ANÁLISE BIOMECÂNICA DA “PALMA” DO KUNG-FU YAU-MAN: A INFLUÊNCIA DO TREINAMENTO NA MASSA EFETIVA DE IMPACTO Osmar Pinto Neto1, Marcio Magini2, Marcelo M. F. Saba3, Charli Tortoza4 1 UNIVAP/IP&D Av. Shishima Hifumi, 2911. SJC 12.244-000. [email protected] 2 UNIVAP/IP&D Av. Shishima Hifumi, 2911. SJC 12.244-000. [email protected] 3 INPE/DGE Av. dos Astronautas 1758, SJC 12227-010. [email protected] 4 UNIVAP/IP&D Av. Shishima Hifumi, 2911, SJC 12.244-000. [email protected] Palavras-chave: Biomecânica, Kung-Fu, Massa Efetiva, Câmera Rápida, Impacto. Área do Conhecimento: III - Engenharias Resumo- Este trabalho apresenta um estudo biomecânico do movimento de “palma” do Kung-Fu Yau-Man. Ele tem como objetivo mostrar que, mediante um treinamento, uma pessoa pode melhorar a eficiência de seus golpes por alterar sua massa efetiva de impacto. Para isso seis praticantes de Kung-Fu de dois diferentes níveis foram requisitados a efetuar golpes contra uma bola de basquete. Os golpes foram filmados com 1000 quadros por segundo (1000 Hz) por uma câmera rápida. Mostra-se que, com um treinamento prolongado de Kung-Fu Yau-Man, um iniciante pode aumentar a razão entre sua massa efetiva de impacto e sua massa corpórea entre 36 e 129%. Para uma possível situação real de defesa pessoal, esse significativo aumento da massa efetiva pode representar um aumento equivalente na força de impacto de um golpe. Introdução A arte marcial chinesa (wushu), como a China, tem uma história de milhares de anos e nasceu da necessidade do ser humano de se defender dos ataques de predadores e de outros seres humanos [1]. Na tradição chinesa, um guerreiro preocupa-se primeiro em defender-se, e tem como principal objetivo instaurar a “grande paz” [2]. Para isso, através da história, diferentes guerreiros desenvolveram diferentes sistemas ou estilos de autodefesa, cada um com particularidades próprias de idéias e de movimentos. Os movimentos do Kung-Fu estilo Yau-Man têm como característica principal serem curtos (de pouca amplitude) e poderosos (alta força de impacto). Eles são provenientes do estudo feito pelos mestres ancestrais do estilo. Esses estudos, todavia, eram baseados principalmente em experiências pessoais, e tinham como objetivo a melhoria da eficiência do sistema para uma situação real de defesa pessoal. Embora não tenham sido encontrados na literatura estudos científicos aplicados a entender os movimentos do Kung-Fu, nas últimas décadas foram escritos trabalhos buscando entender o impacto de golpes de outras artes marciais [3]. Em alguns desses estudos é dada demasiada ênfase à velocidade da mão antes do impacto como fator determinante da maior força de um artista marcial treinado [3]. Embora Jearl D. Walker tenha reportado que a massa efetiva de impacto pode mudar de um tipo de golpe para outro [4], não foram encontradas em nenhum artigo comparações entre essa variável em pessoas treinadas e não treinadas. Pretende-se mostrar com o presente trabalho que a maior força de impacto gerada pela mão de uma pessoa, devido ao treinamento no estilo Yau-Man, não é apenas resultado do aumento da velocidade da mão antes do impacto, mas também de um aumento significativo da sua massa efetiva de impacto. Materiais e Métodos Para obterem-se os dados necessários para fazer essa pesquisa, seis indivíduos praticantes de Kung Fu Yau-Man foram selecionados para participar do experimento, sendo, três iniciantes (Nível 1), e três praticantes regulares há pelo menos dois anos (Nível 2). Os indivíduos foram requisitados a fazer várias vezes o