A Massificação Póstuma de Cristiano Araújo Luis Fernando Rabello Borges* No dia 24 de junho de 2015, o assunto mais noticiado no país, seja em sites ou telejornais, foi a morte do cantor Cristiano Araújo, aos 29 anos, vítima de um acidente automobilístico, que tirou a vida também de sua namorada, Allana Coelho Pinto Moraes, de 19. Afora as circunstâncias trágicas do ocorrido, que ainda por cima envolveram um artista de pouca idade, a repercussão me pegou de surpresa pelo fato de eu não saber de quem se tratava. Não associava o nome à pessoa e às suas músicas. Foi apenas através do noticiário que eu descobri que o cantor era representante do estilo musical denominado sertanejo universitário e que possuía alguns sucessos no rádio e na internet, conquistados em uma carreira que não chegou a 4 anos. Tomado pela curiosidade de saber um pouco mais sobre alguém que de fato eu não conhecia, mas cujo falecimento estava sendo tão alardeado, passei a navegar na internet em busca de outras matérias, à medida que iam sendo publicadas naquele dia e nos dias seguintes. E aí me dei conta de que eu não era o único a estar fora de sintonia com a principal notícia do jornalismo digital e televisivo daquela semana. Em várias matérias, era relatada a grande quantidade de pessoas que igualmente desconheciam a existência de Cristiano Araújo. Ao mesmo tempo, porém, apresentavam números expressivos obtidos pelo cantor em termos de vendagem de discos, público de shows e visualizações em sites como o YouTube. Números que justificavam perfeitamente o destaque dado à morte do artista no noticiário nacional. Mas aí fiquei me perguntando: como alguém que atingiu tamanho sucesso comercial, e cuja morte gerou comoção em tantas pessoas, não era conhecido por outras tantas? * Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais, Mestre, Doutor e Pós-Doutor em Sociologia. 83 Revista Sociologia em Rede, vol. 6 num. 6, 2016 Movido por essa indagação, copiei esses vários links e compilei os mesmos em uma mensagem de texto enviada para mim mesmo. Fiz isso por fazer, enquanto uma mera curiosidade pessoal. Mas não tardei a perceber ali um assunto academicamente instigante. A compilação de textos feita por mim de forma inicialmente informal constituía, na verdade, um corpus que, a meu ver, se justificava plenamente enquanto objeto de pesquisa. Confesso que não me vem à memória outro caso similar de contradição entre sucesso e anonimato, não ao menos um caso tão explícito como esse materializado por Cristiano Araújo. Estávamos diante de alguém que era um artista de sucesso, mas não um artista de massa. Que havia motivado muitas pessoas a comprarem seus discos, comparecerem a seus shows, visualizarem seus vídeos no YouTube e a cantarem suas músicas. Mas que, ainda assim, não havia conseguido fazer com que o seu nome, a sua “marca”, se fixasse no imaginário da população brasileira em um sentido mais amplo. O que foi acontecer de fato apenas a partir de sua morte. Uma verdadeira “massificação póstuma”. Essa contradição entre sucesso e anonimato ganhou ares de polêmica a partir de um comentário realizado por Zeca Camargo no “Jornal da Dez”, do canal de televisão a cabo Globo News. Ele afirmou que Cristiano Araújo “talvez tenha morrido cedo demais para provar que poderia ser uma paixão nacional” e, listando mortes como a do piloto de Fórmula 1 Ayrton Senna e do grupo musical humorístico Mamonas Assassinas, indagou “como, então, fomos capazes de nos seduzir emocionalmente por uma figura relativamente desconhecida?”. Essas observações acabaram provocando uma discussão bastante acalorada nas redes sociais, em que fãs e mesmo outros artistas representantes do sertanejo universitário protestaram de forma indignada contra o posicionamento de Zeca Camargo, enquanto outros internautas deram razão ao jornalista. Além de gerar esse conflito, motivou o surgimento de outras muitas e diversificadas matérias a respeito da morte de Cristiano Araújo, incluindo algumas das que foram coletadas por mim na ocasião e que posteriormente deram origem à ideia deste artigo. Dentre essas matérias, figuram desde aquelas veiculadas em portais noticiosos de grande porte até textos publicados em sites e blogs especializados em música. Breve análise de matérias sobre a morte de Cristiano Araújo “Sertanejos protestam após crítica de Zeca Camargo sobre Cristiano Araújo” é o título de uma matéria publicada no portal do UOL, em 29/06/2015, e que dedica-se justamente a esmiuçar a polêmica resultante do comentário realizado pelo jornalista no 84 Revista Sociologia em Rede, vol. 6 num. 6, 2016 “Jornal das Dez”, da Globo News. Sem tomar um posicionamento explícito para um lado ou outro, a matéria – não assinada – simplesmente reproduz o conteúdo de postagens indignadas de duplas como Fernando & Sorocaba e Henrique & Juliano, complementada com postagens de internautas, tanto contrários quanto a favor do ponto de vista de Zeca Camargo – cujo título da matéria define como uma “crítica sobre Cristiano Araújo”. Vale destacar uma informação, no meio do corpo do texto da matéria, segundo a qual o cantor “foi o artista mais ouvido da Rádio UOL em 2014”. Um posicionamento contrário às declarações de Zeca Camargo sobre a morte de um representante do sertanejo universitário pode ser encontrado, curiosamente, em um site chamado Guitar Talks 1 , que no nome já denota um direcionamento mais especificamente voltado ao rock. Em compensação, nessa sua matéria publicada em 06/07/2015, Diogo Dias trata de deixar claro o seu ponto de vista já no título “Sobre os profetas da cultura ideal” e no subtítulo “Quando a subjetividade de críticos consagrados escancara o elitismo cultural e a falta de preparo”. Sob o argumento de que “não se pode julgar qualidade levando em conta apenas a subjetividade”, no decorrer do texto o autor vai ainda mais além, ao considerar que Zeca Camargo estaria “desdenhando da comoção popular pela morte de Cristiano Araújo e nos mandando chorar por 'ídolos de verdade'“. Este e também um texto em que o jornalista André Forastieri teria dito preferir enfiar arame farpado nos ouvidos do que ouvir Bob Marley, jamaicano falecido em 1981 que foi o principal