico (nesse sentido a Educação Infantil é a primeira etapa) deve ser formado em ensino superior por meio de curso de licenciatura ou graduação plena (curso de pedagogia) em universidades ou institutos normais superiores. Por conseguinte, dentre as determinações contidas na LDB/96, referentes à Educação Infantil, destacam-se os artigos 29, 30 e 31, que versam sobre sua disposição, organização e avaliação. O artigo 29 da LDB/96 dispõe que: “a educação infantil, primeira etapa da educação básica, tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança de até seis anos, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade”. Já com relação à oferta, o artigo 30 determina que: “a educação infantil será oferecida em: I - creches, ou entidades equivalentes, para crianças de até três anos de idade; II – pré-escolas, para as crianças de quatro a seis anos de idade”. No que tange à avaliação na primeira etapa da educação básica, a LDB/96 apresenta, em seu artigo 31, os seguintes critérios: “na educação infantil a avaliação far-se-á mediante acompanhamento e registro de seu desenvolvimento sem o objetivo de promoção, mesmo para o acesso ao ensino fundamental”. Para Correa (2007), essa nova preocupação provoca um embate com a incisiva prática predominante naquele momento, que determinava a retenção de crianças na pré-escola sob o pretexto de que elas não estariam preparadas para a alfabetização. Cabe então afirmar que a EI, subsidiada pelos preceitos da LDB/96, não somente alcança uma nova notoriedade, como também assume um estatuto próprio diante dos sistemas oficiais de ensino: com regras mínimas de funcionamento, passa a ser fiscalizada sob um ordenamento legal específico. Segundo Correa (2007, p. 4), as novas incumbências determinadas à EI representaram um avanço considerável, especialmente no caso da rede privada, que, a partir de então, passa, ao menos em tese, a ter que se regulamentar e adaptar, “respeitando a normalização vigente em cada sistema de ensino (municipal ou estadual) para obter tanto o seu credenciamento quanto à autorização para o seu funcionamento”. 28 Ao determinarem aos municípios a responsabilidade pela oferta de EI, a CF/88 e a LDB/96 responsabilizaram-se “principalmente pela orientação sobre os padrões de atendimento que devem ser seguidos pelos sistemas educacionais estaduais e municipais, incluindo-se aí as escolas privadas e as instituições subvencionadas com recursos públicos”. (CAMPOS, FULLGRAF; WIGGERS, 2006, p. 91). Nesse bojo, cabe reconhecer o importante papel desempenhado pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC), que, impulsionado pelos compromissos assumidos internacionalmente na Conferência Mundial de Educação para Todos20, dedicou-se à formulação de diretrizes para a EI, elaborando propostas curriculares, publicando documentos com orientações gerais direcionadas ao cuidado e à educação para as crianças pequenas, bem como apoiando o fomento a estudos e debates sobre a temática em diversos âmbitos. 21 Posto isso, sublinha-se o caráter abrangente e atual do documento Critérios para um atendimento em creches que respeite os direitos fundamentais das crianças, criado em 1995, com a meta de atender as necessidades fundamentais das crianças pequenas, cujo arranjo prioriza: o direito à brincadeira, a um ambiente aconchegante, seguro e estimulante, ao contato com a natureza, à higiene e à saúde; a uma alimentação sadia; à atenção individualizada, ao desenvolvimento da curiosidade, imaginação e capacidade de expressão; ao movimento em espaços amplos; à proteção, ao afeto e à amizade; à liberdade de expressão dos sentimentos. (BRASIL, 1995). Diante disso, com base numa proposta de oportunidades educacionais igualitárias que levasse em conta as diferenças, diversidades e desigualdades dos territórios e culturas existentes em todo o país, em 2006 o MEC publicou o documento Parâmetros Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil, dividido em dois volumes. O objetivo desse documento é estabelecer uma referência nacional a ser discutida e utilizada pelas instituições de EI na definição de padrões de qualidade. Dentre as disposições concernentes ao binômio cuidar/educar, enfatiza-se, no volume 1 do documento em questão, a necessidade de condições concretas de apropriação e de produção de significados no mundo da natureza e da cultura às crianças pequenas, que precisam: 20 Realizada no ano de 1990 em Jomtien, Tailândia. Do conjunto de documentos e programas estabelecidos pelo MEC, destacam-se: Critérios para um atendimento em creches que respeite os direitos fundamentais das crianças (1995/2009); Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (1998); Parâmetros Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil (2006); Parâmetros Básicos de Infraestrutura para as instituições de Educação Infantil (2006); Programa Nacional de Reestruturação e Aparelhagem da Rede Escolar Pública de Educação Infantil (PROINFÂNCIA) (2007); Programa de formação inicial para professores em exercício na educação infantil Indicadores da Qualidade na Educação Infantil no Brasil (2009); Curso de Especialização em Docência na Educação Infantil (2010); Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (1999/2009); Deixa eu falar (2011). 21 29 [...] ser apoiadas em suas iniciativas espontâneas e incentivadas a: brincar; movimentar-se em espaços amplos e ao ar livre; expressar sentimentos e pensamentos; desenvolver a imaginação, a curiosidade e a capacidade de expressão; ampliar permanentemente conhecimentos a respeito do mundo da natureza e da cultura apoiadas por estratégias pedagógicas apropriadas; diversificar atividades, escolhas e companheiros de interação em creches, pré-escolas e centros de Educação Infantil (BRASIL, 2006, p. 19, grifos meus). Igualmente elaborados com a meta de definir um padrão de qualidade nos serviços da EI, os Parâmetros Básicos de Infraestrutura para as instituições de Educação Infantil, também de 2006, contaram com a parceria de educadores e dos estudos e pesquisas de arquitetos e engenheiros do Grupo Ambiente-Educação (GAE), envolvidos em planejar, refletir e construir/reformar os espaços destinados à educação das crianças de zero a seis anos. Dessa forma, o documento objetiva: [...] ampliar os diferentes olhares sobre o espaço, visando construir o ambiente físico destinado à EI, promotor de aventuras, descobertas, criatividade, desafios, aprendizagem e que facilite a interação criança - criança, criança - adulto e deles com o meio ambiente. O espaço lúdico infantil deve ser dinâmico, vivo, brincável, explorável, transformável e acessível para todos (BRASIL, 2006b, p. 8). Ainda em conformidade com a busca de um ambiente educativo de qualidade, o governo federal criou, em 2007, o PROINFÂNCIA, com a intenção de construir ou reformar escolas a partir da priorização de um espaço acessível a todas as crianças matriculadas, ligando os ambientes de uso pedagógico, administrativo, recreativo, esportivo e de alimentação (salas de aula, fraldários, bibliotecas, salas de leitura, salas de informática, sanitários, recreio coberto, refeitório, secretaria) bem como prevendo o acesso a acervos de literatura. (BRASIL, 2007). Em 2009, torna-se público o documento Indicadores da Qualidade na Educação Infantil, com a caracterização de um instrumento de autoavaliação da qualidade das instituições de educação infantil, que, por meio de um processo participativo e aberto a toda a comunidade, visa construir uma sociedade mais democrática. Ademais, cabe salientar a publicação do MEC de 2011, Deixa eu falar que, amplamente ligado às questões desse estudo, tem por objetivo principal estimular e favorecer o importante e necessário diálogo com as crianças nos estabelecimentos de educação infantil. No sentido de incentivar novas práticas educativas comprometidas com os direitos da criança, esse livro de uso coletivo contou com a participação de crianças de 3 a 6 anos de idade, inseridas numa instituição de EI do país, estimuladas a falar sobre os mais diversos assuntos que transitam por suas vivências diárias nesse contexto ou nelas habitam. Entre as prioridades do MEC para garantir uma educação de qualidade, a formação inicial e continuada dos professores da educação infantil também se destaca. Nesse cenário, em 2005 inicia-se a oferta do PROINFANTIL, configurado como um curso a distância, em nível 30 médio e na modalidade normal, oferecido para professores atuantes nos sistemas educacionais e estaduais que não possuem a formação exigida pela legislação. O curso em pauta realiza-se por meio de uma parceria entre o MEC, os estados e os municípios interessados, conferindo diploma para o exercício da docência na EI. Nessa direção, em 2010, o Curso de Especialização em Docência na Educação Infantil (curso de pós-graduação lato sensu desenvolvido na modalidade presencial) começa a ser ofertado por meio de uma parceria entre o MEC e instituições públicas de ensino superior, visando a preparar os profissionais já habilitados à docência na EI para as especificidades da educação de crianças pequenas a partir de estratégias de troca de experiências e construções coletivas. No que se refere às propostas curriculares para a EI, convém ressaltar a publicação de dois documentos relevantes: o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI) (1998); e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI) (1999/2009). Em 1998, com o objetivo de atender às especificidades do trabalho com crianças de zero a seis anos, o MEC publicou o RCNEI, organizado em três volumes: “Introdução”, “Formação pessoal e social” e “Conhecimento do mundo”. Vale destacar que esse documento é de caráter orientador, e não mandatório. 22 Para orientar as unidades de EI na tarefa de aperfeiçoar suas práticas pedagógicas, convém também destacar a publicação, em 1999, das DCNEI. Pautado na concepção de criança como sujeito de direitos e ator social, o documento, com caráter mandatório, foi elaborado com a participação de segmentos responsáveis pela educação de crianças de zero a seis anos para regulamentar os dispositivos legais presentes na LDB/96 voltados às práticas de educação e cuidados que integram essa etapa educacional. Diante desse novo prisma, ao acompanhar as mudanças referentes à compreensão contemporânea da função social e política da EI, as DCNEI passaram por uma 22 Cerisara (2002), ao analisar a proposta desse documento, a fim de verificar até que ponto ele contempla o que anuncia, aponta uma série de incongruências: a divulgação em 1998, sem que fosse atendido o apelo dos pareceristas por mais tempo para debates e discussões; o atropelo também às orientações do próprio MEC, uma vez que foi publicado antes mesmo que as Diretrizes Curriculares Nacionais, estas sim mandatórias, fossem aprovadas pelo Conselho Nacional de Educação; a insuficiente contemplação teórica da diversidade cultural das crianças brasileiras; a explicitação de uma concepção de educação infantil, ao longo do texto, muito mais próxima da do ensino fundamental do que a declarada na sua própria Introdução; a evidência de uma subordinação ao que é pensado para o ensino fundamental, tendo em vista a “didatização” da identidade, autonomia, música, artes, linguagens, movimento, entre outros componentes, que acaba por disciplinar e aprisionar o gesto, a fala, a emoção, o pensamento, a voz e o corpo das crianças... 31 revisão/atualização, apresentando, após uma década da primeira homologação, novas propostas e pontos de vista renovados sobre o cotidiano das creches e pré-escolas. Com a finalidade de orientar as políticas públicas e a elaboração, planejamento, execução e avaliação de propostas pedagógicas e curriculares da EI, o documento traz, em seus diversos artigos, uma série de princípios, fundamentos e procedimentos que, embora mandatórios, devem ser discutidos coletiva e democraticamente por toda a comunidade escolar, que poderá definir como sua proposta pedagógica poderá dele se beneficiar. (CRUZ, 2013). Ao realizar uma breve apresentação do documento em pauta, a autora mencionada enfatiza as definições de “currículo”, “criança” e “Educação Infantil”, bem como a função sociopolítica e pedagógica das instituições de EI por ele concebidas. Tendo em vista a atual polêmica em torno do tema “currículo” na área da EI, fomentada por vários profissionais e pesquisadores receosos, por terem em mente a ideia desse como sequência de conteúdos escolares, amparado por uma função fortemente “escolarizante”, Cruz (2013, p. 13) considera bastante esclarecedora a definição de currículo trazida nas DCNEI: O currículo da Educação Infantil é concebido como “um conjunto de práticas que buscam articular as experiências e os saberes das crianças com os conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural, artístico, ambiental, científico e tecnológico”, isto é, a criança, com suas experiências e saberes, é o centro do processo educativo. A autora adverte, no entanto, que o encaminhamento positivo dessa nova concepção de currículo somente se concretizará por meio de práticas sensíveis que considerem as curiosidades, interesses e desejos das crianças, bem como as formas características de estas se apropriarem de conhecimentos habilidades e valores. Por sua vez, a criança é concebida no documento como sujeito histórico e de direitos, construtora da sua identidade pessoal e coletiva por meio das interações, relações e práticas cotidianas que vivencia. Além disso, em consonância com a ideia preconizada pela SI, a criança, nas DCNEI, é também vista como um ser que produz cultura ao brincar, imaginar, fantasiar, desejar, observar, experimentar, narrar, questionar e construir sentidos sobre a natureza e a sociedade a partir de processos de significação que são específicos e diferentes daqueles produzidos pelos adultos. (CRUZ, 2013). Acrescenta ainda a autora que a apropriação da concepção de criança expressa nas novas DCNEI pelos professores pode significar um salto qualitativo para o atendimento nas instituições da EI no que se refere ao trabalho pedagógico cotidiano. Com relação à definição de EI, Cruz (2013) afirma que o documento ressalta o seu caráter institucional (não doméstico) e educacional (atendimento feito no período diurno). Assim, a autora destaca alguns requisitos apontados como necessários pelas DCNEI para que essas instituições possam cumprir com a sua função sociopolítica e pedagógica, tais como: 32 condições e recursos (formação continuada e infraestrutura); o rompimento de relações de dominação etárias, socioeconômicas, étnico-raciais, de gênero, regionais, linguísticas e religiosas. Destarte, Oliveira (2013, p. 4) aponta que as novas DCNEI “desafiam os professores que atuam junto às crianças de 0 a 5 anos a construírem propostas pedagógicas que, no cotidiano de creches e pré-escolas, deem voz às crianças e acolham a forma de elas significarem o mundo e a si mesmas, em parceria com as famílias”. Nesse sentido, a autora salienta que “o conjunto de documentos de orientação do MEC e as DNCEI tornaram-se as referências para a inclusão da educação infantil nos sistemas municipais de educação”. (OLIVEIRA, 2013, p. 4). Nos últimos anos, a legitimidade e o futuro da EI tornaram-se, no entanto, alvo de uma série de discussões e preocupações suscitadas a partir da Lei nº 11.114, de 16 de maio de 2005, que alterou o artigo 6º da LDB, tornando obrigatória a matrícula da criança de seis anos de idade no Ensino Fundamental, que, a partir da Lei nº11.274, de 6 de fevereiro de 2006, tem a sua duração ampliada para nove anos. Para Correa (2007), a ampliação tem-se configurado como um grande desafio à garantia dos direitos das crianças pequenas, com destaque para as de seis anos que perdem o seu último ano na EI, adentrando mais cedo em um espaço caracterizado cotidianamente, salvo exceções, por exigências em demasia, integralmente oposto à proposta das instituições de EI, que, anteriormente à nova lei, as atendiam de forma pensada, organizada e planejada, visando garantir o seu desenvolvimento integral. Nessa perspectiva, Cruz (2013) aponta que muitos têm sido os esforços despendidos para construir a identidade própria da EI, que apresenta especificidades que precisam ser consideradas, em face de características comuns com as demais etapas. Assim, é diante das propostas sugeridas pelos documentos que regem a EI (notadamente influenciados pelos preceitos da Pedagogia da Infância e da SI, bem como do crescente esforço empreendido por pesquisadores brasileiros23) – valorizar e efetivar o direito que as crianças pequenas possuem de serem vistas, ouvidas e consideradas informantes principais na consulta sobre temas que as perpassam corriqueiramente (SOUZA, 2011) –que se ressalta o propósito desse estudo: conhecer as opiniões das crianças sobre as instituições de EI evidenciadas em pesquisas científicas brasileiras. 23 Apontados por Martins Filho (2010), Rodrigues, Borges e Silva (2014), Borges (2014). 33 Posto isso, a próxima seção tem por finalidade apresentar as proposições teóricas fundamentais da Sociologia da Infância que serviram de base epistemológica para esse estudo. 34 3 “CIRANDA, CIRANDINHA, VAMOS TODOS CIRANDAR...”24 SOCIOLOGIA DA INFÂNCIA COMO ÁREA DE CONHECIMENTO: GÊNESE, RUPTURAS, DESAFIOS E PERSPECTIVAS DO CAMPO EMERGENTE Qual a finalidade de ir além? De enxergar o outro, respeitando-o na sua alteridade? Por que avançar inusitadamente e de maneira tão significativa, a ponto de conceber um ser, antes legitimado como frágil e raso, por novas perspectivas que não só o percebem com relevantes características, mas o tomam como competente e ativo? O que leva à emergente limpeza das lentes para enxergar uma categoria social definida como universal, a partir dos fatores de heterogeneidade que, simultaneamente, a fazem plural? Estudos modernos versus estudos atuais, caminho versus desvios, ancorar versus navegar... Os tempos contemporâneos inauguram um novo momento para os estudos da criança e da infância. Nesse cenário, a produção historiográfica da infância vem experimentando um considerável progresso, expresso tanto no aumento do número de títulos, quanto na constituição de grupos de pesquisas nacionais e estrangeiros mobilizados por uma crescente comunidade de pesquisadores interessados na área. Nas palavras de Gouvêa (2011, p. 551): O alargamento dos referenciais disciplinares de estudo da infância determinou a produção de um novo arcabouço teórico conceitual. Verifica-se a conformação de uma história da infância, de uma antropologia da infância, de uma filosofia da infância e, principalmente, de uma sociologia da infância, com a frutífera construção de novos conceitos que superam uma análise evolutiva. Tais campos, ao mesmo tempo em que se ancoram nos referenciais epistêmicos das distintas disciplinas, vem estabelecendo interseções e transversalidades, buscando apreender a infância como fenômeno social. Conforme Gouvêa (2008), o significativo aumento da produção em pauta contribuiu para um refinamento terminológico, a partir do qual os conceitos que definem o campo, isto é, criança e infância, vêm sendo mais bem diferenciados, uma vez que esses, muito embora diversas vezes justapostos em estudos como intercambiáveis, talvez pelos atributos que os relacionam intrinsecamente, apresentam particularidades que abalizam diferenças entre si e que precisam ser consideradas. A esse respeito, Siqueira (2012, spp.) argumenta que: Para muitos autores, falar da infância é falar da criança e vice-versa, como se, ao fim, falassem de tudo. Contrária a essa perspectiva está a afirmação de que criança e infância são interdependentes, já que não é possível deixar de apreender na criança a infância, muito menos de reconhecer que na infância há uma expressão da criança. Mas as duas categorias, se se aproximam e se afirmam, também se afastam e se negam e não são as mesmas. Ambas se constituem como categorias históricas e sociais, mas a criança revela o indivíduo e a infância revela o tempo social e histórico em que esse indivíduo se constitui e constrói a sua história. 24 Trecho da cantiga “Ciranda, cirandinha”, de autoria desconhecida. 35 Nesse contexto, a SI assume um papel preponderante. Ao romper com as clássicas teorias da socialização, o campo emergente enuncia uma orientação epistemológica distinta em face do conhecimento prevalecente de algumas teorias psicologizantes. A nova ênfase deslocase para as centradas na noção de desenvolvimento e de comportamento, que, conforme Nazário (2011, s.p.), “definem e legitimam modelos padronizados de desenvolvimento infantil, remetendo as crianças à condição de subalternidade”. Portanto, nesta seção, intenta-se abordar os elementos essenciais, bem como as rupturas e desafios que contribuíram para o desenvolvimento dessa nova abordagem sociológica da infância. Uma abordagem que, ao buscar compreender a criança como ser biopsicossocial e a infância como categoria estrutural da sociedade, tem trazido diversas contribuições para o campo do conhecimento científico, concorrendo para renovar o debate nas ciências sociais e humanas nos dias atuais. Assim, são contempladas aqui: as mudanças no modo de perceber e conceber as crianças e as infâncias até o momento atual, em que estas são tomadas como conceitos centrais pela SI; o contexto originário, bem como os principais pesquisadores e suas contribuições ao novo campo de estudos sociológicos da infância; as categorias fundamentais e as distintas correntes que orientam esse campo; por fim, algumas considerações sobre a disseminação e abrangência da SI no Brasil. 3.1 “Já passou a chuva, o sol já vai surgindo...”25 Criança e Infância segundo a perspectiva do novo paradigma sociológico: a evolução do objeto e a autonomia conceitual Sabe-se que toda ciência necessita de um ponto de partida e que geralmente esse se consubstancia num objeto formal de estudos eleito a partir de interesses e necessidades. Desse modo, a pretensão nesse momento é a de situar os caminhos sinuosos que os conceitos de “criança” e “infância” vêm percorrendo, no entrelaçado de situações tecidas em tempos e espaços múltiplos e em processo de mudanças contínuas, a partir das suas várias condições como objeto: objetos-coisa, objetos de estudos e objetos-centrais. Nessa trilha de proposições, estudos evidenciam que, muito antes do interesse científico, as crianças já carregavam em si o status de objeto. A rigor, antes de uma aproximação cuidadosa e sensível, para além dos cuidados básicos, que também eram precários, esses seres representavam exclusivamente objetos-coisa, sem valor, espaço e aceitação, ou seja, sem significações sociais e subjetivas, não havendo, naquele cenário, a consciência da infância como 25 Trecho da cantiga “A dona aranha”, de autoria desconhecida. 36 uma categoria socialmente reconhecida, que, como estabeleceu a historiografia da infância de Ariès (1981)26, é algo que, com efeito, só se institui na era moderna. Assim, “suscitada e tornada necessária pelo funcionamento do dispositivo da infantilidade” (CORAZZA, 2002, p. 79), não com sentido de afeição pela criança, mas com a finalidade de possibilitar “a consciência da particularidade infantil, ou seja, aquilo que distingue a criança do adulto [...]” (KRAMER, 2006, p. 17), a infância “foi o resultado de um processo complexo de produção de representações sobre as crianças, de estruturação dos seus quotidianos e mundos de vida e, especialmente, de constituição de organizações sociais para as crianças”. (SARMENTO, 2004, p. 11). Nessa direção, “remetidas para o limbo das existências meramente potenciais, durante grande parte da Idade Média, as crianças foram consideradas como meros seres biológicos, sem estatuto social nem autonomia existencial” (SARMENTO, 2004, p. 10), configurando-se em grandes ausentes ou mudos da história. Acerca do exposto, Corazza (2002, 81) apresenta as seguintes elucidações: [...] no chamado “passado” – da Antiguidade à Idade Média-, não existia esse objeto discursivo a que chamamos “infância”, nem essa figura social e cultural chamada “criança”, já que o dispositivo de infantilidade não operava para, especificamente criar o “infantil”, embora já maquinasse como máquina, que vinha operativamente funcionando. Não é que não existissem seres humanos pequenos, gestados, paridos, nascidos, amamentados, crescidos – a maioria deles mortos, antes de crescerem-, mas é que a eles não era atribuída a mesma significação social e subjetiva [...] nem a infância, nem a criança, nem o infantil foram considerados, em qualquer medida, sequer problemas. Com o passar do tempo, o descrito cenário de indiferenças defrontou-se com uma avalanche de inquietações, que, por sua vez, exigiam intensas mudanças, tendo em vista que o que já se sabia (a mesmice) não “cabia” mais, sendo preciso enveredar pelos desvios que timidamente emergiam. Consequentemente, a demanda por significativas modificações empreenderia certa sensibilização no olhar e no fazer científico, que, a partir de então, retiraria do limbo os objetoscoisa, transformando-os em convenientes e indispensáveis objetos de estudos, particularmente da Pedagogia e da Psicologia, sobre os quais se tinha muito a dizer. E assim, ininterruptamente muito se veio dizendo. Falou-se sobre a criança e o seu desenvolvimento nos mais diversos sentidos, ou seja, físico, cognitivo, afetivo, social; falou-se sobre a sua saúde, sobre o seu pertencimento ou não a uma configuração familiar, sobre a sua 26 De acordo com Corazza (2002), somente a partir do estudo de Ariès, a existência ou a não existência de um conceito de infância anterior aos séculos XIII ou XIV tem funcionado como foco constante de debates, acrescido do tratamento dispensado pelos adultos dos séculos passados às crianças e expresso na pesquisa das atitudes dos adultos em relação às crianças e das relações pais/filhos. 