Augustus – Rio de Janeiro – Vol. 10 – N. 20 – Jan./Jun. – 2005 – Semestral MENOR: INFRATOR OU VÍTIMA? Sônia Cristina Guerra Vasconcellos da Cruz∗ RESUMO: Discussão acerca da posição do menor em face da sociedade, sob o prisma da criminologia e da vitimologia. Aborda algumas causas que levam o menor à prática de infrações penais, analisando sua condição social. Analisa, ainda, fatores sociais de criminalidade e o problema do menor no Brasil. ABSTRACT: Quarrel about the position of the lesser face the society, under the prism of the criminology and the vitimologia. It approaches some causes that take the minor to the practical one of misdemeanors, analyzing its social condition. It analyzes, still, social factors of crime and the problem of the minor in Brazil. Palavras-chave: Menor, infrator, vítima, criminalidade, Brasil. Keywords: Minor, infractor, victim, crime, Brazil. INTRODUÇÃO Atualmente, é preocupação de quase totalidade dos povos a questão da efetivação dos direitos sociais, que é bastante complicada, pois que depende de uma atuação intensa do Poder Executivo. A carência desses direitos acaba gerando uma escalada na criminalidade infantil, e o problema do menor infrator acaba se tornando uma verdadeira angústia coletiva, despertando interesse em vários segmentos da sociedade. Tema dos mais complexos gera diversos questionamentos: será que o menor está bem assistido pelo Estado e pela sociedade ou será que a atual situação em que a maioria se encontra apenas reflete o descaso de ambos? Seria ele uma vítima social? Entidades públicas e privadas, grupos de estudiosos e cientistas sociais, juristas e psicólogos, assistentes sociais, autoridades judiciárias e administrativas, têm procurado pesquisar as causas e efeitos, origens e conseqüências da problemática social e comunitária do menor desajustado. Contudo, todos –––––––––– ∗ Mestre em Direito, advogada e professora universitária. 56 os esforços têm conduzido a resultados práticos pouco positivos. Como devemos avaliar a situação do menor infrator no contexto social? Será que apenas devemos fazê-lo sob a égide da tríade delito-delinqüente-pena, sempre observada no Direito Penal, esquecendo-nos do outro componente do contexto criminal – a vítima? O estudo da vítima, nesse contexto, só passou a ocorrer quando outras ciências, e principalmente a Criminologia vieram em auxílio do Direito Penal para a análise aprofundada do crime, do criminoso e da pena. A despeito das controvérsias sobre se a Vitimologia é ou não ciência e se faz parte ou não da Criminologia, pretendemos enfocar a Vitimologia como sendo responsável pelo estudo de uma vítima em especial: o menor. Nesse propósito, o professor Papaleo (1998) leciona que a Vitimologia reivindica definir amplamente o conceito de vítima ajustando-se à melhor doutrina dos bens jurídicos, correlacionando- Augustus – Rio de Janeiro – Vol. 10 – N. 20 – Jan./Jun. – 2005 – Semestral se, em decorrência, com o entendimento do crime, incluído em seus limites, a vitimação de interesses difusos. Neste estudo, procuraremos abordar algumas causas que levam o menor à prática de infrações penais. Será que apenas o menor oriundo de famílias de baixa renda é capaz de praticá-las? Será que os menores infratores têm uma família – na essência da palavra? Será que ele, pelo fato de praticar delitos, não é na verdade vítima do contexto social? Provavelmente não obteremos respostas precisas a esses questionamentos tão angustiantes, mas pretendemos conclamar a comunidade acadêmica a refletir sobre um problema tão grave e alarmante hodiernamente. 1. A SOCIEDADE, O CRIMINOSO E A VÍTIMA Diante do crime, é importante conhecermos a sociedade e o criminoso para levarmos em consideração a vítima. Embora seja o homem um animal gregário, por natureza, não podemos imaginar ou pensar que as pessoas que vivem em uma determinada sociedade são iguais – seria utópico. Ao nascer, a criança entra num cenário de cuja construção não participou. Desde pequena aprende a se localizar na sociedade, iniciando um processo de aprendizagem que se mantém por toda a sua existência. Essas relações sociais ocorrem, num primeiro momento, no grupo ao qual a criança pertence: a família. É aí que começa o processo de sua preparação para participar, posteriormente, do conjunto das relações sociais mais amplas. A preparação do indivíduo significa que ele, ao longo de sua história de vida, irá se socializando, apropriando-se da realidade construída por homens que antecederam essa criança que nasce agora e se introduz