nome do reggae e maior responsável pela divulgação do estilo no mundo, seriam, para Diogo Dias, “dois exemplos de como a crítica fundamentada na subjetividade é pobre e excludente”. Para ele, nesses casos “os colunistas opinam de longe, escondidos numa suposta erudição que lhes daria o direito de diminuir manifestações culturais que não estão nos livros e discos das suas estantes. Triste”. Curiosamente, o único comentário postado na página em que a matéria se encontra no site Guitar Talks – quase 1 mês depois, em 01/08/2015 – contrapõe as considerações de Diogo Dias. Em seu comentário, Leonard de Paula Moura começa dizendo “me desculpe, amigo, mas parece que você não entendeu o texto do Zeca. Em nenhum momento ele julga a qualidade do trabalho de Cristiano Araújo” e finaliza com a afirmação de que, “se a música é boa ou ruim, isso não foi abordado no texto”. O blog Na Mira do Regis, hospedado no portal do Yahoo e com predomínio de 1 No mesmo site, há também uma matéria factual sobre o ocorrido, intitulada “Morre aos 29 anos o cantor e compositor Cristiano Araújo” e publicada no mesmo dia 24/06/2015 em que aconteceu o acidente. 85 Revista Sociologia em Rede, vol. 6 num. 6, 2016 postagens sobre rock, também saiu na defesa de Zeca Camargo – e sobretudo partiu para o ataque ao sertanejo universitário. Antigo editor-chefe de revistas de rock como Cover Guitarra e Mosh, Regis Tadeu postou em 22/07/2015 o texto “A burrice reinante na música brasileira realmente popular é mais perigosa do que você imagina”, que nem é apenas sobre sertanejo universitário e dedica apenas um parágrafo sobre a morte de Cristiano Araújo e o rebuliço deflagrado pelas declarações de Zeca Camargo, mas deixa claro o seu ponto de vista – expresso ao longo do texto inteiro – sobre as limitações interpretativas e a postura coercitiva – via redes sociais – dos atuais consumidores de música no país. Segue na íntegra o parágrafo: “A total falta de capacidade cerebral deste público foi tornada explícita recentemente com a tal polêmica a respeito do que o Zeca Camargo disse e, principalmente, no apoio que a iniciativa dos pais do falecido Cristiano Araújo – que, sabe-se lá por quê, resolveram processar o apresentador da Globo – vem recebendo por parte deste mesmo público retardado que citei anteriormente. Quase ninguém realmente entendeu o que o Zeca falou”. Saindo agora das referências à polêmica envolvendo Zeca Camargo, e contemplando sob outros ângulos o estardalhaço da cobertura do acidente que vitimou um cantor desconhecido de muitos, cabe destacar a coluna de Tony Góes no site do jornal Folha de São Paulo – site vinculado ao portal UOL – em 25/06/2015. Intitulado “Morte de Cristiano Araújo expõe abismo cultural”, o texto começa destacando que a cobertura do ocorrido pela Rede Globo de televisão provocou a interrupção da “Sessão da Tarde”, tradicional espaço destinado pela emissora nessa faixa de horário de segunda a sexta para a transmissão de filmes – geralmente direcionados a um público infantojuvenil – e que, nos dois últimos anos, isso teria acontecido apenas duas vezes, quando do ápice das manifestações de rua contra o governo federal (e “contra tudo o que está aí”), em julho de 2013, e quando da morte do então candidato à Presidência da República Eduardo Campos em acidente de avião ocorrido em agosto de 2014. Tony Góes lembrou, ainda, que a primeira matéria do “Jornal Nacional”, da mesma emissora, em sua edição do dia do falecimento do cantor, foi sobre o assunto, dedicando mais de 10 minutos ao mesmo, além de 2 entradas ao vivo em outros blocos. O colunista usa essas informações como gancho para falar do desconhecimento que muitos tinham da existência do cantor, estabelecendo uma relação de contraste entre a intensidade da cobertura jornalística de sua morte e a sua condição de “quase anônimo em alguns círculos”. A propósito desse anonimato, Tony Góes menciona inclusive um episódio ocorrido no “Encontro com Fátima Bernardes”, programa veiculado nos finais das 86 Revista Sociologia em Rede, vol. 6 num. 6, 2016 manhãs de segunda a sexta pela mesma Rede Globo, em que a apresentadora se referiu ao episódio falando em “Cristiano Ronaldo”, confundindo o cantor com o jogador de futebol português, destaque da seleção de seu país e do clube espanhol Real Madrid. Na edição nacional do jornal El País, no mesmo 24/06/2015 da morte do artista, foi publicado um texto em que a contradição entre sucesso e anonimato é explorada já no título: “Cristiano Araújo, o cantor que ninguém conhecia, exceto milhões”. Enquanto dá continuidade à abordagem dessa contradição ao longo de seu texto, Felipe Betim traz alguns dados sobre a popularidade do músico – 6,3 milhões de seguidores em sua página oficial do Facebook – e do que ele chama de “pop sertanejo” em geral – a presença de 5 álbuns do estilo na lista dos 15 com mais downloads no iTunes. Menciona também o sucesso mundial de “Ai Se Eu Te Pego”, de Michel Teló, e afirma que os representantes do pop sertanejo “aparecem hoje nos primeiros lugares de todas as listas de canções mais tocadas nas rádios do Brasil e estão entre as mais baixadas da Internet”. Por sua capacidade de fazer “lotar festas e shows em todo o país”, o pop sertanejo seria, para ele, “um pilar do negócio musical após a crise das gravadoras”. Com base nesses conteúdos, o autor do texto defende a ideia de que o fato de Cristiano Araújo se tratar de um desconhecido para um número considerado de pessoas, apesar de todo esse seu sucesso comercial, se deve ao quadro de desigualdade social historicamente reinante no país, que se reflete também em âmbito cultural, em que se constituiu uma “elite” composta por representantes da classe média tradicional, sobretudo oriundos do eixo Rio-São Paulo, e apreciadora de rock e MPB. Seria essa elite as pessoas que não sabiam da existência do cantor. Afirmando que, “para a indústria musical, esse público interessa cada vez menos”, o jornalista aponta fenômenos como a crescente popularização da música sertaneja desde o início da década de 1990 e a ascensão de uma nova classe média de cerca de 40 milhões de pessoas que saíram da zona de pobreza e passaram a se tornar consumidores nos anos 2000. Citando entrevista concedida por Hermano Vianna ao jornal O Estado de São Paulo, o texto ainda lembra da “revolução digital” ocorrida desde o início deste século, que, segundo o sociólogo, levou ao desmoronamento do império das gravadoras, por conta das possibilidades de gravação em estúdios caseiros e de distribuição via internet sem depender de rádio e televisão. Somados aos circuitos culturais existentes em pequenas cidades afastadas dos grandes centros urbanos, esses seriam os fatores encontrados por Felipe Betim para explicar o sucesso do pop sertanejo e o desconhecimento de Cristiano Araújo por parte de pessoas que, segundo ele, vivem em uma “bolha cultural”. 