37 educação, sobre a sua escola e os diversos lugares em que se inseriu; falou-se sobre a infância, suas características e configurações; falou-se sobre os aparatos legais que regulamentam a criança e a infância, circunscrevendo direitos e deveres a esses sujeitos e ao seu tempo social e histórico de vida; enfim, falou-se demasiadamente sobre, sobre, sobre... Ademais, convém esclarecer que esse movimento científico não esteve independente do debate social que ocorria em prol dos direitos da criança. Em 1989, tem-se a adoção dos preceitos da Convenção dos Direitos das Crianças (CDC), que, pautada em quatro princípios base – participação, sobrevivência e desenvolvimento, interesse superior da criança e não discriminação –, aprovou 54 artigos ratificando o que fora expresso há três décadas na Declaração dos Direitos da Criança. Para Sirota (2001, p. 19), esse momento “simboliza o acesso da criança, no final de uma longa história de emancipação, ao estatuto de sujeito e à dignidade da pessoa”. Todavia, a inédita apreciação abordada acima não retirou a(s) criança e a(s) infância(s) da condição de silenciamento ou marginalização. Isso porque, no que tange ao plano jurídico, a própria CDC apresenta-se, segundo Sarmento e Pinto (1997, s.p.), de modo insatisfatório, uma vez que traz em seu bojo ambiguidades e paradoxos que têm conduzido a algumas incongruências na realização das medidas políticas e econômicas necessárias à concretização desses direitos: [...] a realidade social não se transforma por efeito simples da publicação de normas jurídicas; as desigualdades e a discriminação contra (e entre) as crianças assentam na estrutura social, pelo que a proclamação dos direitos, pese embora o seu interesse e alcance, constitui, no quadro da manutenção dos factores sociais de desigualdade e discriminação, uma operação com acentuada carga retórica, de efeitos em grande medida ilusórios. Além disso, nesse momento, o contexto científico que adotava a(s) criança e a(s) infância(s) como objetos de estudos sustentava-se, em grande medida, por uma perspectiva adultocêntrica que, além de contribuir com a manutenção desses como objetos passivos ou parte de outros julgados mais relevantes, impediu-os, por um longo período, de alcançar a emancipação da subordinação imposta. Nas palavras de Dias (2012, p. 64): [...] o fato é que as pesquisas orientadas sobre a infância quase sempre a analisaram como parte constituinte de outros objetos de estudo, em grande parte, da família. Ou seja, as crianças e a infância não eram dotadas de autonomia conceitual e não eram compreendidas como categorias de estudo. Com base nessas conjecturas, Sarmento (2007) afirma que os saberes constituídos sobre a criança e a infância estiveram submetidos a um processo de (in)visibilidade de duas grandes ordens: uma de “natureza social” e outra de “natureza epistemológica”, que, imbricadas, apoiam-se e legitimam-se mutuamente. 38 Conforme o autor, a causa de ordem social refere-se à (in)visibilidade histórica e cívica, em que se coadunam a concepção de “criança” como o não adulto, um ser incompleto, desprovido de vontades e racionalidades próprias, que deveria ser controlado e domesticado pelos processos de socialização, e a de “infância” como a idade da não razão, da ausência ou da negação das características de um ser humano considerado “completo”, com ênfase na ausência da linguagem: a idade da não fala. Por sua vez, a causa de ordem epistemológica refere-se à (in)visibilidade científica, que, pautada em uma perspectiva dominante – e autoritária –, de produção de conhecimento (teorias da socialização e do desenvolvimento infantil, presentes na pedagogia, na psicologia, na antropologia, na sociologia...), há muito tempo vem rasurando as interpretações das crianças na ação social. Para Sarmento (2007, p. 26), esse processo de iluminação-ocultação deriva das concepções historicamente construídas sobre as crianças e dos modos como elas foram inscritas em imagens sociais, por meio das quais “tanto delas sabemos quanto, numa ciência que tem sido predominantemente produzida a partir de uma perspectiva adultocentrada, as vivências, culturas e representações das crianças escapam-se ao conhecimento que delas temos”. Logo, em contraposição a esse contexto apreendido por atos simbólicos de expressões de adultocentrismo, com base no qual sociólogos franceses e ingleses frequentemente qualificavam a criança e a infância como fantasmas onipresentes, como marginalizadas, excluídas, invisíveis (SIROTA, 2001), o tempo, impulsionado pelas necessidades de desconstrução-moderna e reconstrução-contemporânea, percebidas em suas contínuas “andanças”, mais uma vez exigiu um avanço que denotasse a evolução desses objetos e do olhar para/sobre eles. Um olhar que não só os compreendesse como categorias imprescindíveis de estudos, mas que também os adotasse como objetos-centrais, isto é, autônomos por direito próprio... Posto isso, é sobretudo em oposição às concepções guiadas por uma perspectiva determinista (estrutural-funcionalista) pensada segundo os aportes durkheimianos – que definem a infância como um simples objeto, inerte a uma socialização imposta pelos valores adultos e regida por instituições, e a criança, como um produto inacabado, isto é, um ser em vias de formação –, que, no interior da Sociologia Clássica, surge um novo campo de estudos. Um campo cuja intenção é fixar os primeiros elementos de uma sociologia da infância, pois que edificado sobre uma dupla afirmação: a de “criança” como sujeito, como ator social construtor de sua infância e ativo no seu processo de socialização, “ora resistindo, ora reinventando, ora 39 imitando, ora aceitando, etc.” (ABRAMOWICZ; OLIVEIRA, 2010, p. 42), e a e “infância” como construção social. (SIROTA, 2001). Nos dizeres de Sarmento (2013, p.19): A rutura com a concepção biologista, teleológica e universalista do desenvolvimento infantil colocou a sociologia da infância na rota de um pensamento questionador da construção social da infância, isto é, da análise do processo histórico de edificação da infância enquanto categoria social, condição estrutural a que as crianças pertencem, pela qual são objeto de conceptualizações, interpretações do modo de ser e prescrições de comportamento e ação, bem como do modo de atuação dos adultos para com elas. Nessa direção, ao dar-se ênfase, mesmo que resumidamente, às transformações científicas pelas quais os conceitos de “criança” e “infância” vêm passando até o contemporâneo desejo de reconhecê-las e tomá-las como objetos-centrais, não se pretende defini-las como as únicas causas do surgimento da SI, ou afirmar que o novo campo surge junto com o sujeito-ator, agora aceito no âmbito científico como protagonista. A proposta é demonstrar que, mesmo não sendo causas suficientes, estas proporcionaram condições fundamentais e eficientes à sensibilização de novos olhares e interesses... 3.2 “Guerreiros com guerreiros, fazem zigueziguezá” 27 O contexto originário e os autores expoentes O ano de 1980 abrange a morada de uma virada paradigmática significativa para os novos estudos da criança e da infância. Nesse momento, surge, na Europa e em alguns países de língua inglesa, um movimento denominado SI, com uma proposta de recomposição de campos direcionada a transformações estruturais e rupturas com paradigmas tradicionais, a partir da visibilidade de uma urgente diferenciação analítica para com o seu objeto de estudos. No dizer de Sarmento (2013, p. 14): O reconhecimento da incompletude e do caráter fragmentário das abordagens que tradicionalmente assumiam a criança como objeto de conhecimento, a crítica a visões teleológicas, lineares e socialmente vazias do desenvolvimento infantil e a recusa de uma epistemologia adultocêntrica estão na base da viragem operada com a emergência dos novos Estudos da Criança. Assim, a partir da sua preocupação social com as crianças e do seu estímulo à emergência de metodologias de pesquisa consistentemente adequadas à compreensão desses sujeitos como porta-vozes de si próprios, a SI tem assumido um papel determinante na gênese dos Estudos da Criança e, consequentemente, tem-se tornado o lugar por excelência da origem de uma nova abordagem da infância. 27 Trecho da cantiga “Escravos de Jó”, de autoria desconhecida 40 Todavia, apesar do consenso acerca dos principais pressupostos que movem os pesquisadores da área, convém destacar que o novo campo teórico não teve as mesmas bases fundantes nos diferentes países em que se constituiu ou se vem constituindo. Acerca disso, Abramowicz e Oliveira (2010) apontam que, na França, a Sociologia da Infância adveio do campo saturado da Sociologia da Educação; na Inglaterra e nos Estados Unidos, surgiu dos estudos feministas e da Antropologia; no Brasil, o campo começou a constituir-se a partir da década de 1990, originando-se da confluência prioritária entre pedagogos e sociólogos. Nesse emergente campo de estudos da infância, destacam-se alguns expoentes autores, originários de diferentes regiões do mundo e áreas do saber, que merecem consideração: o dinamarquês Jens Qvortrup, o português Manuel Jacinto Sarmento, o britânico Alan Prout, o norte-americano William Arnold Corsaro, a francesa Régine Sirota. Considerado como um dos principais teóricos fundadores da SI, Jens Qvortrup, durante estada no Brasil, concedeu uma entrevista às pesquisadoras Breda e Gomes (2010), para as quais expôs suas concepções e alguns apontamentos relevantes dos seus estudos sobre a(s) infância(s). O autor dinamarquês afirma que o interesse pelo campo surgiu no início da década de 80, ao coordenar dois grandes projetos a respeito da família, quando percebeu que a infância e as crianças não faziam parte do rol de interesses dos que pesquisavam a temática: era como se não tivessem vida própria. Desse modo, ao tentar compreender o status da infância na sociologia daquela época, Qvortrup descobriu que era mais ou menos inexistente – e foi assim que tudo começou. O autor esclarece que, desde o início, o foco principal das suas pesquisas sobre a infância tem sido o estrutural e que, sobretudo, tem lidado com estudos documentais e estatísticos. A infância é analisada pelo teórico a partir de uma perspectiva geracional, com base na qual se tenta compreender as condições gerais de vida das crianças e da infância. Com relação ao trabalho infantil, Qvortrup argumenta que, com a chegada da era moderna, na qual o conhecimento é enaltecido, o trabalho infantil torna-se obrigatório, uma vez que, a partir de então, as crianças deixaram de realizar trabalhos manuais para também realizar a produção do conhecimento a partir do seu trabalho na escola. (BREDA; GOMES, 2010). Em 1993, após criticar a indiferença estrutural em relação às crianças, Jens Qvortrup publica nove teses sobre a “infância como fenômeno social”, que fundamentam os estudos sociológicos da infância: Tese 1: A infância é uma forma particular e distinta em qualquer estrutura social de sociedade; Tese 2: A infância não é uma fase de transição, mas uma categoria social permanente, do ponto de vista sociológico; Tese 3: A ideia de criança, em si mesma, é problemática, enquanto a infância é uma categoria variável histórica e intercultural; Tese 4: 41 Infância é uma parte integrante da sociedade e de sua divisão de trabalho; Tese 5: As crianças são coconstrutoras da infância e da sociedade; Tese 6: A infância é, em princípio, exposta (econômica e institucionalmente) às mesmas forças que os adultos, embora de modo particular; Tese 7: A dependência convencionada das crianças tem consequências para sua invisibilidade em descrições históricas e sociais, assim como para a sua autorização às provisões de bemestar; Tese 8: Não os pais, mas a ideologia da família constitui uma barreira contra os interesses e o bem-estar das crianças; Tese 9: A infância é uma categoria minoritária clássica, objeto de tendências tanto marginalizadoras quanto paternalizadoras. (QVORTRUP, 2011). Para Nascimento (2011, p. 200), “o texto apresenta as principais ideias que formulam o novo paradigma dos Estudos Sociais da Infância, constituindo-se como fundamento teórico dos estudos e das pesquisas posteriores do campo”. Desse modo, torna-se evidente a relevante influência desse teórico que, ao estabelecer importantes conceitos no campo, acrescenta uma nova perspectiva aos estudos sociológicos de modo geral, bem como edifica outro modo de estudar a infância. Interlocutor privilegiado dos principais cientistas sociais portugueses que se interessam pelos estudos sociológicos da infância, Manuel Sarmento, além de contribuir intimamente com a construção da Sociologia da Infância no seu país de origem, isto é, Portugal28, também é o grande responsável pela entrada do novo campo no Brasil, a partir de um intenso e dedicado trabalho realizado com pesquisadores brasileiros. Nessa direção, dentre as principais ideias do pesquisador, destacam-se: a modernidade como configuradora da norma social da infância, instituindo regras, pela fundação de instituições e formulação de princípios e orientações que preveem um conjunto de interdições e prescrições que negam ações, capacidades ou poderes às crianças; as crianças como produtoras de culturas em interação constante com seus pares e os adultos, isto é, com base em uma conexão com outras formas culturais presentes no mundo e a partir de uma resistência à inculcação de normas e valores fixados pelos programas culturais de governo; o reconhecimento da alteridade da infância, uma vez que as crianças utilizam formas específicas de inteligibilidade, de representação e simbolização do mundo; o brincar como uma das atividades mais sérias da criança; a ludicidade como uma demarcação da alteridade entre as crianças e os adultos; a capacidade de ressignificações constantes pelas crianças, vistas como atores capazes de transformação; o conceito de geração como central na SI, e a infância como uma categoria geracional, não como uma idade em transição, mas uma condição social que 28 Conforme Sarmento (2006), a Sociologia da Infância em Portugal nasceu, de algum modo, da confluência dos estudos educacionais com estudos sociológicos no âmbito da família e das ciências da comunicação. 42 corresponde a uma faixa etária com características distintas das outras faixas etárias, em cada período histórico, que abarca elementos homogêneos (características comuns a todas as crianças) e heterogêneos (fatores que distinguem as crianças nos diferentes contextos); a importância da perspectiva diacrônica da geração, com base na qual as crianças de hoje devem ser vistas com distanciamento das nossas experiências do passado; a criança como participante do mundo de trabalho, da produção e do consumo; proposições acerca de trabalhos infantis, nos quais se englobam o escolar, o agrícola, o doméstico, o das empresas, o da rua, entre outros; Infância e exclusão social... (SARMENTO, 2002; SARMENTO, 2004; SARMENTO, 2005; SARMENTO 2005; SARMENTO; PINTO, 1997). Nessa trilha de proposições, Delgado (2010, p. 27) salienta que Manuel Jacinto Sarmento, a partir do seu pensamento transgressor e crítico, bem como da sua participação em diversos âmbitos acadêmicos, tem contribuído “com o movimento político de resistência da Sociologia da Infância [...] que luta pela desocultação da infância e das crianças na produção científica, nos discursos, nas instituições, nas políticas e nos diferentes lugares ocupados pelas crianças”. De modo considerável, Alan Prout também se constitui como um dos autores responsáveis pela sensibilização de uma nova forma de compreender a infância, bem como pela emergência da SI como um campo de estudos. Nesse sentido, o teórico tem privilegiado, em seus trabalhos, discussões a respeito da infância como um fato social, da participação das crianças, do cotidiano infantil e das relações entre educação e saúde e, sobretudo, das relações das crianças (aprendizagens) com tecnologias, especialmente por meio de jogos eletrônicos. Conforme Borba e Lopes (2010), Prout propõe em seus estudos uma diferenciação para os estudos da infância, que, nos anos 1980 ganham um novo sentido a partir da fase sociológica. O teórico indica que são quatro abordagens identificadas: a da “criança socialmente construída” (extingue-se a ideia de infância universal, propondo-a como um fenômeno da cultura e da história, que varia no tempo e no espaço em que incide); a da “criança tribal” (situa-se o olhar no próprio universo das infâncias e das crianças, compreendendo estas como sujeitos que contribuem para a reprodução e produção da cultura e da sociedade em que estão inseridas); a da “criança integrante de um grupo minoritário” (revela as relações desiguais de poder dos adultos sobre as crianças e o consequente apagamento dos interesses e intenções das crianças); por fim, o da “criança socioestrutural” (concebe as crianças como um grupo de atores sociais, de cidadãos que possuem direitos e necessidades, em relação ao qual a sociedade se organiza e se estrutura). 43 Nesse sentido, as autoras apontam que, apesar das relevantes contribuições, as obras de Alan Prout não tiveram muitas traduções no Brasil, o que não o impediu de ser um autor muito referenciado nos trabalhos brasileiros, tendo em vista que as conjecturas expressas acima: [...] se configuraram como obrigatórias, estando presentes em grande parte dos textos desenvolvidos no campo da infância, o que o ajudou a propagar suas ideias não só no meio acadêmico brasileiro, mas também entre as instituições que acolhem crianças pequenas, nos cursos de formação de professores, nos programas de pós- graduações, nos diferentes grupos de pesquisa etc (BORBA; LOPES, 2010). Sem dúvida, os novos estudos sociológicos da infância contaram com a participação comprometida de William Corsaro, que, por esse motivo, também é considerado um dos principais responsáveis pelo desenvolvimento da Sociologia da Infância. O teórico norteamericano, ao rever teorias tradicionais sobre os processos de socialização e de desenvolvimento infantil, propõe uma abordagem teórica (interpretativa) alternativa ao estudo da infância, que visa reconceituar o lugar das crianças na estrutura social e destacar as contribuições exclusivas que estas dão ao seu próprio desenvolvimento e socialização. Nesse sentido, suas publicações têm priorizado discussões que levam em conta os seguintes pressupostos: a substituição das visões que compreendem a criança como um mero receptor passivo pela de sujeito ativo, coconstrutor de sua inserção na sociedade e na cultura; a compreensão da infância a partir de uma parceria efetiva com as crianças, tomando-as como competentes para falar de si e do mundo em que se inserem; a ênfase nas relações de pares, superando o foco no desenvolvimento individual em termos de seus desfechos no futuro. (CORSARO, 2005; CORSARO, 2009; CORSARO, 2009; CORSARO, 2011). De acordo com Muller e Carvalho (2010, p. 44-45), dois aspectos chamam a atenção no conjunto das publicações do autor: a transdisciplinaridade, revelada no número significativo de trabalhos com parceiros de Psicologia e Educação e o potencial de impacto internacional dos seus trabalhos, que se vêm destacando em inúmeras traduções e republicações em diversos idiomas. Assim, as autoras enfatizam que “Corsaro contribui para a consolidação da Sociologia da Infância e para a reflexão sobre caminhos alternativos para práticas pedagógicas e políticas públicas de Educação Infantil”. Por sua vez, em entrevista cedida à revista francesa Diversité, em 2005, Regine Sirota afirma que o seu interesse pela SI surgiu a partir do momento em que se deu conta de que os pesquisadores franceses não se interessavam verdadeiramente, nas suas pesquisas, pelas crianças segundo os seus processos de socialização, dos quais elas são objetos e atores ativos, mas essencialmente pela criança enquanto aluno. Dessa forma, desde 1999, Sirota tem-se dedicado ao estudo inovador das festas de aniversário das crianças como um ritual de 44 socialização e civilidade, por acreditar que esse rito e as inúmeras relações ou especificidades que o perpassam favorecem a construção da identidade da criança. Segundo Abramowicz (2013, p. 68-69), atualmente Sirota pesquisa as festas de aniversário na literatura infantil, e, para compor os seus estudos, ou seja, para empreender a análise desse rito considerado de integração e não de passagem, Sirota: [...] faz uso de todo o repertório e instrumental teórico construído pela Sociologia da Infância: protagonismo infantil, autoria social, cultura da infância, socialização e identidade social, além dos conceitos de civilidade (Norbert Elias), de doação (conforme Marcel Mauss analisou o dom e o contradom). Também faz uso da metodologia consagrada da antropologia como a etnografia, além de todo o repertorio da sociologia que implica a análise dos processos de socialização. De forma geral, percebe-se que os sociólogos da infância destacados estão intimamente comprometidos com a composição do novo campo. Um campo que, ao questionar os modos de abordagem, não só no plano teórico como também no disciplinar ou metodológico – que tomam a criança “[...] pelo que não é e pelo que lhe falta em relação ao adulto: in-competente, i-matura, i-racional” (BORBA, 2008, p. 36), ou como mero objeto de socialização e a infância como o período representativo de uma inteligência fraca, frágil e de constituição delicada (SIROTA, 2001) –, volta-se para o ator, para as características desse como “ser-que-é”, na completude de suas competências e disposições atuais (SARMENTO, 2013) tentando libertá-lo do implícito e fazê-lo emergir por inteiro no campo do conhecimento como objeto central, ativo e competente. 3.3 “Poti, poti, perna de pau, olho de vidro e nariz de pica-pau, pau pau...”29 Perspectivas teóricas: categorias e correntes No decurso das últimas décadas, ao dissociar-se progressivamente de outras variantes disciplinares da Sociologia, como a Sociologia da Educação e a Sociologia da Família, ainda que em constante interlocução com estas, a SI tem assumido maior expressão por meio da formulação de teorias e abordagens distintas, da delimitação de problemáticas autônomas, bem como da frutífera construção de conceitos originais (SARMENTO, 2008). Destarte, intenta-se, com este subitem, apresentar, de forma breve, alguns dos conceitos fundamentais propostos pelo campo emergente, dentre os quais se destacam: geração, diversidade, infâncias plurais, alteridade da infância, culturas infantis, reprodução interpretativa, e participação infantil, bem como as três grandes correntes teóricas que distintamente o orientam. 29 Trecho da cantiga “Borboletinha”, de autoria desconhecida. 