Cruz e Sousa à luz de Schopenhauer

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras
de 18 a 21 de outubro de 2010
Cruz e Sousa à luz de Schopenhauer
José Rafael Santana Valadão∗
Todo QUERER nasce de uma necessidade,
portanto de uma carência, logo, de um
sofrimento.
(Arthur Schopenhauer)
Tendo como ponto de partida a visão filosófica de Arthur
Schopenhauer, filósofo alemão do século XIX, cujo foco é direcionado para a
visão do mundo como Vontade e como Representação, será analisada neste
artigo a relação que essa filosofia tem com a obra e com a vida do escritor Cruz
e Sousa. A intenção é desvendar os mistérios que permeiam algumas de suas
poesias, tentando com isso interpretar e analisá-las de acordo com o
pensamento de Schopenhauer. Também associaremos a visão que o filósofo tem
sobre a Arte como sendo obra do Gênio.
A filosofia de Schopenhauer, se considerarmos o seu livro magno O
mundo como Vontade e como Representação, consiste em observar o mundo de um
lado como Vontade e de outro como Representação. Segundo o filósofo, o
mundo se constitui da seguinte forma: de um lado o temos como
Representação, ou seja, a parte exterior do mundo, independente ou não do
princípio de razão, do outro a Vontade como a essência íntima do mundo. A
representação submetida ao princípio de razão “aborda os fenômenos da
realidade dados no espaço, no tempo e na causalidade, tendo-se aí o ‘objeto da
∗
Graduando do 4º período de Letras Português da Universidade Federal de Sergipe (UFS).
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experiência e da ciência” (BARBOZA, 2005: 13). Em primeiro plano o objeto se
constitui a partir do espaço, do tempo e da causalidade, e que nada é se não
houver a presença do sujeito, e vice-versa. Ou seja, o objeto (o mundo) é
representação do sujeito. Sujeito este movido por completo pela Vontade – que
é o seu substrato único de toda a realidade. Então todo indivíduo é um sujeito
do querer. Em Schopenhauer, o que define o homem é o querer, e não a razão.
Neste caso: “a vida em geral é uma constante procura por passageiros objetos
de prazer, que antes de serem alcançados provocam variados graus de
sofrimento” (BARBOZA, 2007: VIII).
Conforme Jair Barboza, tradutor de Schopenhauer, a filosofia deste é
caracterizada por pensamentos pessimistas, pois segundo ele: “Schopenhauer
teria sido o doutrinador de uma negação da Vontade de vida, pois, segundo
afirma sua metafísica, exposta em O Mundo, todo viver é sofrer.” (BARBOZA,
2006: XII). Muito embora seja possível encontrar uma leve sensação de
otimismo em sua filosofia. Para o próprio Barboza (2006) seria um pessimismo,
mas nem tanto. Então, para o filósofo alemão, o homem só encontraria a
felicidade plena com a anulação completa da Vontade. Assim, uma das vias
possíveis para tentar livrar-se da força negativa da Vontade é através da Arte.
De acordo com Barboza (2005), a contemplação estética é um bálsamo em meio
às durezas da vida, espécie de hora de recreio que nos dá um descanso da
seriedade da existência.
Para Schopenhauer, a primeira via para o afastamento da Vontade,
seria a via artística, que está livre de qualquer relação com o princípio de razão;
princípio este constituído por relações conhecíveis através de definições
atribuídas a todas as coisas concretas ou abstratas que se opõe à intuição, que é
o
conhecimento
destituído
dessas
conexões
do
princípio
racional.
Conseguintemente, é justo na Arte que a intuição será objetivada, por que a arte
se detém nesse particular, as relações desaparecem, pois a Vontade não mais
existe, somente a contemplação do objeto por parte do sujeito (não o comum,
mas o gênio). Portanto, a arte é a representação não submetida aos princípios
racionais, enquanto o princípio de razão é a Vontade encarnada. Tendo esses
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fundamentos como base deste artigo, veremos a relação deles com a arte de
Cruz e Sousa: a Arte Poética.
Cruz e Sousa nasceu a 24 de novembro de 1861, em Desterro (atual
Florianópolis). Era negro filho de escravos, mesmo assim fora educado pelos
antigos senhores de seus pais, o marechal Guilherme Xavier de Sousa e sua
esposa. Além disso, foi aluno do sábio alemão Fritz Müller1. Mesmo sendo um
homem de ótima formação cultural e educacional, Cruz e Sousa não era
reconhecido pelos seus bons trabalhos devido à sua cor, segundo Luft (1967).