87 Revista Sociologia em Rede, vol. 6 num. 6, 2016 O argumento de “elite cultural” levantado por Felipe Betim remete aos estudos de Pierre Bourdieu sobre formação do gosto – incluindo aí o gosto musical. Para o sociólogo francês, gosto não se trata de algo que a pessoa traz consigo de nascença, correspondendo na verdade a uma construção social e cultural que, ao fim e ao cabo, atua no sentido de reforçar distinções de classe e fomentar relações de poder. Gosto não é inato. Portanto, deve ser discutido – ao contrário do que apregoa aquela máxima de que “gosto não se discute”. Em seu livro A distinção – crítica social do julgamento (2007), Bourdieu observa que a noção de gosto surgiu com a de civilização, na Europa renascentista do século XVI, de forma a estabelecer distinções tão sutis quanto claras a respeito do comportamento “civilizado” da nobreza, em oposição ao que se podia observar na plebe e em habitantes de outros continentes – que então estavam passando exatamente pelos processos de “descoberta” e “colonização” por parte de países europeus. Desde essa época, gestos, vestimenta, culinária e demais itens de “etiqueta” passaram a ser utilizados para estabelecer diferenciações entre o “bom gosto” de classes sociais mais privilegiadas e o “mau gosto” inerente aos grupos mais desfavorecidos da sociedade. Como em toda a obra de Bourdieu, temos aí mais uma vez um cenário de relações de poder, de dominação, disputas culturais, entre grupos armados com seus respectivos capitais, não apenas econômicos, mas também culturais, sociais e simbólicos, cada qual querendo assegurar a supremacia e domínio sobre determinado campo. No caso específico do gosto, a definição de valor envolvendo qual é o “bom” em oposição ao que é “mau” é resultado de todo um processo de violência simbólica. No entanto, essa relação é dinâmica, como aliás o é a cultura propriamente dita. Há brechas para que aquilo que é tido como algo marginalizado ascenda à condição de “elite”, e vice-versa. Exemplos disso são estudados pelo próprio Hermano Vianna. Em seu livro O mistério do samba (1995), resultante de sua tese de doutorado, o antropólogo demonstra como esse estilo musical surgido entre descendentes de escravos africanos passou de uma condição de marginalidade para ser tomado como a principal representação da brasilidade como um todo – como se fosse possível a caracterização homogênea de algo tão heterogêneo como a cultura brasileira. O samba acabou se tornando a base do que hoje conhecemos por MPB, sigla que ambiciosamente significa “música popular brasileira” e que designa um estilo musical indubitavelmente “elitista” – cujo público constitui a tal “elite cultural” que, segundo Felipe Betim, torce o nariz para manifestações populares como o sertanejo universitário, como se não fosse essa a origem do samba e, por extensão, da MPB. Curioso é que, alguns anos antes, o mesmo 88 Revista Sociologia em Rede, vol. 6 num. 6, 2016 Hermano Vianna elaborou uma dissertação de mestrado que resultou no livro O mundo funk carioca (1988) e cujo objeto é um estilo musical oriundo das mesmas procedências étnicas, sociais e geográficas (negros pobres cariocas), mas que, ao contrário do samba, não conseguiu – ao menos por enquanto – ascender a um status de elite e acumular capitais não-econômicos como o social, o cultural e o simbólico. Um contraponto à defesa do sertanejo universitário realizada por Felipe Betim é tecido por Alex Antunes em seu blog de mesmo nome – e que, assim como o de Regis Tadeu, encontra-se hospedado no portal do Yahoo. O antigo jornalista da finada revista Bizz, talvez a mais célebre publicação impressa mensal de rock no país, inclusive menciona no próprio corpo de sua postagem o link do texto publicado em El País, assim como o do de Tony Góes veiculado na Folha de São Paulo – aliás, foi através do texto de Alex Antunes que eu tomei conhecimento de ambos. Mas nessa sua postagem, publicada em 26/06/2015 e intitulada “Não sei quem é Cristiano Araújo – e nem quero saber”, o contraponto não é necessariamente no sentido de condenar o sertanejo e endeusar a MPB. Alex Antunes também critica a noção de “bom gosto” associada às elites, definida por ele como “classista e pateta”, e diz não gostar de Cristiano Araújo da mesma forma que o faz com relação a artistas pop internacionais como o DJ David Guetta e medalhões da MPB como João Gilberto, tido como o criador da bossa-nova. Chega a citar um outro texto de sua própria autoria, “Porque eu amo Michel Teló”, publicado em 10/01/2012, em que justifica esse seu amor não pelos atributos musicais do intérprete de “Ai Se Eu Te Pego”, a quem diz sequer ter ouvido, e sim pelas reações de indignação provocadas nos representantes e defensores da elite cultural. Mas, ao mesmo tempo, não se furta a (1) considerar que a cobertura da morte de Cristiano Araújo foi exagerada; (2) afirmar que o cantor era ainda um “artista ascendente, e não um sucesso consumado, como o citado Teló” – razão pela qual não chegou a passar por aquilo que Alex Antunes chama de “dispositivo de validação cultural”; (3) se posicionar sobre características estéticas e sociais do sertanejo universitário, para ele “um gênero 'limpinho'2 demais e totalmente patriarcal”; e (4) associar a intensidade da cobertura jornalística realizada particularmente pela Rede Globo – em que cita os exemplos levantados por Tony Góes, inclusive disponibilizando o link para o texto deste – com o fato de todo o catálogo de gravações de Cristiano Araújo pertencer à Som Livre, gravadora vinculada ao grupo empresarial fundado por Roberto Marinho. “Nada melhor 2 No sentido de adotar, cada vez mais, critérios de produção da música pop, em detrimento dos da música caipira, conforme relato que Alex Antunes diz ter ouvido de um produtor musical. 