45 De acordo com Sarmento (2005, p. 376), o primeiro exercício a que se propõe a SI é o de considerar a geração como uma categoria estrutural relevante na análise dos processos de construção e estratificação das relações sociais, visando “tornar patente o processo sóciohistórico de constituição das gerações, de relação entre diferentes grupos geracionais, e os aspectos simbólicos constitutivos da diferença entre gerações, seja no plano diacrónico, seja no plano sincrónico”. Em outras palavras, o autor indica que o conceito de geração, a partir da sua reconceitualização, operada pela SI com base em referências clássicas, [...] procura dar conta das interacções dinâmicas entre, no plano sincrónico, a geração-grupo de idade, isto é, as relações estruturais e simbólicas dos actores sociais de uma classe etária definida e, no plano diacrónico, a geração-grupo de um tempo histórico definido, isto é o modo como são continuamente reinvestida de estatutos e papeis sociais e desenvolvem práticas sociais diferenciadas os actores de uma determinada classe etária, em cada período histórico concreto (SARMENTO, 2005, p. 367). A partir desse novo prisma, ao recusar uma concepção uniformizadora da infância, a nova vertente sociológica, além de considerar os fatores de homogeneidade que abrangem as crianças, assinala a pertinência da consideração dos fatores de heterogeneidade como a classe social, o gênero, a etnia, entre outros. E, nesse cenário, estabelece, pois, o conceito de diversidade como imprescindível para se compreenderem as inúmeras variações intrageracionais que demarcam as condições sociais de existência em que vive esse grupo geracional, possibilitando a existência de múltiplas infâncias. Assim, com base em elementos teóricos e práticos, bem como na assertiva de que os distintos espaços estruturais diferenciam profundamente os modos de ser das crianças, o novo campo de estudos inaugura o termo infâncias plurais, que, para Borba (2008, p. 76), é totalmente justificável: “temos uma diversidade de características dos contextos em que vivem as crianças que determinam formas diferentes de se viver e de se compreender a infância apontando que esse conceito não pode ser único, universal e abstrato”. Nessa direção, ao preconizar como relevante o encontro com os outros (múltiplas infâncias e diversas crianças) – que, por sua vez, apresentam uma diferença radical que se configura nada mais nada menos do que na absoluta heterogeneidade, na absoluta diferença, que diz respeito a nós e ao nosso mundo (LAROSSA, 1998) –, a SI apela pelo respeito à diferença, a partir da reivindicação da consideração da alteridade da infância, que se revela exatamente no modo idiossincrático de expressão das crianças, na condição de outros, diferentes dos adultos. Fomentando essa discussão, Soares, Sarmento e Tomás (2005, p. 54) argumentam que: 46 Considerar a alteridade da infância implica ter em linha de conta o conjunto de aspectos que a distinguem do Outro-adulto, o que significa o reconhecimento das culturas da infância como modo específico, geracionalmente construído, de interpretação e de representação do mundo. Sarmento (2005) afirma que a porta de entrada para o estudo da alteridade da infância configura-se tanto na ação das crianças como nas culturas infantis, expressão definida por Corsaro (2009, p. 32) como “um conjunto estável de atividades ou rotinas, artefatos, valores e interesses que as crianças produzem e compartilham na interação com seus pares”. Pautado nessa perspectiva, Corsaro (2011) remete a uma das questões fundamentais propostas pela SI, qual seja, a de que, numa perspectiva sociológica, a socialização não deve ser considerada exclusivamente como uma questão de adaptação e internalização, mas também como um processo de apropriação, reinvenção e reprodução. De tal modo, o autor sugere a noção de reprodução interpretativa com base na premissa segundo a qual: [...] O termo interpretativa captura os aspectos inovadores da participação das crianças na sociedade, indicando o fato de que as crianças criam e participam de suas culturas de pares singulares por meio da apropriação de informações do mundo adulto de forma a atender aos seus interesses próprios enquanto crianças. O termo reprodução significa que as crianças não apenas internalizam a cultura, mas contribuem ativamente para a produção e a mudança cultural. Isto é, as crianças e suas infâncias são afetadas pelas sociedades e culturas das quais são membros (CORSARO, 2009, p. 31). Ademais, Corsaro (2011, p. 128; 129) ressalta que, “[...] na perspectiva de reprodução interpretativa, o foco está no lugar e na participação das crianças na produção cultural e reprodução cultural, em vez de estar na internalização privada de habilidades e conhecimentos adultos pelas crianças” e que, desse modo, “as atividades de crianças com seus pares e sua produção coletiva de uma série de culturas de pares são tão importantes quanto sua interação com adultos”. Dessa maneira, ao procurar desconstruir a persistente afonia e invisibilidade das crianças nas investigações, a fim de concebê-las como atores sociais plenos e de direitos, capazes de formular interpretações sobre os contextos nos quais se inserem, a SI assume a questão da participação infantil como essencial na demarcação de um estatuto social da infância e na caracterização do seu campo científico. Toma, pois, esses seres como elementos válidos e colaborativos na construção do conhecimento, com voz e opinião própria acerca de si. (SOARES; SARMENTO; TOMÁS, 2005). Os autores ressaltam que a proposta de participação infantil configura-se como mais um passo para a construção de um espaço da cidadania da infância, uma vez que tenta recuperar a presença da criança como parceira em todo o processo de trabalho interpretativo, com base no 47 reconhecimento de que sua voz e sua ação são aspectos indispensáveis para o desenvolvimento da investigação. Ainda nessa linha de pensamento, Alderson (2005, p. 423) aponta que: [...] envolver todas as crianças mais diretamente nas pesquisas pode resgatá-las do silêncio e da exclusão, e do fato de serem representadas, implicitamente, como objetos passivos, ao mesmo tempo em que o respeito por seu consentimento informado e voluntário ajuda a protegê-las de pesquisas encobertas, invasivas, exploradoras ou abusivas. Diante dessas proposições, é possível perceber a atribuição de um protagonismo inédito à criança, bem como a valorização de sua “voz”, o que contribui para uma inversão hierárquica discursiva na lógica preponderante dos processos de subalternização. Nos termos de Rego (2013, p. 5), esse protagonismo “é revolucionário na medida em que, geralmente, os estudos sobre a infância são pautados somente por aquilo que os adultos falam sobre e pelas crianças”. Logo, Sarmento e Marchi (2008, p. 2) apontam que os indicadores da constituição do campo estão todos basicamente estabelecidos: i) a delimitação conceptual da infância como categoria social e as crianças como actores sociais concretos; ii) a produção de teorias, quadros conceptuais e frames interpretativos distintos – e.g., a renovação do conceito clássico de geração (Qvortrup 2000; Alanen 2001; Mayall 2002; Sarmento 2005) –, a tese da “reprodução interpretativa” (Corsaro 1997), os conceitos de “ofício de aluno” e de “ofício de criança” na SI francófona (Chamboredon e Prevot 1982; Sirota 1993) e o “construtivismo social” da infância (James, Jenks e Prout 1998); iii) a definição de procedimentos analíticos e de metodologias investigativas privilegiadas e, senão específicas, ao menos tematicamente reorientadas pela natureza do objecto-sujeito de conhecimento: as crianças e a infância (Cristhensen e James 2005); iv) a constituição de dispositivos de encontro e intercâmbio entre pesquisadores (especialmente os Comités de Pesquisa no interior das organizações sociológicas acima referenciadas); v) a realização de múltiplas reuniões científicas de divulgação do conhecimento produzido e a publicação de revistas e colecções temáticas de livros especializados; vi) a criação de programas de estudos, sobretudo de estudos avançados ao nível da pósgraduação, reportados expressamente à disciplina. Não obstante, convém esclarecer que a SI não perfaz os Estudos da Criança e tão pouco compõe uma nova teoria substitutiva da Psicologia do Desenvolvimento, pois, como bem elucida Sarmento (2013, p. 20), essa disciplina científica, filiada à Sociologia: [...] não apenas está aberta a diferentes teorias e abordagens, no seu interior [...] como está consciente de que não conseguirá cumprir seu programa teórico se não se abrir determinantemente a um trabalho teórico interdisciplinar, que contribua para impedir uma visão fragmentária da criança e que seja sustentado numa superação de dicotomias tradicionais, profundamente redutoras da compreensão da infância [...]. À vista disso, torna-se relevante salientar que a SI, como todas as ciências, não está livre de diferentes abordagens e crenças em seu próprio campo e que a controvérsia, além de ser-lhe 48 inerente, mostra-se como uma das peculiaridades que a definem. Nessa perspectiva, Sarmento (2008, p. 30) aponta que: As correntes e abordagens correspondem, mais do que a opções epistemológicas distintas, intenções analíticas que se caracterizam por determinadas preferências por problemáticas próprias e por orientações metodológicas predominantes (as quais são também suscitadas pela natureza das temáticas escolhidas). Nesse sentido, no interior de cada “corrente” encontrar-se-á não propriamente a coerência teórica ou a unidade paradigmática (ainda que cada paradigma suscite porventura opções temáticas e metodológicas preferenciais), mas um campo empírico distinto, “estilos” de investigação e temáticas diferenciadas. Desse modo, Sarmento (2008, p. 11) julga indispensável considerar as diferenças internas ao novo campo de estudos da infância, que variam de tipo, intensidade e consequência, uma vez que “tanto podem ser de ênfase, foco privilegiado, método ou problemáticas seleccionadas, como da escola de pensamento sociológico em que se filiam [...]”. Os estudos da SI subdividem-se, portanto, em três correntes fundamentais: a perspectiva estruturalista (estudos estruturais), a corrente interpretativa (estudos interpretativos) e a orientação crítica (estudos de intervenção), as quais são aqui brevemente abordadas, conforme suas distinções quanto: ao objeto, à ênfase, às metodologias de pesquisa e às temáticas que selecionam. No que diz respeito à perspectiva estruturalista, a infância é adotada na sua condição de categoria permanente na estrutura social; logo, assumem-se como objeto as “condições estruturais” em que a infância se situa e em que ocorrem as possibilidades de ação das crianças. Essa abordagem enfatiza a infância como uma categoria geracional e busca, com base numa perspectiva macroestrutural (considerando indicadores demográficos, econômicos e sociais), compreender as relações sincrônicas e diacrônicas dessa categoria geracional com as outras e de que modo essas relações afetam as estruturas sociais. Assim, a orientação metodológica encaminha-se a partir de estudos extensivos, métodos estatísticos e estudos documentais. Com relação aos temas privilegiados, destacam-se as imagens históricas da infância, políticas públicas, a demografia e a economia, direitos e cidadania. À frente dos estudos embasados por essa corrente estão os seguintes autores: Qvotrup; Sarmento; Sgritta; Ambert, entre outros. (SARMENTO; MARCHI, 2008; SARMENTO, 2008; SARMENTO 2013). Por sua vez, a corrente interpretativa, que caracteriza a maior parte dos estudos sociológicos da infância em várias tradições linguísticas, prioriza como objeto as práticas sociais das crianças (entendidas como ação ou agency); ou seja: o processo da construção social e o papel da criança como sujeito ativo nessa construção. A ênfase é posta no que Corsaro (2011) denomina de “reprodução interpretativa”, que diz respeito à capacidade que as crianças têm, nas interações de pares, de interpretação e transformação da herança cultural transmitida 49 pelos adultos. Essa perspectiva orienta-se metodologicamente por estudos etnográficos com crianças, estudos de caso e outros estudos qualitativos, priorizando temas tais como: as relações de pares e com os adultos (interações intra e intergeracionais), as culturas da infância, os rituais e as práticas sociais, as crianças no interior das instituições, no espaço urbano, bem como as brincadeiras, o jogo e o lazer no interior desses e outros contextos variados. Os autores que se destacam nessa corrente são: Corsaro; Sirota; Montadon; James; Prout; Jenks. (SARMENTO; MARCHI, 2008; SARMENTO, 2008; SARMENTO 2013). Por último, mas não menos relevante, a orientação cuja inscrição no paradigma crítico é dominante preocupa-se em analisar a infância como categoria social sobre a qual se exprime a dominação social (grupo que vive condições especiais de exclusão). A ênfase então é dada à “emancipação” social da infância como componente da emancipação social mais ampla, ou seja, a uma intenção transformadora da realidade social, o que mobiliza metodologias que possibilitem uma intervenção junto às crianças, especialmente nas escolas, nos centros de acolhimento ou no espaço urbano, como é o caso da investigação-ação (investigação participativa). Assim, o programa de “emancipação” enunciado pode estar centrado exclusivamente na infância ou envolver outras “condições sociais”, como as de gênero, etnia, classe social, por exemplo. Portanto, os temas privilegiados são: dominação política, social e cultural da infância, além da patriarcal e de gênero, assim como os maus-tratos, as políticas públicas e os movimentos sociais que destacam a condição das crianças em posição subalterna: as crianças pobres, o trabalho infantil, os meninos de rua, as crianças institucionalizadas, as crianças migrantes ou pertencentes a grupos étnicos minoritários. Nessa corrente, sobressaemse os estudos dos seguintes autores: Alanen; Mayal; Liebel; Sephens. (SARMENTO; MARCHI, 2008; SARMENTO, 2008; SARMENTO 2013). De acordo com Sarmento e Marchi (2008), a diferenciação entre as três correntes corresponde, aproximadamente, à distinção teórica entre os modelos clássicos da Sociologia e à ênfase em três conceitos-chave que estruturam o pensamento sociológico, que são: a estrutura, a acção e a práxis. Posto isso, à Sociologia da Infância compete o desafio de ser capaz de articular esses conceitos, comumente utilizados de forma dicotômica ou não integrada, tanto no campo teórico quanto no conceitual. Os autores mencionados indicam que essa é a ordem do dia e que, para tanto: [...] a SI não poderá deixar de se articular com o debate interno da Sociologia contemporânea e nem deixar de integrar, no seu escopo teórico e no trabalho analítico da realidade empírica dos mundos sociais das crianças, aspectos e dimensões usualmente separados ou parcialmente subalternizados, que carecem de ser articulados na sua problemática complexidade de refracção de uns sobre os outros (SARMENTO; MARCHI, 2008). 50 Nessa direção, Sarmento (2008) salienta que, apesar de distintas, as correntes, abordagens e teorias presentes na SI confluem num conjunto de aspectos e que, mesmo que, de algum modo, esses pontos sejam comuns a outros campos disciplinares e diferenciadamente enfatizados pelas diversas abordagens, eles constituem a síntese das contribuições conceituais da disciplina. Assim, de modo articulado e sintético, o autor mencionado apresenta esses pontos de confluência teórica sob a forma de 10 proposições: 1. A infância deve ser estudada em si própria (ou a partir do seu próprio campo), [...] isto é, tomando como ponto de partida aquilo que é distintivo no grupo geracional da infância face a [sic] outros grupos geracionais [...] assumindo a autonomia analítica da acção social das crianças (e não dos adultos sobre as crianças). 2. A infância é uma categoria geracional que necessita de ser estudada de modo a articular os elementos de homogeneidade (características comuns a todas as crianças, independentemente da sua origem social [...]) com os elementos de heterogeneidade, inerentes ao facto das crianças serem também desigualmente distribuídas pelas diferentes categoriais sociais (classe social, género, etnia, subgrupos etários). 3. O conceito de geração é central na configuração sociológica da infância, porque permite resgatar, quer no plano da análise de estrutura social, quer no plano da análise da acção social das crianças, aquilo que é distintivo. 4. A construção social da infância, historicamente consolidada, realizou-se segundo o princípio da negatividade - conceito que diz respeito ao processo social de negação de determinadas características ou condições de um grupo [...] Em contraposição com isto, a Sociologia da Infância estrutura-se em torno da ideia ou paradigma da competência infantil, isto é todas as crianças são competentes no que fazem, considerando a sua experiência e as suas oportunidades de vida, sendo que as suas áreas de competência são distintas das áreas de competência adulta. 5. A infância não é uma idade de transição [...] mas uma condição social que corresponde a uma fase etária com características distintas, em cada momento histórico, de outras fases etárias. 6. As condições de vida das crianças necessitam, igualmente, de ser estudadas considerando a especificidade da infância perante as esferas sociais da produção e da cidadania, isto é, a divisão social do trabalho, a repartição da riqueza, as práticas de consumo, por um lado e a organização política, os direitos de participação eleitoral e as estruturas de poder e autoridade na comunidade, em geral, por outro. 7. As crianças são produtores culturais. As culturas da infância [...] exprimem os modos diferenciados através dos quais as crianças interpretam, simbolizam e comunicam as suas percepções do mundo [...]. 8. As instituições para crianças configuram em larga medida o “ofício de criança” [...] isto é, o modo “normalizado” do desempenho social das crianças. 9. As mutações da modernidade têm implicações nas condições de vida das crianças e no estatuto social da infância. As crianças exprimem fortemente as mudanças sociais [...] também interpretam as mudanças e posicionam-se perante elas. 10. A Sociologia da Infância só poderá desenvolver-se se for capaz de se articular com um programa em renovação na própria Sociologia [...], capaz de dar conta das transformações sociais e da “mudança paradigmática” [...] de superar as dicotomias sociológicas tradicionais [...] e de articular o estudo das crianças como indivíduos sociais [...] com a influência das estruturas sociais (em processo contínuo de reestruturação) na configuração da categoria geracional infância. (SARMENTO, 2008, p. grifos do autor). Diante dessa trilha de pressupostos, seria possível pensar em uma Sociologia da Infância no Brasil? Nota-se certo consenso entre alguns autores (QUINTEIRO, 2002; ABRAMOWICZ; 51 OLIVEIRA, 2010, NASCIMENTO, 2013) acerca desta questão: a SI encontra-se em fase de constituição e expansão efervescente nas terras nacionais. 3.4 “Motorista, motorista, olha a pista, olha a pista”30 A Sociologia da Infância no Brasil: um campo de estudos em construção No Brasil, é possível perceber que as expressões “culturas infantis”, “cultura de pares”, “categoria geracional”, “geração”, “reprodução interpretativa”, “ator social”, “sujeito de direitos”, “agente social”, “alteridade”, “protagonismo infantil”, entre outras (e os respectivos conceitos) estabelecidas pela SI, gradativamente estão sendo incorporados a relatos de pesquisas, a trabalhos publicados e apresentados nos mais diversos âmbitos de discussões científicas, bem como ao discurso de pesquisadores e estudantes dedicados, sobretudo, à área de estudos da infância Um recente estudo realizado por Nascimento (2013), com a finalidade de mapear os grupos de pesquisa brasileiros que trabalham com a SI, identificando os conceitos da área mais utilizados por cada um deles para delinear a extensão da pesquisa nesse campo, evidenciou que a nova abordagem de estudos sociológicos vem sendo utilizada por pesquisadores de distintas maneiras, ora sendo tomada como referencial teórico, ora como campo de interlocução. Entre os principais achados da pesquisa, destacam-se: a interface com a educação, especialmente com a educação infantil; o reconhecimento da SI como campo auxiliar nas pesquisas com crianças, e não como um paradigma com projeção significativa, exceto na referência aos métodos etnográficos como particularmente úteis na viabilização de tais estudos; a incipiente preocupação dos grupos em de fato apreender as percepções das crianças sobre a realidade que as cercam e, consequentemente, a emergente necessidade de disseminação e aprofundamento das questões referentes ao campo em todo o país. Nessa direção, Nascimento (2013, p.139) apresenta as seguintes ponderações: Com configurações estáveis e em constante produção teórica, é possível considerar que metade dos grupos hoje existentes, que tratam da sociologia da infância em seus estudos e produções, foram se apropriando de questões do campo e o incorporando em suas reflexões sobre a primeira etapa da educação básica, a educação infantil. Pode-se afirmar, portanto, que a relação entre sociologia da infância e educação infantil no Brasil foi estabelecida na própria origem dos estudos nacionais da temática. Todavia, cabe destacar que, anterior ao movimento da nova vertente sociológica, que, embasada pela perspectiva de um olhar distinto propõe-se reconhecer a criança como um ator social ativo nos processos de produção e transformação cultural, algumas experiências isoladas 30 Trecho da música “Motorista”, de autoria desconhecida. 52 já haviam sido concretizadas, mais especificamente no início do século XX, nas terras nacionais. Um dos pioneiros a enveredar-se por esse tipo de pesquisa foi Florestan Fernandes, que, pela ousadia, pode ser considerado como precursor dos estudos sobre/com a criança e suas expressões culturais. O estudioso, com o objetivo de conhecer os grupos infantis e o folclore infantil, realizou, em 1944, uma investigação com grupos infantis que brincavam na rua, no tempo em que esse espaço, além da escola e do âmbito familiar, constituía-se no lugar privilegiado da infância, nas chamadas “trocinhas”... Nesse estudo, que incidiu sobre as brincadeiras de rua no bairro do Bom Retiro, localizado na cidade de São Paulo, Fernandes traz o registro inédito de elementos constitutivos das culturas infantis, captadas a partir da observação e de entrevistas com crianças moradoras dos bairros operários, que, depois do período da escola, juntavam-se nas ruas para brincar. O pesquisador buscou ouvir suas opiniões e críticas a respeito da dinâmica das “trocinhas”. A respeito do texto em pauta, Quinteiro (2009, p. 30) tece as seguintes considerações: Entendendo a criança como participante ativo da vida social, Florestan Fernandes observa, registra e analisa o modo como se realiza o processo de socialização das crianças, como constroem seus espaços de sociabilidades, quais as características destas práticas sociais, afinal, como se constituem as culturas infantis. Desse modo, a obra As trocinhas do Bom Retiro, “voltando-se não para a análise do repertório lúdico infantil, mas o estudo das suas formas de sociabilidade, expressas na atividade do brincar”, anuncia um olhar que rompe com o entendimento de que a criança usa uma lógica primitivista. (SARMENTO; GOUVEA, 2008, p. 8). Nessa perspectiva, Roger Bastide (1979, p. 154), ao prefaciar o estudo em questão, aponta aspectos de mérito ao trabalho de Florestan: “ele é o resultado de uma observação que começou por uma interpretação profunda; o autor fez parte da grande conjuração das crianças”. Ao ressaltar a necessidade de se multiplicarem os estudos e pesquisas que buscam dar visibilidade às representações infantis, o autor expõe as seguintes orientações para conseguir captar o sentido da infância: Para poder estudar a criança é preciso tornar-se criança. Quero com isso dizer que não basta observar a criança, de fora, como também não basta prestar-se a seus brinquedos; é preciso penetrar, além do círculo mágico que dela nos separa, em suas preocupações, suas paixões, é preciso viver o brinquedo. E isso não é dado a toda a gente (BASTIDE, 1979, p. 154). Nesse bojo, outra experiência do início do século XX, que também deve ser considerada pioneira na perspectiva de “ouvir” as crianças, foi o concurso de desenhos infantis, realizado por Mario de Andrade, a partir do ano de 1937, quando foi chefe do Departamento de Cultura do município de São Paulo. Interessado no que as crianças poderiam revelar, o escritor lançou 53 a proposta, que tinha como objetivo compreender as experiências e os desejos das crianças que frequentavam os parques infantis por meio de seus desenhos, do seu traçar “em folhas de papel suas culturas e a vida vivida e imaginada”. (GOBBI, 2009, p. 82). Nas palavras desta autora: Mário propõe um maravilhamento do olhar que garanta que as crianças cresçam em territórios seus, nos quais possam ser consideradas em sua inteireza, mas também nas relações com os diferentes outros em suas criações e construções das tantas dimensões humanas (GOBBI, 2005, s.p). Ademais, o mais significativo nessa experiência é que havia uma orientação 31 quanto à forma como deveriam ser coletados os desenhos: as crianças deveriam desenhar sem qualquer tipo de direcionamento, imposição de temas ou materiais; os desenhos deveriam retratar a forma como as crianças viam a escola, a cidade, os amigos, a família; enfim, como “viam o mundo” naquele momento histórico. Assim, as produções coletadas ofereciam-se como elementos absolutamente convidativos, podendo ser consideradas, na atualidade, como documentos que nos falam sobre as crianças dos anos 1930, filhas do operariado paulistano que se constituía. (GOBBI, 2009). Ainda nessa linha de proposições, outro trabalho similar que procurou dar visibilidade às percepções das crianças a partir dos seus desenhos foi a experiência realizada por Paulo Freire, então Secretário de Educação em São Paulo, na gestão 1989 a 1992 da prefeita Luiza Erundina. Naquele momento, foi proposto, a todos os professores da Educação Infantil do município, que estimulassem as crianças que frequentavam tais instituições a desenharem-nas conforme suas vivências cotidianas naqueles espaços. Para Gobbi (2009, p. 81), a metodologia de coleta e trabalho com os dados trouxe em seu bojo uma mudança no olhar, pautada em “[...] uma atitude de respeito que, entre outras coisas, resultou na elaboração de políticas públicas que se voltassem em atenção às manifestações dos pequenos”. Pode-se dizer, então, que tais iniciativas, ao tomarem as crianças como participantes ativos e competentes, impulsionaram certa mudança no modo de percebê-las, evidenciando um grande avanço, que resultou, inclusive, na elaboração de políticas públicas com base no que esses pequenos seres expressavam e almejavam. Assim, entre as décadas 1900 e 2000, os estudos e pesquisas da infância desenvolveram-se pautados na concepção de criança como sujeito de direitos, sustentada pela legislação (Constituição Federal de 1988 – CF/88 e Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 – ECA/90), pela presença de Organizações Internacionais (UNESCO, UNICEF, OIT) e organizações não governamentais internacionais. 31 Baseada na ótica da livre expressão. (GOBBI, 2009). 