AS NOVAS EXPRESSÕES DA “QUESTÃO SOCIAL” E AS FAMÍLIAS BRASILEIRAS: REFLEXÕES PARA O SERVIÇO SOCIAL Rita de Cássia Santos Freitas1 e Adriana de Andrade Mesquita2 RESUMO: O presente artigo tem como objetivo problematizar as novas expressões da “questão social” e o papel das famílias na gestão e superação da crise de (mal) bemestar social que se vive hoje, no Brasil, refletindo sobre as práticas cotidianas desenvolvidas pelos assistentes sociais na garantia dos direitos cidadãos. Assim, temos como eixos: em primeiro lugar, problematizar acerca das múltiplas expressões da “questão social” no Brasil contemporâneo; em segundo, discorrer sobre proteção social, políticas sociais e as famílias brasileiras; e, por fim, realizar considerações sobre as construções de redes sociais como estratégia de enfretamento da questão social por parte das famílias brasileiras. PALAVRAS-CHAVE: “Questão Social”, proteção social, políticas sociais, famílias e redes sociais. ABSTRACT: This article aims to discuss the new expressions of "social issue" and the role of families in managing and overcoming the crisis of (bad) social welfare who now lives in Brazil, reflecting on the daily practices of social workers in ensuring citizens' rights. Thus, we have as priorities: first, questioning about the multiple expressions of "social issue" in contemporary Brazil, second, to discuss social protection, social policies and the Brazilian families, and, finally, to considerations about the construction of social networks as a coping strategy of social issues on the part of Brazilian families. KEYWORDS: “Social Question”, social protection, social policy, families and social networks. 1 Professora Adjunta da Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF). Coordenadora do Núcleo de Pesquisa Histórica sobre Proteção Social/Centro de Referência Documental (NPHPS/CRD-UFF). Graduada em Serviço Social – Mestre e Doutora em Serviço Social. 2 Professora substituta da Escola de Serviço Social da UFF. Graduada em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Mestre em Política Social pela UFF e Doutoranda do curso de Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento pelo Instituto de Economia da UFRJ. Introdução O presente artigo tem como objetivo problematizar as novas expressões da “questão social” e o papel das famílias na gestão e superação da crise de (mal) bemestar social que se vive hoje no Brasil, buscando refletir sobre as práticas cotidianas desenvolvidas pelos assistentes sociais em sua luta na garantia dos direitos democráticos e universais dos cidadãos. Nos últimos anos, as crises dos padrões produtivos, da gestão do trabalho e as recentes transformações societárias têm repercutido diretamente nas políticas públicas de proteção social. E, nesse quadro a família é redescoberta como agente de proteção social privado de proteção. Para Pereira-Pereira (2004), “... a antiga conjunção de circunstâncias favoráveis às conquistas sociais pelas classes não possuidoras, especialmente após a Segunda Grande Guerra, deixou de existir desde meados dos anos 1970. A expansão do consumo de massa – com a ajuda da industrialização, do crescimento das atividades produtivas e da distribuição de bens e serviços, realizada por um Estado garantidor de direitos sociais e trabalhistas – entrou em declínio. Da mesma forma, o compromisso estatal com o pleno emprego (fortalecedor dos sindicatos), com a segurança no trabalho, com a oferta de políticas sociais universais e com a garantia geral de estabelecimento de um patamar mínimo de bem-estar, vem se desfazendo a passos largos” (p.30-31). No período pós década de 1990, em especial, as crises dos sistemas estatais de bem-estar social afetam e ameaçam mais radicalmente as garantias de níveis mínimos de emprego e seus sistemas protetivos, acesso aos direitos assistenciais, a qualidade de saúde pública, educação gratuita como direitos universais. O projeto neoliberal ganhou força e priorizou ações como as de privatização do Estado, internacionalização da economia, desproteção social, sucateamento dos serviços públicos, concentração da riqueza e aumento da pobreza e indigência. Nas palavras de Netto (2006), isso acontece “em nome da racionalização, da modernidade, dos valores do Primeiro Mundo etc., vem promovendo (ao arrepio da Constituição de 1988), a liquidação de direitos sociais (denunciados como ‘privilégios’), a privatização do Estado, o sucateamento dos serviços públicos e a implementação sistemática de uma política macro-econômica que penaliza a massa da população” (p.18-19). Vivenciamos, assim, um quadro de retração e liquidação dos direitos sociais dos cidadãos, ocasionando no aumento do número de indivíduos, famílias e comunidades que vivem em condições precárias por causa da grande desigualdade social e da redução da qualidade de vida. Com isso, temos o crescimento das desigualdades dos direitos básicos – civis, políticas e sociais – de massa significativa da sociedade brasileira. Deste modo, no atual contexto de retração dos direitos cidadãos, principalmente dos direitos sociais, outros atores – dentre eles, indivíduos, a família e a comunidade – são chamados a intervir e são responsabilizados por todos os problemas que estão fora da ação do estado. Segundo Iamamoto, “a contrapartida tem sido a difusão da idéia liberal de que o ‘bem-estar social’ pertence ao foro dos indivíduos, famílias e comunidades” (2006, p.3). Assim, a privatização dos sistemas de proteção social e a responsabilização das famílias tornam-se fato. E é neste cenário, que a família é (e sempre esteve) compreendida como instância de gestão e superação da crise de (mal) bem-estar social que se vive hoje nos países desenvolvidos ou em desenvolvimento. A família, além de assumir suas tradicionais atribuições na sociedade, torna-se responsável por promover