movimento conhecido no Kung-Fu Yau-Man como “palma”. Durante o movimento os membros inferiores estão quase estáticos, em posição antero-posterior e semiflexionados (mabu). A posição inicial do tronco é levemente rotacionada projetando mais à frente o membro superior de defesa. Este tem o braço flexionado aproximadamente 80o, levemente aduzido, com antebraço flexionado em aproximadamente 160o e o punho totalmente estendido. O braço de ataque apresenta uma flexão do ombro em torno com o antebraço flexionado de 50o IX Encontro Latino Americano de Iniciação Científica e V Encontro Latino Americano de Pós-Graduação – Universidade do Vale do Paraíba 1225 aproximadamente 100o e o punho semiestendido (Figura 1). O movimento da palma consiste em o mais rápido possível rotacionar o tronco, projetando a mão de ataque, e invertendo a posição dos membros superiores. Assim, a posição final do tronco e dos membros superiores é a mesma que a inicial, porém invertida (Figura 2). Figura 1: Posição Inicial Figura 2: Posição Final Os indivíduos fizeram a “palma” com intuito de acertar uma bola de basquete apoiada sobre o canto de uma mesa e tentar gerar a maior força de impacto possível. Foram considerados para o estudo dois movimentos de cada participante, nos quais a trajetória inicial da bola após o impacto faz um ângulo aproximado de 30o com a superfície da mesa. Os choques foram filmados utilizando um Sistema de Aquisição de Imagem Digital de Alta Velocidade (ou câmera rápida) “MotionScope PCI” do fabricante Red Lake, modelo 8000S, pertencente ao ELAT, Grupo de Eletricidade Atmosférica do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). Este sistema baseia-se em um sensor CCD (Charge Couple Device) para a captura das imagens. Ele adquire e grava uma seqüência de imagens digitais de um evento a uma taxa ajustável de 60 a 8.000 Hz (quadros por segundo), sendo que os arquivos de saída podem ser visualizados em um PC. A taxa de aquisição da câmera rápida para o nosso experimento foi ajustada para 1000 Hz. A figura 3 mostra uma imagem obtida pela câmera rápida. Figura 3: Imagem do impacto registrada pela câmera rápida. Os contrastes de cores no braço e na bola indicam os pontos usados como marcas para obtenção de posições na análise. Os contrastes de cores na régua foram usados para determinar a escala de conversão de pixels em cm da imagem. Para obter-se o valor da massa efetiva de impacto produzida por cada sujeito sobre a bola de basquete e a sua influência sobre a força de impacto, o problema foi analisado como um problema de colisão entre dois corpos de massas ma e mb, onde apenas as forças de interação entre eles foram consideradas. A massa ma representa a massa efetiva usada pelo indivíduo na colisão e mb representa a massa da bola de basquete que está em repouso antes do impacto. Foi considerado que apenas o corpo B apresentava elasticidade, assim o coeficiente de restituição da bola de basquete (e) representa a elasticidade total do choque. Obtém-se o valor de e medindo-se a altura em que a bola de basquete ricocheteia (h2) quando cai de uma determinada altura conhecida (h1) [5]: e= h2 h1 Para fazer comparações de força entre os indivíduos usa-se a força média de impacto durante o período de contração; para obtê-la precisa-se primeiramente obter o impulso gerado no período de contração, e este pode ser obtido por [6]: IX Encontro Latino Americano de Iniciação Científica e V Encontro Latino Americano de Pós-Graduação – Universidade do Vale do Paraíba 1226 mm I = a b va , ma + mb c onde, va é a