nas relações sociais. Essa forma adotada pela sociedade de localizar o indivíduo dita ao mesmo o que ele pode fazer e o que pode esperar da própria vida, acarretando assim uma forma de controle individual. A sociedade, ao utilizar meios de controle dos indivíduos, faz com que a pessoa aja dentro de sistemas definidos, predeterminados, impregna- dos de poder e prestígio e, ainda, faz com que a mesma, além de agir programadamente, não lute para mudar muita coisa na situação em que se encontra, ou seja, é programada para aceitar e se conformar com a vida que lhe foi predeterminada por outros. Mas as pessoas possuem características próprias, ideologias, crenças, formação familiar distintas, além dos diversos fatores existentes em sociedade capazes de influenciar e formar indivíduos. Não existe apenas um raciocínio e um caminho a ser seguido pelos integrantes do grupo social e as diferenças podem acarretar, muitas vezes, situações de conflitos que, infelizmente, podem culminar com a prática de um crime. Quando se analisa um determinado crime, verifica-se, em última análise, as condições do meio em que ele foi praticado e a personalidade de seu autor no momento da ação. No que tange às condições ambientais, abrangem as circunstâncias que permitiram o desencadeamento do próprio ato (entre elas aquelas que tornaram permissível seu cometimento) bem como as que teriam funcionado como inibidoras. Quanto à personalidade do indivíduo no momento em que comete o crime, está relacionada com o aspecto da reação dele diante de um fato concreto, sendo suas características condicionadas pelo modo de ser relativamente constante ou habitual do indivíduo. Com relação ao meio social, na análise ora implementada, acentua-se as influências da educação no lar e na escola, a influência de parentes e outras pessoas, a convivência comunitária, condições socioeconômicas, além, é claro, de outros fatores como o alcoolismo e o uso de drogas. Tais circunstâncias estão diretamente ligadas ao meio de desenvolvimento do indivíduo e irão refletir consideravelmente quando do surgimento de um conflito. 2. FATORES SOCIAIS DE CRIMINALIDADE Partindo-se da premissa de que a prática de um crime está relacionada com determinadas condições da vida social do homem e, sem querer esgotar todos os fatores sociais que podem ter essa correlação, enumeramos alguns que parecem es57 Augustus – Rio de Janeiro – Vol. 10 – N. 20 – Jan./Jun. – 2005 – Semestral tar bastante ligados ao tema proposto, a saber: sistema econômico, pobreza, fome, desemprego, educação, ambiente familiar e rua. A criminalidade sofre uma grande influência da situação econômica, pois baixo poder aquisitivo, pouca ou nenhuma escolaridade, dificuldade de colocação no mercado de trabalho pela falta de preparo técnico, o desemprego e o subemprego, podem induzir muitos indivíduos ao crime, verificando-se, assim, que a criminalidade não deixa de ser uma resposta ou forma de contestação às desigualdades e injustiças sociais existentes. Com o mundo globalizado, cada vez é maior a premissa de que para conseguirmos boa colocação no mercado de trabalho devemos obter e reter mais informação. Trabalhando, podemos suprir nossas necessidades e de nossa família. Porém, na concepção de alguns indivíduos que estão desajustados do contexto social, é através do crime que conseguirão obter o dinheiro necessário à sua sobrevivência e, muitas vezes, a ambição desenfreada dessas pessoas, faz com que busquem cada vez mais e mais dinheiro praticando mais e mais crimes. Daí, a relação entre o emprego e o crime. Na medida em que todos necessitamos de emprego para viver dignamente e prover o sustento de nossos familiares, quando o desajustado socialmente não consegue, pratica atos delituosos para obtenção da coisa de que precisa. E não é só o desemprego, mas também aqueles que se encontram no “mercado informal” (que cresce a cada dia com a internacionalização dos mercados e enfraquecimento dos mesmos). O subemprego, muitas vezes, gera uma renda insuficiente à manutenção própria ou da família, e pela instabilidade pessoal e socioeconômico gerada em quem se encontra em tal situação, associada a outros fatores, pode ser considerado como um fator influenciável no crescimento da prática de delitos. Os assaltantes, em sua grande maioria, são indivíduos rudes, semi-analfabetos e pobres. Sem formação moral adequada, nutrem indisfarçável raiva e aversão por aqueles que possuem bens, de certo modo ostensivos, e que demonstram um status econômico superior. Esse sentimento de revolta