cuidados e serviços que deveriam ser ofertados pelo estado de bem estar social. Em suma, na conjuntura atual, a família brasileira retorna a cena enquanto agente importante e central das políticas públicas sociais, haja vista a proliferação dos programas e projetos assistenciais de combate a fome e miséria que tem como alvo a família. Exemplos nesse sentido é o caso dos programas Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada – BPC, Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, entre outros. Programas esses que são alvos da intervenção dos assistentes sociais. É nesse contexto que floresce o debate sobre as novas expressões da “questão social” e a centralidade das famílias nas políticas sociais vigentes entre políticos, estudiosos e organizações sociais; emergindo, no contexto internacional, novas formas de sociabilidade via programas sociais marcados pelas idéias da centralização, privatização e focalização, como é o caso dos Programas de Transferência de Renda3. Assim, temos como eixos: em primeiro lugar, problematizar acerca das múltiplas expressões da “questão social” no Brasil contemporâneo; em segundo, discorrer sobre proteção social, políticas sociais e as famílias brasileiras; e, por fim, realizar 3 Não será possível aprofundar nos marcos desse artigo uma discussão mais ampla acerca dos programas de transferência de renda. considerações sobre as construções de redes sociais como estratégia de enfretamento da questão social por parte das famílias brasileiras. As novas expressões da “questão social” e as famílias brasileiras O assistente social tem na “questão social” a base de sua fundação enquanto especialização do trabalho; ou seja, tem nela o elemento central da relação profissional e realidade. Nesta interface, os assistentes sociais são chamados a intervir nas relações sociais cotidianas, visando à ampliação e consolidação da cidadania na garantia dos direitos civis, políticos e sociais aos segmentos menos favorecidos e mais vulnerabilizados socialmente (trabalhadores, crianças, adolescentes, idosos, portadores de necessidades especiais, mulheres, negros, homossexuais e suas respectivas famílias). É importante salientar que esta questão por muito tempo esteve relacionada à “disfunção” ou “ameaça” de alguns indivíduos à ordem social. Seu reconhecimento deuse na segunda metade do século XIX, a partir da emergência da classe operária e seu ingresso no cenário político, na luta em prol dos direitos relacionados ao trabalho e na busca pelo reconhecimento de seus direitos pelos poderes vigentes, em especial pelo Estado. Segundo Iamamoto a expressão “questão social” “diz respeito ao conjunto das expressões das desigualdades sociais engendradas na sociedade capitalista madura, impensáveis sem a intermediação do Estado. Tem sua gênese no caráter coletivo da produção, contraposto à apropriação privada da própria atividade humana – o trabalho –, das condições necessárias à sua realização, assim como de seus frutos” (2001, p.10). Mas, como falamos anteriormente, as crises dos padrões produtivos, da gestão do trabalho e as recentes transformações societárias têm repercutido diretamente nas políticas públicas de proteção social e no surgimento de novas configurações da “questão social” no cenário brasileiro, em especial, a partir da década de 1970. Diante desse quadro, a “questão social” é redimensionada, sofre alterações e apresenta particularidades e especificidades para a sociedade brasileira no cenário contemporâneo. As profundas alterações do sistema capitalista, que intensifica o processo de exploração e expropriação das classes trabalhadoras, reduzem o papel do Estado na garantia de direitos e promoção de políticas públicas sociais que atendam às necessidades básicas de maior parte da população. Para Iamamoto (2008), esse tipo de ação conduz à “banalização do humano”, à “descartabilidade” e “indiferença” perante o outro, a “questão social” passa a condensar “... a banalização do humano, que atesta a radicalidade da alienação e a invisibilidade do trabalho social – e dos sujeitos que o realizam – na era do capital fetiche4. A subordinação da sociabilidade humana às coisas – ao capital-dinheiro e ao capital mercadoria –, retrata, na contemporaneidade, um desenvolvimento econômico que se traduz como barbárie social” (2008, p.125 – grifos nosso). Assim, a preferência ao econômico em detrimento ao social das políticas governamentais, tanto nos países centrais como periféricos, tem levado a “banalização do humano” e radicalização das necessidades sociais. Ou seja, o aumento do desemprego, a instabilidade do trabalho, perda dos direitos trabalhistas, aumento da pobreza, empobrecimento da classe média, privatização dos serviços sociais, inserção das mulheres no setor de serviços, “novas5” configurações familiares (famílias chefiadas por mulheres, aumento da monoparentalidade feminina, etc.) colocam muitos em situação de extrema vulnerabilidade social – de pobreza, exclusão e subalternidade – que se agrava ante o momento atual de regressão dos direitos sociais. Conforme Mesquita et ali (2010), é nesse quadro, que ganham destaque as famílias pobres e suas questões. Essas famílias aparecem necessariamente como um “problema social”, principalmente diante da ausência de serviços públicos, como: creches, escolas, saúde, saneamento básico, habitação entre outros. Desse modo, temos a crescente vulnerabilização social das classes trabalhadoras frente ao aumento das desigualdades socioeconômicas que podem levar ao processo de criminalização das famílias pobres, tornando-as num perigo para a sociedade – que precisaria ser evitado. Destarte, da mesma forma que crescem as desigualdades, temos o aumento das lutas cotidianas por trabalho digno, acesso a direitos e serviços no atendimento às 4 Capital fetiche se refere ao capital financeiro no atual contexto de mundialização da economia que se apresenta em sua forma plena de desenvolvimento e alienação. O capital fetiche apresenta “as finanças como potências autônomas diante das sociedades nacionais, esconde o funcionamento e a dominação operada pelo capital transnacional e investidores financeiros, que atuam mediante o efetivo respaldo dos Estados nacionais sob a orientação dos organismos internacionais, porta-vozes do grande capital financeiro e das grandes potências internacionais. A esfera das finanças, por si mesma, nada cria. Nutre-se da riqueza criada pelo investimento capitalista produtivo e pela mobilização da força de trabalho em no âmbito, ainda que apareça de uma forma fetichizada...” (p.109). 