89 Revista Sociologia em Rede, vol. 6 num. 6, 2016 do que a morte para revirar o estoque. E isso, sim, cheira mal”. Assim, o jornalista diz ter ficado com “uma sensação de 'comoção fabricada'“. Mas, ainda no mesmo texto de Alex Antunes, é levantada uma outra possibilidade de entendimento da contradição envolvendo a cobertura intensa da morte de um artista desconhecido por muitos. Citando a Teoria da Cauda Longa, criada em 2004 por Chris Anderson, o jornalista afirma que os hábitos de consumo de produtos culturais estão mais horizontais e segmentados. A verticalização representada pelo “mainstream”, por artistas massificados, vai perdendo sua força e seu poder de hierarquização. As noções de “mais importante” e “menos importante” vão se esvaindo. Por conta disso, Alex Antunes conclui que “o pop sertanejo é apenas mais um nicho, não um novo centro. Não haverá um novo centro”. Seria esse o caso de Cristiano Araújo. Por mais expressivos que sejam os números divulgados nas matérias citadas anteriormente no sentido de demonstrar o sucesso comercial obtido pelo cantor em sua carreira abruptamente abreviada, ele não chegou a conseguir ultrapassar o nicho de público de apreciadores do sertanejo universitário e se tornar um artista massificado como Michel Teló e sua “Ai Se Eu Te Pego”. O sucesso de Cristiano Araújo, e mesmo a repercussão de sua morte, porém, atestam o quanto o nicho do sertanejo universitário é hoje um nicho numeroso. Ainda assim, um nicho. Dessa forma, Cristiano Araújo seria um típico representante do que pode ser chamado aqui de “massificação de nicho”. Em entrevista concedida a Bruce William e publicada no site de rock Whiplash em 09/07/2015, sob o título “Lobão: disco, Dilma, maioridade penal e morte de Cristiano Araújo”, o cantor e compositor reforçou a ideia do fim da verticalização cultural, comentando que até mesmo as novelas veiculadas pela Rede Globo hoje seriam sinônimo de segmentação, e não de massificação. “A novela tem uma audiência muito específica agora. Não é mais o Brasil inteiro”. Lobão afirmou que não conhecia Cristiano Araújo, e que apenas após sua morte ficou sabendo que “ele era da Som Livre, que tinha tocado em novela”. No site Floga-se, mais especificamente na seção “Pense ou Dance” dessa mesma publicação musical gerenciada por Fernando Augusto Lopes, o texto “Exaltação à ignorância”, de 25/06/2015, em seu último parágrafo, complementa essa ideia de segmentação dizendo que “não dá pra saber de tudo ou conhecer tudo. Somos ignorantes por segmentos”. Mas aí vem a questão que permeia o texto como um todo: “pra quê fazer dessa ignorância algo público? Pra quê exaltá-la e achar que isso é uma vantagem?”. O mote dessa indagação, como não poderia deixar de ser, é a contradição 90 Revista Sociologia em Rede, vol. 6 num. 6, 2016 entre o sucesso e o anonimato de Cristiano Araújo revelada pela estrondosa cobertura de sua morte. Fernando Augusto Lopes se mostra contrário às manifestações em que o desconhecimento da existência do cantor era apresentado como algo positivo. O autor enfatiza que não conhecia esse e outros artistas do tipo, mas que isso, em suas palavras, “só revela a minha ignorância em música popular”. Assume que isso, para ele, “não é um problema, afinal não gosto desse tipo de música, não vou atrás”, demarcando assim o seu posicionamento a respeito. Mas condena o desprezo aos representantes da música popular e à relevância dos mesmos para a cultura e o mercado. “Exaltar o desconhecimento de um artista que causa comoção em seu público não é exatamente um sinônimo de inteligência e nível cultural elevado”. Fernando Augusto Lopes lança mão do mesmo argumento de “elite cultural” apresentado em outros textos abordados neste artigo para estabelecer um contraponto entre uma cultura “elevada” que “se arrasta e sofre pra conseguir vender mais de mil cópias por trabalho” e uma cultura popular composta por movimentos articulados que podem ser encontrados de norte a sul do país e que “não tem pudores em criar diálogo com o seu público”, fazendo a música circular e chegar até seus consumidores. “O dinheiro acontece, os shows acontecem e têm público. Quem está errado?”. Sem deixar de ponderar que “Não quer dizer que você precise gostar desse produto, ou que o artista não possa dar uma banana pra isso e criar uma arte que seja de difícil assimilação, que quebre estruturas, que questione tudo”, o autor valoriza números e dados que demonstram o sucesso conquistado por Cristiano Araújo, como os mesmos seguidores de sua página oficial do Facebook alardeados por Felipe Betim (que segundo o texto do Floga-se são 7 milhões, enquanto o de El País divulgou 6,3 milhões) e o posto de 12º música mais tocada nas rádios do país em 2014 conquistado por “Maus Bocados” segundo dados do ECAD – Escritório Central de Arrecadação e Distribuição. Fernando Augusto Lopes traz outros exemplos, seja de colegas de sertanejo universitário ou da chamada música gospel, divulgando só alguns artistas e só a quantidade de seguidores de suas respectivas páginas oficiais do Facebook. Do sertanejo universitário, destaca Eduardo Costa (6,9 milhões), Lucas Lucco (11 milhões) e Marcos & Belutti (4,4 milhões); e, da música gospel, menciona Rosa de Saron (2,3 milhões), Rose Nascimento (4,4 milhões), Thalles Roberto (7,8 milhões) e Mariana Valadão (3,1 milhões). Complementando que os três exemplos citados do sertanejo universitário também aparecem na lista dos mais executados do ECAD de 2014, o autor conclui que “não é popularidade apenas de rede social”. Por fim, vale 91 Revista Sociologia em Rede, vol. 6 num. 6, 2016 referir dois episódios presentes no texto “Exaltação à ignorância”. O primeiro aconteceu em show de Gaby Amarantos no Festival Cultura Inglesa de 2015, em que a cantora paraense foi xingada por pessoas da plateia por misturar a batida de seu tecnobrega com trechos de bandas de rock como