por viver na pobreza não deixa de ser um dos fatores que induzem o indivíduo ao crime. Contudo, não podemos nos esquecer daqueles que, mesmo integrando as classes média e média-alta, 58 têm enveredado para as teias do mundo do crime. Será que a família brasileira está educando adequadamente seus membros? Será que apenas os pobres – que sempre foram tidos como propensos à prática de delitos –, atualmente, integram o rol de criminosos? Não é o que temos percebido ultimamente! Além da pobreza, a fome (que seria um estado de miserabilidade) também é um dos fatores sociais que contribuem para a criminalidade. Imaginemos o que deve passar na cabeça de um indivíduo que, observando à sua volta, percebe pessoas morando em luxuosos apartamentos de frente para o mar, ou em casas cinematográficas em condomínios de luxo, ou mesmo em residências mais simples, porém com toda a estrutura para que se viva com dignidade, enquanto ele encontra-se vivendo de maneira degradante embaixo de um viaduto, pelas ruas da cidade, sem ter nem o que comer. Muitas vezes, vendo sua família em tal situação, o indivíduo encontra, na prática de um delito, o mecanismo mais imediato para promover a sobrevivência daqueles que dele dependem. Mas não é só a pobreza e a fome que “empurram” os indivíduos à prática de delitos. A educação é fator importante de desenvolvimento do homem em sociedade e a má educação e os maus exemplos “adquiridos” (se é que podemos usar tal expressão) durante o desenvolvimento do indivíduo podem também contribuir para a trajetória da criminalidade. A educação é direito de todos e dever do Estado e da família, conforme determinação constitucional, devendo existir, dentre outros fatores, a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola e garantia de padrão de qualidade. O acesso ao ensino fundamental obrigatório e gratuito é direito público subjetivo, mas para efetivá-lo, as dificuldades são enormes. Conseguir vaga nas escolas públicas demanda paciência dos responsáveis em filas intermináveis, o que, por exemplo, no Estado do Rio de Janeiro, não significa dizer que o aluno terá a garantia do padrão de qualidade previsto na Constituição Federal, já que há algum tempo foi implementado o mecanismo que impede que o aluno fique reprovado, mascarando a real situação da educação. Augustus – Rio de Janeiro – Vol. 10 – N. 20 – Jan./Jun. – 2005 – Semestral A educação dos menores é de grande responsabilidade da escola, mas também deve ser observada a educação familiar, pois a responsabilidade de uma boa formação é responsabilidade de todos e não apenas dever estatal. Quando usamos a expressão “maus exemplos”, relacionamos à absorção de informações da educação informal (seja em casa ou no meio social em que vive) que ocorre de forma negativa, transformando e deturpando a integridade do indivíduo. A mídia é grande responsável no desenvolvimento sócio-cultural de nossas crianças; daí a preocupação com o que se tem veiculado nos canais de televisão. Essa “educação informal” pode ter origem na vivência de rua onde o indivíduo tem a oportunidade de assimilar diversos comportamentos que, muitas vezes, não condizem com o conceito do que seja o adequado para o desenvolvimento social do indivíduo. Muitas vezes, essa será a “escola” daquele que foi renegado pela própria família, pela escola e, de um modo geral, pela sociedade que, carente de tantas coisas, acaba enveredando pelo caminho mais fácil que é o crime. Sobre essa questão, Fernandes e Fernandes refletem: trajetória do indivíduo para o mundo do crime. Muitas vezes, o menor infrator foi espancado, estuprado, tem em casa pai(s) alcoólatra(s), enfim, uma total desestrutura familiar. Da obra de Fernandes, absorvemos: A rua, com toda a espécie de maus exemplos que pode oferecer, inclui-se no crime. Não só os logradouros públicos, como também os baixos e vãos de pontes e viadutos, num viver promíscuo levado ao ápice, só pode trazer como resultado tudo o que não é bom, não só para os que assim vivem, como também para a sociedade. A rua é a própria matriz a forjar vários modelos de associais. Dela resultam vadios, contraventores, meninas precocemente prostituídas, toxicômanos, rufiões, alcoólatras, ladrões, e tudo o que de pior possa existir (1995, p. 352). Feita a análise dessas variáveis como possíveis fatores sociais que podem induzir o indivíduo para a prática do crime, fica a indagação: será que essas pessoas não são vítimas de uma sociedade competitiva, onde a disputa pelo poder e por posição social muitas vezes ultrapassa