Sendo por essa razão que ele utilizaria a arte poética para isolar-se na pura
contemplação dos objetos, penetrando, assim, no mundo da intuição,
esquecendo deste modo ele mesmo e as suas próprias vontades, logo o mundo
para o poeta não mais seria como Vontade, e sim como Representação
independente do princípio de razão (essa explanação teórica será exposta mais
adiante). Sua carreira profissional se inicia com o jornalismo, partindo
posteriormente para a carreira literária, além de ter sido também professor.
Fora, entretanto, alvo do preconceito de cor, recusado como promotor público
em Laguna, e barrado em suas tentativas de aspirações de ascensão social.
Como poeta, Cruz e Sousa é considerado o principal do Simbolismo no
Brasil, no entanto fora bastante influenciado pelos parnasianos quanto a
estrutura das poesias, diferenciando-se dos temas abordados. Enquanto os
parnasianos eram essencialmente objetivistas ou racionalistas em suas
descrições poéticas, a poesia simbolista de Cruz e Sousa se caracterizava pelo
subjetivismo2 de uma alma atormentada pelas vontades que o eu - lírico
alimentava. Em seus primeiros livros, como Broquéis (1893), nota-se essa
influência parnasiana. Sendo somente nos seguintes livros que seguiria as
tendências verdadeiramente simbolistas. O crítico literário Afrânio Coutinho
(2004) dissera que Cruz e Sousa fora um parnasiano tão apaixonado da beleza
formal das palavras, tão cuidadoso das regras intransigentes da prosódia, tão
1
2
Johann Friedrich Müller (1821 – 1897), naturalista, professor de matemática e ciências naturais.
Lembrar que o subjetivismo é característica fundamental do Simbolismo.
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desejoso de encher seus poemas do saber carnal das coisas sensíveis como
qualquer parnasiano.
Seu grande mérito, na verdade, foi enriquecer a rigidez parnasiana com
as temáticas que ele aborda, com uma linguagem de força sugestiva e de uma
musicalidade característica da poesia simbolista. Deste modo, se tomarmos por
consideração o pensamento de Schopenhauer em relação à arte poética,
perceberemos o quanto ele tem em comum com a ideia de Cruz e Sousa ser tão
apaixonado pela beleza formal das palavras. Pois para o filósofo, o meio de
ajuda todo especial da poesia são o ritmo e a rima, logo, é através da perfeita
combinação das palavras que se obterá uma boa musicalidade. Celso Luft
(1967) diz que os simbolistas eram entusiastas do Romantismo, da música de
Wagner, da filosofia de Schopenhauer, tentando com isso exprimir mediante
símbolos a vida interior. Para Schopenhauer, a música se encontraria por inteiro
separada das demais artes, sendo a superior entre todas. E os simbolistas, tendo
Paul Verlaine3 como porta-voz, diziam que antes de qualquer coisa (pintura,
poesia, etc.) a música.
Apesar da incontestável qualidade poética, Cruz e Sousa morreu sem
apreciar seu sucesso que mais tarde floresceria. Vivera apenas com esse desejo
escravizante em seu espírito. Já que neste trabalho o interesse é relacionar suas
poesias com a filosofia de Schopenhauer, agora será exposto como o filósofo
alemão explica esse sentimento denominado Vontade, e até onde ela influi na
criação artística.
Como foi dito anteriormente, para Schopenhauer todo indivíduo é um
sujeito de vontades. Portanto, vivemos nossas vidas na busca pela satisfação de
diversos desejos. Muito embora, mesmo um desejo sendo realizado, sempre
virá outro que atormentará uma possível tranquilidade. É por essa razão que o
filósofo diz que todo viver é sofrer. Para Jair Barboza (2006), todo desejo é de
natureza negativa, pois o prazer consiste na supressão momentânea da dor. De
fato, a mente humana é habitada por esse sentimento volitivo, apesar de existir
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Paul Marie Verlaine (1844 – 1896) foi poeta da estética simbolista francesa.