54 Importa ressaltar, todavia, que trabalhos como os de Florestan Fernandes, Mario de Andrade e Paulo Freire, apesar de precursores da confiança na participação infantil baseada numa “escuta atenta” do ponto de vista das crianças, permaneceram adormecidos por um considerável período. Essa questão seria retomada no Brasil somente na década de 1990, pelo sociólogo José de Souza Martins (1993, p. 54), que, ao se preocupar com as complexas questões sociais geradoras da supressão das infâncias, dedicou-se a ouvir os “mudos da história, os que não deixam textos escritos, documentos”, elegendo a criança como testemunha central e competente para falar de e por si acerca dos assuntos que lhe dizem respeito. Ao reconhecer as crianças como os principais portadores da crítica social, Martins (1993, p. 53), além de desafiar a tendência até então fortemente arraigada entre os cientistas sociais – a de se interessarem somente por “informantes que estão no centro dos acontecimentos, que tem um certo domínio das ocorrências, que têm, supostamente, uma visão mais ampla das coisas, que são os arquitetos da cena e da encenação social” –, atribui aos pequenos sujeitos o papel de atores sociais importantes na construção de sua pesquisa sobre a luta pela terra. E isso decorre do fato de reconhecer “que há neles uma rica inteligência dos processos e situações em que estão envolvidos”. (MARTINS, 1993, p. 16-17). Logo, o desafio lançado pelo sociólogo esbarra numa questão de suma importância apontada por Demartini (2009, p. 2, grifos da autora) e que precisa ser considerada por todos os pesquisadores que almejem realizar investigações com crianças: “a importância cada vez maior, em nossos dias, de aprender a ouvir as crianças e os jovens”. Nessa direção, um novo movimento vem ganhando contornos mais definidos no cenário brasileiro de pesquisa. Conforme anunciado, na atualidade, a produção de investigações que utilizam a SI como aporte teórico-metodológico vem-se tornando cada vez mais intensa. Tais estudos, ao abordarem os mais diferentes objetos, bem como ao utilizarem múltiplas e diferentes estratégias, a fim de auscultar as percepções de crianças possuem sobre as diferentes situações que vivem, nos mais diversos contextos que frequentam, têm-se configurado como uma porta aberta às formas idiossincráticas por meio das quais as crianças se apropriam da realidade e a compreendem. Nessa linha de pensamento, é possível perceber uma tímida iniciativa de pesquisadores (MARTINS FILHO, 2010; NASCIMENTO, 2013; RODRIGUES; BORGES; SILVA, 2014) preocupados com o que Jucirema Quinteiro já apontava em 2002: a necessidade do desenvolvimento de trabalhos do tipo “balanço de produção” acerca da temática. De tal modo, em recente estudo com proposta similar, Borges (2014), estimulada por algumas inquietações a respeito do processo de constituição desse campo no país, realizou a 55 leitura de um dos cenários científicos brasileiros, a fim de analisar, quantitativa e qualitativamente, as produções que utilizavam como referencial os pressupostos da SI. Entre essas inquietações, podem-se mencionar: quais as principais características de uma SI brasileira; de que maneira a produção existente vem olhando para a criança e a infância; quais temas, categorias, tendências e referências teórico-metodológicas vêm sendo privilegiados nesse campo que progressivamente se amplia; quais crianças vêm sendo investigadas; quais são os instrumentos considerados mais pertinentes na busca desse encontro com o “outro”... Caracterizada como do tipo “estado do conhecimento”, a pesquisa mencionada teve como material de análise os trabalhos publicados nos anais das reuniões anuais da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped), especificamente no GT-7 (Educação de crianças de 0 a 6 anos), no período compreendido entre os anos de 1998 e 2013. Assim, o mapeamento no portal eletrônico indicado resultou na seleção final de 40 textos. Em suma, a análise dos dados revelou que a SI vem crescendo e se afirmando no Brasil, a partir de um olhar sensível que fomenta a construção de metodologias de investigação ilustradas com e não sobre as crianças e também que, mesmo diante dos inúmeros desafios postos na busca do encontro com a alteridade da infância –, a exigência de um rigor analítico; o cuidado metodológico; a inexperiência adulta em, de fato, “ouvir” e “considerar” a fala das crianças, seja por meio do dito, seja do não dito; a exigência de uma reflexividade contínua dos pesquisadores que, com frequência, estarão diante de manifestações afetivo-emocionais, devendo ocultar suas convicções, a fim de evitar o contágio da pesquisa pelos seus valores, orientações e sentidos políticos; a exigência do “dar a ver” e a ouvir a voz das crianças; o compromisso ético, entre outros – vários pesquisadores brasileiros32 vêm-se esforçando para descentrarem-se de seus olhares de adultos a fim de legitimar as particularidades das crianças a partir de registros das suas próprias concepções, comportamentos e produções culturais, com base numa relação de confiança. A partir desse novo contexto –a de busca de uma inteligibilidade das infâncias pautada na perspectiva dos que constituem essa categoria social (as crianças) –, sobressai-se a necessidade de um agendamento constante de encontros com esses outros33 com base no respeito à alteridade em que se afirmam. 32 Conferir Borges (2014). A percepção das crianças enquanto Outros é o reconhecimento destas enquanto sujeitos que são completos em si mesmos. Tomando as crianças enquanto Outros, instaura-se na pesquisa (e em outras ações para com ela) o desafio de redirecionar o olhar, romper com as perspectivas pelas quais culturalmente aprendemos a enxergá-las: incompletas, sem fala, um vir a ser ... (OLIVEIRA, 2002). 33 56 Desse modo, qual(is) é(são) o(s) lugar(es) social(is) da(s) infância(s) e da(s) criança(s) brasileira(s)? Onde estão esses sujeitos de direitos e deveres, aparentemente reconhecidos, atualmente concebidos e valorizados pela SI como competentes para dizer, mostrar, desenhar, brincar, desejar, temer, chorar, sorrir, sonhar, viver o que consideram significativo? A historiadora Del Priore (2010, p. 7) indica que: As crianças brasileiras estão em toda parte. Nas ruas, à saída das escolas, nas praças, nas praias. Sabemos que seu destino é variado. Há aquelas que estudam, as que trabalham, as que cheiram cola, as que brincam, as que roubam. Há aquelas que são amadas e, outras, simplesmente usadas. Seus rostinhos mulatos, brancos, negros e mestiços desfilam na televisão, nos anúncios da mídia, nos rótulos dos mais variados gêneros de consumo [...]. O movimento da SI apresenta, pois, diferentes possibilidades teóricas e metodológicas para entender a criança a partir dos vários universos por ela transitados e vivenciados, lutando, de tal modo, pela desocultação da infância e das crianças na produção científica, nos discursos, nas instituições, nas políticas e nos diferentes lugares por elas ocupados. Com base nesse cenário, Abramowicz (2010, p. 42) aponta que a maior parte dos estudos com crianças acerca das culturas infantis, isto é, dos modos sistematizados de significação do mundo e de ação intencional realizados por elas (SARMENTO, 2002), vem sendo realizada em contextos escolares34. E isso decorre da configuração desses locais como espaços de institucionalização da infância, que, por sua vez, privilegiam o encontro desses pequenos seres durante um considerável período dos seus dias e, por isso mesmo, locais onde os pesquisadores podem encontrar mais facilmente seus sujeitos de investigação. Posto isso, sem a pretensão de desmerecer as crianças inseridas no ensino fundamental 35 e as pesquisas realizadas com estas nesse e nos mais diversos cenários, toma-se como referência, neste trabalho, as crianças pequenas e as pesquisas realizadas com estas sobre/nos contextos de Educação Infantil, conforme a afinidade exposta na introdução com relação às questões que envolvem essa área. Nessa direção, Cruz (2008, p. 79) afirma que, especificamente no campo da Educação Infantil, tem aumentado a produção de trabalhos que, pautados na imagem de criança competente, tomam-na como possuidora de uma perspectiva própria que deve ser reconhecida e considerada, a fim de contribuir para a compreensão da complexidade, necessidade e importância de escutá-las. 34 Educação Infantil e Ensino Fundamental Tendo em vista as considerações da lei (ECA/90), considera-se criança a pessoa de até doze anos de idade incompletos. 35 57 Assim, a autora ressalta as possibilidades positivas que podem decorrer da valorização desse movimento emergente: Na área da Educação Infantil, as informações que as crianças podem dar são relevantes para se conhecer melhor o que se passa nas instituições de cuidado e educação de crianças pequenas e também para entender como elas veem os processos que aí se desenvolvem, como se sentem, o que temem, o que desejam na sua experiência educativa (CRUZ, 2008, p. 79). De modo consonante, Cerisara (2004) reitera a relevância da ideia exposta e afirma que conhecer as crianças, isto é, suas percepções acerca do que fazem, do que brincam ou de como vivem suas infâncias, configura-se, antes de tudo, em importante ponto de partida para se pensar a prática pedagógica nas instituições de EI e elaborar indicadores para avaliar o trabalho desenvolvido em creches e pré-escolas, onde meninos e meninas passam de quatro a nove horas por dia. Com base nos pressupostos apresentados, torna-se oportuno reafirmar o intuito desse estudo: conhecer o que as crianças pequenas vêm apontando aos pesquisadores brasileiros acerca do que pensam, sentem e esperam das instituições de EI em que estão inseridas, a fim de refletir sobre suas reais perspectivas e expectativas, na condição de donas desse direito. À vista disso, a próxima seção tem como finalidade descrever o caminho trilhado para a seleção do material de análise (opções e procedimentos metodológicos), bem como apresentar o material encontrado (teses e dissertações que foram analisadas). 58 4. “PELA ESTRADA AFORA, EU VOU BEM SOZINHA...”36 CAMINHOS TRILHADOS E MATERIAL ENCONTRADO NO PERCURSO As escolhas metodológicas constituem-se como pontos centrais na construção da pesquisa científica. Embora não seja possível garantir segurança em todo o trajeto da investigação, especialmente no campo das ciências humanas e sociais, que é por vezes marcado por inquietações, movimentos, mudanças de pontos de vista e deslocamentos (JAPIASSU, 1989), o bom delineamento dos caminhos a serem percorridos favorece o trabalho do pesquisador. Desse modo, considerando que “é condição para o pesquisador das ciências humanas reconhecer os próprios limites, explicitar o ponto de vista de sua investigação, se inquietar, indagar” (SILVA, BARBOSA; KRAMER, 2008, p. 81), apresenta-se, na subseção abaixo, a configuração do estudo, bem como as estratégias definidas para o seu bom desenvolvimento. 4.1 “Ela mora longe e o caminho é deserto...”37 A configuração do estudo e o percurso metodológico Esta pesquisa surgiu da necessidade de reflexão acerca de algumas questões que perpassam as práticas cotidianas com crianças pequenas no interior das instituições de EI, tais como: quais aspectos as crianças consideram positivos nas creches e pré-escolas que frequentam; quais aspectos negativos as crianças gostariam que não existissem nesses contextos educativos; quais aspectos e elementos as crianças apreciam e, por isso, gostariam que fossem contemplados nessas instituições. Com base nessas indagações, buscou-se pensar sobre possíveis indicadores de qualidade na EI não somente a partir das prescrições de documentos oficiais ou segundo pontos de vista teóricos, mas, sobretudo, à luz das perspectivas e expectativas dos sujeitos a quem se destina a primeira etapa da educação básica. Assim, considerando que o objetivo principal deste estudo consiste em conhecer as opiniões das crianças sobre EI, trazidas em pesquisas científicas brasileiras, adotou-se a abordagem qualitativa de pesquisa, justificada com base nas ideias apresentadas por Bogdan e Biklen (1994, p. 21): é “uma metodologia que enfatiza a descrição, a indução, a teoria 36 37 Trecho da música “Pela estrada afora”, composta por Braguinha. Trecho da música “Pela estrada afora”, composta por Braguinha. 59 fundamentada e o estudo das percepções pessoais” e, ainda, pelo interesse da investigação em compreender o “modo como diferentes pessoas dão sentido às suas vidas”. Nessa direção, diante da necessidade de conhecimento da produção científica sobre o tema investigado, no que se refere tanto a questões quantitativas quanto a qualitativas, esta pesquisa também se caracteriza com nuances de um estado do conhecimento, que, conforme Ferreira (2002, p. 257), é reconhecido por ser: [...] uma metodologia de caráter inventariante e descritivo da produção acadêmica e científica sobre o tema que busca investigar, à luz de categorias e facetas que se caracterizam enquanto tais em cada trabalho e no conjunto deles, sob os quais o fenômeno passa a ser analisado. Ademais, convém explicitar que, para além dos desafios de mapear e de discutir certa produção acadêmica num dado campo do conhecimento, a relevância deste estudo está na pretensão de destacar, nos trabalhos levantados, quais são os aspectos positivos e negativos e quais as reivindicações das crianças sobre/para a EI, no que concerne a aspectos pedagógicos e de infraestrutura física, para que se possa refletir em que medida a realidade apresentada pelos sujeitos desse direito pode denunciar algo, ou anunciar propostas para um trabalho prazeroso e significativo nas creches e pré-escolas. Posto isso, este estudo bibliográfico tomou, como material de análise, teses e dissertações originárias de programas de pós-graduação stricto sensu em Educação, por possibilitarem a caracterização científica da temática nessa área em específico, que, por sua vez, corresponde à área de formação a que esta pesquisa se encontra vinculada. Para o levantamento de tais produções, selecionou-se o banco de dados do Portal da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), tendo em vista a sua configuração como sistema online oficial do governo brasileiro para depósito de teses e dissertações (resumos) oriundas de todos os programas de pós-graduação vinculados ao Ministério da Educação (MEC). No que se refere ao recorte temporal, delimitou-se o período compreendido entre os anos de 2003 e 2012, por se tratar da última década de trabalhos disponibilizados na base de dados da CAPES até o início desta investigação e, ainda, porque esse intervalo abrange um momento de efervescência acadêmica no campo da educação infantil, conforme pondera Rocha (2002, p. 69): O estabelecimento de políticas sociais para a infância tem exigido a sistematização das experiências positivas do ponto de vista da qualidade na educação da criança pequena e a ampliação de pesquisas que favoreçam a consolidação de uma pedagogia da infância, e ainda mais particularmente, da educação infantil. 60 Ressalta-se ainda que, com essa delimitação temporal, pretende-se focalizar o momento atual, atentando para o que se tem produzido sobre a temática nos últimos anos, para que se possa avançar no conhecimento sobre a realidade da EI no país, considerando a hipótese de que a questão da qualidade da educação para crianças pequenas necessita de constante acompanhamento, não podendo ficar em segundo plano. Destarte, ainda que o universo aqui pesquisado esteja longe de compreender tudo o que se tem publicado sobre pesquisa com crianças a respeito da EI, acredita-se que este estudo constitui uma amostra bastante representativa da produção, condizendo com os objetivos propostos. Definidos os limites desta investigação, expõem-se a seguir os caminhos trilhados para a seleção do material de análise. 4.2 “Achei linda morena que no Tororó deixei...”38 O levantamento de fontes O primeiro passo para o levantamento do material de análise consistiu na escolha de descritores que estivessem estreitamente relacionados com o objetivo da pesquisa e que, consequentemente, conduzissem a buscas mais eficientes. Assim, optou-se tanto por descritores que remetiam aos conceitos fundamentais propostos pela SI para a pesquisa com crianças, quanto por descritores relativos à área em estudo. O mapeamento foi realizado via Internet a partir das duas opções de acesso às produções viabilizadas pelo portal virtual do Banco de Teses da CAPES, isto é, a busca básica, que permitiu a utilização de frases, e a busca avançada, delimitada pelo refinamento dos termos, que, por sua vez, foram utilizados sozinhos e cruzados. Logo, os descritores adotados foram: pesquisa com crianças sobre educação infantil; perspectiva das crianças; escuta de crianças; voz/vozes das crianças; visão/visões das crianças; alteridade na educação infantil; pesquisa com crianças; a criança fala; participação infantil; Sociologia da Infância; culturas infantis; cultura de pares; infâncias; crianças; creche; préescola; Educação Infantil. Inicialmente, os trabalhos foram selecionados por meio da leitura dos títulos, localizados a partir dos descritores informados. Do total de 3.457 títulos apreciados, 68 trabalhos foram eleitos; desse total, 14 (21%) configuravam-se como teses de doutorado e 54 (79%), como dissertações de mestrado. 38 Trecho da cantiga “Fui no Tororó”, de autoria desconhecida. 61 O próximo passo consistiu na leitura detalhada dos resumos dos 68 textos selecionados a partir da leitura dos títulos. Assim, diante do impasse da insuficiência de informações ou de incertezas para determinar a inclusão ou descarte, iniciou-se a busca de trabalhos originais, em sua íntegra, para que se pudesse realizar a leitura, bem como uma seleção mais cuidadosa. A busca dos textos completos deu-se em todos os sites dos programas aos quais se encontravam vinculados, e, do total de 68 textos levantados, 56 (82%) puderam ser apreciados, dado que 12 (18%) não estavam disponíveis em sua versão original nos portais virtuais das instituições nas quais foram defendidos, o que impedia sua localização39. A última etapa de seleção foi realizada por meio da leitura criteriosa e aprofundada dos textos obtidos na versão integral (56), quando 33 foram descartados por não atenderem aos objetivos propostos nesta investigação40, restando, assim, 23 trabalhos41 para compor a análise. Finalizado o levantamento bibliográfico, partiu-se para a organização do material selecionado, o que resultou na construção de dois bancos de dados. O primeiro contemplou os seguintes elementos: ano de defesa, título, autor, modalidade (mestrado ou doutorado), instituição/região, objetivos, sujeitos/lócus da pesquisa, estratégias/procedimentos metodológicos e notas de análise. O segundo, por sua vez, abrangeu as perspectivas e expectativas das crianças, referentes à EI, trazidas nas pesquisas analisadas, conforme as categorias pré-estabelecidas: Aspectos positivos; Aspectos negativos e Reivindicações. O intuito, ao realizar esse exercício, foi o de traçar um quadro da produção no período delimitado ressaltando as especificidades dos estudos levantados. Diante disso, na subseção seguinte são apresentados e descritos os trabalhos escolhidos para serem analisados nesta dissertação: os contextos em que foram produzidos, os sujeitos envolvidos e privilegiados, bem como os procedimentos metodológicos adotados pelos autores. 39 A não localização dos textos contraria a exigência atual de disponibilização dos textos nos sites dos programas. Assim, mesmo sabendo que os trabalhos selecionados poderiam não condizer com a temática, a apreciação de todos poderia contribuir com reflexões mais abrangentes. 40 Dentre os principais motivos para o descarte desses trabalhos, estão: trabalhos que ouviram crianças, mas não sobre educação infantil; trabalhos sobre educação infantil, mas que não ouviram as opiniões das crianças, prevalecendo somente a visão dos pesquisadores ou de adultos. 41 Apêndice A. 62 4.3 “Como poderei viver, sem a tua companhia, é por isso que eu reclamo dessa tua companhia...”42 Pesquisas com crianças sobre Educação Infantil: contextos, estratégias e sujeitos, ou onde, como e com quem Antes de mergulhar no universo das perspectivas e expectativas das crianças quanto às particularidades da EI trazidas nas teses e dissertações analisadas neste estudo, considerou-se necessária a explanação, ainda que de forma breve, das opções teórico-metodológicas adotadas pelos autores para subsidiar a desafiante tarefa de pesquisar em parceria com esses sujeitos,43 de modo que se pudesse ter uma visão mais abrangente e contextualizada dos trabalhos. Conforme anunciado, 23 textos foram selecionados para compor a análise. Desse total, cinco (22%) foram identificados como teses de doutorado e 18 (78%) como dissertações de mestrado, cuja distribuição temporal encontra-se no quadro a seguir: Quadro 01. Total de trabalhos localizados no banco de dados da CAPES (2003 a 2012) ANO QUANTIDADE 2003 2004 1 2005 1 2006 1 2007 4 2008 2 2009 5 2010 2 2011 1 2012 6 TOTAL 23 Fonte: Organizado pela autora, com base nos dados levantados no acervo eletrônico da CAPES. Com base na apreciação dos dados, é possível verificar um crescente, e talvez oscilante, interesse, por parte de pesquisadores brasileiros, nas novas possibilidades de estudos “com” a criança. Nota-se com clareza que os anos com maior número de produção são 2007, 2009 e 2012, com, respectivamente, 17%, 22% e 26% do total de publicações levantadas. Assim, tendo em vista o caráter embrionário do movimento que busca ouvir e conhecer o ponto de vista das crianças no Brasil (e no mundo) acerca de temas que lhes dizem respeito 44, bem como os recortes circunscritos neste estudo, pode-se dizer que o número de trabalhos encontrado é bastante expressivo. Trecho da cantiga “Peixe vivo”, de autoria desconhecida. Predomina, nos textos, a ideia de Souza e Castro (2008): as crianças não são apenas sujeitos a serem conhecidos, mas sujeitos com saberes que devem ser reconhecidos e legitimados na busca de uma permanente e mais profunda compreensão da experiência humana. 44 Conferir Soares (2006). 