as raias da honestidade, desrespeitando-se princípios éticos e morais em diversos setores de nossa sociedade? Será que essa “sociedade de apadrinhados” não constitui motivo de desvirtuamento de diversos indivíduos, à medida que nossas crianças e adolescente recebem, a todo o momento, informações de que mais um escândalo de propina e corrupção estourou em nossa sociedade? Será que o menor infrator é um criminoso pura e simplesmente ou será que é mais uma vítima dessa sociedade cruel? Tudo isso pode ser minimizado quando se tem uma família bem estruturada. Assim, num lar constituído de forma satisfatória, a probabilidade de haver um desvio de conduta por parte de um indivíduo é bastante reduzida, embora esse fato não possa ser adotado como um paradigma, já que em algumas famílias estruturadas nos padrões “normais” da sociedade, também encontramos indivíduos que descambam para a atividade criminosa. Contudo, estudos levam a crer que o desajuste familiar contribui imensamente para a Nos países subdesenvolvidos, onde proliferam as favelas, os cortiços, as taperas, as casas de cômodos, com a natural promiscuidade disso decorrente, em que os valores morais desaparecem, onde o número de analfabetos ou subaculturados é muito grande, induvidosamente propiciam, nas camadas sociais que assim vivem, a existência de um contingente muito grande de prostitutas, viciados e traficantes de drogas, ladrões, assaltantes, homicidas etc. E não se diga que o meio, nesses casos, não é fator preponderante de criminalidade, embora se possa reconhecer a coexistência de outros fatores decorrentes até do comprometimento da própria saúde, por estados desnutricionais, pelo alcoolismo e por outros estados patológicos oriundos da falta de higiene, e outras condições de saneamento básico. Lares inseridos nessas condições, não há que contestar, são verdadeira forja de marginais (1995, p. 351). 3. O PROBLEMA DO MENOR NO BRASIL Diversos são os problemas enfrentados pelo menor em todos os cantos do globo terrestre. A 59 Augustus – Rio de Janeiro – Vol. 10 – N. 20 – Jan./Jun. – 2005 – Semestral carga de responsabilidade e comprometimento com o futuro mercado de trabalho, a “obrigatoriedade” de não decepcionar seus familiares, o aumento do culto ao físico, o volume excessivo de informações da dura realidade político-social de diversos países, as enormes desigualdades sociais, o apelo sexual em todos os meios de comunicação, o enfrentamento e resistência (que muitas vezes não acontece) às drogas, dentre outros tantos. Passemos então à análise de alguns dos fatores que podem contribuir para a prática de delitos por menores. Para nossa sociedade, a preocupação com o menor refletiu-se em diversos dispositivos da Carta Constitucional de 1988, bem como em legislação infraconstitucional. Cabe ao Estado, à sociedade e à família assegurar aos nossos menores, condições efetivas do exercício de cidadania plena. Assim determina a Constituição Federal: Art. 227 – É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. § 1o – O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente… …… § 3o – O direito à proteção especial abrangerá os seguintes aspectos: I – idade mínima de quatorze anos para admissão ao trabalho, observado o disposto no art. 7o, XXXIII; …… III – garantia ao acesso do trabalhador adolescente à escola; …… § 4o – A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente. Art. 229 – Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, … A Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990, mais conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, veio buscando a regulamentação 60 dos dispositivos constitucionais. Assim, criança é o indivíduo de até 12 anos de idade incompletos e, adolescente é o que se encontra entre 12 e 18 anos de idade. Conforme dispõe o art. 54 do ECA: É dever de o Estado assegurar à criança e ao adolescente: I – ensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele não tiveram acesso na idade própria; II – progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao ensino médio; III – atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino; IV – atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade; V – acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um; VI – oferta de ensino noturno regular, adequado às condições do adolescente trabalhador; VII – atendimento no ensino fundamental, através de programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde. Como efetivar esses direitos com a crise no atual modelo adotado por quase toda a