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caminhos para nos livrarmos dele. Por exemplo, segundo Schopenhauer, o
conhecimento geral ao qual a humanidade usufrui é aquele que está a serviço
do princípio de Razão, cujo fim último é o de se relacionar com a própria
Vontade, assim, quando nos repousamos e nos absorvemos na pura
contemplação, sem considerar o Onde, o Quando, o Porquê e o Para Quê das
coisas, e sim n’O Quê (a essência), o espírito é devotado à intuição, e é afundado
por completo nesta. A consciência inteira sendo preenchida pela calma da
contemplação do objeto natural, seja uma paisagem, seja as estrelas, seja um
penhasco, ela se perde por inteiro nesse objeto, esquecendo o próprio indivíduo
e o próprio querer. Ou seja, o objeto e o sujeito tornam-se unos. Em outras
palavras, o sujeito quando livre de sua relação com a Vontade conhece o objeto
que está separado de toda relação com algo exterior, ou seja, as relações do
princípio de razão, vai ser denominado, segundo Schopenhauer, o “puro sujeito
do conhecimento destituído de vontade” e sofrimento. O gênio artístico
encaixa-se perfeitamente nessa denominação. A partir do momento em que
conhecemos ou analisamos as coisas por pura intuição, livre de qualquer
princípio de razão, é que seríamos o puro sujeito do conhecimento destituído de
vontade. Para Schopenhauer, a arte se detém nesse particular; as relações do
princípio de razão desaparecem, apenas o essencial, a Ideia4, é objeto da arte.
Eis a sua definição da arte: “como modo de consideração das coisas
independente do princípio de razão”.
Por isso que muitos artistas preferiam isolar-se em ambientes bucólicos,
ou transcender-se para um mundo espiritual, e também voltar o pensamento
para acontecimentos pretéritos. Deste modo, sua criação não se afetaria pelo
poder da Vontade. Assim, a arte, para o filósofo alemão, é a primeira via para
nos libertarmos do serviço escravo da Vontade. Obviamente que esse
pensamento é difícil de ser concretizado, voltando o desejo a atormentar o
espírito do homem. Neste último caso, Schopenhauer acreditava que a
4
Tem-se em vista aqui o conceito das Ideias platônicas. Pois para Platão, existem dois mundos: o
material e o das ideias, sendo que este contém a verdade, a imutabilidade, a perfeição e a originalidade
das coisas. Diferenciando-se do material, que seria uma cópia imperfeita do mundo das ideias.
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felicidade do homem seria encontrada a partir do momento em que a Vontade
fosse anulada por completo, portanto, que fosse aniquilado o desejo de viver.
Por isso alguns indivíduos tenham interesse tão extraordinário pelo passado,
pela distância, pelo transcendental, pela natureza, e por fim, a morte. Esses
casos mais específicos serão vistos em algumas das poesias de Cruz e Sousa.
É importante notar que a obra de arte, segundo Schopenhauer, é obra
do Gênio. Portanto, o homem genial furta-se por instantes ao serviço da
Vontade quando está produzindo sua obra. Ao contrário do homem comum
que é completamente incapaz de deter-se numa consideração plenamente
desinteressada, a qual caracteriza a contemplação propriamente dita. Conclui o
filósofo:
Daí se explica a vivacidade, que beira a inquietude, em indivíduos
geniais, na medida em que o presente quase nunca lhes basta, já que
não preenche a sua consciência. Daí resulta aquela tendência ao
desassossego, aquela procura incansável por novos objetos dignos de
consideração (SCHOPENHAUER, 2005: 255).
O interesse de expor esse pensamento reside no fato de que Cruz e
Sousa representaria de forma categórica essa explanação de Schopenhauer, pois
o poeta brasileiro encontraria em suas intuições destituídas de razão – portanto
de Vontade – a inspiração para compor os mais belos poemas.
Em algumas das poesias de Cruz e Sousa encontram-se manifestações
duma alma geniosa, bem ao estilo descrito por Schopenhauer. Lembremos o
quanto a vida do poeta fora marcada por diversos problemas sociais, por
motivos, em especial, etnológicos. Cruz e Sousa, desta forma, imerso num
mundo em que ele necessitava satisfazer suas vontades pessoais, as quais não
eram alcançadas, devido ao preconceito racial que existia na sociedade
brasileira do seu tempo, tinha a capacidade inerente do gênio schopenhauriano,
que consistia na força interna de contemplar objetos isolados diante de si,
penetrando assim num mundo puramente contemplativo, esquecendo-se dos
próprios desejos que possivelmente o fizeram sofrer.
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Nas poesias que serão expostas aqui, notaremos a possível presença de
eu–líricos afetados pelo sentimento angustiante da Vontade. E veremos como o
espírito genial de Cruz e Sousa é capaz de se deter em profundas intuições,
buscando na essência do mundo o caminho para a libertação do serviço escravo
da Vontade.