5 Vale salientar que colocamos entre aspas “NOVAS” configurações porque estas não são exatamente novas. O que há de novo é, primeiro, o seu reconhecimento – seja legal, seja acadêmico – embora, esses diferentes modelos historicamente tenham convivido no Brasil. E segundo, a outra “novidade” seria o aumento desses perfis. necessidades básicas dos cidadãos, questionamento das diferenças étnico-raciais, gênero, diversidade sexual e religiosa. Questões essas que dão origem aos chamados “novos sujeitos”, “novos usuários”, “novas necessidades” que transformam a sociedade após a década de 1970 (PASTORINI, 2007). Desse modo, diante das mutações ocorridas no sistema capitalista atual, haveria o surgimento de uma “nova” “questão social”. Nova por romper com o período capitalista industrial e por “metamorfosear”, parafraseando Castel (2008), a “velha questão social” que surgiu para dar conta do fenômeno do pauperismo mais evidente na história da Europa Ocidental, que experimentava os impactos da primeira onda industrializante, no século XIX (NETTO; 2001). Nesse cenário, emerge o debate sobre a “nova questão social” que passa a ser redescoberta e debatida entre os cientistas sociais, em especial por pensadores da Escola Francesa. Destaque deve ser dado aos principais pensadores sobre o tema, como Pierre Rosavallon (1995) e Robert Castel (1998). Conforme Pastorini, “a discussão sobre a existência de uma ‘nova questão social’ irrompe na Europa e nos Estados Unidos no final da década de 70 e início dos anos 80, quando alguns dos grandes problemas inerentes à acumulação capitalista (como desemprego, pobreza, exclusão), vistos como residuais e conjunturais, durante os ‘Trinta Anos Gloriosos’ nos países centrais e em alguns periféricos, passam a ser percebidos como problemas que atingem um número não negligenciável de pessoas de forma permanente” (2007, p.49-50) Portanto, na obra de Rosavallon (1995), “La nueva cuestion social”– repensando el Estado providencia”, o autor enfatiza que existe diferença entre a “nova questão social” e a “velha questão social”. As novidades da época pós-industrial implicariam numa ruptura e superação da antiga sociedade capitalista e os principais problemas que dela decorrem (PASTORINI, 2007 e IAMAMOTO, 2008). Indo nessa mesma direção, Castel (1998), em “Metamorfoses da Questão Social: uma crônica do salário”, coloca que a “questão social” foi se metamorfoseando e sendo transformada com o passar do tempo, resultado da reestruturação internacional do capitalismo. Logo, isso gerou um grande número de problemas (como o desemprego estrutural de longa duração), que marcam uma ruptura na trajetória do salariado e servem de fundamento para o que o autor coloca como a existência de uma “nova questão social” (PASTORINI, 2007 e IAMAMOTO, 2008). Esse discurso gerou um acirrado debate no meio acadêmico ao redor do mundo, inclusive no Brasil a partir da década de 1990; quando se deu visibilidade e importância à temática entre os acadêmicos das ciências sociais, em especial entre os profissionais do Serviço Social, que tem a “questão social” como fundamento e justificação do trabalho profissional especializado. Autores como Marilda Iamamoto (2001), José Paulo Netto (2001), Maria Carmelita Yazbek (2001), Potyara Pereira (2001), Alejandra Pastorini (2007), Marilda Iamamoto (2008) são categóricos em afirmar que não há uma nova “questão social”, já que se mantêm os traços essenciais da “questão social”, surgidos no século XIX, cujo fundamento é o trabalho. Eles não foram superados e permanecem até os dias atuais, só que em sua forma mais radical e alienada: na banalização do humano e invisibilidade do trabalho social. Pois, a “questão social” assume expressões particulares dependendo das peculiaridades de cada formação social e da forma de inserção de cada país na ordem capitalista. Para Netto, inexiste qualquer “nova questão social” e sim “a emergência de novas expressões da ‘questão social’ que é insuprimível sem a supressão da ordem do capital. A dinâmica societária específica dessa ordem não só põe e repõe os corolários da exploração que a constitui medularmente: a cada novo estágio de seu desenvolvimento, ela instaura expressões sócio-humanas diferenciadas e mais complexas, correspondentes à intensificação da exploração que é a sua razão de ser” (2001, p.48). O real problema, na conjuntura atual, está em identificar as expressões emergentes da “questão social” e sua relação com as modalidades de exploração e expropriação dos direitos cidadãos – os direitos civis, políticos, sociais – existentes em nossa sociedade e, até então, garantidos em nossa constituição. De acordo com Iamamoto (2006), “a atual desregulamentação das políticas públicas e dos direitos sociais desloca a atenção à pobreza para a iniciativa privada ou individual, impulsionada por motivações solidárias e benemerentes, submetidas ao ‘arbítrio do indivíduo isolado’, e não à responsabilidade pública do Estado” (p.3). Isso resulta na privatização das ações de cuidado e proteção social dos indivíduos. E, falar em privatização de cuidado e proteção social é