Administração Pública brasileira? Já que nenhuma criança ou adolescente pode ser “objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão...” – art. 5ª do ECA – diversos são os tipos penais previstos no próprio Estatuto, com penas de detenção ou de reclusão. Questionando novamente, será que a previsão legal constitui meio de coibir a prática de violência contra menores? Não nos parece. Causa indignação quando percebemos que, na maioria das vezes, os algozes são seus próprios parentes! Ocorre que o problema do desajustamento sócio-familiar do menor cresce e se avoluma dia a dia, em proporções assustadoras, como conseqüência direta da crise moral e institucional da família, que se desagrega muito aceleradamente em nossos dias. A família, no mundo globalizado, vem sofrendo seus efeitos e as conseqüências, muitas vezes, são desastrosas. No mundo capitalista, e com as Augustus – Rio de Janeiro – Vol. 10 – N. 20 – Jan./Jun. – 2005 – Semestral mudanças no contexto socioeconômico mundial, as mulheres passaram a ocupar um lugar importante e cada vez maior no mercado de trabalho, surgindo assim a grande dualidade entre ser mãe e profissional. Não nos referimos apenas àquelas que galgaram degraus mais altos em empresas, mas a todas que necessitam estar nesse mercado cada vez mais exigente e buscam ser mães na essência e importância da palavra. Como conciliar as crianças e o trabalho, as idas a médicos, atividades escolares, o empregador que nem sempre está disposto a perceber que por trás daquela profissional existe uma ou mais crianças sedentas de atenção para que sua formação seja a melhor possível para o contexto social… é um grande desafio! Ademais, a deterioração dos laços afetivos, principalmente no relacionamento pais-filhos, corroeu-se e destruiu-se o conceito de autoridade no trinômio pai-filho-mãe, abalando as vigas mestras da estrutura familiar, de modo a gerar um efeito desastroso. Nos dias atuais, verificamos mudanças bruscas nos valores morais e, em conseqüência dessas “modernidades”, seqüelas são refletidas diretamente nos membros da comunidade familiar, mais especificamente nos filhos menores. As famílias que não são bem constituídas, que não possuem um forte alicerce moral, têm uma tendência maior a possuir filhos desajustados, familiar e socialmente. Não podemos nos omitir em nossas responsabilidades na educação e formação moral de nossas crianças, sob a alegação de que a desagregação da família é mero e puro resultado da problemática sócio-econômica em que estamos vivendo ou sobrevivendo. Há influência de grande monta nisto, mas tenha-se em mente, antes, que a falta de formação moral, social, educacional, religiosa e comunitária da família é a origem fundamental de tudo. As grandes crises econômicas já enfrentadas por diversos povos foram à custa de valores morais, ocorrendo o mesmo com as famílias. Se elas tiverem formação moral, autovaloração e consciência de suas íntimas potencialidades, conseguirão superar quaisquer crises. A desagregação familiar em nossa sociedade pode ser revertida se, urgentemente, restabelecermos os valores morais e sociais da entidade familiar, tão duramente atin- gidos por uma arrasadora destruição de importantes instituições comunitárias. Uma nova reformulação de valores precisa ser estabelecida para recompor toda a sociedade. Essa causa imediata e direta do problema do menor é que deve merecer a atenção dos responsáveis pela comunidade nacional, para que se lhe possa oferecer um ambiente, em todos os sentidos, construtivo, a fim de que se restabeleça a verdadeira e insubstituível função da família na comunidade. Outras causas correlatas e determinantes da conduta anti-social infanto-juvenil, já em escala inferior e de menor intensidade de efeitos, têm sido apontadas pelos estudiosos do assunto, podendo ser mencionadas as seguintes: a) causas psicopatogênicas; b) causas psicossociais. As causas psicopatogênicas, em número pouco significativo, decorrem do comportamento de jovens com personalidade psicopáticas, manifestadas desde a infância ou adolescência e acentuadas durante o processo mental e psicológico, no desenvolvimento da delinqüência ou conduta antisocial. Jovens com tais características integram muito mais rapidamente a delinqüência. Se o menor é psicopata, com deficiências de princípios éticos e morais, insensibilidade emocional e de baixo nível de relacionamento com outras pessoas, acaba tornando-se frio, impiedoso, desleal, enfim, um “monstro” para a sociedade.1 Dentre as causas de conduta anti-social do