AS REAÇÕES PSICOLÓGICAS À DOENÇA E AO ADOECER # Lucia Spitz * INTRODUÇÃO O presente artigo baseia-se em experiências vividas pela autora como membro do Serviço de Psicologia Médica e Saúde Mental do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho e professora da disciplina de Psicologia Médica para os alunos da Faculdade de Medicina da UFRJ. Na primeira parte do trabalho, será feita uma breve exposição de algumas idéias sobre as repercussões emocionais produzidas pela enfermidade e alguns modos habitualmente encontrados de lidar com a doença. Na segunda parte, baseando-nos em solicitações de pedidos de parecer à Psicologia Médica serão examinados "in vivo" alguns dos fenômenos que se passam quando as pessoas adoecem, bem como algumas das vicissitudes das nossas teorias sobre o adoecer na prática clínica cotidiana de um hospital geral. A EXPERIÊNCIA DO ADOECER "É do conhecimento de todos, e eu o aceito como coisa natural, que uma pessoa atormentada por dor e mal-estar orgânico deixa de se interessar pelas coisas do mundo externo, na medida em que não dizem respeito a seu sofrimento. Uma observação mais detida nos ensina que ela também retira o interesse libidinal de seus objetos amorosos: enquanto sofre, deixa de amar. (..) Devemos então dizer: o homem enfermo retira suas catexias libidinais de volta para seu próprio ego, e as põe para fora novamente quando se recupera" (Freud, 1914, "Sobre o narcisismo - Uma introdução", vol. XIV, pg. 98). A passagem do homem da situação de sadio para a de doente, seja de forma abrupta ou insidiosa, modifica a sua relação com o mundo e consigo mesmo e implica sempre em repercussões psicológicas, tanto nele quanto no seu círculo familiar e social. A maneira como um indivíduo reage à eclosão e à instalação de uma doença - geralmente vivenciada como uma "ameaça do destino" - é função de uma série de fatores, tais como o seu caráter breve ou duradouro, as implicações quanto ao seu prognóstico, as limitações físicas acarretadas, o valor simbólico das funções corporais ou dos órgãos atingidos, etc. As fantasias do paciente a respeito da sua doença, a maneira como ele constrói um sentido próprio para ela, assim como o peso dos significados implícitos de certas doenças como o câncer e a AIDS, são da maior relevância na determinação do modo com que o indivíduo vai se relacionar com a sua doença (Shavelzon e cols., 1978; Sontag, 1984). _________________ # Saúde Mental no Hospital Geral. Cadernos do IPUB nº 6, Instituto de Psiquiatria/UFRJ, 1997. * Professora de Psicologia Médica do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Faculdade de Medicina/UFRJ 2 Podemos afirmar que qualquer que seja a natureza de uma doença, ela sempre representa uma avaria ao nosso narcisismo, uma ferida no sentimento de onipotência e imortalidade e uma vivência de fragilidade e dependência em relação aos outros. Além da injúria narcísica, a doença envolve também sofrimento, frustrações e, dependendo da sua gravidade, limitações dos nossos projetos de vida. A doença nos torna conscientes de nossa fragilidade e nos surpreende com o sentimento ameaçador, raramente presente no nosso cotidiano, de que somos mortais e que devemos morrer um dia. A maneira como a enfermidade é vivenciada é sempre um acontecimento singular, uma experiência pessoal, resultante da história de cada um, de seu modo de ser, de viver, de se relacionar. É o indivíduo que dará à doença e às vicissitudes desta um sentido particular, que só pode ser compreendido dentro do conjunto de sua história (Eksterman, 1994). Há aqueles que frente a uma enfermidade entregam-se a ela, ficando dominados pela dor e desespero, paralisados na sua capacidade de luta, enquanto outros conseguem fazer da doença uma possibilidade de repensar a própria existência, de empreender mudanças - ainda em tempo! - enfim, de colocar a vida em questão. E ainda há aqueles que frente à doença, sintomas ou sinais, tendem a atuar sempre como se sua afecção fosse banal, mesmo quando ela é grave. Vale lembrar que às vezes é a própria doença que pode ser compreendida como uma resposta do organismo a uma situação vivida como traumática. Na impossibilidade de encontrar uma outra saída para situações conflitivas inconscientes, que não a via somática, o indivíduo adoece. Mas não é nossa pretensão discutir