tocar na esfera do privado, do doméstico, e da família. Esse tipo de ação pode ser caracterizado como uma “volta ao passado”, uma vez que estabelece um retorno a formas de proteção social articuladas ao mundo privado, a esfera primária das relações. Historicamente, a análise dos sistemas de proteção social que tiveram maior destaque foram aquelas que se voltaram para as sociedades capitalistas européias, a partir de meados do século XX – que ocasionou a criação dos sistemas de seguridade social da atualidade – cujo traço marcante é a presença do Estado na implantação e gestão desses sistemas. Contudo, acreditamos que ações de proteção social davam sinal de vida muito antes desse período; ampliando o conceito, dessa forma. Antes do processo de institucionalização da proteção social, sempre existiu, nas diversas sociedades (primitivas, feudais e modernas), algum tipo de proteção social entre os homens e mulheres, especialmente na família – e nela o papel da mulher é essencial – e na comunidade. Sendo ela um dos principais mecanismos de sobrevivência de muitas pessoas: doentes, inválidos, famílias com filhos pequenos, idosos, viúvas, desempregados e pobres6. Costa aponta que o sistema de proteção social é reconhecido como “uma regularidade histórica de longa duração, de diferentes formações sociais, tempos e lugares diversos... Tal orientação permite verificar que diferentes grupos humanos, dentro de suas especificidades culturais, manifestem, nos modos os mais variados de vida, mecanismos de defesa grupal de seus membros, diante da ameaça ou de perda eventual ou permanente de sua autonomia quanto à sobrevivência” (1995, p. 99). Este tipo de definição abre espaço para pensar a proteção social não apenas enquanto constituição dos sistemas protecionistas, mas também como uma regularidade histórica de longa duração que dá visibilidade às práticas de proteção existentes no âmbito das famílias e grupos de convívio, na esfera privada. Acerca desta definição, Mesquita et all (2010) reforçam que é justamente este entendimento que abre espaço para pensarmos no papel das famílias – e das mulheres – na construção de estratégias de sobrevivência. Com isso, estamos falando da obrigatoriedade de se pensar nas ações do mundo privado enquanto esfera de garantia dos mínimos básicos de sobrevivência. Desta forma, problematizar as novas expressões da “questão social” e o papel das famílias, particularmente das famílias pobres, na gestão e superação da crise de (mal) bem-estar social que se vive hoje no Brasil torna-se basilar para o Serviço Social, 6 Acerca da definição de proteção social ver as obras de Di Giovanni (2008), Castel (1998) e Costa (2002). já que se trata de um profissional que contribui para a ampliação e a consolidação dos direitos cidadãos em sua plenitude. Políticas sociais, famílias brasileiras e o Serviço Social Dentre as diversas literaturas sobre política social no Serviço Social, verificamos que diante das crises nos países capitalistas avançados e em desenvolvimento, a família sempre esteve presente como instância de gestão e superação da crise de (mal) bemestar social em que se vive. Segundo Pereira-Pereira (2004), “desde a crise econômica mundial dos anos 1970, a família vem sendo redescoberta como um importante agente privado de proteção social” (p.26). Fenômeno também existente mesmo nos países em que o Estado de Bem Estar Social esteva a pleno vigor e possibilitou a saída dessas mulheres para a esfera pública, para inserção no mercado de trabalho e universidades7. Segundo Mioto, “nesses países, a família, especialmente por meio do trabalho não pago da mulher, constitui-se em um dos pilares estruturantes do bem-estar social” (2010, p.04). Além disso, pensando a realidade brasileira, vemos que a precariedade dos mecanismos de proteção social e um cotidiano de gênero fazem com que essas famílias sejam as que mais acionem aos benefícios dos programas de transferência de renda (como o Programa Bolsa Família) e também estratégias baseadas na construção de redes sociais (DESSEN e BRAZ, 2000; FONSECA, 2000; COSTA, 2002; FREITAS, 2002). No contexto atual, a discussão acerca da matricialidade sociofamiliar nas políticas sociais dá visibilidade às famílias e o seu papel enquanto promotora da proteção e do bem estar social. Todavia, sabemos que trabalhar com a família é um desafio, por se tratar de um tema extremamente complexo e que se transforma com o passar do tempo e da história; além de ser um tema muito próximo e que nos traz dificuldades metodológicas8. Nas palavras de Mioto (2010), a família 7 Ver obra de Nadine Lefaucher (1991) e Gisela Bock (1991). “Essa intimidade do conceito de família pode causar confusão entre a família com a qual trabalhamos e nossos próprios modelos de relação familiar. Acercamo-nos da família do outro a partir de nossas próprias referências, de nossa história singular. O resultado disso é que tendemos a trabalhar com as famílias desconhecendo as diferenças ou, pior, em muitas situações transformamos essas diferenças em desigualdade ou incompletude” (FALLER-VITALE; 2002, p. 46). 