Analisaremos as seguintes poesias: “Luar de Lágrimas”, “Livre!”, “Dias
Tristes”, “Eternidade Retrospectiva”, “Único Remédio”, e “O Assinalado”. Em
todas elas perceberemos o quanto o sentimento volitivo possivelmente influirá
na criação poética de Cruz e Sousa.
Vejamos dois quartetos do poema “Luar de Lágrimas” que está
presente no livro Faróis (1900):
Nos estrelados, límpidos caminhos
Dos Céus, que um luar criva de prata e de ouro,
Abrem-se róseos e cheirosos ninhos,
E muitas messes do bom trigo louro.
Lá não existe a convulsão da Vida
Nem os tremendos, trágicos abrolhos.
Há por tudo a doçura indefinida
Dos azuis melancólicos de uns olhos.
Percebe-se, pois, que num determinado momento o gênio de Cruz e
Sousa deteve-se na contemplação do céu estrelado, no qual para os homens
comuns passam despercebidos, para o gênio é motivo de desgarrar-se por
instantes da convulsão da vida, que está relacionada com a própria Vontade.
Deste modo Schopenhauer diz:
Em conformidade com tudo isso, a “expressão genial” de uma cabeça
consiste numa visível e decisiva preponderância do conhecer sobre a
Vontade; por conseguinte, também um conhecer destituído de toda
relação com o querer, noutros termos, um conhecer puro se expressa ali
(2005: 257).
Assim, quando o poeta direciona seu pensamento às intuições do seu
espírito, este não é mais servidor da Vontade. Muito embora não seja em todos
os momentos de sua vida que ele seja capaz de devotar seu espírito para este
estado de conhecimento puro. Por que tanto no que diz respeito aos méritos
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quanto às carências, em muito se aproxima do indivíduo comum. Isso é visto no
poema em prosa “Dias Tristes”, no qual perceberemos o quanto o eu–lírico está
afetado por não conseguir se livrar dos desejos que habitam o seu ser.
Vejamos a poema que está incluso no livro Missal (1893):
Dias tristes, muita vez, os dias de sol.
Mergulhado o espírito na onda profunda de desejos irresistíveis, como
numa intensa e luxuriosa paixão, os aspectos que se lhe manifestam na
Natureza são amargos, atravessados dessa pungência aflitiva, dessa
magoante desolação e atormentadora ironia que há na essência de
todas as cousas e ideias. (CRUZ E SOUZA, 1893: 428)
Percebe-se o quanto o eu-lírico sofre quando a alma está mergulhada na
onda profunda de desejos, ao passo que até a própria natureza manifesta
aspectos amargos nesta ocasião espiritual.
Analisemos outra poesia, intitulada “Livre!”, que está presente no livro
Últimos Sonetos organizado nas obras completas de Cruz e Sousa por Andrade
Muricy. Nesta fica mais evidente a relação do tema com o pensamento de
Schopenhauer. Quando livre da matéria escrava e arrancado dos grilhões que
nos flagelam – a Vontade – tornamo-nos perfeitamente capaz de penetrar nos
dons que selam a alma, as Ideias5, e não o princípio de razão. Princípio este que
nos deixa presos às relações que o movem, ou seja, a serviço inteiramente da
Vontade. Livre destas relações, o sujeito conseguirá sentir a natureza para
gozar, na universal grandeza, fecundas e arcangélicas preguiças.
Observemos a poesia “Livre!”:
Livre! Ser livre da matéria escrava,
arrancar os grilhões que nos flagelam
e livre penetrar nos Dons que selam
a alma e lhe emprestam toda a etérea lava.
Livre da humana, da terrestre bava
dos corações daninhos que regelam,
quando os nossos sentidos se rebelam
contra a Infâmia bifronte que deprava
Livre! Bem livre para andar mais puro,
5
Rever a nota de rodapé número 5.
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mais junto à Natureza e mais seguro
do seu Amor, de todas as justiças.
Livre! Para sentir a Natureza,
para gozar, na universal Grandeza,
Fecundas e arcangélicas preguiças.
Encontra-se nesta poesia uma gradação de livramento espiritual do eu–
lírico. Na primeira estrofe se fala em ser livre da matéria escrava; na segunda,
em ser livre da condição humana, “dos corações daninhos que regelam”; na
terceira, livre para andar mais puro, junto à natureza; e por fim, na quarta
estrofe, livre pra sentir a natureza e gozar uma arcangélica preguiça, que
remeteria a uma total anulação de vontades, já que não tendo nada para
perseguir, ou seja, um desejo a ser alcançado, resultaria na plena calma
espiritual do eu–lírico. Vê-se, portanto, a forte tendência transcendentalista da
poesia simbolista.