aqui os possíveis mecanismos envolvidos na gênese do fenômeno do adoecer, muito embora saibamos o quanto está sempre presente na cabeça da pessoa que adoece, a pergunta: "Por que isto aconteceu? Por que isto me aconteceu? Por que isto me aconteceu agora?" (Chiozza, 1986). Segundo Balint (1975), com o começo da doença põe-se em movimento uma série de processos secundários à enfermidade, criando uma "situação -vital", à qual o paciente deverá se adaptar. A doença põe em jogo não só mecanismos fisiológicos que tendem a restabelecer a homeostase, como do ponto de vista psíquico, mobiliza defesas psicológicas no intuito de enfrentar a ruptura do equilíbrio que é acarretada pela eclosão da doença. A primeira e mais constante das conseqüências psíquicas para o doente é a regressão. Trata-se de um mecanismo praticamente universal, que se caracteriza pelo aparecimento de um comportamento infantil, de marcada dependência e egocentrismo. Geralmente a regressão não só é necessária, como útil, na medida em que o paciente se deixa ajudar e apoiar pelo grupo social que o rodeia. A REGRESSÃO Toda relação de um paciente com o médico implica, em alguma fase da evolução da doença, um certo grau de afrouxamento de suas funções e atitudes adultas, deixando aflorar seus aspectos mais infantis, necessitados ou dependentes (Tizón, 1988). A regressão constitui um mecanismo de adaptação à doença, na medida em que permite ao paciente deixar-se cuidar pela equipe médica, renunciar temporariamente às suas atividades habituais e aceitar a necessidade de uma hospitalização. A impossibilidade de regredir pode deixar o doente com uma exigência psíquica de "super adaptação" à doença, que a médio e longo prazo pode 3 trazer-lhe bastante prejuízo (Jeammet, Reynaud e Consoli 1982). Ou, então, o paciente julga não estar doente e recusa-se a ser tratado ou abandona o hospital. Por outro lado, há situações em que a regressão - em etapas evolutivas da doença em que esta já não se faz mais necessária - é bastante prejudicial, não permitindo ao paciente mobilizar forças essenciais no sentido da recuperação. Cabe lembrar também que às vezes é a equipe de saúde (ou a família) que, de maneira consciente ou inconsciente, favorece a regressão, colocando o doente na posição do "bonzinho", que se deixa manipular docilmente, que não reclama e não reivindica. O médico tem um papel muito importante, na medida em que, com sua atitude, possibilita que aspectos mais sãos do paciente, aqueles com mais capacidade de autonomia, recuperem a iniciativa diminuída pela enfermidade, ao invés de cronificar-se num comportamento regressivo. A DEPRESSÃO A depressão constitui uma conseqüência psíquica praticamente inevitável do adoecer e uma das causas mais freqüentes de solicitação de pedido de parecer à Psicologia Médica em um hospital geral. Sob o termo "Depressão" encontram-se os mais variados estados mentais, sendo importante não confundir sentimentos de tristeza, desesperança e preocupação - ligados à experiência do adoecimento e da internação - com quadros depressivos, de maior intensidade. Estes não podem prescindir de uma investigação minuciosa dos possíveis fatores envolvidos no seu aparecimento ou agravamento (p. ex.: certos medicamentos, doenças endócrinas, tumores, doenças neurológicas, doenças infecciosas, deficiências de vitaminas, distúrbios eletrolíticos, etc.) e, eventualmente, do uso de medicação específica (Hyman & Tesar, 1994). Uma doença somática, pelo que representa de ataque à imagem corporal, à autoestima e ao sentimento de identidade, é sempre potencialmente capaz de suscitar afetos depressivos e há uma relação inegável entre a severidade da enfermidade e a freqüência de depressão (sejam sintomas ou síndromes). Em contrapartida, o psiquiatra não deve permitir que uma depressão seja rotulada a priori como "apropriada", deixando de tratá-la como merece e, com isso, não aliviando o paciente (Furlanetto, 1995; Cassem, 1995). Por outro lado, sintomas de depressão tais como fadiga, apatia, anorexia, perda de peso e insônia, podem ser confundidos com sintomas resultantes da própria doença física, e é importante que se tenha outros elementos para se firmar um diagnóstico de síndrome depressiva moderada ou grave, de modo que não se prive o paciente do beneficio de uma intervenção adequada (Rodin e Vohart, 1986). Uma ocorrência comum é o fato do choro de um paciente em uma enfermaria ser capaz de rapidamente mobilizar o médico a enviar um parecer com uma solicitação implícita de prescrição de antidepressivo, enquanto passa desapercebida uma depressão profunda de outro paciente, pelo simples fato de ser "quietinho", "não dar trabalho", "não questionar"... Manifestações como a recusa em tomar a medicação, de colaborar nos exames ou pedidos de alta "à revelia" (que podem estar ligados a quadros depressivos), também costumam atrair 4 a atenção da equipe médica e com isto permitir a intervenção da Psicologia Médica junto a estes pacientes. ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DAS DOENÇAS AGUDAS Descobrir-se doente, especialmente de maneira súbita, é algo que provoca ansiedade, que é a resposta do indivíduo à percepção de um "perigo". Enquanto o que o paciente sente não tem nome, enquanto as causas de suas sensações são desconhecidas, a ansiedade permanece intensa. Para lidar com sentimentos de aflição, temor ou apreensão difusos e evitar que a ansiedade transbordante tenha efeitos desestruturantes, o paciente coloca em marcha uma série de operações mentais no sentido de modificar a maneira de processar as informações que possam ser perigosas para a sua homeostase. São estas basicamente a regressão (da qual já falamos) e a negação, que é a principal defesa utilizada na fase aguda das doenças. Esta ansiedade pode muitas vezes diminuir assim que o médico dá um nome à doença e introduz um significado para aquilo que atinge o doente. Eventualmente podem ocorrer reações depressivas à medida que a negação diminui e o paciente vai tomando consciência da sua doença. A hospitalização, com tudo o que implica para o paciente, pode também contribuir para os quadros ansiosos e depressivos observados nas doenças agudas (Mello Filho, 1979). ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DAS DOENÇAS CRÔNICAS A doença crônica, especialmente a de maior gravidade, constitui uma condição difícil e dolorosa, tanto para o paciente como para o médico. A maneira como cada indivíduo vivencia a sua doença crônica é absolutamente pessoal e função de sua personalidade, de sua tolerância às frustrações, das vantagens e desvantagens da condição de doente, assim como de sua relação com o médico e com a equipe de saúde. Há aqueles que apesar de acometidos por uma ou várias doenças crônicas, conseguem readaptarse (fora das eventuais fases de agravamento) a uma vida quase normal, a despeito de limitações ou cuidados impostos pela doença. Já outros indivíduos se sentem tão profundamente atingidos, que nunca mais conseguem levar uma existência normal, ou pelo menos, tão normal quanto as restrições somáticas ou psíquicas o permitirem. Do ponto de vista do médico e da equipe de saúde que acompanham o paciente, os problemas crônicos podem despertar sentimentos de impotência, desesperança e desvalorização, especialmente em períodos de exacerbação dos sintomas. BENEFÍCIOS PRMÁRIOS E SECUNDÁRIOS DA DOENÇA Benefícios secundários são aqueles que resultam das conseqüências da doença, podendo favorecer a acomodação na enfermidade e a sua cronificação. Nunca é demais lembrar que os benefícios secundários são sempre parciais, uma vez que a doença também é fonte de sofrimento e limitações. Os benefícios conscientes são aqueles ligados à compensação social da doença. As oportunidades que a doença oferece para que o indivíduo escape de determinadas situações conflitivas e penosas são geralmente inconscientes. Aqui também 5 incluímos os desejos regressivos de dependência e passividade, realizando-se na medida em que a pessoa se toma alvo de cuidados especiais. Os benefícios primários das enfermidades - às vezes impossíveis de serem separados dos ganhos secundários - são aqueles que desempenham um papel significativo no desencadeamento da doença ou na sua própria estruturação. AS REAÇÕES DO DOENTE FRENTE ÀS DOENÇAS: A Adaptação A adaptação não significa uma aceitação passiva nem uma submissão à doença, mas um processo dinâmico, permanente, de tentar buscar uma "convivência razoável" com a doença, através de um trabalho emocional complexo e doloroso de elaboração da profunda ferida narcísica representada pela enfermidade. No processo de elaboração do luto desencadeado pelas