8 “se constrói e se reconstrói histórica e cotidianamente por meio das relações e negociações que se estabelecem entre seus membros, entre seus membros e outras esferas da sociedade e entre ela e outras esferas da sociedade, tais como Estado, trabalho e mercado. Reconhece-se que, além de sua capacidade de produção de subjetividades, ela também é uma unidade de cuidado e de redistribuição interna de recursos. Tem um papel importante na estruturação da sociedade em seus aspectos sociais, políticos e econômicos e, portanto, não é apenas uma construção privada, mas também pública” (p.3) E, falar em família é tocar num tema latente da esfera privada, no papel que as mulheres desempenham dentro dela; sendo ela um dos principais mecanismos de sobrevivência e proteção de muitas pessoas9 (doentes, inválidos, famílias com filhos pequenos, idosos, viúvas, desempregados e pobres). E como sabemos, por séculos, a história das mulheres foi naturalizada na família por causa de um cotidiano de gênero. Só recentemente, é que a história do cotidiano ganhou espaço de discussão e deu visibilidade a história da esfera privada e dos indivíduos e, nesse processo, à história das mulheres e a dimensão de gênero10. A função social da família depende em grande parte do lugar que ocupa na organização social e das propostas econômicas, políticas e sociais de cada país. No Brasil, a família sempre ocupou um lugar de destaque, seja como de socializadora de seus membros, aportes psicológico, afetivos e emocionais, onde são absorvidos os valores éticos, humanitários, solidários e culturais, suporte material e financeiro, proteção diante das situações de violência e vulnerabilidade social, saúde. Durante os anos finais do século XIX, a sociedade brasileira passou por grandes transformações: a consolidação do capitalismo; o surgimento dos centros urbanos que ofereciam novas alternativas de convivência social; a ascensão da sociedade burguesa e o surgimento de uma nova mentalidade – a da classe burguesa – reorganizadora das 9 Embora não possamos nos esquecer que a família, o espaço privado, pode ser também a arena de conflitos e violências, sendo um espaço de disputas de poder. 10 Para Joan Scott, a categoria analítica gênero surge “como substituto de ‘mulheres’, é igualmente utilizado para sugerir que a informação a respeito das mulheres é necessariamente informação sobre os homens, que implica no estudo do outro. Este uso insiste na idéia de que o mundo das mulheres faz parte do mundo dos homens, que ele é criado dentro e por esse mundo. Esse uso rejeita a validade interpretativa da idéia das esferas separadas e defende que estudar as mulheres de forma separada perpetua o mito de que uma esfera, a experiência de um sexo, tem muito pouco ou nada a ver com o outro sexo. Ademais, o gênero é igualmente utilizado para designar as relações sociais entre os sexos. O seu uso rejeita explicitamente as justificativas biológicas, como aquelas que encontram um denominador comum para várias formas de subordinação no fato de que as mulheres têm filhos e que os homens têm uma força muscular superior. O gênero se torna, aliás, uma maneira de indicar as ‘construções sociais’ – a criação inteiramente social das idéias sobre os papéis próprios aos homens e às mulheres. É uma maneira de se referir às origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas dos homens e das mulheres. O gênero é, segundo essa definição, uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado” (1990, p.4). vivências familiares e domésticas; as modificações do espaço urbano e do estilo de vida; e a efetivação de um novo modelo de família, a nuclear burguesa (D’INCAO, 1997). Com isso, a nova sociedade deixou claros os limites de convívio e as distâncias sociais entre a nova classe – a burguesa – e o povo. A partir do Estado Novo, o governo assumiu uma feição mais “humanizada” e “preocupada” com o povo, principalmente com o trabalhador e sua família. É importante enfatizar que os anos quarenta foram anos de grande movimentação na área social. O final do Primeiro Governo Vargas vê emergir um grande número de instituições nesta área (o SENAI, o SESI e a LBA são grandes exemplos). A criação da LBA, em 1942, demarca uma redefinição no Estado brasileiro com a incorporação da pobreza e da miséria ao discurso oficial (FREITAS, 1994). Esse é o “mote” que gera a necessidade de profissionais preparados para atuar na área social. Assim, a família é ressignificada e torna-se a base e alvo principal das ações do Estado, na tentativa de modificação de seus hábitos e costumes. Assim, o Estado criou medidas que interviesse nas condutas, normas e valores das classes populares, as quais eram vistas como uma patologia social. Conforme Backx, “colocava-se no âmbito de ação dos reformadores sociais da República Velha, que tinham em mira a construção de uma nação para o futuro, o padrão de ‘família higiênica’ em oposição a ‘famílias populares’ que eram postergadas ao âmbito da patologia social, à medida que o procedimento adotado era o de reconhecer como civilizado os padrões de comportamento das classes dominantes. A conduta manifestada pelas classes populares era vista, por esses atores, como anômica, patológica, promíscua e imoral, contribuindo para a desagregação da família e para a impossibilidade do progresso do país” (1994, p.56) As classes populares eram tratadas como “promíscua e imoral” e que contribuía para a desagregação familiar e atraso do país. Dentro desta lógica, algumas medidas foram fundamentais como as políticas criadas pelo Estado e os discursos dos médicos higiênicos e da religião. Eles contribuíram para a nova face da vida social urbana brasileira e construção de novos conceitos de vida familiar e higiene em geral. Nas expressões de Backx, “Tentava-se impor o modelo de família estável como sendo o modelo normativo da moralidade e condição de civilidade. Para impor-se como única e exclusiva forma legítima e reconhecida de organização da vida em sociedade, exigiu-se o sufocamento e a repressão das formas anteriores de sociabilidade e de organização da vida familiar por parte das camadas populares urbanas” (1994, p.56 – grifos nosso). Nesse quadro, normatizar a família e ressocializá-la seria de suma importância ao país, pois ela era reconhecida como uma “célula política básica”. Aqui não só os problemas que se referiam ao trabalho interessavam ao Estado, mas tudo o que fazia menção ao cotidiano do trabalhador era uma questão de interesse nacional. E, é nessa ocasião que o serviço social é chamado para intervir junto ao trabalhador e sua