menor, de caráter psicossocial, destacamos: os tóxicos ou entorpecentes, a superpopulação urbana, a exploração comercial do sexo e do erotismo, a minimização de princípios morais dos espetáculos públicos, meios de comunicação, músicas, revistas, rádio e televisão, a pobreza e a marginalização, a violência urbana e sua divulgação desenfreada, o crescimento populacional, a subnutrição e carências habitacionais, educacionais e de saúde. A delinqüência juvenil é um fato social que tem perturbado a sociedade, seja na parcela dos integrantes desta que se incomodam com esses problemas, buscando uma reflexão e possíveis soluções; seja naquela que se irrita e encontra-se amedrontada com a crescente violência gerada –––––––––– 1 Segundo os especialistas, as psicopatias mais graves são a esquizofrenia, a epilepsia e as neuroses. 61 Augustus – Rio de Janeiro – Vol. 10 – N. 20 – Jan./Jun. – 2005 – Semestral por esses menores infratores. O menor é uma vítima da própria sociedade. A delinqüência do menor é fruto, em primeiro lugar, do ambiente formado na família, ou pela falta de família, como mencionamos anteriormente; depois, nas amizades, no ambiente social, na escola ou nos grupos comunitários, na rua, já que a formação do menor, seu crescimento físico, moral e psicológico, dependem dos ambientes criados pelos adultos, até que adquira sua própria consciência da decisão e escolha ao atingir a maturidade. Atualmente, uma verdadeira explosão de criminalidade e delinqüência infanto-juvenil vem sendo constantemente noticiada na imprensa de todo país, principalmente nas grandes cidades, a par da escalada progressiva da violência urbana em geral. Em grande número de casos, os menores vêm sendo manipulados e utilizados como instrumentos das quadrilhas e bandos de delinqüentes adultos, seja pela facilidade de arregimentação, ou pela proteção decorrente da condição de inimputabilidade penal, acobertando-se assim, os verdadeiros delinqüentes adultos. É constante o envolvimento de menores em tráfico e comércio de tóxicos, distribuição de entorpecentes, furtos, dentre diversas infrações penais a que os adultos delinqüentes induzem os menores, por promessa ou paga de participação. Menores ociosos, que não estudam, e que são facilmente influenciáveis, ávidos de aventuras, todos os dias são arregimentados pelo mundo do crime. Mais medonhos ainda são os casos de menores que arquitetam e participam de atos criminosos atentando contra a vida de seus próprios familiares, ressalvando-se o fato de serem pertencentes a “famílias normais” antes do ocorrido. Serão esses crimes praticados em decorrência de causas psicopatogênicas e/ou de caráter psicossocial? Foi, portanto, a própria sociedade que criou o ambiente criminógeno para atuação do menor, cabendo a ela dissipar esse ambiente, retirando-o do mundo do crime e reintegrando-o em um contexto social sadio e condizente com a sua situação, para que ele se torne um indivíduo perfeitamente integrado. Na busca dessa integração, a escola assume importância muito grande, já que não devemos conceber a escola apenas como um local de 62 aprendizado mínimo da alfabetização, sem a preocupação com a formação do comportamento moral e social do menor. Contudo, tal responsabilidade é da família e da escola concomitantemente. Vemos muitos pais pretendendo delegar tal responsabilidade apenas aos professores que, nessa concepção, teriam a obrigação de educar. Por sua vez, alguns profissionais (e não educadores) alegam não lhes caber transmitir ensinamentos ou modelos de formação moral. Assim, nessa peleja, quem perde são as crianças e adolescentes que ficam inteiramente abandonadas à sua própria sorte. CONCLUSÃO Notamos, ao longo desta pesquisa e em outra, desenvolvida anteriormente, quando analisamos “O perfil do menor infrator e sua trajetória ao crime” (CRUZ, 1997), que muito se investiga quanto ao crime e ao criminoso e pouco se procura avaliar quanto à posição do menor ser uma vítima de todo o sistema social, político e legal em nossa sociedade. O Estatuto da Criança e do Adolescente determina que, durante a internação, o adolescente deve receber assistência (acompanhamento psicoterápico, ensino, oficinas profissionalizantes, atividades de esporte e apoio social extensivo à família) para que se afaste do crime. Mas essas medidas somente funcionariam se as instituições pudessem proporcionar ao infrator um atendimento de qualidade, para que alcançassem efetivamente a reabilitação do menor, não servindo apenas para a punição do mesmo. As medidas