perdas sofridas (da autonomia, da saúde, das capacidades do organismo), podemos observar alternância e mistura de sentimentos de tristeza, depressão, ódio e revolta, até que de alguma maneira todo este trabalho mental progressivamente torne possível (pelo menos na maior parte do tempo) a superação ou elaboração do luto pelo que se era no passado e que foi irremediavelmente perdido. A adaptação, portanto, subentende que a reação depressiva provocada pela doença pode ser elaborada e controlada pelo paciente e que ele aceitou receber ajuda dos que o rodeiam sem, porém, abrir mão da autonomia compatível com a sua condição. Também implica ser capaz de fazer uma avaliação mais realista de sua doença e das perspectivas para o futuro. Nunca é excessivo lembrar que o médico é essencial neste processo de adaptação (Lipowski, 1983). A adaptação de um doente à sua doença só pode ser avaliada em função da sua personalidade anterior e do seu modo habitual de reagir e lidar com situações difíceis, e não em função de parâmetros predeterminados. Assim sendo, tanto um paciente "criador de caso" e "queixoso" pode estar bem adaptado à doença, quanto um paciente dócil demais e cumpridor de todas as recomendações médicas pode estar mal adaptado. A Negação Trata-se de uma defesa contra a tomada de consciência da enfermidade, que consiste na recusa parcial ou total da percepção do fato de se estar doente. Essa negação da realidade tanto do diagnóstico, quanto de suas implicações - é um mecanismo de urgência contra a angústia, sendo freqüentemente encontrada nas fases iniciais das doenças agudas (p. ex.: infarto do miocárdio) ou de prognóstico grave (p. ex.: câncer). Com o passar do tempo, a negação costuma ir diminuindo e o paciente deprime-se (House, Mayou e Mallison, 1995). 6 A negação pode ocorrer em relação à natureza, gravidade ou efeitos da doença e pode se tomar prejudicial quando impede que o paciente busque um diagnóstico ou aceite um tratamento médico. Como exemplo de urna situação em que a negação nas fases iniciais de um diagnóstico é bastante comum, há o caso de pacientes que sofrem acidentes e ficam irreversivelmente paraplégicos. É como se fosse necessário um tempo maior para a aceitação desta terrível verdade, sob o risco de uma desestruturação grave. Já presenciamos situações dramáticas em que, quanto mais o médico insistia em mostrar ao paciente (quase que num confronto... ) que as chances de nunca mais voltar a andar eram de 1000/ó, mais o paciente se refugiava numa posição de dizer que "tinha fé em Deus, que com sua força de vontade ia certamente voltar a andar um dia". Ainda que seja função do médico ir mostrando ao paciente as perspectivas reais que existem quanto à sua recuperação, é preciso, simultaneamente, respeitar este "tempo interno" do paciente e não forçá-lo a aceitar toda a verdade de uma vez. Muito freqüentemente os pacientes com câncer ou outras doenças de prognóstico sombrio recorrem à negação como uma forma de lidar com a doença. É como se lançassem mão de mecanismos de proteção para escutarem somente aquilo que estão em condições de assimilar, mesmo quando a verdade lhes é comunicada diretamente. Há também casos em que, pelo contrário, os pacientes sabem que sua doença é grave e, no entanto, o médico ou a própria família tenta manter um clima de falsa esperança e negação que contradiz a percepção do paciente, aumentando o seu sentimento de solidão e isolamento (Shavelzon & cols, 1978). Para finalizar, mencionaremos a reação persecutória, que geralmente é uma conseqüência da negação. Numa tentativa de evitar a depressão ou angústia excessiva, o doente atribui ao exterior a causa dos seus sofrimentos. Sente-se mal tratado e mal cuidado, entrando eventualmente em litígio com o médico ou a equipe de saúde (Jeammet, Reynaud e Consoli, 1982). Cumprida a tarefa a que me propus, de tentar sistematizar aquilo que estaria dentro do tema "Reações psicológicas à doença e ao adoecer" - e ao mesmo tempo buscando escapar de uma sistematização excessiva que contradiz o nosso próprio discurso, que se baseia na singularização dos pacientes -, gostaria agora de relatar alguns casos clínicos atendidos por mim e mostrar como, na prática, é absolutamente impossível falar em reações dos pacientes, sem imediatamente nos remetermos ao "parceiro" do paciente