The Clash e Smiths. “Uma é cultura “elevada”; outra, a popular, não. Pra esses jovens, as duas não podem se bicar”. O segundo diz respeito a algo semelhante ao que aconteceu com Cristiano Araújo quando, no Grammy de 2011, o prêmio de melhor álbum do ano foi concedido ao Arcade Fire, pegando de surpresa diversas pessoas que não sabiam da existência do grupo canadense. Reconfiguração do mercado da música nos anos 2000 e cultura pop Como foi possível perceber, a contradição entre o sucesso obtido por Cristiano Araújo e o fato de o seu nome ser desconhecido de muitos foi explorada pela totalidade dos textos abordados até aqui. Cada um a seu modo, com suas diferenças e especificidades de enfoques e informações, tal contradição se faz presente em todos eles, que assim, na medida em que intensificaram a divulgação da notícia da morte do cantor, fazendo com que mais pessoas tomassem conhecimento do nome dele, contribuíram para constituir a “massificação póstuma” de Cristiano Araújo. E essa “massificação póstuma” está diretamente relacionada à reconfiguração da indústria fonográfica ocorrida a partir do início dos anos 2000 com as possibilidades de digitalização da música e o compartilhamento dos arquivos de áudio pela internet. Trata-se de um assunto que marca presença em todos os textos analisados neste artigo, seja nas entrelinhas ou mesmo de forma um pouco mais direta, como é o caso daqueles escritos por Felipe Betim e Fernando Augusto Lopes respectivamente em El País e Floga-se, quando se referem aos movimentos articulados e conectados de artistas e produtores que fazem uso do computador tanto para gravar músicas quanto para distribuí-las via internet. Ao invés de ficarem esperando pela grande mídia, fazem uso daquilo que Eloy Fernández Porta chama de “metamídia” (2010). Esses movimentos, que configuram aquilo que o autor espanhol chama de “afterpop” (FERNÁNDEZ PORTA, 2012; SILVEIRA, 2013), podem ser encontrados em vários locais afastados dos grandes centros urbanos e espalhados de cima a baixo do mapa do país. São os casos da música gauchesca no Rio Grande do Sul, do funk carioca no Rio de Janeiro:da axé-music na Bahia e do tecnobrega no Pará. E é também o caso do sertanejo universitário, que desde a segunda metade dos anos 2000 marca forte presença no interior de estados como Mato Grosso, Goiás e Mato Grosso do Sul, 92 Revista Sociologia em Rede, vol. 6 num. 6, 2016 descendo o mapa para o sudoeste paranaense, oeste catarinense e norte/noroeste gaúcho. Sendo o sertanejo universitário um representante da cultura afterpop, cabe agora falar do que veio antes desse “after”. A cultura pop é resultante do advento do rock na década de 1950 (VILLAÇA, 2002), que impulsionou decisivamente não apenas a indústria do entretenimento musical em particular, mas também a indústria do entretenimento como um todo. Na mesma época, a televisão já havia se consolidado nos Estados Unidos. Esse foi o contexto ideal para que Elvis Presley fizesse um sucesso que poucos executivos de gravadora esperavam – inclusive da RCA, que o havia contratado junto à Sun Records, de Sam Philips. Mas, a partir do momento em que aquele jovem branco bonito de voz negra começou a apresentar sua mistura espontânea de blues e country dançando e se requebrando na televisão, foi deflagrado o surgimento de todo um movimento que não era só música, mas também comportamento e vestimenta. Não era só som, mas também imagem. Não era só arte, mas também cultura. Uma verdadeira “cultura pop” (SOARES, 2013). Cultura no sentido não só artístico, mas também antropológico. O fundamental nisso foi a descoberta de um público de potenciais consumidores que até então era ignorado. Produtos de consumo eram pensados ou para crianças ou para adultos. O máximo que se aproximava de música jovem na época era Frank Sinatra. Com o sucesso de Elvis e de todos os outros que vieram em sua esteira, fossem eles negros, feios e “velhos” (quase na faixa dos 30 anos) que já faziam rock antes dele, como Chuck Berry e Little Richard, ou outros jovens brancos bonitos como Jerry Lee Lewis, o público jovem finalmente passou a se sentir contemplado, e a indústria do entretenimento – musical ou não – finalmente percebeu um público ávido por aquele tipo de produto. A lógica da indústria do entretenimento já estava toda aí: em um primeiro momento, a desconfiança e o descrédito; em um segundo momento, quando da percepção de que algo “dá certo”, o investimento maciço e a procura por novos astros do gênero. Foi através desse fenômeno que surgiu a “cultura jovem”, em que este foi “inventado” enquanto público potencialmente consumidor. Consumo que, por sua vez, impulsionou o desenvolvimento da indústria de discos e de diversos outros produtos. É o que Theodor Adorno e Max Horkheimer (1969), teóricos vinculados à Escola de Frankfurt, denominaram “indústria cultural”. Cabe lembrar, porém, que esse conceito foi concebido entre fins da década de 1930 e início da de 1940, ou seja, muito antes do surgimento do rock e até mesmo da popularização da televisão. As “fontes de inspiração” da “indústria cultural” foram o jazz e o rádio. O conceito traz uma carga 93 Revista Sociologia em Rede, vol. 6 num. 6, 2016 bem negativa, como que designando a transformação da cultura em uma indústria. Segundo os teóricos alemães, a produção e reprodução em série de produtos artísticos leva necessariamente ao esvaziamento de seu valor simbólico, transformando os mesmos em meras mercadorias. Eles não concordavam com seu conterrâneo e contemporâneo Walter Benjamin (1969) quando este dizia que a reprodutibilidade técnica poderia trazer novas possibilidades de percepção estética. Na verdade, “indústria cultural” foi uma outra definição dada pelos teóricos frankfurtianos ao então já existente conceito de “cultura de massa”. Essa mudança enfatizava o caráter negativo de “massificação” da sociedade, tomada assim como algo homogêneo e acrítico. Durante um bom tempo, o conceito de “indústria cultural” exerceu forte influência nos estudos teóricos em comunicação (WOLF, 1995). No entanto, desde fins dos anos 1970 e início dos 1980 caiu em descrédito (MATTELART e MATTELART, 2004), contestado por pesquisas