família com ações que reafirmavam um padrão extremamente funcional ao sistema capitalista e ao sistema político, econômico e social da época. Isso acontecia “ao defender um modelo de família no qual ao homem competia desempenhar o papel de provedor e à mulher a função de ‘alma do lar’” (BACKX; 1994, p.66). Mas é importante destacar também a necessidade de ver esse momento de forma dialética e perceber o modo como, contraditoriamente, essa inserção no mundo público por parte das mulheres traz alterações para seu cotidiano de gênero. Trata-se de uma história de mulheres que, com todas as limitações (de gênero, de classe, raça) conseguiram criar uma profissão. Destacamos esse comentário por entendermos que muitas vezes estas mulheres são olhadas com o olhar do presente e condenadas por um conservadorismo que, na verdade, não as caracterizou necessariamente11. Nos dias atuais, a família, parafraseando Pereira-Pereira (2004), retorna a cena política como lócus privilegiado de promoção dos programas e políticas sociais na sociedade capitalista neoliberal. A matricialidade sociofamiliar está presente nas ações, programas e projetos das políticas sociais governamentais. Com isso, tem-se enfatizado o papel da família enquanto promotora do bem estar e proteção social de seus membros. A família volta à cena política, enquanto estratégia de intervenção; e, nela as mulheres continuam sendo as maiores responsáveis pelo cuidado dos filhos e afazeres domésticos. A grande questão dessa centralidade na família é que uma gama de responsabilidade é deixada a cargo das famílias sem que seja levado em consideração e debatido a viabilidade das propostas e os novos arranjos familiares no contexto contemporâneo. Falar em família implica entender o que ela significa e representa na sociedade brasileira e, com isso, atentar para os padrões culturais onde essas famílias se 11 FREITAS, Rita de Cássia Santos et all. "Construindo uma profissão: o caso da Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense", Revista Serviço Social e Sociedade, n. 97, São Paulo: Cortez, 2009. inserem. Freitas coloca que definir famílias significa pensar uma realidade em constante transformação e que “qualquer análise acerca da família tem de se ater às condições que essas famílias vivem. Não existe a Mãe, assim como não existe a Mulher ou a Família. A construção desses papéis é rasgada a todo instante pelo tecido social em que vivemos. Pensar em família sem ater para as diferenças de classe implica conhecer bem pouco desse objeto de estudo” (2002, p. 81). Ou seja, devem-se conhecer os modelos de famílias existentes na sociedade brasileira sob os diversos prismas disciplinares. Estudos sobre a história da família apresentam estruturas e organizações familiares diferentes, a saber: “famílias matrilineares”; “famílias patrilineares”; “famílias poligâmicas”; “família patriarcal rural”; “família dos escravos”; “família dos homens livres”; “famílias extensas”; “família rural”; “família nuclear burguesa”; “família conjugal” (ALMEIDA 1987; NEDER 1988; COSTA 1989; NUNES 1991). Ainda convém frisar que essas tipologias não se esgotam aqui, sendo difícil pensar a família sem atentar para as questões das redes sociais no Brasil. Conforme Fougeyroullas-Schewebel (1994), a família brasileira, após os anos 60, foi marcada por grandes transformações, ocasionando na diversificação de suas formas e na geração de modelos de “famílias”12. Essas transformações das práticas familiares têm relação direta com o aumento da atividade feminina no mercado de trabalho e de sua maior autonomia e inserção na sociedade. Logo, faz-se necessário que se conheçam e levem em consideração as especificidades desses grupos de estudo; e que não sejam estabelecidas generalizações, com a criação de um modelo padrão de família. Pelo contrário, é necessário entendê-las de forma plural, numa multiplicidade de tipos étnico-cultural, que se baseiam em construções que acontecem de forma diferenciada entre os indivíduos de um mesmo grupo. Em vista do que foi mencionado anteriormente, e para fins desse trabalho, entendemos famílias “enquanto um processo de articulação de diferentes trajetórias de vida, que possuem um caminhar conjunto e a vivência de relações íntimas, um processo que se constrói a partir de várias relações, como classe, gênero, etnia e idade” 12 Famílias monoparentais, famílias conviventes, famílias entre pares homossexuais, entre outros modelos. (FREITAS; 2000, p.8). Diante disso, ao tratar da família contemporânea é essencial refletir sobre questões complexas e realidades que estão em constante transformação. É importante salientar, que historicamente, o Estado brasileiro tem se apropriado e atribuído às famílias co-responsabilidades pelo desenvolvimento dos cidadãos. Por mais que essa relação não fique explícita, isso revela a importância da família – esfera privada de proteção – como estratégia de proteção social, ao longo da história do país. Em especial, no momento atual em que o debate circula em torno do binômio político “universal” versos “focal”. Segundo Pereira-Pereira, “No Brasil, país onde se costuma dizer que nunca existiu um Estado de Bem-Estar, por comparação a um suposto esquema coerente, consistente e generoso de bem-estar primeiro-mundista, a afirmação de que não há política de família ‘cai como uma luva’. Mas tal afirmação só teria cabimento se, de fato, houvesse uma verdadeira política de família nos países desenvolvidos. Como tal política está impregnada de particularidades culturais, é lícito falar de uma ‘política de família à brasileira’ e identificar os seus traços principais – até porque a não-ação governamental não deixa de ser uma atitude política” (2004, p.28). A família é o ponto de partida das reflexões e intervenções sociais entre pesquisadores e gestores públicos. Quadro esse que ganha