velocidade da mão antes do impacto. Esta velocidade foi obtida, através da análise dos vídeos feita através do programa Pro-Analyst da Xcitex, usando marcas no antebraço dos indivíduos, como mostra, anteriormente, a Figura 3. va foi considerado, por limitações na resolução espacial, como a velocidade média nos últimos cinco milisegundos antecedendo o impacto. A partir deste resultado e da definição de c experimento em uma balança digital com precisão de 50 gramas. O objetivo do trabalho é mostrar que a razão entre ma e mc será maior para os indivíduos mais treinados. Para isso os valores de ma/mc foram divididos em dois grupos, Nível 1 e Nível 2, e foram calculados as médias e desvios populacionais dos dados de cada grupo. Essas médias foram comparadas usando-se um intervalo de confiança de 95% [8]. Foi obtido c também a partir de Fm , qual é o possível aumento percentual de força de impacto através do treinamento do Kung-Fu Yau-Man. impulso, pode-se deduzir que a força média Fm Resultados aplicada na bola pelo indivíduo no período de contração é: Foram obtidos os valores h1=186,5 cm e h2=108,9 cm usando a câmera rápida para filmar a bola de basquete em queda livre na frente de uma fita métrica; para esses valores o coeficiente de restituição é de 0,584. Através de uma balança mecânica manual com precisão de gramas foi obtido o valor de 0,594 kg para o peso da bola. As tabelas 1 e 2 mostram os resultados obtidos para os Grupos de Nível 1 e 2, respectivamente: F mc = mamb va (m a + m b )c onde c é o tempo de contração. Para achar ma usa-se uma fórmula para e [6]: e= vbf − vaf vb − va conservação , e uma fórmula do conceito de de momento linear [7]: m a v a + mb vb = m a v af + mb vbf , onde vb é a velocidade inicial da bola de basquete que no caso é igual a zero, vbf é a velocidade da bola após o impacto que foi obtida da mesma maneira que va, e vaf é a velocidade da mão após o impacto. A partir delas obtém-se que: ma = Tabela 1- Resultados do grupo Nível 1. Pessoa mc (kg) va (m/s) vbf (m/s) ma (kg) ma mc 1 56,45 5,6 6,7 1,83 0,032 1 56,45 5,2 5,7 1,33 0,024 2 52,25 5,3 5,3 1,02 0,019 2 52,25 6,1 6,7 1,34 0,026 3 51,40 5,3 5,4 1,07 0,021 3 51,40 4,7 5,9 2,27 0,044 Médias 53,37 5,4 6,0 1,48 0,028 m b v bf v a (1 + e ) − v bf Note que para achar ma não é preciso o valor de vaf. Isso é importante, pois o possível valor obtido através das filmagens não necessariamente representa a velocidade da mão após o impacto. Isso ocorre, pois durante o período de restituição do impacto e principalmente após este, existe uma grande força muscular que tenta frear o movimento da mão. O fato de usar-se a média de 5 milisegundos para obter uma velocidade indica que provavelmente seria obtida uma velocidade final da mão menor do que a esperada. Após serem obtidos os valores de ma para os dois impactos de cada indivíduo, estes foram divididos pela massa corpórea (mc) de cada indivíduo. Estas foram obtidas após o Tabela 2- Resultados do grupo Nível 2. Pessoa mc (kg) va (m/s) vbf (m/s) ma (kg) ma mc 1 54,80 6,9 9,2 3,16 0,058 1 54,80 8,3 10,7 2,60 0,047 2 69,05 8,0 10,5 2,87 0,042 2 69,05 8,7 12,1 4,28 0,062 3 80,80 8,7 11,4 2,84 0,035 3 80,80 8,0 11,3 4,89 0,060 Médias 68,22 8,1 10,9 3,44 0,051 A partir desses dados pode-se concluir com 95% de certeza que a diferença das médias dos valores de ma/mc entre o Nível 2 e o Nível 1 está entre 0,01 e 0,036. Dividindo-se esses valores pela média de ma/mc do Nível 1 obtém-se um intervalo de 36% a 129% para o possível IX Encontro Latino Americano de Iniciação Científica e V