socioeducativas devem ser, antes de tudo, “pedagógicas”, exigindo preparo técnico dos aplicadores, numa mudança definitiva na cultura do atendimento. Políticas sociais devem também estar voltadas para procurar promover uma melhoria de vida familiar, de modo que as famílias resgatem sua função de célula mater da sociedade. Buscando o fortalecimento do elo pai-filhos-mãe, diminuiremos a possibilidade de ruptura emocional – mesmo nos casos de separação dos pais – e, o conseqüente abandono à sorte das ruas, das drogas, enfim, à marginalidade. Urge a tomada de atitu- Augustus – Rio de Janeiro – Vol. 10 – N. 20 – Jan./Jun. – 2005 – Semestral des reais que modifiquem o caótico cenário social atual. Não podemos nos esquecer que o menor tornase infrator como contingência da situação familiar, da falta de educação, de saúde, de moradia, da fome, enfim, da miséria social, e nunca, como atualmente, existiu uma preocupação tão grande e generalizada com os direitos do cidadão em todo o mundo (incluindo-se o menor). Mas a multiplicação dos direitos do homem se deu por três fatores, como descreve Bobbio (1992): a) pelo aumento da quantidade de bens considerados merecedores de tutela; b) a extensão da titularidade de alguns direitos típicos a sujeitos diversos do homem; c) o homem deixa de ser considerado como ente genérico, passando a ser visto sob o prisma da especialidade ou concreticidade de suas diversas maneiras de ser em sociedade (criança, velho, doente etc.). No primeiro processo ocorreu a transposição dos direitos de liberdade para os direitos políticos e sociais, os quais necessitam da intervenção direta do Estado. O segundo é conseqüência da evolução da concepção do homem, enquanto indivíduo, para a humanidade em seu conjunto; e, além do homem individualizado, outros sujeitos diferentes deste, como os que compõem a natureza, surgindo assim um “direito da natureza” com a mesma fundamentação dos direitos do homem. No terceiro processo, com o zelo de explicitarse o contexto social originador dos direitos, demonstra-se a passagem do homem genérico para o homem específico, de acordo com o status social ocupado em decorrência de diversos critérios de diferenciação (sexo, idade, condições físicas etc.), de modo que se possa proteger e igualar a todos, tratando e protegendo de forma diferenciada os desiguais sociais. Os direitos sociais possuem um caráter de extrema importância, à medida que suas conseqüências irão repercutir sobre os demais aspectos da cidadania. De forma diversa aos direitos civis e políticos que são encarados como exercício individual de direitos e obrigações, os direitos sociais não podem ser obtidos individualmente. Ao contrário, dependem de prestação do Estado ou de associação com outras pessoas que tenham as mesmas necessidades. Neste sentido, anotamos o posicionamento de Roberts (1997) de que a cidadania social depende, então, da disponibilidade de relações sociais e de um certo sentimento de identidade e obrigações comuns. Não é possível agir sozinho para obter serviços que são basicamente coletivos. Não devemos esquecer que não basta o direito legislado; o que mais importa é que o mesmo seja efetivado. Será que o poder público e a própria sociedade conseguirão resolver essas questões? Será que não mais veremos crianças mendigando e sendo “alugadas” para tal fim em nossas ruas? Será que conseguiremos recuperar a dignidade dessas crianças? Não podemos esquecer da máxima de Jhering (1985, p. 1): “A paz é o fim que o direito tem em vista, a luta é o meio de que se serve para o conseguir (...) A vida do direito é uma luta: luta dos povos, do Estado, das classes, dos indivíduos.” Continuemos a “luta” para que o menor deixe de ser visto apenas como infrator, e passemos a encarar a realidade de que a própria sociedade o faz vítima nesta selva em que vivemos! BIBLIOGRAFIA ALTOÉ, Sônia. De “menor” a presidiário: a trajetória inevitável? Rio de Janeiro: Universitária Santa Úrsula, 1993. BECCARIA, Cesare Bonesana Marchesi di. Dos Delitos e das Penas. Trad. Flório De Angelis. Bauru, SP: EDIPRO, 1993. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. CARRARA, Francesco. Programa do curso de direito criminal; parte geral, v. 1. São Paulo: Saraiva, 1956. CRUZ, Sônia Cristina Guerra Vasconcellos da. O Perfil do menor infrator e sua trajetória ao crime. Rio de Janeiro: Monografia apresentada no curso de Mestrado da Universidade Gama Filho, 1997. FERNANDES, Newton, FERNANDES, Valter. Criminologia Integrada. 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