fôlego, na década de 1990, quando os estados de bem-estar social, especialmente nos países de capitalismo periférico, apontam para dificuldades presentes em sua manutenção diante das atuais crises do capitalismo na atualidade. Retornando à cena a família como ator coresponsável pelo desenvolvimento dos cidadãos. Ou seja, a família volta ao cenário político de discussão, debate e intervenção e torna-se o centro das políticas de proteção social, especialmente das políticas sociais. Para Brant de Carvalho, “A família está no centro das políticas de proteção social. Há 20 anos, apostávamos no chamado modelo de Bem-Estar Social, capaz de atender a todas as demandas de proteção. Hoje, nas sociedades em que vivemos, um conjunto de fatores derrubou nossas expectativas e vem exigir soluções compulsoriamente partilhadas entre Estado e sociedade” (2003, p.269). De tal modo, de acordo com a autora, a família e as políticas públicas apresentam funções correspondentes e essenciais ao desenvolvimento e proteção social dos indivíduos. Fatores sociais, políticos, culturais e econômicos contribuíram para isso e tem levado a situação de vulnerabilidade social segmentos representativo da sociedade. Percebemos, do mesmo modo, que a família e suas novas configurações, mesmo diante das situações de vulnerabilidade social, continuam a ser o principal eixo de inclusão e proteção social de muitos. E, nesse quadro de transformações, a década de 1990 é emblemática e marca um contexto de “Brasil em contra-reforma”13, que obstaculiza e reduz muitos dos direitos e políticas conquistados na Constituição Federal de 1988. Essa contra-reforma que atinge, principalmente, as políticas sociais e suprimem os direitos sociais adquiridos. Conforme Yasbek (2001), esse processo se traduz numa refilantropização das políticas sociais, que implica numa precipitada volta ao passado sem esgotar as possibilidades da política pública, na sua formatação constitucional. Transferindo as responsabilidades para a sociedade sob a justificativa do voluntariado da solidariedade e da cooperação e trazendo outros agentes – como as famílias e as Organizações Não Governamentais – como alternativas eficientes e eficazes na produção do bem-estar social. E, é com essas novas expressões da “questão social” e configurações estratégicas familiares que os assistentes sociais tem que lidar. Considerações Finais: A construção de redes sociais como estratégias de enfrentamento da “questão social” Diante do que foi exposto, verificamos que a família tem papel importante diante das novas expressões da “questão social” no contexto atual. A família e políticas sociais de proteção social apresentam funções correspondentes e essenciais frente a situação de vulnerabilidade social segmentos representativo da sociedade. Mas, além da sua importância nas políticas não podemos esquecer das estratégias que são criadas, como as redes sociais. Com sinalizamos antes, não se pode pensar na questão das políticas sociais de proteção social e família sem atentar para as construções das redes sociais no Brasil. As redes sociais são constitutivas dos processos históricos e culturais do país e perpassa todas as classes sociais, particularmente as famílias empobrecidas, se constituindo enquanto estratégias fundamentais de proteção e sobrevivência. 13 Termo usado por Elaine Behring (2008). Em texto clássico Elizabeth Bott (1976) estudava a realidade de camadas médias norte-americanas e definia por redes sociais a constituição de redes de relações construídas socialmente em diversos graus de conexidade, estabelecidas entre indivíduos ou grupos situados dentro ou fora da família para apoios tanto instrumental (ajuda financeira, divisão de responsabilidades) quanto emocional (afeição, aprovação, simpatia e preocupação com o outro). Também no Brasil, há séculos as mulheres, de classe média e popular, em proporções diferenciadas, criam estratégias, “tecidas por trás dos panos”, que variam de contexto e independem do poder do Estado. Podem ser citadas a “maternidade transferida” (COSTA, 2002), as “redes de solidariedade e reciprocidade” (FREITAS, 2002), a “circulação de crianças” (FONSECA, 2002). Pensando o caso brasileiro, Sueli Costa (2002) coloca que essas redes são de longa duração e, de certa forma, tardaram a construção de padrões de proteção social que garantisse igualdade de direitos sociais entre homens e mulheres. Para que as mulheres saíssem para a esfera pública, seja para trabalhar ou estudar, tiveram que construir redes sociais, de troca e partilha, com outras mulheres. Desta forma, houve a conformação do que esta autora chama de “maternidade transferida” que é a forma em que as mulheres atribuírem-se mútuas responsabilidades e delegam as tarefas administrativas de suas casas a outras mulheres. Assim, essas mulheres podem reprogramar o tempo que gastavam com o cuidado com a prole e afazeres domésticos e sair para o espaço público em busca da realização pessoal e profissional (COSTA; 2002). Isso impacta diretamente a configuração das políticas sociais. Rita de Cássia Freitas (2002), ao analisar o caso das mães Acari, aponta para o processo de construção de “redes de solidariedade e reciprocidade” entre pessoas que apresentam questões em comum. No episódio Acari, a experiência das redes sociais se deu diante da dor de muitas mulheres que se uniram na construção de uma identidade e objetivo comum, a perda de seus filhos que foram chacinados na década de 1990. Para a autora, “redes de solidariedade e reciprocidade” revelam a “formação de uma agenda de valores comuns – valores que determinam um padrão de sociabilidade e de costumes que tem como substrato idéias e referências acerca da solidariedade e dos direitos humanos, ainda que tais valores não sejam muitas vezes verbalizados com toda força argumentativa por todas elas. Uma