Encontro Latino Americano de Pós-Graduação – Universidade do Vale do Paraíba 1227 aumento percentual da massa efetiva por kilograma de massa corpórea que um indivíduo iniciante pode obter com um treinamento prolongado. O possível aumento percentual da força de impacto devido a essa mudança da massa efetiva pode ser calculado por: ⎛ F mc depois ⎞ ⎟ − 1, A = ⎜⎜ c ⎟ F antes ⎝ m ⎠ onde em Fmc depois considera-se a possível nova massa c efetiva após o treinamento, e em Fm antes considera-se a massa efetiva do iniciante. Assumindo-se que c e va sejam mantidos constantes e usando-se os valores de ma correspondentes ao Nível 1, tem-se, correspondente ao intervalo de 36% a 129% do aumento de massa efetiva, o intervalo entre Amin e Amáx para o aumento de força de impacto, onde: ⎛ ma + mb ⎞ ⎟⎟ − 1 e A min = ⎜⎜ 1, 36 m m 1 , 36 + a b ⎠ ⎝ A máx ⎞ ⎛ ma + mb ⎟ −1. = ⎜⎜ 2 , 29 2 , 29 m a + m b ⎟⎠ ⎝ Assim, calcula-se que o aumento médio da força de impacto de um golpe em uma bola de basquete devido ao treinamento prolongado é entre 7 e 20% ma, também apresenta uma resistência ao choque muito maior do que a bola. A hipótese que a massa efetiva de impacto do corpo recebendo o golpe é importante para a magnitude da força de impacto explica fatos observados na prática, como, por exemplo, uma pessoa quando acertada durante um salto, embora se desloque bastante, não sente tanta dor devido ao impacto. Conclusão Por fim, fica claro que a massa efetiva de impacto é um fator determinante na maior força de impacto de um artista marcial treinado na técnica apropriada. A presente metodologia foi também eficiente em quantificar esses resultados. Referências [1] CHOW, D., Spangler, R. Kung-Fu, History, Philosophy and Technique, Unique Publications, p.352, California, EUA, 1982. [2] DESPEUX, C. Tai-Chi Chuan Arte Marcial Técnica de Longa Vida. Círculo do Livro S.A., p.280, São Paulo, Brasil, 1981. [3] WILK, S.R. et al., The Physics of Karate. American Journal of Physics 51, 783-790, 1983. [4] WALKER, J. D., Karate Strikes. American Journal of Physics 43, 845-849(1975). [5] ENOKA, R. M. Bases Neuromecânicas da Cinesiologia. Editora Manole Ltda., p.450, São Paulo, Brasil, 2000. Discussão Embora, o resultado do aumento da força de impacto entre 7 e 20% seja expressivo, é importante notar que o aumento da força seria muito maior no caso do impacto da mão com algo mais pesado do que a bola. De fato, o aumento da força será tanto maior quanto maior for a razão entre mb e ma. Em uma situação real de defesa pessoal, onde o impacto do golpe é sobre alguma região do corpo humano de um agressor, o problema torna-se muito mais complexo do que o estudado aqui. Isso ocorre, entre outras razões porque fica muito difícil determinar a massa efetiva de impacto do corpo sendo acertado. Caso se considere que essa massa efetiva seja muito maior que ma, o aumento da força devido ao aumento da massa efetiva tenderia a estar entre 36 e 129%. Essa consideração leva em conta que um possível agressor além de ter uma massa corpórea muito maior que a média para [6] MCINNIS, B. C., WEBB, G. R., Mechanics Dynamics: The motion of solids, Prentice Hall Inc., p.215, Nova Jersey, 1971. [7] HALLIDAY, D., RESNICK, R., WALKER, J. Fundamentals of Physics Part 1, John Wiley and Sons Inc., p.296, Nova York, EUA, 1997. [8] HOEL, P.G., Introduction to Mathematical Statistics. John Wiley and Sons Inc., p.415, Nova York, EUA, 1984. IX Encontro Latino Americano de Iniciação Científica e V Encontro Latino Americano de Pós-Graduação – Universidade do Vale do Paraíba 1228