quando ele enfrenta a sua doença: o médico. Ou seja: o médico também apresenta reações psicológicas à doença de seu paciente... Para começar, relato uma situação curiosa sobre um pedido de parecer solicitado à Psicologia Médica, onde o médico é quem duvida do fato do paciente estar bem adaptado à sua doença. PEDIDO DE PARECER: Paciente recebeu tratamento radical para tumor no pé direito (amputação abaixo do joelho). Apresenta boa aceitação para a nova situação. Solicito avaliação. AVALIAÇÃO: A nossa impressão coincidiu com a do médico assistente, isto é, o paciente estava aceitando a amputação e se adaptando à nova situação. O paciente é uma pessoa basicamente "de bem com a vida", com vínculos afetivos familiares e sociais bem estabelecidos, uma história profissional de sucesso e que conseguiu 7 lidar com a doença bastante bem. Sabe da malignidade do seu tumor e fala com naturalidade sobre a sua doença. Teve um excelente pós-operatório e no momento está fazendo planos para a colocação de uma prótese. Sem dúvida, trata-se de um pedido de parecer incomum, já que é o médico quem está estranhando o fato do paciente estar bem. Qual terá sido o motivo desta solicitação? Há uma clara oposição entre aquilo que o paciente sente neste momento da sua doença ele parece bem - e aquilo que o médico parece achar que o paciente deveria estar sentindo (no caso, depressão). Frisamos a questão do momento, tendo em vista o que falamos anteriormente sobre a adaptação ser sempre um processo dinâmico, sujeito a altos e baixos e nunca uma aquisição definitiva e garantida. Será que este médico não é capaz de reconhecer como "legítimo" aquilo que o paciente está sentindo (e dizendo!) porque ele, na situação do paciente, estaria deprimido? Estará ele culpado inconscientemente por ter mutilado o paciente e precisando se assegurar de que este não vai se voltar furiosa e vingativamente contra ele? Terá sido a aplicação automática da noção de que por trás de um paciente que evolui bem, mas que é portador de uma doença "ruim", esconde-se sempre uma negação? Trata-se de uma assimilação simplista e incorreta dos conhecimentos acerca dos mecanismos de defesa dos pacientes diante de sua doença, na medida em que não leva em conta a particularidade de cada caso. Neste segundo caso, a irritação do médico transparece já no pedido de parecer. PEDIDO DE PARECER: Paciente internado na Cirurgia Plástica em (...), portador de fasceíte necrosante em ambos os membros inferiores. Submetido em (...) a auto-enxertia de membros inferiores com perda total de enxertos. Paciente apresentando no momento alteração de conduta, não colaborando no êxito do tratamento. AVALIAÇAO: Paciente sofreu uma queda num bueiro há cerca de um ano, foi internado em um hospital público onde foi pessimamente tratado, tendo um leve corte na perna evoluído durante esta internação para um quadro de extensa necrose dos tecidos. Transferido para este hospital, já sofreu vários enxertos, ainda sem resultado, devido à rejeição do tecido. Sua "alteração de conduta" parecem ser os gritos que não consegue deixar de dar durante a realização dos curativos, que são extremamente dolorosos. As pernas estão fletidas permanentemente (cicatrização viciosa devido à posição antálgica?) e isto angustia muito o paciente. A "não colaboração no êxito do tratamento" não ficou muito clara, já que o problema que está ocorrendo é uma rejeição dos enxertos. (...). Aqui é o paciente quem faz, sem o menor apoio ou compreensão do médico, um enorme esforço para se adaptar às seqüelas terríveis de uma doença aguda e que desperta o ódio do médico por não estar melhorando. 8 Por que será que a dor do paciente é desqualificada a ponto de ser denominada de "alteração de conduta"? Há uma nítida tentativa de psiquiatrizar este paciente, talvez para castigá-lo ("alteração de conduta") e culpabilizá-lo pelo fracasso do tratamento cirúrgico. Não deixa de ser, novamente, uma má utilização dos conhecimentos psicológicos (é o paciente com o seu "lado psicológico" que atrapalha o êxito do tratamento... ) para encobrir o insucesso das cirurgias ou os limites específicos de cada caso, assim como a impossibilidade de alguns médicos lidarem de uma forma mais satisfatória com o seu narcisismo ferido pela evolução desfavorável do tratamento. No caso acima, há uma evidente