existência (de longa duração) levam-nas a ver com extrema naturalidade a socialização dessas formas de redes de proteção social aos seus” (p.93). A noção de solidariedade é uma representação social arquitetada por essas mulheres, que “em nome dos filhos” conquistam a esfera pública para dar visibilidade a sua causa, como também politizar a sua luta como forma de manifestação de sua dor. Do mesmo modo, Claudia Fonseca (2002) coloca que a compreensão da vida familiar no Brasil contemporâneo exige considerar a existência de modelos para além da norma hegemônica, do modelo de família nuclear burguesa, como composições alternativas que se aparecem nos grupos populares, como é o caso da “circulação de crianças”. A circulação de crianças é um conceito analítico que denomina a permuta e/ou partilha de cuidados e atenção de uma criança entre um adulto e outro. Revelando, assim, que existem “outras normalidades” que sucedem entre as práticas familiares na sociedade complexa atual. Esse é um exemplo típico de praticas realizadas por toda parte do mundo, sendo adaptada a cada realidade sócio-cultural. Em relação a essa afirmação Freitas coloca que a “coletivização seja na troca de favores ou nos cuidados com as crianças (bem como os velhos ou doentes) faz parte das estratégias de sobrevivência elaboradas” pela população pobre (2002, p.94). Pois, essas famílias são marcadas por grande instabilidade e vulnerabilidade social que podem ser ocasionadas por situações de separação, morte, dificuldades econômicas; situação essa que pode ser agravada pela ausência ou precariedade de instituições públicas que promovam a proteção social do grupo em questão, a partir da criação de mecanismos de proteção social. Verificamos, assim, que as desigualdades sócio-políticas e econômicas em que vivem muitas famílias restringem o acesso a uma cidadania formal plena. Sendo constituída um outro tipo de cidadania que rege suas relações, que se dá na esfera do informal, fora do alcance do poder público. E, que se torna possível nas relações de proximidade familiar. Pois é esta o principal lócus de sociabilidade e sobrevivência para muitas pessoas. Segundo Brant de Carvalho (2000) é na família que as camadas populares encontram sua condição de “resistência” e “sobrevivência”. E nela a mulher se torna basilar para a produção do cuidado e promoção de direitos. Muitas vezes, esta mulher se torna a única responsável pelo lar e pelo cuidado da prole, vivendo em condições de monoparentalidade. As construções de redes sociais, como aspectos culturais e históricos, fazem parte da realidade brasileira. Além disso, evidenciam que a hegemonia do modelo de família nuclear moderno não se exerce da mesma forma em todas as camadas sociais e que outras alternativas familiares insurgem e devem ser reconhecidas e pensadas como estratégias de sobrevivência importante entre as camadas pobres da sociedade brasileira. É importante ressaltar que é na esfera do “informal” – na família, fora do alcance do poder público – que elas passaram a ter acesso a possibilidades de garantia do direito à vida e ao direito de ir e vir. Segundo Brant de Carvalho (2000), é na família que as camadas populares encontram sua condição de “resistência” e “sobrevivência”. Desta forma, estas mulheres vivem uma cidadania que difere da cidadania formal. Segundo Manzini-Covre (2000) será uma “nova cidadania” baseada na família enquanto produtora de proteção social, e nesta, a presença feminina é marcante para o acesso a algum tipo de direito. Por fim, acreditamos que os assistentes sociais – profissionais qualificados e que tem como pressuposto o compromisso ético de responder com competência às novas exigências das questões surgidas em nosso trabalho cotidiano – devem problematizar tais expressões das questões sociais visando uma intervenção qualificada e comprometida com as camadas menos favorecidas de nossa sociedade. Não podemos esquecer que somos profissionais que “atuam nas manifestações mais contundentes da ‘questão social’, tal como se expressam na vida dos indivíduos sociais de distintos segmentos das classes subalternas em suas relações com o bloco do poder e nas iniciativas coletivas pela conquista, efetivação e ampliação dos direitos de cidadania e nas correspondentes políticas públicas” (IAMAMOTO, 2009, p.19). Tomando como referência nosso Código de Ética e o projeto ético político construído pela categoria, entendemos que em relação a essa temática deve ser um de dever ético para nós a superação das contradições e a constituição de novos valores. Para com isso, deixar de banalizar a vida das classes subalternas e não culpabilizá-las pelos infortúnios cotidianos gerados pela situação de pobreza e miséria em que vivem, tão característicos do sistema capitalista. Tal postura possibilita evitar deixar a cargo do privado, da esfera doméstica, da família – principalmente das mulheres – a responsabilidade e a promoção de cuidados e bem-estar de seus membros, bem como teremos condições de buscar a efetivação da universalidade dos direitos por meio do Estado. Referência Bibliográfica: ALMEIDA, Ângela Maria (org). Pensando a família no Brasil: da Colônia à Modernidade, Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1987. BACKX, Sheila de Souza. “Capítulo II: a família e a construção de um novo ‘povo’. In: ---. Serviço Social: Reexaminando sua história. Rio de Janeiro: Editora S.A., 1994 (p. 55-73). BEHRING, Elaine Rossetti. Brasil em Contra-Reforma: desestruturação do Estado e perda de direitos. In: ---. – 2 ed. – São Paulo: Cortez, 2008. BOCK, Gisela. Pobreza feminina, maternidade e direitos das mães na ascensão dos Estados Providência (1890-1950). In: FRAISSE, G.; PERROT, M. A história das mulheres no Ocidente. O século XIX. Trad. De M. H. da C. Coelho, I.M. 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