que valorizavam o papel ativo e heterogêneo do receptor, realizadas pelos britânicos “cultural studies” da Escola de Birmingham – que tem em Stuart Hall o seu principal expoente – e por autores como o francês Michel de Certeau e os latinoamericanos Jesús Martín-Barbero e Néstor García-Canclini. O próprio rock é capaz de contrariar os postulados da “indústria cultural”, por conta dos desdobramentos pelos quais passou e tem passado no decorrer de sua já sexagenária história. A partir da primeira metade dos anos 1960, com o surgimento de artistas como os Beatles na Inglaterra e Bob Dylan nos Estados Unidos, o rock passou a incorporar um leque mais amplo de possibilidades de melodias, harmonias e letras. Até então, o rock era essencialmente um “blues acelerado”, música para dançar, obedecendo a uma mesma sequência básica de três acordes e apresentando letras sobre festas, carros, motos e relacionamentos – em uma repetitividade perfeitamente possível de ser rotulada através do conceito de “indústria cultural”. Porém, a expansão dos horizontes sonoros e textuais do rock paradoxalmente impulsionou ainda mais a indústria do entretenimento – sobretudo por conta do sucesso dos Beatles – e, de quebra, fez com que a partir da segunda metade da mesma década começassem a surgir várias ramificações do rock, que passou a apresentar a sua capacidade de englobar outros estilos musicais das mais diversas localidades do mundo – e ser englobado por eles –, em um processo que intensificou ainda mais as revoluções de costumes promovidas pelo rock e faz com que o gênero siga se perpetuando. Por conta dessa capacidade mimética do rock, que contraria a homogeneidade apregoada pelos teóricos da Escola de Frankfurt, e do fato de o rock ainda sequer existir quando foi 94 Revista Sociologia em Rede, vol. 6 num. 6, 2016 cunhado o conceito de “indústria cultural”, é curioso perceber o quanto tal conceito é utilizado em trabalhos acadêmicos sobre rock. No caso específico da música brasileira, o conceito de “indústria cultural” não se aplica a vários estilos. Um exemplo é a chamada música brega (JOSÉ, 2002) ou cafona (ARAÚJO, 2002) das décadas de 1970 e 1980. Basta mencionar artistas como Odair José, Márcio Greyck, Reginaldo Rossi, Paulo Sérgio, Wando, Luiz Ayrão, Benito Di Paula, Waldik Soriano, Agnaldo Timóteo, Sidney Magal, Amado Batista, José Augusto, Fernando Mendes, Roupa Nova e Yahoo, entre tantos outros. Fabricados ou não, juízos de valor à parte, trata-se de artistas completamente diferentes entre si, com identidade musical própria, com alguns deles apresentando diferenças inclusive ao longo de seus próprios discos. Esse é o caso também da discothèque de fins dos anos 1970 representada por sucessos cantados pelas Frenéticas e por Lady Zu e sobretudo do rock brasileiro dos anos 1980 – posteriormente rotulado como BRock. Em sua crítica à ideia de massificação e à noção de “cultura superior e inferior” apregoada por teóricos da “indústria cultural” como Adorno e posteriormente também por pesquisadores como Pierre Bourdieu, Richard Shusterman considera que a “arte popular” é sim digna de ser avaliada a partir do estabelecimento de critérios puramente estéticos. Em seu livro Vivendo a arte (1998), Shusterman não deixa de reconhecer os méritos de Bourdieu em apontar os mecanismos através dos quais o gosto é imposto de cima para baixo por grupos dominantes, tornando-se assim um instrumento de poder, em um processo que vem ocorrendo há cerca de meio milênio. No entanto, o autor norte-americano aponta de forma implacável que o teórico francês acaba “se traindo” ao associar “bom gosto” às elites e “mau gosto” às classes menos abastadas, como se estas não tivessem a mínima condição de desenvolver percepção estética, ou como se estética fosse qualidade exclusiva de produtos culturais e artísticos de origem aristocrática ou proveniente de grupos sociais mais endinheirados, instruídos e escolarizados. Shusterman desenvolve a ideia de que a “arte popular” é também passível de fruição estética tomando como exemplo de estilo musical o rap nova-iorquino, o que curiosamente coloca o autor em paralelo com Hermano Vianna e seus estudos sobre o funk carioca, que possui as mesmas origens de etnia e classe social. Tanto o rap quanto o funk são oriundos de zonas suburbanas de grandes metrópoles. Sem deixar de reconhecer eventuais limitações estéticas da “arte popular”, Shusterman (1998) defende a possibilidade e mesmo a necessidade de elaboração de critérios artísticos para a sua avaliação inclusive com vistas a realizar aquilo que ele 95 Revista Sociologia em Rede, vol. 6 num. 6, 2016 chama de “meliorismo”, ou seja, o aperfeiçoamento constante dos atributos estéticos de produtos simbólicos massificados e reproduzidos em série. A propósito, o termo “indústria cultural” sugere justamente uma produção em um esquema de “linha de montagem”, resultando em produtos “homogêneos” e “padronizados”. Definitivamente, não é esse o caso dos exemplos mencionados no parágrafo anterior. Porém, foi o que passou a acontecer a partir da virada dos anos 1980 para os 1990, com o chamado “breganejo” de Leandro & Leonardo e Zezé Di Camargo & Luciano, com o pagode romântico e a axé music de meados daquela década e, por fim, com o sertanejo universitário da atualidade. Antes disso, quando muito a Jovem Guarda poderia se enquadrar nessa definição. Mas esses exemplos surgidos nos últimos 25 anos mostram que, curiosamente, o conceito de “indústria cultural” faz algum sentido. Mais do que em tempos anteriores. Ao contrário do que Shusterman dá a entender, tal conceito não estaria totalmente ultrapassado. Não é só no Brasil que esse tipo de fenômeno acontece. Em seu autointitulado blog hospedado no portal da Rede Record, André Barcinski postou ao longo de 2015 quatro textos sobre produtores cujos nomes não são conhecidos do grande público, mas que nos bastidores controlam as carreiras de celebridades deste início de século como Katy Perry, Rihanna, Shakira, Britney Spears, Miley Cyrus, P!nk e Kelly Clarkson, entre muitas outras. Os textos em questão são, pela ordem cronológica: “Acha a música pop um lixo? Agradeça a esse cara...”, de 31/03/2015, sobre