tentativa de dissociar a relação médico-paciente em termos de um médico que "entra com o êxito" e um paciente que "participa com o fracasso" ("não colaborando no êxito do tratamento"). O caso seguinte revela como a adaptação à doença foi possível em uma situação de amputação e como são criativas as soluções encontradas pelos pacientes... PEDIDO DE PARECER: Paciente de 33 anos, portadora de Lupus Eritematoso Sistêmico, complicado por síndrome isquêmica em membro inferior direito, tornando necessária a amputação parcial do MID. Evoluindo com quadro depressivo e não aceitação da amputação. AVALIAÇÃO: Paciente muito receptiva ao contato conosco, parecendo satisfeita com o fato dos seus médicos terem chamado alguém da Psicologia Médica para conversar com ela. Falou-nos sobre o inicio de sua doença, o acompanhamento ambulatorial já há alguns anos, e a sua tristeza quando precisou amputar a perna nesta internação. Reconhece que foi feito tudo na tentativa de salvar a sua perna e que não havia outra alternativa para o seu caso, mas mesmo assim sente muita falta da perna. Descreve a "sensação boa" que teve outra noite, quando colocando a perna amputada sobre a outra (estando deitada de lado), "sentiu naquele momento como se ainda tivesse a perna". A paciente também demonstrou uma certa preocupação "com uma coisa que ouviu do médico sobre não sei o quê fantasma" (numa referência a sensações de membro fantasma que se seguem a uma amputação) e pareceu muito aliviada quando explicamos a ela o que isto significava (entre outras coisas, ela havia feito associações com a palavra "fantasma" que lhe davam medo!... ). A paciente nos pareceu uma pessoa otimista, com uma boa capacidade de adaptação à sua nova condição. Quando conversávamos com ela sobre a possibilidade de conseguir uma muleta, ela nos disse sorrindo: "A mim basta um pedaço de pau para me apoiar, que já saio andando!" O que pode também ser compreendido como a maneira de ser desta paciente: "De pouco, faço muito...... Planeja morar com o filho (que ela teve aos 12 anos!) e netos quando sair do hospital. E é ela quem diz novamente: "E eu quero coisa melhor do que estar junto dos meus netinhos?!..." Neste pedido de parecer, ocorre mais uma vez uma discrepância entre a maneira como o médico vê a paciente ("evoluindo com quadro depressivo e não aceitação da amputação") e aquilo que aflora na fala da paciente quando vamos conversar com ela. O que o médico chama de "quadro depressivo" neste caso? Terá sido o fato da paciente ter ficado triste ou ter chorado em algum momento da sua internação? Não era de se esperar que uma paciente de 33 anos (ou de qualquer idade), a quem se amputasse parte de um membro, fosse sentir a falta 9 dele? Percebe-se uma falha de comunicação da equipe com a paciente, na medida em que se fala de algo tão estranho como um "fantasma", sem que ninguém explique o que esta palavra significa naquela situação. E ela fica com medo do fantasma!... Quanto à aceitação da amputação, o que exatamente significa isto? É algo mensurável? Enfim, todas essas situações nos remetem à dificuldade dos médicos e, na verdade, de toda equipe que assiste ao paciente - eventualmente até dos psiquiatras -, de acolher e responder adequadamente à diversidade de reações emocionais de seus pacientes (Eizirik, 1994). Neste outro caso, a médica que solicitou o parecer chama a atenção para o comportamento de negação da paciente. PEDIDO DE PARECER: Paciente de sexo feminino, 25 anos, com câncer de mama avançado, com 2 anos de evolução e prováveis metástases. Nega a doença: tia refere que a paciente "não tem condições psicológicas de saber o diagnóstico principalmente após o falecimento recente da mãe". Solicito avaliação e acompanhamento. AVALIAÇAO: (...) Apesar de não pronunciar a palavra câncer, a paciente tem noção de que está bastante doente. Tanto assim que ficou aliviada quando conseguiu a internação no hospital: sabe que aqui farão um diagnóstico do problema do seio e iniciarão o tratamento. Achamos que a negação por parte da paciente se restringe à nomeação de sua doença (câncer para ela seria igual à incurabilidade e morte) e não põe em risco a sua colaboração no tratamento. Além disto, temos a informação da tia de que quando uma médica do outro hospital lhe disse que ela estava já com metástases do tumor e