No decorrer da explanação de seus pensamentos sobre o Gênio,
Schopenhauer equipara-o com o louco. Este conhece corretamente o presente
individual, bem como muitas coisas particulares já acontecidas, contudo
desconhece a concatenação e as relações, assim, erram e falam absurdos,
aparentemente do mesmo modo do gênio. Conforme o filósofo alemão:
Ora, é exatamente este o seu ponto de contato com o indivíduo genial.
Pois este perde de vista o conhecimento das coisas ao negligenciar o
conhecimento das relações conforme o princípio de razão, para ver e
procurar nas coisas apenas suas Ideias e captar a sua essência que se
expressa para a intuição. (2005: 263-264).
Esta equiparação entre o louco e o gênio é descrita de forma genial por
Cruz e Sousa na poesia “O Assinalado”, presente também no livro Últimos
Sonetos. Nela veremos como o escritor descreve o gênio poético como o
possuidor da loucura mais suprema, onde povoa o mundo não povoado. Isso é
o mesmo que afirmar que o homem genial é um louco, no entanto, não uma
loucura comum, e sim como um homem capaz de sentir a essência das coisas de
forma completamente única. E pelo fato de o homem genial ser raro numa
sociedade, os homens comuns o acharão um louco por ser diferente.
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Eis a poesia “O Assinalado”:
Tu és o louco da imortal loucura,
o louco da loucura mais suprema.
A terra é sempre a tua negra algema,
prende-te nela a extrema Desventura.
Mas essa mesma algema de amargura,
mas essa mesma Desventura extrema
faz que tu’alma suplicando gema
e rebente em estrelas de ternura.
Tu és o poeta, o grande Assinalado
que povoas o mundo despovoado,
de belezas eternas, pouco a pouco.
Na Natureza prodigiosa e rica
toda a audácia dos nervos justifica
os teus espasmos imortais de louco!
Inevitavelmente muitos analisam a obra de Cruz e Sousa como
caracterizada por tons pessimistas. Muitas vezes equiparando-a com a filosofia
de Schopenhauer. O crítico Andrade Muricy, um dos principais da obra de
Cruz e Sousa, fala dessa relação. Diz ele: “O espírito de revolta, e a influência
crescente de Schopenhauer, conduziram-no a um pessimismo cósmico e
apocalíptico.” (MURICY, 1961: 31).
Percebemos, pois, como Cruz e Sousa representou o pensamento de
Schopenhauer, no qual explica que um dos modos de nos livrarmos do serviço
escravo da Vontade é voltarmos nossos pensamentos para a natureza, e
conseguintemente intuirmos de acordo com nossas próprias ideias, livres de
qualquer princípio de razão. No entanto, para o filósofo alemão, existe também
uma outra maneira de nos libertarmos da Vontade: voltar nossos pensamentos
para o passado. Deste modo ele explica:
Essa bem-aventurança do intuir destituído de vontade é, por fim //
também o que espalha um encanto tão extraordinário sobre o passado
e a distância, expondo-os em luz exuberante por meio de uma autoilusão, pois, na medida em tornamos presentes os perdidos dias
pretéritos, longuinquamente situados, na verdade a fantasia chama de
volta apenas os objetos, não o sujeito do querer, que outrora carregava
consigo seus sofrimentos incuráveis. (2005: 269).
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Esse fundamento filosófico se encontra em uma poesia de Cruz e Sousa,
cujo nome é Eternidade Retrospectiva, presente também no livro Últimos Sonetos.
Nesta poesia o pensamento do eu – lírico está totalmente voltado para um
passado distante, só que um passado transcendental, não o histórico explicado
por Schopenhauer. Percebe-se que todos os verbos estão no tempo pretérito, o
único que não está, tem uma carga semântica que remete ao passado, que é o
verbo recordar.
Analisemos a própria poesia:
Eu me recordo de já ter vivido,
mudo e só por olímpicas Esferas,
onde era tudo velhas primaveras
e tudo um vago aroma indefinido.
Fundas regiões do Pranto e do Gemido,
onde as almas mais graves, mais austeras
erravam como trêmulas quimeras
num sentimento estranho e comovido.
As estrelas longínquas e veladas
recordavam violáceas madrugadas,
um clarão muito leve de saudade.
Eu me recordo d’imaginativos
luares liriais, contemplativos
por onde eu já vivi na Eternidade!