42 43 63 Posto isso, com o propósito de verificar os contextos relativos às realidades geográficas em que as crianças foram consultadas sobre o que pensam das instituições de EI, isto é, de conhecer de onde falam esses sujeitos, considerou-se pertinente organizar a produção levantada por região, conforme ilustrado no quadro a seguir. Quadro 02. Relação de trabalhos por região REGIÃO QUANTIDADE Sul 06 Sudeste 09 Centro-oeste Norte 02 Nordeste 07 Total 23 Fonte: Organizado pela autora, com base nos dados levantados no acervo eletrônico da CAPES. Constata-se que a região Sudeste esteve bem à frente nas produções, perfazendo o total de 39% dos textos selecionados. Logo, dentre as instituições nas quais foram realizadas as investigações, estão: PUC-RIO; PUC-CAMPINAS; UFSCAR; UFJF E UFRJ, com uma publicação cada, e UCP e UFES, com dois trabalhos. Convém lembrar, no entanto, da assimetria regional existente: a região em pauta abrange o maior número de programas de pósgraduação no país (61,1%), conforme Santos e Azevedo (2009). Por conseguinte, verifica-se que as regiões Nordeste e Sul, com 30% e 26% do total de pesquisas, respectivamente, demonstram apreciável interesse na temática. Destarte, vale destacar o programa da UFC, com cinco trabalhos, o que equivale a 83% da produção na região Nordeste e a 22% da produção no país. No que se refere à região Sul, os trabalhos são oriundos dos programas UFRS e UFPR, com uma publicação cada, e UFSC e UFPR, com dois textos. Com uma quantidade incipiente, a região Norte, representada pelo programa da UEPA, apresenta-se com o total de 4% das produções. Por fim, cabe o destaque para a região Centrooeste, onde se localiza o estado no qual esta pesquisa foi desenvolvida, que, por sua vez, não apresenta nenhuma produção, exprimindo a emergência de um olhar sensível para a temática nesse contexto. Vale explicitar que, além da diversidade geográfica, as investigações ocorreram nas mais variadas instituições: instituições de EI urbanas e rurais; instituições de EI públicas e particulares; instituições de EI de tempo integral; instituições de EI situadas dentro de escolas que atendem ao Ensino Fundamental; conjunto habitacional próximo a instituições de EI. Destarte, salienta-se que os dados analisados não são aqui tomados como uma avaliação da qualidade da EI nas instituições investigadas, e sim como indicadores de reflexões múltiplas por uma melhor educação para a criança pequena em creches e pré-escolas no país. 64 Sobre os sujeitos participantes das investigações (ou os critérios para eleição destes), três pontos merecem atenção: confiança, diversidade e idade. A respeito do primeiro, Quinteiro (2009, p. 21 - grifo da autora) afirma que, entre as ciências da educação, existe ainda “resistência em aceitar o testemunho infantil como fonte de pesquisa confiável e respeitável”. A partir dessa proposição, observou-se que as crianças não foram tomadas como partícipes exclusivos em todos os trabalhos: Em nove das produções compiladas (39%), além de ouvirem as opiniões das crianças a respeito da EI, os pesquisadores também se dispuseram a conhecer o ponto de vista dos adultos (professores, coordenadores, diretores, familiares, entre outros). Nessa direção, Soares (2006) indica que a visibilidade da criança nas investigações provirá da perspectiva, isto é, da forma de entendimento desta adotada pelos autores, da qual também resultará o grau de consolidação da parceria entre crianças e adultos em todo o processo investigativo. Diante disso, cabe esclarecer que a intenção desta pesquisadora não é a de condenar ou menosprezar os trabalhos que também ouviram os informantes adultos, e tampouco as opiniões destes. A ideia é, sobretudo, ressaltar o esforço que vem sendo empregado por vários pesquisadores brasileiros para construir um espaço de participação cidadã da infância, a partir da descentralização de perspectivas adultocêntricas, visando legitimar as particularidades “das crianças” com base nos registros das suas próprias concepções, comportamentos e produções culturais. Pela apreciação dos textos, observou-se que o segundo ponto, isto é, a diversidade (entendida como o conjunto de semelhanças e diferenças ou a pluralidade que caracteriza a todos), foi considerada como ponto central por alguns autores, que, a partir da abertura de espaços, na busca de quem está do lado de fora, favoreceram o encontro com outros que muitas vezes são excluídos por apresentarem dessemelhanças ou características que fogem ao padrão de normalidade (para além das diferenças que já excluem o sujeito criança perante o sujeito adulto renunciadas em todos os textos). Ressaltam-se aqui os trabalhos que privilegiaram a participação de crianças com deficiências (visual, intelectual, física), bem como os realizados com crianças oriundas de contextos rurais ou do campo, por onde perpassam diversas formas de vida, como as pesqueiras, as ribeirinhas e as agrícolas. Quanto ao terceiro ponto (a idade dos sujeitos), notou-se uma ampla predominância de estudos com crianças na faixa-etária pré-escolar. Dos 23 textos analisados, 19 (82%) privilegiaram como informantes crianças com idade entre 4-6 anos; dois (cerca de 9%) ouviram 65 crianças de três anos; também dois (cerca de 9%) se dedicaram a conhecer a opinião das crianças a partir dos dois anos de idade45. A predileção (etária) por crianças “maiores” justificou-se com base na ideia de que a criança pequena, isto é, nas idades investigadas, já se expressa por meio da fala, expressão verbal da linguagem, diferente dos bebês, que emitem sons guturais ou balbucios, o que muitas vezes inviabiliza a pesquisa com esses sujeitos, em decorrência de grandes dificuldades de comunicação que os adultos não conseguem superar. Assim, mesmo diante do reconhecimento de que a criança possui “cem linguagens”, ou seja, de que se expressa por meio de diferentes e múltiplas maneiras, como afirma Malaguzzi (1999), percebe-se, no caso das pesquisas com crianças, que a linguagem oral mostra-se muitas vezes determinante para a escolha dos sujeitos. Por outro lado, constatou-se nas produções, ao considerarem o pressuposto das variadas formas de expressão infantil, o consenso de que, para se aproximar e captar de modo efetivo o ponto de vista das crianças, seria necessário não um, mas vários instrumentos e procedimentos metodológicos. Tal fato ratifica o que Martins Filho (2011, p. 96) também identificou ao fazer o balanço de uma década de trabalhos investigativos com crianças: “há o consenso [...] de que, em pesquisa com crianças, é necessário lidar com mais de um procedimento metodológico para compreender o fenômeno que se quer estudar”. De acordo com Soares (2006), o processo de organização e construção de ferramentas metodológicas passíveis de serem utilizadas na investigação participativa com crianças implica ao pesquisador considerar a diversidade de aspectos que conferem identidade à investigação, tais como o contexto onde esta ocorre e a caracterização expressa em termos sociais, econômicos, culturais, etários e de gênero do grupo social infantil com o qual a pesquisa será desenvolvida. Logo, a autora adverte que os complexos indicadores descritos devem estar associados, de forma a aproveitar as diferentes competências das crianças, para que o conhecimento acerca da infância seja construído de modo válido e sustentado cientificamente. Assim, a socióloga da infância conclui que: A investigação com crianças, para ser genuína e efectiva terá que se organizar de forma a permitir que as crianças tenham oportunidade de serem actores no processo de investigação, aspecto que está mais dependente das competências dos adultos, 45 Torna-se oportuno esclarecer que, dos dois trabalhos que se dedicaram a ouvir crianças a partir dos dois anos de idade, um concerne exclusivamente à investigação ocorrida nas mediações de um conjunto habitacional próximo a instituições de EI, diferentemente de todos os outros, que, por sua vez, ocorreram dentro dessas instituições, que, nas suas mais variadas propostas organizacionais, “acolhem” cotidianamente bebês desde a mais tenra idade. Assim, verificou-se que a idade em pauta não foi pré-estabelecida pela autora como condição para a participação dos sujeitos, e sim decorrência de sua presença nos momentos de encontros. 66 relativamente à organização de estratégias de investigação que permitam tal, do que das competências das próprias crianças. (SOARES, 2006, p. 30). Diante dessa perspectiva, preocupados com o importante e delicado momento de entrada e acolhida no ambiente pesquisado, bem como com a necessidade de vivenciar da melhor maneira o movimento de compreenderem e serem compreendidos pelas crianças, os pesquisadores empregaram estratégias e recursos metodológicos plurais e criativos46, além de ferramentas metodológicas tradicionais com dimensões variadas 47, como pode ser identificado no quadro a seguir: Quadro 04. Estratégias/recursos metodológicos utilizados nas pesquisas com crianças ESTRATÉGIAS/RECURSOS FREQUÊNCIA Observação participante 20 Diário de campo/Registro escrito/Diário de bordo 19 Entrevistas/Conversas Informais 18 Artefatos/produções culturais: Desenhos/Desenhos com 17 história e/ou comentados/Desenhos a partir de história/Brincadeiras/Jogos/oficinas lúdicas Registro Fotográfico 14 Registro Fílmico 12 Gravação em áudio 7 História para Completar 4 Visita guiada/Visita monitorada 2 Fonte: Organizado pela autora, com base nos dados levantados no acervo eletrônico da CAPES. Os dados representados no quadro tornam perceptível que a observação participante conduziu a maioria das produções. Conforme os autores, essa estratégia favorece sensivelmente o desenvolvimento das investigações, pois: viabiliza a entrada no campo investigado; permite uma relação mais estreita com os sujeitos nas suas ilimitadas experiências, isto é, nas suas formas de se relacionar, aprender e apreender os contextos nos quais estão inseridas; e, consequentemente, potencializa as chances de conquista da confiança das crianças, para que as possíveis e necessárias participações possam ocorrer. Igualmente abrangente, o diário de campo/diário de bordo/nota de campo e manteve como uma importante ferramenta no processo investigativo com crianças. Ao se configurar como um recurso que favorece o registro dos dados suscetíveis de ser interpretados, permitiu aos investigadores sistematizar com riqueza de detalhes as situações presenciadas durante o 46 A apreciação dos textos revelou que, em 96% das produções (22), houve a utilização de três ou mais das estratégias e recursos metodológicos apresentados. 47 Como as entrevistas comumente utilizadas nas pesquisas com adultos, que, no caso das investigações participativas com crianças, ganham outra dimensão, a partir das possibilidades apontadas por Soares, Sarmento e Tomás (2005), pode ser que os sujeitos privilegiados influenciem o seu formato, a sua orientação ou ainda a sua duração. 67 tempo em que estiveram imersos nas realidades estudadas, para que, posteriormente, pudessem retomá-las e analisá-las. Certos de que apreender a perspectiva das crianças requer no mínimo dois preceitos básicos (cautela e sensibilidade), os pesquisadores da infância vêm tentando construir ou adaptar os mais diversos instrumentos e procedimentos que viabilizem o acesso às concepções das crianças acerca das suas experiências. Nesse sentido, a entrevista, frequentemente utilizada nas pesquisas científicas das áreas sociais e humanas, vem passando por adaptações, a fim de permitir a “escuta dos pequenos sujeitos”. Segundo os autores que utilizaram essa técnica, alguns cuidados devem ser tomados: as crianças precisam estar à vontade com o pesquisador, o que implica a disposição deste a mostrar-se confiável e a ouvi-las com seriedade; o ambiente deve ser preparado de modo que as crianças se interessem em falar, ou seja, deve favorecer a participação delas; os entrevistadores necessitam intervir sempre que necessário para estimular as crianças a responder mais detalhadamente às perguntas; a linguagem adotada durante a entrevista deve ser totalmente compreensível, cabendo a utilização de termos e expressões conhecidos e cotidianamente utilizados pelas crianças. O interesse em privilegiar a criatividade em registro escrito ou gráfico levou os pesquisadores a recorrer, por diversas vezes, a recursos e procedimentos metodológicos que incluíam artefatos e produções culturais, nas suas mais variadas possibilidades, por acreditarem nos seus potenciais reveladores de representações infantis que não poderiam ser resgatadas a partir de métodos tradicionais. Entre esses recursos e procedimentos, destacaram-se: desenhos livres, desenhos comentados, desenhos a partir de histórias, brincadeiras, jogos e oficinas lúdicas. Hábil para registrar as inúmeras cenas protagonizadas pelos sujeitos dos contextos pesquisados, o registro fotográfico ainda possibilita um “eterno” reviver de tais personagens, ações e cenários. Logo, a possibilidade de leitura constante de imagens do passado com os olhos de presente (mesmo com a potencial possibilidade de mudança no passado) apresentou-se como um instrumento de aproximação e ressignificação das realidades sócio-históricas e culturais dos grupos fotografados nas pesquisas. A fim de captar as sutilezas do comportamento interativo das crianças pequenas com os seus pares e adultos, que muitas vezes podem passar despercebidas à primeira vista, o registro fílmico foi adotado como uma opção eficiente por alguns autores. A utilização da filmagem nas produções apresentou-se como uma possibilidade de contemplação e repetição sistemática de cenas que revelavam os diferentes e peculiares jeitos de ser criança/bebê, para uma consecutiva 68 postura argumentativa diante do fenômeno de análise, tanto pelo pesquisador como pelos sujeitos quando convidados a assistir ao que foi registrado. A gravação em áudio também se destacou dentre os recursos de multimídia escolhidos, tendo em conta a possibilidade que assegura de novas escutas das informações concedidas. Segundo os autores que se aventuraram na utilização de gravadores, a apresentação do instrumento às crianças torna-se fundamental, uma vez que elas precisam estar à vontade para expressar suas opiniões a quem/o que quer que seja... Com um caráter inovador, a história para completar aos poucos ganha destaque e reconhecimento como uma estratégia competente na busca do ponto de vista das crianças pequenas. Esse procedimento, comumente utilizado na prática clínica psicológica com crianças, vem sendo adaptado nas pesquisas com o intuito de captar, de modo indireto, informações que a criança porventura não se encontra segura de poder partilhar com o investigador. A técnica consiste na leitura (contação) do começo de uma narração sobre o assunto que se quer investigar (aspectos de uma instituição de educação infantil, por exemplo) para que a criança possa continuá-la com suas próprias ideias. Os autores que utilizaram essa estratégia alertam que estímulos e incentivos fazem-se necessários após a contação para que a criança se interesse em dar continuidade à história. Por último, embora menos utilizada, a estratégia visita guiada revelou-se muitíssimo competente para captar o ponto de vista das crianças, considerando o seu caráter libertador (a criança é quem toma as rédeas do procedimento). Tal técnica realiza-se mediante a separação de pequenos grupos de crianças para que estas possam apresentar o espaço investigado (ambientes de uma instituição de Educação Infantil, cidade, bairro, shopping, entre outros...) ao pesquisador, cabendo o manuseio de recursos multimídia (fotográfico, fílmico, gravadores), bem como comentários e informações constantes a respeito do entorno. Em suma, o contato de modo aprofundado com as teses e dissertações selecionadas permitiu a apreensão de elementos significativos dentro de um conjunto diversificado, mas que reflete o que os trabalhos acadêmicos trazem sobre o ponto de vista das crianças a respeito dos aspectos positivos e negativos da EI. Essa visão é apresentada na próxima seção. 69 5. “OLHOS, ORELHAS, BOCA E NARIZ...”48 SENTIDOS, SENSAÇÕES E SONHOS A RESPEITO DA EDUCAÇÃO INFANTIL CONFORME OS DONOS DESSE DIREITO Somos criaturas extremamente complexas, fechadas, desconfiadas e camufladas; e nem a bola de cristal nem o olho do sábio lhes dirão qualquer coisa a nosso respeito, se vocês não tiverem confiança em nós... Janusz Korczak Esta seção tem como finalidade apresentar a análise do material levantado, mediante a exposição sistematizada das opiniões das crianças sobre a EI, concernentes aos aspectos que consideram positivos e negativos nas instituições, bem como as suas reivindicações de um espaço educativo agradável e significativo. Assim, surgiram dois eixos, Aspectos Pedagógicos e Aspectos da Infraestrutura Física, que, por sua vez, são discutidos a partir das seguintes temáticas: a) Práticas Pedagógicas relativas às linguagens geradoras de aprendizagem; b) Práticas Pedagógicas relativas à saúde e bem-estar; c) Inter-relações crianças-pares e crianças-adultos; d) Organização do espaço, tempo e materiais. Com a intenção de articular de modo mais ilustrativo a discussão das categorias, optouse pela adoção de alguns excertos de situações49 trazidas nas produções analisadas, que, por sua vez, são identificadas pela letra T (que indica trabalho) e um número50 (T1), cuja relação/disposição encontram-se no apêndice A. 5.1 “Palma, palma, palma, pé, pé, pé, viva a nossa escola que bonita que ela é!”51 Aspectos positivos da Educação Infantil para as crianças Integram esta subseção aspectos da EI (atividades, alimentação, sono, relações com os pares e com as professoras, espaços, materiais) vistos pelas crianças como positivos e que, segundo anunciado, são apresentados a partir de quatro temáticas, que abordam os resultados Trecho da música “Cabeça, ombro, joelho e pé”, de autoria desconhecida. Observações do cotidiano e/ou falas das crianças registradas pelos respectivos pesquisadores. 50 Os números variam de 1 a 23, conforme a quantidade de trabalhos localizados. 51 Adaptação do trecho da música “Caranguejo peixe é”, de autoria desconhecida. 48 49 70 de variadas questões sobre as quais as crianças foram estimuladas a falar, como por exemplo: “O que é/tem de bom na EI?” “O que mais gostam de fazer na EI?”. a) Práticas Pedagógicas relativas às linguagens geradoras de aprendizagens Intensamente valorizado na visão das crianças partícipes das produções analisadas, o brincar destacou-se entre as várias linguagens geradoras de aprendizagens. Em 22 textos (96%)52, os brinquedos, as brincadeiras e suas diversas possibilidades foram citados, não somente como aspectos positivos, mas como os principais elementos que levam as crianças a gostar de frequentar as instituições de EI. Nessa direção, verificou-se que, para as crianças consultadas, a EI abarca uma série de elementos positivos que ampliam e enriquecem a experiência do brincar, dentre os quais elas destacaram: locais e momentos variados (pátio, parque, terreiro, quintal, corredores, ar livre, sala, fora da sala, recreio, aulas de educação física...); múltiplos parceiros (colegas de turma, amigos, colegas e parentes matriculados em outras turmas, professores...); diversidade de materiais, brinquedos e brincadeiras (massinha, pecinha, carrinho, boneca, fantasias, panelinha, maquiagem, comidinha, casinha embaixo da mesa, detetive, fazendinha, trepa-trepa, escorregador, amarelinha, estátua, bambolê, coelhinho sai da toca, gatinho, corrida, pular corda, faz-de-conta...);possibilidade de criação e imaginação (mudar de nome, brincar do que e do jeito que quiser...), conforme demonstram os excertos abaixo: O parquinho é o lugar mais legal. Dá pra correr, brincar de pega-pega (Excerto T16, p. 88). Porque aqui tem pátio (Excerto T23, p. 136). Na hora do recreio nós brinca (Excerto T13, p. 167). Eu gosto de brincar com meus amiguinhos, com meu primo também (Excerto T9, p. 99). Porque eu brinco com minhas amiguinhas e na minha casa eu não tenho ninguém para brincar. Minha irmã não gosta de brincar comigo (Excerto T2, p. 61). Porque tem muita criança e dá para brincar no parquinho (Excerto T2, p. 59). [...] Eu brinco com meus coleguinhas. Com os brinquedos eu faço uma varandinha, uma sala...Aí eu finjo que eu mudei de nome (Excerto T9, p.92). [...] Brincar embaixo da mesa pra fingir que é casinha, junto com a geladeirinha e o fogãozinho, porque a gente pode brincar do nosso jeito (Excerto T18, p. 162). Cada dia um é o bicho (Excerto T9, p.91). Eu gosto quando tô na escola, quando tô brincando (Excerto T19, p. 85). 52 Constatou-se que em apenas um trabalho o brincar foi concebido pelas crianças como algo desagradável, o que será tratado na categoria dos aspectos negativos da EI. 71 Eu gosto de brincá de escondê no parque (Excerto T5, p. 81). [...] mas o que eu mais gosto é de brincar [...] (Excerto T2, p. 63). Eu gosto da aula de Educação física, poder correr muito (Excerto T17, p. 130). Eu brinco, me divirto, eu brinco com massinha, é... e eu também desenho, faço um montão de coisas (Excerto T11, p. 129). Por conseguinte, a apreciação dos trabalhos evidenciou que, dentre as práticas pedagógicas privilegiadas nas instituições de EI, o desenho, “linguagem infantil criativa, composta de símbolos culturais a serem interpretados” (LONGO, 2005), também foi assumido como um dos aspectos positivos pelas crianças, porque lhes permite imaginar e criar e lhes causa prazer. Assim, do conjunto de 15 textos (65%) em que o desenho foi mencionado de modo agradável, destacam-se os seguintes dizeres: [...] lá é bem legal, a gente desenha [...] (Excerto T6, p. 105). [...] eu gosto de desenhar (Excerto T3, p. 77). Eu gosto mais do desenho livre, porque a gente pode desenhar qualquer coisa que a gente quiser (Excerto T18, p. 162). Gosto de [...] desenhar na sala (Excerto T15, p. 119). Ademais, constatou-se que as crianças apreciam e querem adquirir novos conhecimentos e, para elas, a EI possui exatamente a função de garantir aprendizagens, como afirmado em 13 (57%) textos. Nesse sentido, num total de 11 produções (48%), elas disseram gostar de estudar e de aprender diversas coisas na EI (elas não se referiram somente à leitura e à escrita). Os trechos abaixo contemplam esses dois pontos: a apreciação e vontade das crianças de aprender, bem como a concepção delas sobre a EI como o lugar que possibilita novas e múltiplas aprendizagens: A escola é onde a gente estuda e aprende a ser educado aonde se pode viver [...] (Excerto T2, p. [...] É que eu gosto de aprender as frutas, aprender a fazer número, aprender a fazer árvore, aprender tudo o que eu gosto mais. Aprender a fazer lição, aprender a trabalhar [...] (Excerto T2, p. 63). Porque gosto da escola pra mim estudar, pra mim aprender! (Excerto T15, p. 121). Eu gosto de ir pra escola, eu gosto de estudar [...] (Excerto T23, p. 135). Se não vier para a escola não aprende nada (Excerto T3, p. 56). Na escola eu aprendo a ler, escrever..., fazer desenhos caprichados, tem um monte de coisa pra aprender... tem música, a gente dança...um monte de coisas (Excerto T17, p. 141). 72 Porque aqui eu aprendo a estudar, a ler, [...] a pintar, a desenhar, é por isso que eu aprendo a ler (Excerto T23, p. 138). Estudar para quando crescer não ser burra (Excerto T3, p. 56). [...] a gente aprende a respeitar os amiguinhos quando eles vão falar na roda, a comer de boca fechada, a não falar de boca cheia, sobre os peixes, a não fazer “assim” com o dedo e nem falar palavrão. Muita coisa a gente aprende lá (Excerto T6, p. 106). Eu? Eu venho pra estudar... A gente vem pra estudar (Excerto T10, p. 84). [...] pra aprender coisas (Excerto T19, p. 85). Aprender a contar histórias, aprender a contar livrinhos, aprender a pintar, aprender a falar (Excerto T8, p. 58). Em menores proporções, as crianças também classificaram como aspectos positivos da EI outros conteúdos-linguagens53 geradores de aprendizagem que merecem consideração. Em relação à linguagem oral e escrita, a leitura destacou-se em seis trabalhos, a escrita, em cinco, e a contação de histórias, em quatro. Quanto às linguagens plástico-visuais, a pintura foi mencionada em sete textos e a modelagem, em três das produções. Referente às linguagens de expressão musical e gestual, sobressaíram-se a música e a dança em duas cada. Por fim, no tocante à linguagem audiovisual, o filme foi citado em duas publicações. Na sequência, apresentam-se alguns excertos demonstrativos de algumas linguagens citadas com apreço pelas crianças: Pintar, desenhar, fazer leitura (Excerto T3, p. 79). Ouvir história (Excerto T20, p. 92). Eu gosto de escrever meu nome (Excerto T2, p. 116). De brincar com a massinha, porque faz tudo coisas diferentes (Excerto T18, p. 162). É porque a gente faz as coisas de escrever, de pintar (Excerto T14, 176). Eu gosto de assistir filme do pica-pau (Excerto T17, 134). [...] a gente canta muitas músicas (Excerto T6, p. 106). Entrevistadora: E quais são as coisas que você mais gosta? Gabriela: Eu gosto quando eles ensinam muito a escrever (Excerto T11, p. 116). 53 Termo utilizado por Junqueira Filho (2014). 73 b) Práticas Pedagógicas relativas à saúde e bem-estar Essa temática envolve as perspectivas favoráveis das crianças em relação à saúde e bemestar na EI. Verificou-se que se trata de uma questão relevante para esses sujeitos, ainda que somente a alimentação tenha sido referida com maior intensidade e minúcias. As crianças atribuem grande importância às refeições que recebem nas instituições de EI. Nesse sentido, momentos como lanchar, merendar, jantar, comer e beber foram contemplados em nove trabalhos (39%), com manifestação de apreço tanto por comidas e bebidas simples ou acessíveis fora da instituição (arroz, feijão, sopa, salada, frutas, carne, água...) quanto por bebidas e guloseimas que consideram refinadas ou de acesso limitado fora da instituição (bolo de chocolate, torta, pizza, canudinho, creme, refrigerante, suco...), como pode ser observado nas passagens abaixo: [...] é bom, tem muita comida gostosa... arroz, feijão e sopa (Excerto T2, p. 59). [...] a gente come um monte de comidas saudáveis, deliciosas (excerto, T16, p. 126). Que carne macia [...] não cola nos dentes, essa carne que é boa! (Excerto T4, p. 104). [...] tem um monte de comida lá, suco... (Excerto T15, p. 116). [...] eu gosto de beber água (Excerto T15, p. 116). [...] Sabia que lá tem bolo de chocolate? (Excerto T6, p. 105). [...] lá a gente come muitas coisas gostosas (Excerto T6, p. 107). Gosto das comidas (Excerto T15, p. 123). Gosto de tomar sopa (Excerto T15, p. 123). No que diz respeito à higiene realizada nos estabelecimentos de EI, identificou-se como prazerosas para as crianças as ocasiões em que tomavam banho de chuveiro, citadas indiretamente em um trabalho 54 e, ainda, em que lavavam as mãos e escovavam os dentes, referidas, rapidamente, em dois textos. Além disso, em uma das produções constatou-se a importância dada aos cuidados com o corpo alusivos à exposição ao sol. Já com relação às atividades relaxantes, isto é, os horários de repouso, como a hora do sono exclusivamente, em um dos trabalhos houve menção com uma perspectiva agradável. Seguem trechos das pesquisas em que as crianças exprimem gostar dos momentos em que zelam do corpo, bem como naqueles em que descansam: 54 T3, p. 58. 