que seu caso era "gravíssimo", a paciente ficou num estado de profunda apatia e depressão, só melhorando quando a tia praticamente desmentiu o diagnóstico desta médica e prometeu levá-la a outro hospital. (... ). (Esta paciente veio a falecer poucos dias depois devido a uma grave complicação hematológica). Neste caso, a motivação do pedido de avaliação pela Psicologia Médica parece ter sido o desconforto provocado na médica pelo grau de negação que a paciente exibiu. Além é claro, do fato de ser uma moça jovem em estágio terminal de câncer (Zaidhaft, 1990, Mannoni, 1995). Embora seja evidente o uso da negação no caso dessa paciente, caberia nos questionarmos: existe um "nível ideal" de negação, uma "faixa de normalidade" de reações de negação fora da qual o paciente não está bem?! Na verdade, cada paciente reage à doença do jeito que lhe é possível e não do jeito que o médico esperaria que ele reagisse!... O fato é que muitas vezes há uma expectativa do médico quanto ao comportamento esperado de um paciente e quando este não se "encaixa", o médico se sente perdido, sem 10 saber como lidar com a situação, ou então intimidasse, considerando que há algo de "patológico" nesse paciente. Nesse último caso, ficam patentes os esforços empreendidos pela paciente para negar a possibilidade de ter um câncer. PEDIDO DE PARECER: Paciente de 59 anos com suspeita de câncer de pulmão, emagrecida, deprimida e ansiosa. Solicito avaliação. AVALIAÇÃO: Paciente lúcida, orientada, cooperativa, porém visivelmente desconfiada da nossa presença, provavelmente receosa de que pudéssemos lhe falar algo de assustador com relação à sua doença. (... ). Chamou-nos a atenção como durante toda a entrevista a paciente procurou desviar o assunto do seu "pulmão", apesar dela evidentemente saber que é lá que está o seu problema (A filha que vem visitá-la. segundo o médico, refere-se à sua "massa nos pulmões" aos altos brados na enfermaria!). Num certo momento, quando nos falou sobre um exame e perguntamos se era do tórax (sabíamos que era!), ela disse que não, que "era de fezes ou de urina, nada a ver com o pulmão". Este deslocamento da atenção da paciente do lugar que ameaça (pulmão) para um lugar "não perigoso", deu-se várias vezes durante a nossa conversa: no fundo, ela sabe, tanto é que parece ansiosa, querendo logo encerrar a conversa, sair do hospital, etc. Fará uma broncoscopia e em função do resultado histopatológico, será decidido o seu tratamento. (Cirurgia? Quimioterapia?). Foi sugerido ao médico que as informações deveriam ser dadas à paciente gradualmente, para que não se corresse o risco de quebrar muito abruptamente as suas defesas. Após uma semana de internação, o médico recebeu o resultado da biópsia com a confirmação da malignidade e pediu-nos que ficássemos ao seu lado quando ele fosse comunicar o resultado do exame à paciente. E aí, pudemos observar uma cena insólita, em que ao mesmo tempo que o médico, com a maior delicadeza, lhe explicava: "Dona..., estou com o resultado do seu exame na mão, é aquilo mesmo que nós já imaginávamos; a senhora vai começar a quimioterapia amanhã", etc., a paciente - uma pessoa reservada, de poucas palavras - iniciou uma longa conversa sobre o fato de ter parado de fumar na última semana, em que mal ouvia o que o médico dizia. Claro que em grande parte ela intuía a Gravidade do seu caso (até pela "solenidade" com que o médico lhe falara...), mas havia também um grande esforço seu de ser poupada deste conhecimento, que foi respeitado pelo médico. A paciente aceitou a quimioterapia proposta e recebeu alta três dias depois. Neste caso, o médico estava desde o princípio "sintonizado" com a paciente e curiosamente fui eu que me senti mais perturbada pela negação da paciente, desejando que em algum momento ela desse uma abertura para que eu pudesse conversar sobre a sua doença (que ela não deu... ). Pude me dar conta de que também trazia dentro de mim uma idéia preconcebida do que seria uma negação "razoável" e do quanto era difícil abrir mão da minha ideologia de que em algum momento é preciso que os pacientes tenham consciência da verdade de seus casos. Na realidade, não somos nós quem decidimos isto... 11 CONCLUSÃO Na primeira parte deste trabalho procurei abordar algumas maneiras pelas quais os pacientes reagem psicologicamente às