Vimos que nas poesias citadas o fundamento ideológico delas tem
relação com a filosofia de Schopenhauer. Analisamos então a ideia central do
pensamento schopenhauriano, a qual constitui o mundo como representação
tanto racional, como irracional. Sendo que a representação submetida ao
princípio de razão está a serviço da Vontade. Vontade esta que, segundo o
filósofo, leva o homem ao sofrimento. Assim, vimos que muitos dos meios que
o filósofo destaca para que o sujeito não seja afetado pela força negativa da
Vontade
são
encontrados na
poesia
de
Cruz
e
Sousa.
Destacando
principalmente a representação do Gênio no espírito do poeta brasileiro. As
ideias poéticas de Cruz e Sousa seriam apreendidas por meio da pura
contemplação dos objetos, sendo nesse estado de espírito que o poeta se
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colocaria na posição do “puro sujeito do conhecer destituído de vontade”, logo,
de sofrimento.
A produção artística seria, então, sua válvula de escape. No momento
em que o espírito de Cruz e Sousa mergulhava-se inteiramente na pura
intuição, o poeta conseguiria sentir mais profundamente a essência dos objetos
que ele contemplava, encontrando neles a tranquilidade espiritual tão desejada,
impossível de ser encontrada na vida real.
Cruz e Sousa, desta maneira, não conseguia transcender seu espírito
para o mundo das Ideias a todo instante. Na poesia Único Remédio,
perceberemos que o caminho para a felicidade da alma seria apenas pela via
natural da morte. Com a morte, a Vontade desaparece por completo, portanto,
os venenos, os desesperos da vida seriam anulados com a chegada risonha da
morte.
Vejamos a poesia “Único Remédio”, de Cruz e Sousa, presente no livro
Últimos Sonetos:
Como a chama que sobe e que se apaga,
sobem as vidas a espiral do Inferno.
O desespero é como o fogo eterno
que o campo quieto em convulsões alaga...
Tudo é veneno, tudo cardo e praga!
E as almas que têm sede de falerno
bebem apenas o licor moderno
do tédio pessimista que as esmaga.
Mas a Caveira vem se aproximando,
vem exótica e nua, vem dançando,
no estrambotismo lúgubre vem vindo.
E tudo acaba então no horror insano –
- desespero do Inferno e tédio humano –
quando, d’esguelha, a Morte surge rindo...
Observadas estas poesias, percebemos que as ideias de Cruz e Sousa
são aparentemente semelhantes às da filosofia de Schopenhauer. Se para este,
todo indivíduo é um sujeito do querer, portanto, movido pela Vontade, logo o
poeta brasileiro se encaixa nessa definição. Como a proposta central do presente
artigo consiste na tentativa de interpretar a poesia de Cruz e Sousa através da
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filosofia do alemão, atribuímos que um pensamento de um filósofo contribui
para tal intento. Cruz e Sousa encontraria em sua habilidade de escrever belas
poesias o caminho para a transcendência do espírito, ou à pura contemplação
das ideias. Mergulhando-se, desta forma, num mundo em que não existiriam
desejos materiais, ou seja, a Vontade segundo Schopenhauer. Quando lemos as
poesias cruz e sousianas, percebemos o quanto o eu – lírico, ou o espírito, se
tomarmos em consideração a linguagem filosófica de Schopenhauer, é afetado
negativamente pela presença constante da Vontade. A sua vida foi inteiramente
marcada pela luta constante de sua própria valorização ou realização pessoal,
fazendo com que tivesse uma obra poética excessivamente lírica, subjetiva e
transcendental. As experiências da vida de Cruz e Sousa, que não foram nada
agradáveis, influenciaram de forma contundente na sua criação artística. Suas
poesias são marcadas por uma explosão lírica capaz de ele “esquecer” seus
desejos e de se ver livre do mundo como Vontade, e penetrar num mundo no
qual seria a representação única de suas ideias.
Referências bibliográficas:
COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. São Paulo: Global, 2004.
LUFT, Celso Pedro. Dicionário de literatura portuguesa e brasileira. Porto Alegre:
Globo, 1967.
MURICY, Andrade. Cruz e Sousa: obras completas. Rio de Janeiro: José Aguilar,
1961.
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. Trad.
Jair Barboza. São Paulo: UNESP, 2005.
______ . Aforismos para a sabedoria de vida. Trad. Jair Barboza. São Paulo: Martins
Fontes, 2006.
______ . Fragmentos sobre a história da filosofia. Trad. Karina Jannini. São Paulo:
Martins Fontes, 2007.
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