Dr. Luke; “Música pop: o que a Suécia tem?”, de 06/10/2015, a respeito do sueco Max Martin, com quem Dr. Luke começou a trabalhar; “Goste ou não, esta é a música do ano”, de 08/12/2015, referente a “Lean On”, campeã de acessos no site de streaming Spotify (540 milhões) e no Youtube (852 milhões), de Major Lazer e produzida por Diplo; e “Quem manda na música pop?”, de 09/12/2015, alusivo ao lançamento do livro “The Song Machine – inside the hit factory”, de John Seabrook, crítico da revista The New Yorker e que escreveu justamente sobre esses e outros anônimos que dão as cartas na música pop atual. Também ex-integrante da revista Bizz, André Barcinski enfatiza nessas postagens algumas das características das músicas compostas e produzidas por esses nomes desconhecidos, a exemplo de introduções curtas, pouco tempo de espera para a entrada do refrão, presença de “ganchos” (ou “hooks”) espalhados por toda a gravação, letras simples e podendo ser até mesmo desprovidas de sentido, e um verdadeiro método matemático de separação das sílabas da letra de forma a detectar quais 96 Revista Sociologia em Rede, vol. 6 num. 6, 2016 momentos possuem mais impacto sonoro. Uma das razões dessa verdadeira “linha de montagem”, que acentua as semelhanças entre uma música e outra, é a alegação de que se tornou mais difícil fisgar a atenção do ouvinte em meio a tantas informações com que ele se depara na internet. Da mesma forma que acontece com o sertanejo universitário, trata-se de uma decorrência da reconfiguração do mercado da música ocorrida nos anos 2000, em que as grandes gravadoras concentram esforços em alguns poucos artistas de forma a atenuar riscos de maiores prejuízos financeiros em uma época em que muitos tomam contato com as músicas baixando-as gratuitamente na internet – ou nem isso, acessando-as diretamente via streaming. Nesse sentido, vale mencionar agora uma postagem de outro blog homônimo hospedado no portal da Rede Record, de outro que integrou a equipe da revista Bizz, e de outro André. Em “Por que a indústria fonográfica vai muito bem (e por que não acreditar nas notícias), de 10/05/2013, André Forastieri demonstra com números que o mundo das gravadoras, ao contrário do que dizem os alardeadores da suposta “crise” que as mesmas estariam enfrentando, ainda representa um negócio bastante lucrativo e está longe de ruir. Toma como exemplo o mercado norte-americano, cujos rendimentos em uma década caíram de 11,8 bilhões de dólares para 7,1 bilhões. Uma queda expressiva, mas, além de 7,1 bilhões não ser exatamente um número desprezível, mais da metade desse valor diz respeito à venda de música em formato digital, que não envolve custos com materiais físicos como plástico e papel. “Mais de quatro bilhões de dólares de venda de, basicamente, nada, uns bits carregando música”, nos dizeres de André Forastieri. E no Brasil, segundo ele, a situação não é muito diferente. Calcado em dados da Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI), afirma que a receita de venda de música no país foi de R$ 504 milhões em 2012, aumentando 8,9% com relação a 2011, e que o formato digital representa 27% desse total, o que significa um aumento de 81% da música codificada em bits e uma diminuição de 10% de discos em suporte físico. “Surpresa: o brasileiro paga por música digital. Todos? Não, mas muitos”. A manutenção dos lucros por parte da indústria fonográfica, ou no mínimo a atenuação dos prejuízos vivenciados por ela, ao que parece, tem passado necessariamente pelo investimento maciço em alguns poucos segmentos de música, em um esquema de produção industrial em que há uma grande rotatividade de artistas que despontam e rapidamente podem vir a ceder lugar a outros. Esse é um traço fundamental da reconfiguração – e não exatamente “crise” – do mercado da música 97 Revista Sociologia em Rede, vol. 6 num. 6, 2016 resultante das possibilidades surgidas nos anos 2000 de digitalização e compartilhamento de arquivos de áudio. Trata-se de uma reação dos grandes grupos empresariais de gravadoras, emissoras de rádio e de televisão aberta, aos sites e blogs e outros produtos digitais que constituem aquilo que Eloy Fernández Porta (2010) define como “metamídia” – e possibilita o advento do que o mesmo autor (2012) chama de “afterpop”. Atualmente, essa “linha de montagem” de produção da “grande mídia fonográfica” pode ser exemplificada pelas cantoras do pop internacional mencionadas por André Barcinski ou, atualmente no Brasil, pelo sertanejo universitário. E foi essa “massificação de nicho” que resultou na “massificação póstuma” de Cristiano Araújo, cantor que já fazia sucesso mas ainda não o suficiente para se fixar no imaginário do publico brasileiro de um modo mais geral. Talvez hoje o próprio rock seja um nicho. Talvez sempre tenha sido, na medida em que se voltava para o público jovem, que por definição é um segmento. Nesse sentido, por exemplo, as chamadas “boy bands” e outros cantores e grupos direcionados para meninas pré-adolescentes, por mais massificados que possam ser, estão restritos a um nicho muito específico. E o segmento de público jovem, ao menos no Brasil, talvez seja outro. A “música de festa, para dançar e namorar”, que predomina nas casas noturnas do país atualmente é o sertanejo universitário, que nesse sentido tem ocupado junto à juventude um lugar que já foi do rock. No entanto, a associação entre rock e jovem ainda se faz muito presente no imaginário do estilo musical popularizado por Elvis Presley, inclusive no meio acadêmico. Uma possibilidade interessante de pesquisa seria averiguar em trabalhos científicos sobre rock a presença de referências à “cultura juvenil” – mesmo que na prática o rock hoje talvez não seja necessariamente sinônimo de música jovem. Considerações finais: jornalismo especializado em música diante da “massificação de nicho” Decorrente de toda essa reconfiguração de uma indústria do entretenimento musical que foi fortemente impulsionada pelo advento do rock a partir dos anos 1950, a contradição envolvendo o sucesso comercial de Cristiano Araújo e o fato de muitos tomarem conhecimento da existência de seu nome apenas através da divulgação maciça da