74 Na hora de ir pro parque, lavar as mãos e lanchar (Excerto T20, p. 92). Todo dia passar protetor solar quando for pro parque (Excerto T20, p. 92). Eu gosto de dormir! (ExcertoT5, p. 75). c) Inter-relações: crianças-pares e crianças-adultos A possibilidade de convivência e amizade com múltiplos parceiros também se destacou em meio às razões pelas quais as crianças gostam de frequentar a EI. Assim, nesta temática são abordadas as percepções positivas desses sujeitos acerca das inter-relações que vivenciam com os pares e adultos nas instituições. Em 17 trabalhos (74%), as crianças trouxeram à tona pessoas e relações que lhes são significativas, entre as quais se destacaram: colegas e amigos de turma; crianças e bebês das outras turmas; professoras; merendeiras; parentes que trabalham ou estão matriculados na instituição; parentes dos colegas nessas mesmas situações e até mesmo os pesquisadores. Consequentemente, alguns espaços revelaram-se favoráveis nas opiniões dos pequenos, em virtude da frequência/presença de alguns desses sujeitos considerados especiais: O lugar (sala) da minha mãe é o mais legal. Porque eu gosto da minha mãe (Excerto T16, p. 108). É legal porque tem coleguinhas (Excerto T2, p. 61). Gosto da tia Inês, da tia Virgínia (Excerto T4, p. 118). Gosto da [...], porque ela é minha prima! (Excerto T15, p. 134). Gosto dos colegas (Excerto T15, p. 134). Eu gosto mais dessa (sala), porque tem meu irmão (Excerto t16, p. 108). Aqui tem o Bruno. Ele é irmão da Julia (colega da sala). (Excerto T16, p. 108). Aí quando a professora vai tomar café a merendeira fica olhando nós [...] ela é boazinha (Excerto T2, p. 73). [...] gosto das tias e dos colegas e gosto de você (referindo-se a pesquisadora) (Excerto, T12, p. 116). Traços de afetividade positiva, bem como manifestações de carinho e cuidado foram evidenciados nas falas das crianças em 12 textos (52%) ao se referirem aos colegas. Ter um amigo representa ter um parceiro para brincar e um apoio para enfrentar e resolver os problemas que surgem nas situações travadas no dia-a-dia. Desta forma, a cumplicidade com os pares destacou-se como um dos bons aspectos da EI como pode ser identificado, a seguir, nas situações de conivência e zelo testemunhadas pelos pesquisadores e nas quais as crianças mencionaram os companheiros: 75 Eu gosto de dormir! Diz Tuana. Não gosta, não gosta, tu até chora, retruca Emília. Na minha casa que eu durmo, na creche que eu não durmo, diz novamente Tuana. Ela dorme mas não gosta, diz Gabi. Dexa Tuana, faz assim oh! Fica só com um (olho) fechado na creche, nem eu durmo, só fico acordado, fala por último Raudio (ExcertoT5, p. 75). É assim, na hora que a Nara (professora) sai, nós (sic) brinca, aí quando a Nara chega, aí a gente se senta logo [...] (Excerto T13, p. 168). Entrevistadora: Se sente feliz, por que você se sente assim? Criança: É...é....é porque, é porque, porque meus amigos estavam lá (Excerto T11, p. 113). Eu gosto muito de vir para escola [...] gosto de ficar com meu amigo, esse aqui, ele é meu amigo (Excerto T23, p. 132). Criança: Você vai comer mais? Izis: Balança a cabeça negativamente. Criança: Levanta e pega na mão de Izis que já havia terminado de tomar o suco e sai para formar a fila (Excerto T17, p. 144). Eloísa: Eu desenhei a Gigi e a Escola. Pesquisadora: Porque você desenhou a Gigi? Eloísa: É que ela queria que eu desenhasse ela... (Excerto T18, p. 157). Eu tô muito triste que o Rodrigo ainda não veio [...] Ele saiu da escola [...] Foi pra outra escola (Excerto T11, p. 113) Porque eu gosto dela, ela é minha amiga! (Excerto, T2, p. 145). [...] Porque nós dois somos amigos [...] É que nós dois somos amigo para sempre (Excerto, T2, p. 84). [...] E vocês são o que? Crianças, amigos! (Excerto T1, p. 69). Da mesma maneira, considerações agradáveis acerca das relações afetivas com as professoras também foram encontradas em nove trabalhos (39%).55 As crianças apontaram como positivas as seguintes atitudes das professoras para com elas: levar, ensinar e/ou orientar durante o desenvolvimento das atividades que compõem a rotina; intervir para dissipar os conflitos que surgem, com propostas mais adequadas; deixa-las brincar e brincar com elas; serem “boas” e propor atividades fáceis. Os excertos abaixo ilustram essas ideias: A Camila, ela faz atividades, ela faz coisas para a gente fazer, para a gente escrever, pra aprender a ler e... também a Maria Clara elas inventam umas atividades, e... elas ajudam inventam a árvore genealógica [...] a Valéria ensinou como se faz a arvore genealógica para ensinar... a todos [...] Iara fica explicando também como a gente faz o negócio [...] um monte de atividades legais (Excerto T11, p. 125). Vitor: - Eu acho que [a professora] [...] deve mandar fazer o que se deve fazer. Mandar sentar na mesa, sentar pra lanchar (Excerto T20, p. 86). Porque ela dá lição, faz tudo o que nós quisé pelo menos ela deixa brinca (Excerto T2, p. 69). [A professora] brinca com nós, faz brincadeiras (Excerto T3, p. 79). 55 Número considerável, pois, como visto, apenas um dos textos tinha como objetivo principal conhecer a perspectiva das crianças sobre a professora da EI. 76 Ela [professora] está brincando com a gente. Ela vai escorregar com a gente um atrás do outro. (Excerto T11, p. 108). Marcelo: Mas elas não querem... violência. Entrevistadora: As professoras não querem violência. O que é violência? Marcelo: É uma coisa de muitas guerras. Bruno: De lutas. Entrevistadora: E o que as professoras fazem na escola quando vocês fazem violência? Marcelo: Elas mandam a gente fazer outra coisa. Entrevistadora: Que outras coisas? Marcelo: Brincar de robozinhos, de desenhar, de fazer qualquer coisa (Excerto T11, p. 99). Porque ela é boazinha (Excerto T2, p. 69). Por que ela dá lição facinha, e (pausa) nós pensa e depois vai passando o lápis por cima (Excerto T2, p. 69). Ademais, notou-se que as crianças prezam os momentos em que são reconhecidas como úteis e capazes por seus pares e professoras e que isso fortalece suas perspectivas positivas em relação à EI. Nesse sentido, em dois textos elas indicaram gostar de ser o “ajudante do dia”, pois, quando o são, podem participar de forma mais ativa e autônoma das atividades que caracterizam a rotina nas instituições, como evidenciam os próximos trechos: Ajudar a tia a arrumar as coisas quando os meninos bagunçam as coisas (lápis e folhas) [...] Quando a tia ia sair, ela ficava ensinando os alunos ler porque ela gosta de ajudar a tia dela (Excerto T7, p. 191). [...] pega a cadeira pra tia, dá a comida para os outros, dá as colher, dá os pratos [...] Na rodinha segura as chamadas. Pega a cadeira pra tia quando vão pro pátio [...] (Excerto T4, p. 133). d) Organização do espaço, tempo e materiais Nesta temática, são exibidos os pareceres positivos das crianças quanto ao tempo organizado e vivido no cotidiano da EI e ainda suas opiniões favoráveis concernentes aos elementos que compõem a infraestrutura física das instituições, tais como ambientes e mobiliários. Constatou-se que, apesar de as crianças pequenas não se orientarem pelo relógio, elas possuem bastante clareza sobre a rotina e os horários na EI. Nesse sentido, embora tenham apontado em dimensão bem mais expressiva aspectos negativos56 acerca do tempo que vivenciam cotidianamente nos ambientes educativos, dois pontos sobressaíram-se de forma positiva nas suas perspectivas: a hora do brincar e os combinados. Em dois textos, o recreio foi mencionado pelas crianças como o momento de que mais gostam na rotina da EI, com a justificativa de que, nele, elas podem vivenciar livremente o que mais gostam de fazer: brincar. Ademais, em uma das produções as crianças mencionaram com 56 Estes são tratados na subseção seguinte. 77 apreço as regras e os horários instituídos na rotina da EI, deixando claro que, para elas, essas demarcações são importantes: Na hora do recreio nos brinca (Excerto, T13, p. 167). Pesquisadora: Na sala de vocês tem regras né? Combinações. Quem é que montou aquelas regras? Shaianne: Foi eu e meus colegas. [...] Pesquisadora: E tu acha que tem que ter regra dentro de aula? Shaianne: acho. Pesquisadora: Por quê? Porque não pode fazer coisa errada! Só pode fazer coisa certa! (Excerto T4, p. 133). Shaianne: Temos ora pro refeitório, tem hora pra dormir, tem hora pra ir pro pátio, tem hora pra tudo. Pesquisadora: Tem hora pra tudo? E tu gosta de ter hora pra tudo? Shaianne: Há, eu gosto! (Excerto T4, p 130). Com relação aos espaços da EI, em 17 textos (74%) as crianças foram categóricas ao definirem como preferidos os ambientes externos. Desse modo, do conjunto de lugares exteriores destacados, o parque atingiu maior predileção na visão delas, sendo citado em 12 trabalhos (71%). Prestigiado com intensidade similar, o pátio (varanda, área, terreiro, quintal)57 ganhou evidência em nove produções. Por conseguinte, os corredores e as quadras foram referidos de maneira agradável em três textos e, por fim, conquistaram o apreço das crianças, em duas produções, a horta das instituições. Nessa direção, os trechos subsequentes trazem afirmações das crianças sobre os ambientes exteriores da EI que consideram importantes e de que gostam: Gosto de ficá no parque (Excerto T5, p, 80). Porque ele é o nosso prêmio [parque] (Excerto T2, p. 126). Gosto do pátio da escola (Excerto T15, p. 123). Gosto, porque tem muito, muito é... pátio, tem baldinhos [os baldes ficam cheios de brinquedos no pátio] (Excerto T20, p. 136). [...] é importante [...] passear, ir para o terreiro (Excerto T3, p. 67). Corredor: gosto [...] de correr; de brincar de pega-pega, de pega-congela (Excerto T21, p. 73. [...] Pesq.: Você ficou feliz hein Izis, o que irá fazer na quadra? Izis: Correr (Excerto T17, p. 148). [A horta] lugar que planta, gosto de plantar; plantei pé de horta (Excerto T21, p. 123) [...] aqui [horta] é as frutas, não é fruta, é salada, é a comida pra gente comer (Excerto T16, p. 106). Embora considerados em proporções inferiores, isto é, em sete trabalhos (30%), alguns espaços internos foram avaliados positivamente pelas crianças. A sala de atividades (ou classe) 57 Variações linguísticas regionais. 78 e a cozinha foram citadas com prazer em três produções, por possibilitarem brincadeiras/estudos e viabilizarem as refeições, respectivamente. Na sequência, emergiram, em dois textos, menções agradáveis à sala dos bebês e à sala dos brinquedos (quartinho dos brinquedos). Finalmente, a biblioteca, a diretoria, a coordenação pedagógica, a lavanderia e o refeitório foram contemplados com apreço, nas falas das crianças, apenas uma vez. Notou-se que, na maioria dos casos, os ambientes internos foram apreciados pelas crianças em virtude dos sujeitos, brinquedos e/ou artefatos estéticos ali presentes, como evidenciam os dizeres a seguir: [Sala de atividades] Porque eu gosto; porque ela tá bonita; porque eu faço dever; gosto de fazer boneco; eu gosto de limpar a sala; eu gosto de colar bichinhos; eu gosto de estudar; porque eu gosto de comer (Excerto, T21, p. 92). [...] na sala [de atividades] eu brinco de pescaria e de montar (Excerto T3, p. 76). Essa é dos bebezinhos, eles são um pouquinho pequenos, mas não é pequeno. [...] eu gosto dessa (sala) (Excerto T16, p. 119). Branca de neve: Dá vontade de comer essa sala [biblioteca] Pesquisadora: Por quê? Branca de neve: Porque é bacana, é legal (Excerto, T15, p. 120). Barbie: Eu gosto da sala da Cecilia [coordenação pedagógica] (Excerto, T15, p. 123). Pesquisadora: Por que você tirou foto da diretoria? Menino: Porque eu gosto de ficar lá [...] (Excerto T15, p. 118). [lavanderia] onde as tias lavam roupa e lavam tudo (Excerto T16, p. 110). Para além da rotina e dos espaços que compõem a EI, as crianças ainda destacaram, em sete produções, uma gama de materiais, objetos, mobiliários, brinquedos, atrativos decorativos e elementos relacionados à natureza e à estética das instituições que lhes são agradáveis. Para elas, letrinhas nas paredes, caderno, cadeira, flores, mato, plantas, sol, grama, pássaros, insetos, palhaço do mural, areia, pneus, cores, paredes e portas com desenhos pintados, cortinas, janela, bebedouro, filtro, copos, trepa-trepa, escorregador, carrinhos, bonecas, quebra-cabeça, entre outros, são, além de positivos, valiosos, como demonstram os excertos a seguir: Porque é mais bonito por causa disso, letrinhas; eu gosto daqui (Excerto, T21, p. 90). A escola é muito boa, porque tem brinquedos... trepa-trepa, escorregador, e os ferros do balanço (Excerto, T2, p. 61). Eu gosto do bebedouro (Excerto T15, p. 116). [...] eu gosto disso aqui [filtro] porque tem os copos (Excerto, T21, p. 122). [...] flor, sol, quero-quero, grama e parque (Excerto T16, p. 101). 79 Dentro da areia eu faço um buraco, bolinho (Excerto T2, p. 98). Porque também eu acho bonito; essas flores (Excerto T21, p. 107). [Pesquisadora] Por que vocês gostam tanto de brincar com os pneus? Porque é legal (MENINO 1). Porque roda, roda muito (MENINO 2) (Excerto T20, p. 160). Mariana: eu gosto de brincar de boneca (Excerto T22, p. 107). Eu gosto da cortina dos peixinhos (Excerto T4, p. 159). A apreciação do material selecionado revelou que, em 23, isto é, em 100% das publicações, as crianças anunciaram aspectos que consideravam positivos sobre a EI. Na subseção seguinte, são abordados os aspectos que esses sujeitos consideram negativos sobre o ambiente educativo do qual fazem parte. 5.2 “A canoa virou, quem deixou ela virar...?”58 Aspectos negativos da EI para as crianças Integram esta subseção aspectos pedagógicos e de infraestrutura física (atividades, alimentação, sono, relações com os pares e com as professoras, espaços, materiais) discriminados como desagradáveis pelas crianças e que, como já mencionado, são apresentados a partir de quatro temáticas que abordam os resultados de variadas questões sobre as quais as crianças foram estimuladas a falar, como, por exemplo: “O que não é bom na EI? O que tem de ruim na EI?” “O que menos ou não gostam de fazer na EI?”. a) Práticas Pedagógicas relativas às linguagens geradoras de aprendizagens Como visto, as crianças atribuíram relevância sem igual ao brincar e aos momentos em que essa atividade é privilegiada na EI, enaltecendo-o dentre as múltiplas linguagens por meio das quais se expressam e exploram variadas experiências. Nessa direção, por efeito da magnitude que tal linguagem representa, elas “delataram”, em 14 produções (61%), aspectos negativos que têm dificultado e até mesmo inviabilizado o seu vivenciar com qualidade nas instituições. A análise dos textos revelou que, para as crianças, os tempos e espaços do brincar na EI são muito restritos. À vista disso, em sete trabalhos elas disseram desaprovar as proibições, repreensões e controles diários exercidos pelas professoras com relação aos brinquedos e às brincadeiras. Por conseguinte, em quatro produções elas se queixaram do pouco tempo destinado ao que mais gostam de fazer nas instituições: brincar. Além do mais, em três publicações elas indicaram não gostar de brincar dentro da sala de atividades por causa da 58 Trecho da cantiga “A canoa virou”, de autoria desconhecida. 80 regulação ou da insuficiência de brinquedos, espaços e horários e ainda pelas balbúrdias que se instauram e pelos riscos de se machucarem nesse ambiente. Em duas pesquisas, as crianças criticaram o brincar nos espaços externos por aspectos relacionados a periculosidade: Lucas: [...] a Denise, ela deixa brincar no pátio. Érica: más não de lutinha. Vitória: eu gosto! (Excerto T4, p. 126). Quando brinca de Power Rangers ela não bota de castigo, mas quando brinca de ninja ela bota (Excerto T13, p. 174). [...] a tia bota a gente de castigo. Sem brincar (Excerto T11, p. 104). Pesquisadora – vocês também brincam de motinha? Motoqueiro Fantasma – uhum. Vanessa – e, umas vezes. Mais nós crescemos e num pode mais brincar de motinha, se não daí quebra e fica estragado e ai todo mundo num vai poder (Excerto T16, p. 97). [...] no bumerangue só pode mexer na hora que ela deixa, quando vai lá para fora (Excerto T3, p. 67). [...] a tia fala que é pra guardar e é chato [brinquedos na sala] (Excerto T2, p. 89) [brincar] na hora do recreio, porque na sala a gente aprende as coisas (Excerto T3, p. 52). [...] em casa eu brinco na hora que eu quero, na escola é na hora do recreio (Excerto T12, p. 118). Olha, lá na sala não tem escorregador, não tem balanço (Excerto T4, p. 117). Aí né, quando nós corre, nós bate a boca na parede, de tão apertado que é [sala de atividades] (Excerto T2, p. 89). Porque todo mundo fica batendo no dedo, fica gritando [sala de atividades] (Excerto T2, p. 89). [...] porque eu tenho medo que alguém me bata, eles ficam correndo [espaço externo] (Excerto T22, p. 115). Ainda acerca do brincar, cabe destacar que, em uma das produções, foi concebido pelas crianças como algo não somente negativo, mas como aquilo que não gostam de fazer na EI. Nesse caso, a pesquisadora, apoiada na teoria de Foucault, compreende que, ao serem frequentemente submetidas a estratégias de disciplinamento, pouco a pouco as crianças tendem a modificar seus pensamentos e vontades, passando a “gostar” do que antes era desagradável, como, por exemplo, as lições e deveres, podendo até mesmo desprezar o seu desejo ou o que lhe causa prazer (brincar) em face do que o outro lhe impõe. Dessa forma, as crianças proferiram não gostar de brincar na EI: E: E ela não gosta de fazer o que? C: Não gosta de brincar (desenho estória - Joice) (Excerto T7, p. 193). 81 E: E quando ele [o menino] tá na escola, o que é que ele não gosta de fazer? C: Brincar, Brincar [...] E: Ele não gosta de brincar? [...] Ele não brinca não, na escola? C: Não. E: Por quê? C: Porque ele acha chato. E: Por que ele acha chato brincar? C: Porque ele num gosta de brincar. Ele num quer brincar. É isso que ele acha chato, que ele um gosta. (desenho estória - Mateus) (Excerto T7, p. 193). Por conseguinte, de modo bastante enfático as crianças deixaram claro, em nove trabalhos (39%), o quanto consideram desagradáveis e complexas as atividades, lições e deveres, especialmente os relacionados à linguagem escrita. Assim, elas trouxeram à tona vários argumentos, a fim de esclarecer os motivos que as levam a não gostar de realizar as “tarefas de escrever”, como, por exemplo: ter que escrever bastante; não poder errar as lições; ter que escrever sem um modelo para copiar; necessitar fazer deveres com alfabeto e números; ter que fazer letras cursivas; copiar do quadro; tarefas chatas e sempre iguais; tarefas difíceis... Tais apontamentos corroboram o que foi apontado na Consulta sobre qualidade na EI (2006, p. 96): as crianças “trazem a apreensão de um fenômeno ainda muito presente na sociedade brasileira: a valorização da pré-escola pelo seu pretenso poder de vacinar as crianças contra o fracasso escolar no ensino fundamental”. Nesse sentido, os próximos excertos evidenciam os descontentamentos das crianças quanto à função escolar da EI, sobretudo no que se refere à centralidade da prática pedagógica no ensino e construção da escrita: [...] é difícil aprender a escrever (Rafael, 5 anos) [...] é difícil fazer os nomes sem ver (Iara, 5 anos) (Excerto T3, p. 57). O Samuel não gosta de ir pra escola porque [lá] só tem nome pra fazer. Letra pequena [desenho comentado sobre ele na EI] (Excerto T7, p. 189). [...] eu não consigo terminar, tem muitas tarefas assim (Paula, 5 anos). [...] dever, é ruim porque a tia passa um monte para mim, a letra N é muito difícil (Ney, 5 anos) (Excerto T3, p. 71). [...] fazer o alfabeto é difícil” (Luana, 5 anos) (Excerto T3, p. 76). Gislaine: Eu não gosto de fazer muito números, os que são difícil... Número nunca acaba [...] porque tem bastante número (Excerto T18, p. 163). Rafael: [O que menos gosto é] De por as letras, de fazer os números, porque é difícil (Excerto T18, p. 163). José: Escrever tudo igual, no mesmo papel! (Excerto T20, p. 120). Finalmente, no que tange às linguagens geradoras de aprendizagens, notou-se que, em três textos, as crianças citaram, com “des-gosto” e apatia, atividades relacionadas às linguagens oral e plástico-visual que vivenciam no cotidiano da EI, como leitura, contagem, pintura e desenho, embasadas pela justificativa de que tais atividades são por diversas vezes repetitivas e cansativas, como demonstram as passagens a seguir: 82 Joice: Todo dia o dever é o mesmo, [...] o mesmo dever de pintar (Excerto T7, p. 189). Mateus: [...] Na escola só faz desenho [...] (Excerto T7, p. 189). E: O que ele não gosta de fazer na escola, que ele acha ruim fazer? C: Ler historinha. E: Por quê? C: Porque não. E: E pra que ele tem que ler historinha? C: A professora dele manda [desenho comentado] (Excerto T7, p. 190). Manuela: Eu não gosto de pintar muito... Porque cansa a mão (Excerto T18, p. 163). Ingrid: É... atividade de pintar [que eu não gosto] porque dói o braço (Excerto T18, p. 163). A de contar (Excerto T3 p. 67). b) Práticas Pedagógicas relativas à saúde e bem-estar Por ora, são trazidas as perspectivas desfavoráveis das crianças com relação às práticas pedagógicas que envolvem saúde e bem-estar na rotina da EI. Constatou-se que, em quatro produções, as crianças reclamaram de uma atividade bastante frequente nas instituições: dormir. A partir dos seus relatos, foi possível notar que esse momento, muitas vezes, ao invés de proporcionar um repouso prazeroso, gera desconfortos, pois os horários são inflexíveis e nem sempre atendem as suas reais necessidades e desejos. Nessa mesma direção, em duas produções as crianças manifestaram-se insatisfeitas com relação à alimentação, “denunciando” situações em que são obrigadas a comer toda a refeição ou a ingerir alimentos de que não gostam e também reclamaram da carência de bebidas e comidas que lhes apetecem. De modo consequente, as crianças “delataram” ocorrências de descaso, punição, chantagem e agressividade nas instituições, referentes ao sono e à alimentação: serem obrigadas a dormir numa hora determinada, não poderem dormir o quanto desejam, ter que dormir todos os dias, ter que comer o que não gostam ou necessitar ingerir toda a refeição servida contra a vontade. Tais indicações são evidenciadas nos fragmentos que seguem: Também quando vai dormi não pode brincá, tem que fechá o olho (Excerto T5, p. 71). [...] é ruim quando a professora pega no braço da gente assim quando a gente faz bagunça na hora de dormir. [...] na hora de dormir tem que ficar bem quietinho, não pode correr nem pular nos colchões, né? (Excerto T6, p. 105). Bárbara fala para a pesquisadora: “_ Você vai dormir?” Pesquisadora: “_ Vou sim.” Ela diz: Eu não gosto de dormir. Eu não durmo nunca nessa escola. Professora diz: “_ Está na hora de dormir, se você não dormir agora, na hora de descer para o recreio você vai ficar aí dormindo” (Excerto T12, p. 116). Ralf: Eu tô com sono tia Dal... (choro). Profª. Dal: Ralf, vamos descer agorinha para lanchar, espera um pouco, o sono vai passar, hoje tem aula de educação física, você quer perder? Ralf: Eu to com sono... (choro). Estagiária: Ralf, me dá a mão, deixa 83 passar uma água no seu rosto, não chora. Vem comigo.... Ralf: Eu não quero lavar minha cara, quero dormir... (Excerto T17, p. 132). [...] ah! não... lá é muito chato... tem que dormir, dormir, dormir e comer tudo! (Excerto T6, p. 105). Dormir todo dia (Excerto T6, p. 107). Comer verdura (Excerto T6, p. 107). Nunca tem salada na janta! (Excerto T4, p. 105). Não tem nunca suco? Sempre água com a comida? (Excerto T4, p. 102). c) Inter-relações: crianças-pares e crianças-adultos Cotidianamente, no interior das instituições de EI, as crianças vivenciam relações com pares e adultos, sendo essas perpassadas por experiências de cooperações e conflitos. À vista disso, nesta temática são abordados os pontos negativos das inter-relações segundo a perspectiva dos pequenos. Embora as crianças tenham anunciado o desejo que possuem de aprender diversas coisas e apontado a EI como o lugar onde habita a possibilidade dessas múltiplas aprendizagens, observou-se que a convivência nesse espaço coletivo de educação e cuidado tem-se constituído muitas vezes a partir de experiências que, de seus pontos de vista, são bastante desagradáveis. Nessa direção, em 11 textos (48%), as crianças foram extremamente intensas ao falarem dos aspectos negativos que atravessam suas relações com os adultos, trazendo detalhes, especialmente com relação ao castigo, que, como visto, é frequentemente imposto pelas professoras no interior das instituições como estratégia de disciplinamento e controle dos movimentos e posturas de meninas e meninos. O objetivo dessas práticas é incutir neles condutas consideradas condições necessárias para o êxito do processo de ensino e aprendizagem (em especial da leitura e escrita), tais como obediência, silêncio e moderação. Destarte, os excertos a seguir evidenciam o descontentamento das crianças acerca de atitudes das professoras, como brigas, gritos, carões, castigos e falta de orientações para a realização das atividades, que vivenciam ou que veem os colegas experienciar dia a dia nos ambientes de EI: Ela grita com nós, a professora grita com nós, né, daí nós fica quietinho, por causa que senão ela grita de novo e coloca a gente de castigo (Excerto T2, p. 71-72). Daí ela [professora] fica gritando, daí as crianças começam a chorar [...] (Excerto T2, p. 62). Luana: ir para a diretoria (Excertos T3, p. 76). Eu não gosto quando a tia Gladis bota as minha amiga sentada! (Excerto T4, p. 126). 