doenças físicas. Na segunda parte, procurei discutir casos atendidos num hospital geral, mostrando o quanto as tentativas de generalização e categorização das manifestações da subjetividade dos pacientes têm um alcance limitado, considerando-se que cada ser humano tem um modo absolutamente único de lidar com a sua doença. Também os médicos - com as suas emoções, conflitos, desejos e fantasias, reagindo às doenças de seus pacientes e interagindo com estes, participam ativamente ria forma como cada um vivenciará e enfrentará a sua enfermidade. Há médicos que gostam de dizer que são eles que "ensinam os seus pacientes a ficarem doentes". A doença trazida pelo paciente, sob a forma de queixas, sintomas e sinais é, segundo eles, "organizada" pelo médico, na medida em que este privilegia alguns elementos e desconsidera outros. A doença é, então, devolvida ao paciente com um nome e um "Manual de Instruções", como se o médico ensinasse ao doente a maneira como ele vai adoecer daquela doença. Nem tanto poder ao ' médico, nem o poder absoluto ao paciente, mas estamos com Balint quando ele diz que 44 as respostas do médico podem e freqüentemente contribuem consideravelmente para a última e definitiva forma da doença à qual o paciente se acomodará" (Balint, 1975). Para finalizar, deixo em aberto a questão esboçada neste trabalho sobre a possibilidade do discurso psicológico acerca das reações emocionais ao adoecer ser incorporado criativamente pelos médicos, sem correr o risco de ser transformado tão somente em um "Manual de Conduta para Pessoas Doentes". Isto resultaria num empobrecimento da nossa proposta de interação com as equipes médicas, que visa, acima de tudo, valorizar a relação médico-paciente enquanto processo dinâmico e singular, contribuindo dessa forma para uma melhor atuação do médico (Cassorla, 1996). BIIBLIOGRAFIA BALINT, Michael - O médico, seu paciente, e a doença. Rio de Janeiro, Atheneu; 1975. CASSEM, Ned H. - Depressive disorders in the medically ill: an overview. Psychosomatics; 36: S2-S 10, 1995. CASSORLA, Roosevelt M. S. - Psiquiatria no hospital geral: reflexões e questionamentos. Revista ABP-APAL 18 (1): 1-8, 1996. CHIOZZA, Luis - Por qué enfermamos? La historía que se oculta en el cuerpo. Buenos Aires, Alianza Editorial; 1986. EIZIRIK, Cláudio Laks - Ensinando uma profissão impossível. Revista ABP-APAL 16 (4): 133-135; 1994. EKSTERMAN, Abram - Abordagem psicodinâmica dos sintomas somáticos. Revista Bras. de Psicanálise, nº 1, vol. 28: 9-24; São Paulo, 1994. FREUD, Sigmund - "Sobre o Narcisismo: Uma Introdução" (1914), Edição Standard das Obras Completas, vol. XIV, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1974. 12 ______ - "Luto e melancolia" (1915), Edição Standard das Obras Completas, vol. XIV, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1974. FURLANETTO, Leticia M. - Depressão em pacientes internados em Hospital Geral. Dissertação, de Mestrado, Instituto de Psiquiatria da UFRJ, 1995. HYMAN, Steven E. & TESAR, George E. - Manual of psychiatric emergencies. Boston, MA, Little Brown and Company, 1994. HOUSE, A.; MAYOU, R. e MALLISON, C. - Psychiatric Aspects of Physical Disease. London, Royal College of Physicians and Royal College of Psychiatrists, 1995. JEAMMET, P.; REYNAUD, M. e CONSOLI, S. - Manual de Psicologia Médica. Rio de Janeiro; Editora Masson; 1982. LIPOWSKI, Z. J. - Psychosocial reactions to physical illness. Canadian Med Assoc. J., vol. 128: 1069-1072; 1983. MANNONI, Maud - O Nomeável e o Inominável. A última palavra da vida. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editora; 1995. MELLO FILHO, Júlio - Concepção Psicossomática: Visão Atual. Rio de Janeiro, Edições Tempo Brasileiro; 1979. RODIN, Gary e VOHART, Karen - Depression in the medically ill: an overview, em Am J Psychiatry, 143(6): 696-705; 1986. SHAVELZON, José e colab. - Impacto Psicológico del Cáncer. Buenos Aires; Editorial Galerna; 1978. _____ - Cáncer, Enfoque Psicológico. Buenos Aires, Editorial Galerna; 1978. SONTAG, Susan - A Doença como metáfora. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1984. TlZÓN, J. L. - Componentes Psicológicos de Ia Práctica Médica: Uma perspectiva desde Ia atención primaria. Barcelona; Editora DOYMA; 1988. ZAIDHAFT, Sérgio - Morte e Formação Médica. Rio de Janeiro; Ed. Francisco Alves, 1990.