morte do cantor pelos veículos midiáticos do país foi amplamente contemplado e discutido pela grande imprensa cultural em geral e também por produtos jornalísticos especializados em rock. 98 Revista Sociologia em Rede, vol. 6 num. 6, 2016 A propósito, cabe observar que mesmo em momentos mais massificados do rock, e mesmo em se tratando de revistas pertencentes a grandes grupos empresariais de comunicação (como é o caso da Bizz, que era publicada pela editora Abril Cultural), produtos jornalísticos especializados em rock – e em música e em cultura em geral – historicamente sempre foram segmentados (MIRA, 2001), consumidos por um nicho de público muito restrito. O mesmo vale, por exemplo, para revistas direcionadas a meninas pré-adolescentes: por mais massificadas que sejam, por mais expressivos que se apresentem os números de venda em banca obtidos por elas, essas revistas contemplam um nicho de público absolutamente específico. No caso de sites de rock como Floga-se, Guitar Talks e Whiplash e dos blogs de Regis Tadeu, Alex Antunes, André Barcinski e André Forastieri, chama a atenção a diversidade de enfoques apresentados. Apesar das raízes roqueiras desses produtos midiáticos digitais, não prevaleceu qualquer tipo de bombardeio ao sertanejo universitário. A única exceção talvez tenha sido a crítica contundente de Regis Tadeu ao que ele considerou uma falta de capacidade de compreensão por parte das pessoas que se manifestaram contrariamente às declarações de Zeca Camargo. De resto, as percepções foram complementares ou divergentes, em maior ou menor escala. Por exemplo, Fernando Augusto Lopes assumiu o seu posicionamento de alguém que não gosta de sertanejo universitário, assim como o fez Alex Antunes, mas o seu texto postado no site Floga-se de um modo geral se aproxima mais do enfoque apresentado pelo texto que Felipe Betim publicou em um veículo de grande imprensa como a versão nacional de El País, dando ênfase ao questionamento de um “elitismo cultural” associado aos detratores de manifestações artísticas populares. Alex Antunes também se mostra contrário a essa “elite” e seu “bom gosto”, mas ao mesmo tempo considera este um argumento inconsistente para enaltecer o sertanejo universitário, trazendo outra possibilidade de entendimento da contradição entre sucesso e anonimato materializada por Cristiano Araújo: a horizontalização de um mercado que assim não possui um centro verticalizador, e sim é constituído de segmentos, de nichos, argumento que também aparece no pequeno trecho da entrevista publicada no site Whiplash em que Lobão fala sobre a morte do cantor. Assim como Fernando Augusto Lopes e seu Floga-se, o texto de Diogo Dias publicado em um site de nome roqueiro como o Guitar Talks expõe um ponto de vista mais favorável do que contrário ao sertanejo universitário, a ponto de inclusive criticar a declaração de Zeca Camargo sobre Cristiano Araújo, igualmente se aproximando mais 99 Revista Sociologia em Rede, vol. 6 num. 6, 2016 de grandes grupos empresariais de comunicação como o El País, o portal do UOL e o site do jornal Folha de São Paulo – representado aqui por coluna assinada por Tony Góes – do que de blogs como os de Alex Antunes e Regis Tadeu. De qualquer forma, e somado às abordagens complementares trazidas por André Barcinski e André Forastieri em seus respectivos blogs, esse conjunto de textos promove uma discussão ampla sobre a “massificação póstuma” de Cristiano Araújo em particular e sobre a reconfiguração do mercado da música em geral. Curioso foi não ter encontrado nenhum texto a respeito publicado em algum site ou blog específico de sertanejo universitário. Aliás, confesso que não conheço nenhum produto jornalístico – seja revista, site ou blog – especializado em qualquer outro estilo de música tida como “popularesca”. No máximo, alguns veículos feitos por fãs, que se dedicam a apenas enaltecer os seus ídolos. Mas estou me referindo a produtos de caráter analítico e reflexivo. E, em se tratando daquilo que Richard Shusterman (1998) define como “arte popular”, não vejo motivos para que isso aconteça. Afinal, conforme falado anteriormente, a música brega ou cafona, por exemplo, apresenta toda uma diversidade de artistas e propostas musicais. Elementos estéticos passíveis de serem analisados e discutidos é o que não falta. A qualidade de letras, melodias, harmonias e arranjos poderia ser perfeitamente avaliada, de forma a serem apontados os seus aspectos positivos e negativos. O mesmo valeria para qualquer outro estilo, a exemplo do sertanejo universitário, por mais repetitivo que possa ser. Repetitividade por repetitividade, o rock nunca deixou de ser analisado e avaliado. Pelo contrário, a existência de um jornalismo cultural sério sobre sertanejo universitário poderia inclusive contribuir para a elaboração de critérios de qualidade e, consequentemente, para o aperfeiçoamento de suas músicas, a partir dos elogios e/ou críticas a que seriam submetidas. O que configuraria justamente aquilo que Richard Shusterman define como “meliorismo”. Talvez alguém possa dizer que artistas e público representantes do sertanejo universitário e de outros estilos “popularescos” de música não possuem interesse nesse tipo de produto midiático. O problema, a meu ver, é jornalistas não se interessarem em criá-los. Caso fossem criados, será mesmo que não haveria público consumidor? Referências ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. 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Essa contradição é explorada com base em conteúdos sobre indústria cultural e cultura pop. Palavras-chave: cultura pop; massificação póstuma; massificação de nicho. Abstract: Through this article, I intend to present a brief analysis of texts published on websites and blogs about the death of Cristiano Araújo, whose intense rebound contrasted with the amount of people who previously did not know about this singer of brazilian country music, despite its commercial success. This contradiction is explored based on content of cultural industry and pop culture. Keywords: pop culture; posthumous massification; niche massification. 103 Revista Sociologia em Rede, vol. 6 num. 6, 2016