84 [...] Não pode nem falar uma palavrinha feia que a professora já bota a gente de castigo! (Excerto T6, p. 105-106). [...] E: É, e na escola, se ele não obedece? C: Ele leva uns carão. E: De quem? C: Do professor [desenho-estória] (Excerto T7, p. 191). A tia [a professora] bota ele [o menino] de castigo. Perto da parede. Sentado [desenho-estória] (Excerto T7, p. 193). A professora (...) é muito brava, ela grita com nóis, ela é ruim mesmo (Excerto T8, p. 99). [...] quando a gente faz muita besteira, aí botam a gente de castigo, de castigo de verdade (Excerto T11, p. 104). Ela bota de castigo (Excerto T13, p. 174). [...] se alguém ficar de pé em cima da mesa ela briga, bota de castigo... (Excerto T13, p. 168-169). A tia dá uns carão (Excerto T14, p. 179). Os menino tava riscando todinha a lousa e a tia brigando [desenho comentado] (Excerto T14, p. 179). Rainha: Não gosto de ficar de castigo. A Deíse botou de castigo, eu e a Blenda de frente pra parede (Excerto T15, p. 123). [...] quando uma professora ruim briga e grita com as crianças bem altão [...] não gosto disso de jeito nenhum (Excerto T20, p. 121). Pesquisadora: E você faz lição certa ou errada? Tamires: tem vez que eu faço errado, tem vez que eu faço certa. Pesquisadora: E quando você faz errado, por que você erra? Por que tem vez que a professora não põe certo, ela nem explica direito, daí tem que fazer errado (Excerto T2, p. 68-69). A respeito dos relacionamentos com os pares, em cinco produções as crianças incluíram, como características ruins da EI, a violência expressa nos maus tratos praticados pelos companheiros, entre os quais elas destacaram as agressões físicas, os xingamentos, as “danações” e brigas. Nesse sentido, disseram não gostar de: Se danar (Excerto T3, p. 76). Não gosto de brigar com uns outro (Excerto T4, p. 110). Eu só não gosto do Mathias e do Guilherme. Eles são muito malcriados e batem nos outros [...] (Excerto T8, p. 47). Rachel: Colegas batendo em nós (Excerto T14, p. 179). Gabriel: Chamar nome feio e chamar palavrão (Excerto T14, p. 185). Os coleguinhas bate ni nóis (Excerto T12, p. 117). d) Organização do espaço, tempo e materiais Exibem-se, neste item, os pareceres negativos das crianças quanto ao tempo organizado e vivido no cotidiano da EI, além de suas opiniões desfavoráveis com relação aos elementos 85 que compõem a infraestrutura física das instituições, tais como ambientes, materiais e mobiliários. Na introdução desta dissertação, em consonância com as proposições da SI, as crianças foram assumidas como atores sociais. Com a apreciação dos textos, tal concepção ficou ainda mais ratificada: as crianças são seres ativos, são inquietas, são curiosas, carregam em si uma vivacidade sem igual... Posto isso, ao descreverem com minúcias a rotina nas instituições, demonstraram-se bastante insatisfeitas com a falta de atividades interessantes e até mesmo de programação a que cotidianamente são submetidas. Como resultado, em sete publicações as crianças indicaram reprovar o tempo ocioso que vivenciam nas instituições. Nesse caso, elas criticaram: o tempo em que não têm uma atividade programada e ficam “sem fazer nada”, o tempo que precisam esperar “sem fazer nada” após terminaram de fazer a atividade proposta; o tempo que devem ficar “sem fazer nada” enquanto os colegas ainda estão realizando a atividade; o tempo em que ficam sozinhos na sala de atividades quando a professora sai para resolver assuntos sem dar explicações; o tempo que precisam esperar para ir embora; o tempo duradouro da hora da chamada, em que devem ficar quietos; o tempo prolongado na roda de conversa, falando sobre os mesmos assuntos. Seguem alguns trechos nos quais as crianças reprovam o tempo ocioso e indicam a ausência de um planejamento estimulante e que leve em consideração os seus anseios: [...] ficar sentado sozinho sem fazer nada (Excerto T3, p. 62). [...] quando acaba a atividade fica demorando pra fazer coisa mais (Excerto T8, p. 44). [...] na escola não tem nada para fazer [...] Eu quero estudar de tarde igual ao meu primo, porque depois que a gente dorme passa rapidinho e é só jantar e ir embora (Excerto T12, p. 123). [...] uma coisa ruim na escola: a tia vai ajudar a mulher e a gente fica sozinho (Excerto T14, p. 179). Dragon Ball Z – Não gosto só daquele lugar ali, ficar parado o tempo todo. Pesquisadora – onde? Dragon Ball Z – ali nesse tapete (pátio interno) [...] E sempre chato aquilo. Pesquisadora – e quando vocês ficam naquele tapete? Dragon Ball Z – na hora de ir embora. E muito chato. A gente fica esperando as mães [...] (Excerto T16, p. 122). Julia: eu não gosto de ficar no tapete, porque não tem nada pra fazer no tapete (Excerto T16, p. 124). [...] de ficar esperando brincar com a chamada. [...] É ruim. Aí não dá pra brincar, aí tem que ficar quietinha, e sem brinquedo. Tem que ficar ali (Excerto T16, p. 125). Vanessa – eu queria ficar em casa um pouco. Pesquisadora – por quê? Vanessa – porque nos não joga bola, nós não faz as coisas [...] (Excerto T16, p. 94). 86 Joana: Fica muito tempo na roda, experimentando como o peixe se move (Excerto T20, p. 120). Com relação aos brinquedos e materiais, em seis produções as crianças discriminaram os fatores que as deixam descontentes nas instituições de EI: a inexistência, a insuficiência, a deterioração e a falta de autonomia para utilizá-los nos momentos em que desejam, como pode ser identificado nos relatos abaixo: [...] no quintal não tem brinquedo, eu trago os brinquedos da minha casa (Excerto T3. P. 75). Eu gosto de brincar de super-homem, mas aqui não tem (Excerto T9, p. 83). [...] é melhor brincar do que ir na escola [...] porque na escola tem pouco brinquedo (Excerto T2, p. 65). [...] aqui os nosso tudo é amassado! [Brinquedos] (Excerto T3, 59). É chato os brinquedos estarem quebrados (Excerto T19, p. 85). É us guri é que sempre quebram esses brinquedos! (Excerto T4, p. 131). É sempre a professora que passa o perfume (Excerto T3, p. 53) [...] a tia não deixa a gente pegar brinquedo quando a gente quiser (Excerto T12, p. 100). [...] esmalte, ela é quem pinta (Excerto T3, p. 67). A tia escolhe e dá pra gente brincar (Excerto T3, p. 54). Raudio [...] não pode mexer nas caixas com brinquedos sem falar para a professora (Excerto T5, p. 71). [...] não posso mexer em nada, só se a tia deixar (Excerto T3, p. 67). Sobre os espaços internos, num total de oito textos, as crianças trouxeram à tona o que desaprovam. Em sete desse conjunto de produções, elas declararam não gostar da sala de atividades, indicando os seguintes motivos: ocorrências desagradáveis, atividades desinteressantes, quantidade elevada de mobiliário obstruindo a locomoção tranquila pelo espaço e impedimentos (ferrenhamente impostos pelas professoras) de brincar59 ou de escolher os “cantinhos” que querem desfrutar; por conseguinte, em três publicações elas “delataram”, com detalhes, as condições inadequadas, inativas, precárias e insalubres dos banheiros, apontando com pesar, inclusive, aspectos estéticos e discrepâncias entre o banheiro das meninas e o dos meninos. Em duas produções elas apontaram como desagradável o desasseio nas cozinhas; por fim, em uma das produções elas criticaram a aparência física da biblioteca. Tais indicações são ilustradas nos seguintes excertos: 59 Já tratado na temática que se refere às linguagens geradoras. 87 Por que você acha que a escola está ruim? Ele diz:-Não. Não é ruim não. Digo: - Não é ruim não? Ele diz:-Só dentro da sala que é! Pergunto:-Por que é que dentro da sala é ruim? Ele diz:-Porque não pode brincar (Excerto T10, p. 98). Sala: Porque tem poeira; porque tem muita carteira; bato minha cabeça aqui; o menino fica batendo no colega; as pessoas ficam caindo aí; fica chorando (Excerto T21, p.82-83). Pesquisadora – e o que você não gosta na sua sala? Motoqueiro Fantasma – sabe onde eu tava brincando lá? Num gosto não. Pesquisadora – por quê? Motoqueiro Fantasma – por que e muito chato. Tem que montar. Eu não gosto também das ferramentas. Pesquisadora – e do que você queria brincar? Motoqueiro Fantasma – das bonequinhas, pra ser o pai. Não tinha pai. Tinha 3 meninas e 1 pai e tinha que ter 3 pais [cantinhos na sala de atividades] (Excerto T16, p. 96). Homem Aranha: Da sala de aula – porque a professora faz só esse negócio aí [apontando para o quadro, o menino não gosta de copiar do quadro] (Excerto T15, p. 123). [...] o [banheiro] das meninas tá quebrado aí todo mundo tem que usar o dos meninos, eu não gosto (Excerto T3, p. 63). Porque o banheiro quando a gente não se segura, a gente cai no vaso, eu fico com medo, né? De cair (Excerto T21, p. 81). Motoqueiro Fantasma – aqui e o banheirinho das meninas. Pesquisadora – hum, e será que e igual dos meninos? Motoqueiro Fantasma – e, mas a torneira não. Pesquisadora – não? E por quê? Motoqueiro Fantasma – porque tem muita (torneira), no das meninas (Excerto T16, p. 128). Banheiro: porque é feio; porque ele não tem aqueles negocinhos azulzinhos; aí eu gostava, mas não tem; não é cheiroso, porque não tem aqueles negocinhos (Excerto T21, p. 81). Cozinha: Do lixo, pia, o pano (Excerto T21, p. 117). Érica: quando a cozinha fica suja! (Excerto T3, p. 123). Biblioteca [lugar de livros]: Porque eu não gosto dele, livros; não gosto da banquinha, porque eu acho feia, e não colocou o negócio aqui, o prego; não gosto do balde, acho ele feio; não gosto dos livros porque não tem isso, figura (Excerto T21, p. 118) Constatou-se que, em menor dimensão (cinco pesquisas), as crianças apontaram os aspectos negativos que, em sua opinião, abrangem os ambientes externos. Nesse sentido, criticaram: a falta de água na piscina, a sujeira do tanque de areia, a inexistência de revestimento nas calçadas e corredores (motivo de acidentes), a ausência de brinquedos e segurança (relacionado à extensão) no âmbito do pátio e a “chatice”60 (falta de brinquedos e propostas estimulantes) da área gramada. Tais avaliações negativas podem ser constatadas nas seguintes falas: 60 Termo utilizado pela criança no T16 para caracterizar o espaço do gramado. 88 Rafael: “sem água” [piscina] (Excerto T3, p. 53). Porque não tem piso; porque é muito ruim; porque se a pessoa escorregar; bate a cabeça e vai pro hospital [corredor] (Excerto T21, p. 84). [...] aqui é muito grande [pátio área externa] (Excerto T22, p. 114). Motoqueiro Fantasma – embaixo do parque. Na grama. Pesquisadora – você acha que ele é chato? Motoqueiro Fantasma – uhum. Muito mais chato. Motoqueiro Fantasma – eu num gosto daquele lugar. A a. Nadinha [...] Juliana: [...] se achar uma tampinha, uma coisinha, a gente brinca, não traz brinquedo [gramado] (Excerto T16, p. 95). [...] é muito ruim brincar na areia [...] porque na areia tem micóbio (micróbio), tem bicho... é ruim ficar no vapor (poeira) da areia... (Excerto T14, p. 185). Pesquisadora – Tem algum lugar mais chato no CMEI? Juliana – a calcada. Pesquisadora – qual calcada. Juliana – essa dali (pátio externo). Pesquisadora – e você acha o mais chato de todos, de dentro e de fora? Juliana – uhum. Pesquisadora – por que a calcada e mais chata? Juliana – ali machuca a gente, sai sangue do joelho (Excerto T16, p. 92). Por fim, em três pesquisas as crianças enfatizaram o quanto lamentam a falta de acesso a alguns espaços internos e externos (coordenação, piscina, secretaria, biblioteca, área externa) que consideram interessantes, como demonstram os próximos fragmentos: Só a tia vem aqui...[coordenação] (Excerto T3, p. 72). A gente não vem pra cá [biblioteca] (Excerto T15, p. 120). [...] nos não vai lá fora (Excerto T16, p. 94). Em decorrência dos diferentes focos de investigação (culturas infantis, brincar, práticas pedagógicas, espaços, entre outros), as publicações analisadas não abrangeram opiniões das crianças sobre todas as questões envolvidas nas quatro temáticas. Cabe destacar, no entanto, que em 23, isto é, 100% das publicações, verificou-se a discriminação de aspectos que consideravam negativos sobre a EI. 5.3 “Se essa rua, se essa rua fosse minha, eu mandava eu manda ladrilhar...”61 com pedrinhas, com pedrinhas de brilhante” Reivindicações das crianças para a EI que idealizam Integram esta subseção as reivindicações das crianças para a EI, em relação a aspectos pedagógicos e de infraestrutura física, evidenciadas nas publicações analisadas. Tais indicações, como anunciado, são abordadas a partir de quatro temáticas, que apresentam os 61 Trecho da música “Se essa rua fosse minha”, composta por Mario Lago e Roberto Martins 89 resultados de variadas questões sobre as quais as crianças foram estimuladas a falar, como por exemplo: “O que gostaria que tivesse na EI?” “Como deve ser uma boa professora na EI” “O que não deveria ter na EI?” Nesse sentido, primeiro que tudo, cabe destacar que, diferente das outras categorias (aspectos positivos e aspectos negativos) sobre as quais, em todas as publicações, foi constatada ao menos uma referência das crianças, encontrou-se, no que tange às reivindicações, a opinião dos pequenos em 16 produções (70%). a) Práticas pedagógicas relativas às linguagens geradoras de aprendizagens “Brincar” é, certamente, a palavra de ordem das crianças. Em meio às centenas de linguagens das quais elas são feitas62, esta é a que privilegiam para vivenciar experiências na EI e nos outros espaços dos quais participam. À vista disso, num total de 11 textos (69%) elas explicitaram que o que querem na EI ou o que tornaria esse espaço melhor é/seria: brincar, brincar e brincar... Referente a essa linguagem, as crianças reivindicam: tempos63, espaços, brinquedos, permissões e companhias. Elas querem brincar livremente com os pares, sem a pressão de uma hora para acabar ou de um adulto para direcionar e repreendê-las; elas almejam espaços seguros, amplos e com propostas e elementos estimulantes; elas desejam, de modo intenso, brinquedos suficientes e diferentes dos quais tem a chance de ter em casa ou em outros locais; elas querem que suas professoras as autorizem (e até ordenem-lhes) a brincar e também que brinquem com elas. Portanto, elas querem64: A tia deixando [...] brincar todos os dias (Excerto T14, p. 183). Brincar de chapeuzinho, passar batom, poder vestir vestido (Excerto T3, p. 59). [...] parque pra o terreiro da gente [...] Ai já fica legal (Excerto T3, p. 69). uma roda onde as crianças sentam e ficam girando [carrossel] (Excerto T3, p. 77). [professora] Manda brincar de brinquedo (Excerto T7, p. 213). [...] poder brincar no parque (Excerto T6, p. 107). Manuela: Eu queria que tivesse um fogãozinho. Pesquisadora: Fogãozinho pra fazer o que? Manuela: Pra brincar de comidinha (Excerto T18, p. 160). Tia [...] lá na frente ensinando a brincar. A professora brinca com os alunos (Excerto T7, p. 212). 62 Concepção proposta por Malaguzzi. No T4, essa questão de maior tempo para brincar é trazida pelas crianças, contudo isso será novamente discutido na temática “ Organização do tempo, espaços e materiais”.. 64 De forma indireta, tais indicações também foram encontradas nos textos: T2, T9, T15 e T16. 63 90 Parquinho, escorregador, carrinho, barquinho, casinhas, balançador, boneca, boneco, cobrinha [igual ao do parque], palhaço, brinquedo grande, brinquedo pequeno, um bocado de bola, brinquedo de menino, brinquedo de menina (Excerto T7, p. 212). Em conclusão, cabe destacar que em apenas dois trabalhos as crianças evidenciaram outras linguagens geradoras de aprendizagens: em um, elas informaram o que gostariam de aprender; no outro, disseram o que não vão gostar de fazer numa EI legal. Destarte, notou-se que suas solicitações não foram muito além do que costumeiramente é proposto nas instituições, como ilustram os episódios seguintes: [...] escrever e ler, fazer os nome, escrever nomes de países, escrever nomes de cidades, pintar, desenhar uma casa (Excerto T2, p. 214). [As crianças não vão gostar de fazer na escola:] Fazer nome sozinho com as letras bem pequenas (Samuel); Pintar (Felipe); Fazer nome porque demora muito [...] (Carlos Henrique); Ler [...] (Mateus) [...] (Excerto T7, p. 215). b) Práticas Pedagógicas relativas à saúde e bem-estar A apreciação das publicações evidenciou que as práticas pedagógicas que envolvem saúde e bem-estar na EI, em face do caráter imperativo que as orienta, são por vezes angustiantes para as crianças. Desse modo, imbuídas da tarefa de apresentar os seus anseios e perspectivas para um contexto educativo que considerem prazeroso, em três pesquisas esses sujeitos trouxeram sugestões que julgam necessárias para a hora da alimentação e, em duas, para o momento do sono. Nessa direção, ao conceberem a EI dos seus sonhos, as crianças indicaram tanto o que querem e como gostariam que fosse, quanto o que não querem e o que desejam não ter que fazer nas instituições, concernente aos momentos em pauta. Logo, no que diz respeito à alimentação, elas reivindicaram: merenda, comida; a inserção de saladas no horário do jantar; café com pão e não somente bolacha; suco e não sempre água para acompanhar as refeições; guloseimas como sorvete e, ainda, não ter que comer aquilo deque não gostam. Já com relação ao repouso, em uma publicação solicitaram poder dormir mais65; em outra, não ter que dormir todo dia. Essas diferentes posições com relação ao momento do sono contribuem para uma urgente reflexão: a indicação de que as crianças sentem necessidade de dormir durante o dia e o fato de que esse repouso é benéfico para sua saúde não deve implicar o repouso “forçado” de todas e tampouco no mesmo horário, ou, ainda, que elas têm o mesmo tempo de sono, devendo ser despertadas num só instante. 65 Reivindicação da criança trazida de forma indireta no T12. 91 Nesse bojo, seguem alguns fragmentos de petições das crianças visando aprimorar a qualidade das práticas pedagógicas relativas à saúde e ao bem-estar: Café com pão, bolacha não! (Excerto T4, p. 101). Merenda/comida (Excerto T10, p. 85). Sorvete (Excerto T10, p. 88). [Não ter que] comer verdura (Excerto T6, p. 107). [Não ter que] dormir todo dia (Excerto T6, p. 107). c) Inter-relações: crianças-pares e crianças-adultos Para caracterizar a instituição de EI que desejam, as crianças informaram aos pesquisadores quais seriam as pessoas necessárias nesse ambiente ou o que esperavam das relações com algumas destas. Nesse sentido, em dois trabalhos as crianças sugeriram que uma EI de qualidade deve contar com diversos profissionais para o bom encaminhamento das atividades, entre os quais elas destacaram: [...] a professora, as merendeiras, a coordenadora, a diretora... (Jaime, 5 anos) (Excerto T3 p. 78). [...] crianças, adultos (cantineira) (Excerto T10, p. 86). Por conseguinte, verificou-se que, em quatro produções, as crianças declararam o que anseiam das ou nas suas relações com as professoras ou pares num ambiente educativo prazeroso, isto é, numa EI feliz 66. Essencialmente, elas querem: que as relações sejam amistosas e afetuosas; que não aconteçam castigos, ou brigas; ter autonomia para escolher com quem querem manter vínculos mais próximos; que as professoras apresentem uma boa aparência, que as eduquem, que não as enganem, que proponham brincadeiras e que se preocupem com as suas necessidades. Enfim, no contexto escolar idealizado segundo a perspectiva das crianças, as interrelações devem ser perpassadas por afeto positivo, compreensão, cuidado e compromisso de todos os envolvidos, não podendo haver mentira, castigo e violência: [a professora] deixa merendar na hora, [mas] se ele [o menino] não tiver merendado [em casa], deixa merendar quando chegar na escola (Excerto T7, p. 213). (P): Oi, Carolina, como deve ser uma boa professora? Carolina: Uma professora bem bonita que tem que educar as crianças, que ela tem que dá água pra crianças não ficarem com sede, e tem que fazer uma brincadeira que ela [criança] adora! (Excerto T20, p. 117). 66 Termo usado no T7. 92 [...] usa brinco (Mariana). [...] é charmosa (Carlos Henrique). [...] bem boazinha (Mateus) [professora idealizada] (Excerto T7, p. 213-214). Ela foi pro colégio, depois levou uma flor pra tia, ai, disse “bom dia, tia”. Aí, [disse ainda:] “tia, eu vou sentar ali”. [A professora respondeu:] “tá bom. Aonde, ande?”. [A menina respondeu:] “ali ó, em frente aquela mesa”. [A professora concordou:] “Tá!” [Desenho comentado de uma escola feliz] (Excerto T7, p. 213). Pesquisadora: Se ela pudesse sentar na mesa com as meninas, ela teria ficado mais alegre? [...] Gabriela: ia... (sim, iria ficar mais alegre) (Excerto T14, p. 170). (P): E pra terminar digam [...] o que uma professora deve fazer que vocês vão gostar muito? Vitor: Dar abraços, dar bom dia! (Excerto T20, p. 120-121). [...] as crianças não gostariam que houvesse: [...] responder para professora nem brigar com os amigos. [...] ficar de castigo (Excerto T6, p. 107). [...] os alunos não podem brigar (Excerto T20, p. 118). José: A professora não pode mentir pras crianças (Excerto T20, p. 90). d) Organização do espaço, tempo e materiais Se, em uníssono, na maioria das produções,67 as crianças afirmaram que o que mais gostam de fazer nas instituições é brincar, constatou-se que, com relação ao tempo, o que elas reivindicam para a EI dos seus ideais é exatamente mais, muito mais, tempo para brincar! Nesse sentido, em três trabalhos elas apontaram que, numa escola “bem legal”, deve haver: [Recreio] bem grande (Excerto T3, p. 60) [...] Um bocado de recreio (Excerto T7, p. 212) [...] Deixá... maaais um minuto de pátio [...]! Aí seria bom! (Excerto T4, p. 116). Do mesmo modo, na EI que as crianças desejam não podem faltar espaços e o prédio necessita de “encantos” diferentes do convencional. Elas querem diversos e bem cuidados ambientes, externos e internos, que lhes permitam brincar, comer, aprender, relaxar, viver... Diante dessa perspectiva, em quatro pesquisas elas listaram os espaços que precisam existir na EI dos seus sonhos: [...] um parquinho e uma brinquedoteca (Excerto T3, p. 75). [...] prédio colorido, piscina, sala de aula, área com areia, campinho de grama, canil, banheiros, secretaria, refeitório, pátio, jardim, quadra com trave [...] (Excerto T10, p. 85; 87). [Escola] igual um castelo (Homem Aranha) [...] bonita (Ben 10) (Excerto T15, p. 119). 67 Como visto, em 22 produções (96%), as crianças afirmaram que brincar é o que mais gostam de fazer na EI. 93 Sonia: Eu queria que tivesse um jardim lindo [...] (Excerto T18, p. 159). Ana Clara: Eu queria que tivesse um castelo assim [...] Uma ponte [...] (Excerto T18, p. 159). Por fim, notou-se que, em seis textos, as crianças elencaram, com entusiasmo, múltiplos brinquedos, materiais, equipamentos, mobiliários e até elementos da natureza para compor uma EI agradável e de qualidade aos seus olhos. Empenhadas com esse exercício, especificaram ainda que os objetos descritos precisam: estar em bom estado de conservação (novos); ser estimulantes, interessantes e, se possível, do tamanho delas (adequados à faixa etária): [...] sino para tocar (Excerto T3, p. 75). [...] caixa com brinquedos que até os adultos queriam brincar (Excerto T3, p. 57). [...] mais bolas Ney e Valeria, 5 anos). bicicleta (Valeria, 5 anos). bonequinhos para brincar, boneca (Paula, 5 anos) (Excerto T3, p. 66). [...] uma bolsa para colocar o caderno e bonequinhos para pintar (Ana, 5 anos) (Excerto T3, p. 67). [...] brinquedos, um aparelho de som, animais (Excerto T3, p. 68). Pesquisadora – E o refeitório? [...] Thalyson – Botaria uma mesa grande! Pesquisadora: Uma mesa grande? Por quê? AS pequenas tu não gosta? Thalyson – Não, fica todo mundo amontoado! Pesquisadora – E ai uma grande ia ser legal? Thalyson- Por que não fica todo mundo amontoado, da pra todo mundo! (Excerto T4, p. 149). [...] mais caneca! (Excerto T4, p. 155). Apagador. Caderno para escrever. Tesoura. Caneta. Borracha. Lápis de cor. Lápis de escrever. Papel. Lousa. Livro. Farda. Cola. Pasta de botar caderno. Piscina. Sala muito bonita. Copo para beber agua. Filtro. Banheiro de homem. Banheiro de mulher. Ventilador. Bebedor. Cadeira. Mesa. Televisão. Vídeo cassete. Fita de vídeo de “filmim para assistir” (Excerto T7, p. 214). Parquinho, escorregador, barquinho, casinhas, balançador, boneca, boneco, cobrinha [igual ao do parque], palhaço, brinquedo grande, brinquedo pequeno, um bocado de bola, brinquedo de menino, briquedo de menina (Excerto T7, p. 212). Porta, quadro/cartaz, mesa, cadeira/banco, janelas, telhado, pia no banheiro, chaminé, escada, brinquedos, lata de lixo, panela, fogão, geladeira, enfeites/desenhos, livro, carro para transportar crianças, flor, sol, nuvens (Excerto T10, p. 87). Muitas coisas [...] livro, brinquedo (Excerto T18, p. 160). Mais brinquedos, mais carrinhos (Excerto T19, p. 85). De modo geral, as reivindicações expressas pelas crianças para uma EI de qualidade, muito além de simplesmente anunciar preferências e anseios, denunciam demandas e condições que têm impedido a consolidação de um ambiente educativo que favoreça aprendizagens 94 significativas, desenvolvimento pleno e bem-estar a todos que nele convivem. Desse modo, fazse necessário apreender os sinais emitidos pelas crianças a fim de legitimá-los. Portanto, é no sentido de pensar em projetos político-pedagógicos que valorizem crianças e bebês como sujeitos centrais, seres completos e de direitos, competentes e ativos, salientando a necessidade de uma orientação educacional que recusa padrões assistencialistas e irrefletidos de atendimento à infância e que se nega a aceitar a impregnação de ações de cunho “escolarizante” em suas práticas, que são trazidas as ponderações na seção subsequente. 95 6. “VAMOS DAR A MEIA VOLTA, VOLTA E MEIA VAMOS DAR...”68 PALAVRAS FINAIS... Os adultos pensam que as crianças só são capazes de fazer bagunça e dizer bobagens; mas elas profetizam um longínquo futuro, discutem e debatem a esse respeito. Januz Korczak Como destaquei no início, esta dissertação constitui-se numa realização profissional regada a afetos pessoais69. Desse modo, a tarefa final de escolher as últimas palavras para compô-la toma-me novamente com um misto de emoções, que só podem ser expressas em primeira pessoa. Universidade, Pedagogia, quantas utopias e curiosidades me moviam... Hoje, professora efetiva de Educação Infantil, renovo-me e direciono-me, cotidianamente, a partir dos olhares e dizeres das crianças com as quais convivo e com as quais sonho e almejo a efetivação da qualidade para essa etapa da educação, sobre a qual possuem direito. Orientada pelos aportes teóricos da Sociologia da Infância – abordagem que traz perspectivas para o estudo da infância prevendo o reconhecimento da criança como ator social, capaz de produzir mudanças nos sistemas nos quais está inserido, o entendimento da infância como categoria estrutural da sociedade e a admissão da EI como um espaço educativo de contraposição à exclusão social –, intentei, neste projeto, conhecer as percepções sobre a EI dos principais protagonistas que vivem parte significativa de suas infâncias nesse contexto e que, cientificamente, começaram a ser ouvidos com mais frequência apenas recentemente: as crianças. Nesse sentido, a fim de avançar no conhecimento sobre a realidade da EI no país e não apenas no contexto onde estou inserida, decidi mapear e discutir a produção acadêmica de teses e dissertações, publicadas durante uma década, que ouviram crianças acerca do que sentiam, do que pensavam sobre e do que esperavam das instituições de EI. Logo, para esta atividade de estudo com caráter bibliográfico, adotei a abordagem qualitativa de pesquisa. Destarte, ensejei descortinar as seguintes questões: Qual a dimensão quantitativa das pesquisas com crianças sobre a EI no cenário científico brasileiro? Em quais regiões do país se tem privilegiado a escuta desses sujeitos acerca dessa temática? Quais os pontos de vista das crianças partícipes das produções acadêmicas a respeito da EI? Quais aspectos da EI as crianças 68 69 Trecho da cantiga “Ciranda, cirandinha”, de autoria desconhecida. Peço novamente licença ao leitor para me pronunciar na primeira pessoa do singular. 96 consideram positivos e quais julgam negativos? Quais são as reivindicações das crianças para que a EI obtenha o seu “selo de qualidade”, ou seja, como seria a EI dos seus sonhos? Agora, a voz do sujeito pesquisador pode voltar à cena... Como evidenciado, a preocupação de pesquisadores brasileiros com a participação ativa das crianças nas produções científicas, em particular da primeira infância, é fato recente; entretanto, ao que tudo indica, as novas possibilidades de estudos com as crianças vêm conquistando espaço gradativamente. Posto isso, considerando o caráter embrionário do movimento que busca ouvir e conhecer o ponto de vista das crianças no Brasil (e no mundo), bem como os recortes circunscritos neste estudo, reitera-se a avaliação de que o número de trabalhos localizado, 23 produções, sendo 18 dissertações e cinco teses, foi bastante expressivo. A partir da análise das opções metodológicas adotadas pelos autores dos estudos com crianças sobre a EI, notou-se, fundamentalmente, que: as investigações ocorreram em quatro regiões (Sudeste, Sul, Norte e Nordeste) e, embora a região Sudeste tenha-se mantido à frente nas produções, coube também o destaque para a região Nordeste, com uma quantidade significativa de produções realizadas pelo programa da UFC. Observou-se ainda que, além da diversidade geográfica, as investigações incidiram nas mais variadas organizações institucionais: instituições de EI urbanas e rurais; instituições de EI públicas e particulares; instituições de EI de tempo integral; instituições de EI situadas dentro de escolas que atendem ao Ensino Fundamental; conjunto habitacional próximo a instituições de EI. Por conseguinte, verificou-se que as crianças não foram tomadas como partícipes exclusivos em todos os trabalhos (algumas publicações contemplaram a visão de adultos: profissionais da educação e membros das famílias) e, ainda, que houve a predominância de estudos com crianças na faixa-etária pré-escolar, justificada com base na ideia de que a criança pequena, isto é, com idade entre quatro e seis anos, já se expressa por meio da fala, expressão verbal da linguagem. Conclui-se, com base em tal fato, que, mesmo diante do reconhecimento da multiplicidade de expressão infantil, a linguagem oral mostra-se, no caso das pesquisas com crianças, muitas vezes determinante para a escolha dos sujeitos. Alguns autores privilegiaram a participação de crianças com deficiências (visual, intelectual, física), bem como das oriundas de contextos rurais ou do campo por onde perpassam diversas formas de vida, como as pesqueiras, as ribeirinhas e as agrícolas. Nessa direção, embasados teoricamente no pressuposto de que as crianças se expressam por meio de diversas maneiras, bem como a fim de vivenciarem da melhor forma o movimento de compreenderem e serem compreendidos por esses sujeitos, os autores utilizaram vários tipos 97 de recursos e estratégias. E estes se revelaram metodologicamente pertinentes para a busca das percepções infantis: observação participante; diário de campo, registro escrito, diário de bordo; entrevistas, conversas informais; artefatos, produções culturais: desenhos, desenhos com história ou comentados, desenhos a partir de história, brincadeiras, jogos, oficinas lúdicas; registro fotográfico; registro fílmico; gravação em áudio; história para completar; visita guiada, visita monitorada. Esse indispensável exercício de apreciação meticulosa dos trabalhos possibilitou a apreensão de elementos significativos dentro de um conjunto diversificado, que, certamente, contribuiu para o conhecimento da produção científica acerca do tema investigado, tanto no que se refere a dimensões quantitativas, quanto no que tange a especificidades qualitativas. Desse modo, as opiniões das crianças foram sistematizadas em dois eixos: questões pedagógicas e questões de infraestrutura física, que, por sua vez, foram abordados a partir de quatro temáticas: a) Práticas pedagógicas relativas às linguagens geradoras de aprendizagem; b) Práticas pedagógicas relativas à saúde e bem-estar; c) Inter-relações crianças-pares e crianças-adultos; d) Organização do espaço, tempo e materiais. Nas 23 produções apreciadas, foram encontrados aspectos que as crianças consideravam positivos e negativos. No que tange às reivindicações, encontrou-se a opinião dos pequenos em 16 produções (70%). Nesse bojo, considero oportuno esclarecer que, embora todas as pesquisas aspirassem indubitavelmente a olhar para a qualidade nas instituições de EI, certos pontos centrais foram determinados para conduzir algumas das investigações: espaços, tempo/rotina, relações/interações e o brincar. Assim, as crianças revelaram as suas perspectivas com base nos recortes propostos pelos pesquisadores, e, por esse motivo, algumas questões foram contempladas em maior dimensão do que outras. Posto isso, expõem-se algumas reflexões, favorecidas pela apreciação das declarações, queixas e solicitações das crianças acerca da EI, evidenciadas ao longo das produções analisadas. As crianças se produzem e se inscrevem no dia a dia de suas vidas, seja em família, seja nas instituições de EI, a partir de diferentes linguagens (MARTINS FILHO, 2014). Por meio dessas múltiplas ou “cem linguagens” (MALAGUZZI, 1999), elas exploram conhecimentos, reconstroem algo que já conheciam e constroem em conjunto novos saberes e culturas. Nesse sentido, Edwards (2005, p. 7) indica que as “linguagens infantis são importantes para as crianças porque elas possuem muitas formas de aprender e pensar”. 98 À vista disso, Macedo (2005) destaca que o brincar é a forma de a criança ser e estar no mundo e que é por meio dessa linguagem que ela encontra sentido para a sua vida. Logo, não é de surpreender o valor significativo que as crianças concederam, em quase todos os textos, a essa forma de expressão, classificando-a como o que certamente mais gostam de fazer na EI. Uma questão revelada pelas crianças e que merece destaque é que o forte desejo pela brincadeira vem combinado de outro anseio igualmente importante: o de livre escolha, que se refere tanto aos momentos, quanto aos pares e objetos. Ademais, as crianças deixaram claro que “aprender coisas novas” torna-se amplamente positivo quando mediado por brincadeiras. Assim, elas trouxeram, de maneira bastante contundente, a necessidade que sentem e o valor que atribuem aos momentos em que o brincar é permitido no cotidiano das instituições de EI em que estão inseridas, corroborando o que também foi declarado pelas crianças ouvidas na Consulta sobre Qualidade da EI (2006). Por outro lado, exatamente pela relevância conferida ao brincar, elas também foram categóricas ao apontarem os aspectos negativos que atravancam o vivenciar tranquilo dessa linguagem nas instituições: a escassez de tempo; as proibições, repreensões e controles diários exercidos pelas professoras com relação aos brinquedos, as brincadeiras e ao brincar na sala de atividades; e também a falta de segurança em certos locais onde brincam. Em consequência, ou como resposta aos entraves elencados, o brincar torna-se, muitas vezes, um ato de transgressão, como esclarece Silva (2012, p. 132): [...] brincar, muitas vezes, é um ato de transgressão, é uma forma de extrapolar os limites que estão colocados, de modificar o que é estabelecido, de recriar o que está determinado. Além disso, brincar é uma forma de trazer para os muros da instituição a dimensão do prazer e da criatividade que, muitas vezes, os adultos não sabem compartilhar e nem querem permitir. Os testemunhos das crianças evidenciam a ausência de interesse das instituições em ouvi-las e em considerá-las participantes ativas no processo educativo. Assim, em vários momentos, elas demonstraram ciência quanto a essa prática que tenta mantê-las como meros receptores passivos, “delatando”: que são os adultos (na maioria das vezes, os professores) que “mandam e desmandam” na sala, que decidem o encaminhamento das atividades, que coordenam os brinquedos ou materiais e que controlam o tempo e a vida delas nas instituições... Nessa direção, apesar das vontades expressas de estudar, conhecer e aprender até mesmo a ler, contar e escrever, como anseiam os adultos (uma referência aos pais e profissionais da educação), as crianças sentem-se desmotivadas ante o longo tempo planejado com propostas de 99 atividades repetitivas70, desinteressantes, cansativas e, acima de tudo, forçosas, uma vez que, se não terminam, ou erram, perdem cotidianamente o direito aos prêmios diários: parque, pátio, terreiros, quintais, brinquedos, brincar, viver... Tais angústias acusadas pelas crianças são, para Angotti (2006, p. 22), totalmente cabíveis, tendo em vista que, na sua concepção: O conhecimento não está estampado apenas nas letras, nas repetições, nas reproduções de atividades sem sentido, nas atividades de caligrafia, na apreensão do código gráfico que permite escrever e ler, ou nas atividades de tapa buraco ou de utilização de tempo para não se objetivar nada de maneira intencionalmente educativa. O conhecimento da criança se faz inicialmente pela captação de dados, conteúdos, indícios propiciados pelos órgãos dos sentidos que sentem, percebem e possuem condições de elaboração e expressão por meio de diferentes linguagens. Destarte, cabe atenção ao alerta de Redin (2007, p. 90): “o tempo da escola tem se apropriado, cada vez mais, da infância. A escolarização com todo seu aparato tem produzido maneiras de ser criança, aprisionando corpos e sequestrando mentes”. Durante o tempo que passam nas instituições de EI, as crianças precisam e querem ser cuidadas e agradadas, seja com afetos positivos possibilitados por um olhar sensível, seja com cuidados que lhes garantam bem-estar, seja com uma comida gostosa e diferente do que há nas suas casas, seja com um banho refrescante e divertido, seja com um momento de descanso tranquilo em um local aconchegante... Por mais que esses pareçam desejos simples, nesse quesito, os aspectos negativos abateram os aspectos positivos com austeridades, punições e indiferenças... As crianças gostam das festas nas instituições porque nestas têm a chance de comer bolo de chocolate e pizza, tomar suco em vez de água... Por outro lado, reclamam por serem obrigadas a “limpar os pratos” ou a comer o que não gostam, como verduras, todos os dias. Elas gostam do bebedouro porque gostam de beber água, porém, esse direito lhes é muitas vezes negado, tendo em vista que, na visão das professoras, a sede delas, na maioria das vezes, não é de água, e, sim, de sair da “sala de aula” – e aula é coisa séria; água, nem tanto! Umas gostam de dormir bastante, mas, para estas, o tempo de descanso é mesmo das outras. Outras não gostam de ter que dormir todos os dias, todavia, para estas, o tempo também é o mesmo das outras... Tais indicações parecem contrabalançadas, pois, da mesma forma que as crianças anunciam as comidas gostosas ou as bebidas básicas e necessárias de que gostam, denunciam as obrigações e coerções que perpassam as práticas pedagógicas que envolvem saúde e bem70 Rodrigues (2012) alerta para o fato de que a repetição é uma atividade necessária ao desenvolvimento cognitivo, no entanto a autora, adverte que essa atividade deve ser regulada pelos tempos e necessidade das crianças, para não cair na repetição automática de ações esvaziadas de sentido. 100 estar. Parece, entretanto, que, entre o saber o que se gosta de comer e o ser atendido somente nas festas ou datas comemorativas existe uma expressiva diferença, comparado a saber que não se gosta de comer algo e obrigar a cumprir tal “tarefa” corriqueiramente. O mesmo vale para o momento do sono, quando a determinação de uma hora para deitar e outra para acordar pode suprimir toda a possibilidade de que seja algo confortável e relaxante... Assim, se há peculiaridades no modo de ser de cada criança, também deve haver espaço para que suas idiossincrasias, tempos e ritmos sejam minimamente respeitados. Na opinião de Faria (1999, p. 71), “o fato de fazermos determinadas atividades todos os dias, como dormir, comer, banhar-se, etc., não autoriza a profissional de educação infantil a fazê-las iguaizinhas todas as vezes, mas sim a desafiar a cumprir esses rituais, com intencionalidade [...]”. Afinal, um questionamento pessoal insiste em emergir: A orientação não é a de que “bebês e crianças sejam atendidos em suas necessidades de saúde: nutrição, higiene, descanso e movimentação”? (BRASIL, 2006, p. 39 – grifo meu). O posicionamento de Angotti (2009, p. 145) também permite fomentar essa discussão: As instituições de educação e escolarização podem (e talvez devem) assumir responsabilidades com a saúde, o lazer, com alimentação, segurança..., porém esses devem ser aspectos subordinados a sua finalidade e não prioritários na dinâmica do sistema educacional, sobrepondo-se a ela. Concebem-se, então, a observação e o diálogo como grandes aliados para a realização de uma prática pedagógica que respeite a criança como um ser completo, com muitas possibilidades, que são apenas diferentes das de adultos, exatamente pela alteridade que nos distingue. Relações, interações, inter-relações... As crianças indicaram grande apreço à convivência com vários parceiros na EI, isto é, com os pares e adultos, e, com relação aos últimos, as ressalvas foram mais expressivas. De acordo com Oliveira-Formosinho (2008), a criança, desde os primeiros dias de entrada na escola, sabe quem manda e quem obedece, como o poder é exercido, quais os tipos de interações mais frequentes e aquilo de que gosta e não gosta nesses âmbitos. Posto isso, ao falarem sobre suas relações com os adultos, em especial com as professoras, as crianças salientaram, nas produções analisadas, basicamente que: elas gostam quando são bem orientadas para desenvolverem as atividades e não gostam quando as explicações são vagas ou insuficientes; elas apreciam quando recebem um afago ou um olhar compreensivo e se desapontam com os castigos, controles e repreensões a que são submetidas; elas estimam quando são permitidas a brincar e criticam o pouco tempo estipulado ou a falta de permissão para isso. 101 Todo ser humano precisa de limites, todavia carinho e atenção são também indispensáveis. Mello e Rubio (2013) indicam a importância da afetividade para as relações engendradas na Educação Infantil. Segundo as autoras, a qualidade dos laços afetivos é muito importante para o desenvolvimento físico e cognitivo da criança. Assim, consideram que, se nesse círculo social a tratarem com carinho, mostrarem-se atenciosos, bem como reconhecerem seus direitos, essa criança irá sentir-se segura e protegida dentro do grupo. As crianças indicaram, nas pesquisas, que as amizades com os pares garantem que tenham companheiros, tanto para embarcar em aventuras, como para planejar e pôr em prática as transgressões. Assim, “fazer parte de um grupo de crianças envolve camaradagem e relações privilegiadas, demonstração de interesse pelo que ocorre com o outro, ajuste de objetos de atenção e de formas de sintonização recíproca”. (OLIVEIRA 2007, p. 142). Por isso, elas não veem com bons olhos as brigas, conflitos e consequentemente os maus tratos que perpassam suas relações. Nessa direção, Oliveira (2007, p. 142) concebe as relações entre os parceiros como uma valiosa arena de crescimento pessoal, uma vez que ser membro de um grupo envolve competências para aquiescer e contrapor-se, bem como a potencial possibilidade de refletir sobre o que significa ser justo e verdadeiro. Assim, na perspectiva da autora, as interações criança-criança são molas propulsoras para seu desenvolvimento, razão por que precisam ser encorajadas: Nas palavras de Corsino (2012, p. 4): Os processos interativos que ocorrem nas instituições de educação infantil – entre crianças-adultos, entre adultos e adultos, das crianças entre si, das crianças e os diferentes contextos sócio-históricos-culturais e naturais etc.- são determinantes para ampliar e promover o desenvolvimento infantil e para o bem-estar das crianças. Por conseguinte, tempo, tempo, tempo, tempo... As declarações das crianças evidenciaram que os tempos escolares estão sobrepujando os tempos da infância na EI, e o pior: com tempo ocioso. Elas indicaram prezar o tempo destinado ao recreio, momento em que podem brincar; elas também apontaram gostar das regras com horários instituídos (sem a indicação de que foram pensadas com as suas participações), o que me leva a acreditar que isso se deve exatamente ao fato de saberem a hora que vão poder, enfim, brincar. Numa dimensão mais expressiva, o tempo na EI foi sentenciado pelas crianças com base na alegação de longos períodos ociosos. Reflitamos: seres impetuosamente vivos, com uma energia sem igual, subordinados a tempos de espera que, na perspectiva delas, parecem sem fim... Elas não poderiam mesmo deixar passar impune! 102 Segundo Pinto (2007), frequentemente, nas instituições educativas, os espaços e tempos são organizados de modo a priorizar o condicionamento e a disciplina das crianças. Gera-se então um confinamento da infância, que se evidencia na inadequação do mobiliário, bem como na organização dos horários e ambientes escolares, que desfavorecem as interações e a criatividade das crianças. Nessa linha de raciocínio, Redin (2007) adverte que, submetidas a rotinas prescritivas e cristalizadas e a espaços e tempos tão rígidos, ausentes de boas intencionalidades pedagógicas, fica praticamente impossível que as crianças produzam culturas, culturas infantis. Assim, pausa-se a discussão acerca do tempo com os questionamentos e indicações de Barbosa (2006, p. 151): A quem pertence o tempo? Às instituições? Aos professores? Às crianças em grupo ou no singular? Um dos objetivos centrais da temporalização da vida das crianças está relacionado à estruturação do tempo coletivo, mas deve-se fazer isso sem deixar de respeitar os tempos pessoais E quanto aos espaços na EI? Sobre esta questão, as crianças também foram bastante observadoras e críticas. Elas deixaram claro que preferem os espaços externos, como parque, pátio, corredores, quintais, terreiros, quadra, entre outros, pautadas na justificativa de que, nestes, as possibilidades do brincar e da liberdade são potencialmente multiplicadas. Elas também apreciam os espaços internos, como biblioteca, cozinha, coordenação, sala ou classe de atividades, mas, com relação a esses, reclamam da falta de acesso ou das contraposições ao brincar. Elas apreciam os espaços limpos, cheirosos e com aparência bem cuidada. Não gostam dos banheiros sujos, fétidos e com mobiliários inadequados aos seus tamanhos... Assim como a predileção pelo brincar, não causou surpresa a preferência das crianças pelos ambientes externos da EI, uma vez que, em muitos casos, esses espaços são designados (pela maioria dos sujeitos) como lugares por excelência do brincar. Além do mais, nestes as crianças podem interagir um pouco mais libertas dos olhares controladores dos adultos, que cuidam delas no sentido de proteger de eventuais imprevistos, e não de coibir, como acontece de modo exaltado em outros ambientes considerados internos como, por exemplo, nas salas de atividades, refeitórios, bibliotecas. Várias foram as indicações das crianças a respeito dos materiais, mobiliários e brinquedos da EI. Elas discriminaram uma gama desses elementos e salientaram o quanto consideram importante a presença destes nas instituições. Justamente pela relevância concedida, elas também indicaram, no entanto, alguns pontos desfavoráveis nos contextos educativos: a inexistência, a insuficiência ou a deterioração destes e ainda a falta de autonomia para utilizá-los nos momentos em que desejam. 103 De acordo com Barbosa (2006, p. 164), o desapontamento das crianças é completamente compreensível e tem bastante fundamento, pois “os materiais são elementos essenciais na organização das rotinas. Sua existência, sua variedade e sua exploração são fatos que levam a criar alternativas em termos de atividades para os grupos”. Quanto às reivindicações para uma EI que atenda às suas perspectivas de qualidade, as crianças foram certeiras: querem brincar, brinquedos e brincadeiras; querem conhecer, estudar, e aprender; querem comer, beber, dormir, tomar banho de chuveiro e piscina; querem carinho, cuidado, atenção, educação e respeito; querem colegas, professoras, cozinheiras, cantineiras, diretoras, secretarias; querem tempos, momentos e divertimentos; querem limpeza, pinturas nas paredes, móveis dos seus tamanhos e uma porção de outras coisas tão complicadas e absurdamente inimagináveis quanto estas! Ora, nada do que as crianças apontaram escapa ao mínimo do que já têm ou deveriam ter por direito. O problema, o “x” da questão, ou a cereja do bolo, é que querem exatamente que todas as suas solicitações sejam regadas com qualidade, o que também não foge à regra e às orientações demandadas nos documentos que regem a etapa da educação destinada e pensada para elas e não com elas. Assim, com a direção orientada pelos olhares e dizeres dos principais sujeitos da EI, resta escolher entre agir ou fugir à luta. Conforme Cruz (2006, p. 114), para atingir uma boa qualidade, que respeite os direitos das crianças e de sua família, faz-se indispensável a participação de todos os envolvidos: A imagem da instituição de educação infantil como um “fórum” onde as experiências educativas são construídas coletivamente e continuamente negociadas entre crianças e adultos no seu cotidiano numa interação intensa com as famílias e espaços coletivos do entorno ajuda a delinear essa utopia na direção da qual é possível caminhar. Diante disso e da ideia de que “insistir na homogeneidade e na uniformidade dos tempos, dos espaços, das atitudes, comportamentos e linguagens nos ambientes de aprendizagem da Educação Infantil é tarefa predestinada ao insucesso” (RODRIGUES, 2012, p. 95), que uma proposta que tem como centro a criança e suas diferentes manifestações culturais, sociais e afetivas pode valer-se de alguns princípios apontados por Redin (2007) para organizar a prática: a ludicidade, a criatividade, a autonomia, a diversidade, a criticidade, a interatividade, as singularidades. Necessário, ainda, é que nós, na condição de profissionais envolvidos com a educação da infância, adotemos, como atitude constante, a reflexão, para que possamos: valorizar as experiências realizadas pelas crianças; tornar a EI um lugar vivo, atraente e envolvente, com 104 atividades e propostas interessantes aos olhos das crianças; ter consciência das necessidades básicas das crianças; olhá-las nos olhos, ouvi-las com atenção e considerar suas opiniões. Portanto, a qualidade almejada pelas crianças, na condição de sujeitos donos do direito à EI, terá possibilidade de se efetivar se conseguirmos, como primeiro passo, ao início e término das atividades diárias que caracterizam a rotina nas instituições, indagá-las com o questionamento “Todo mundo tá feliz?” e, a partir dele, ouvir suas declarações e refletir com afinco sobre elas, buscando melhorar nossas posturas e práticas pedagógicas. Vale esclarecer que, com essa sugestão pessoal, não indico que devamos atender a todos os gostos ou “caprichos” das crianças, até porque tal tarefa seria praticamente irrealizável e esta não é a função de educadores e cuidadores. O que se propõe é que se tenha sempre “a escuta como um porto seguro para conhecer as crianças e contextualizar a acção educativa” (OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2008). 105 REFERÊNCIAS ARIÈS, P. História social da criança e da família. Trad. Dora Flaksman. 2. ed. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1981. ABRAMOWICZ, A. Novo ator no campo social. Revista Educação – Especial Cultura e Sociologia da Infância. São Paulo, 2013, p. 53-69. ______. Educação infantil e a escola fundamental de 9 anos. Olhar de professor. Ponta Grossa, vol. 09, n. 02, p. 317-325, 2006. ABRAMOWICZ, A.; OLIVEIRA, F. A Sociologia da Infância no Brasil: uma área em construção: Educação, Santa Maria, v. 35, n. 1, 2010, p. 39-52. ABRAMOWICZ, A.; MORUZZI, A. B. 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