FONTES HISTÓRICAS EM REDE: O CASO DA HISTÓRIA DA PSIQUIATRIA NO BRASIL Cristiana Facchinetti1 Andréa O. Ribeiro2 RESUMO: O artigo ora apresentado é resultado de uma pesquisa, desdobrada em diferentes projetos, que teve início em 2004.3 O trabalho, que tinha o propósito de investigar as práticas psiquiátricas desenvolvidas no Hospício Nacional de Alienados (HNA), foi ampliado ao longo do período, tendo abarcado, ainda, outros pesquisadores, Ana T. A. Venancio e Flávio C. Edler. Além de uma preocupação estritamente acadêmica, seu desdobramento levou à elaboração de instrumentos de pesquisa de uso coletivo e manutenção de uma infra-estrutura virtual para pesquisadores interessados no tema da história da psiquiatria. Isso foi levado à cabo através da construção de um banco de dados on-line que disponibiliza e integra as fontes dos diferentes acervos em que cada um dos pesquisadores desenvolve suas atividades. Assim, a principal discussão deste artigo centra-se na interação entre documentos clínicos e históricos com a tecnologia que se tornou uma questão fundamental para nosso trabalho, graças às possíveis interfaces que as novas tecnologias oferecem como modo distinto de produzir e difundir o conhecimento obtido ao longo da pesquisa. Palavras-chave: história; psiquiatria; Brasil; prontuários; redes; informação. ABSTRACT: The paper presents some results of a research, split into different projects, which began in 2004. The inquiry that had the purpose of investigating the psychiatric practices developed in the Hospício National de Alienados (HNA), has been extended over the period, having included Ana T. A. Venancio and Flavio C. Edler as inquirers. Apart from strictly academic concern, its deployment has led to the development of tools for collective use and maintenance of a virtual infrastructure for researchers interested in the issue of History of Mental Health. This aim has been achieved by building a database online which provides and integrates many collections of clinical sources from 1900 to 1960, according to the development of researchers’ activities. Thus, the main discussion on this paper is centered in the interaction between clinical and historical documents with technology, which has become a crucial issue for this work, thanks to the different interfaces that the new technologies offer as a distinctive way to produce and spread the knowledge obtained during survey. Key-words: history; psychiatry; Brasil; clinical documents; networks; information. 1 Psicanalista, pesquisadora do Depto de Pesquisa da COC/FIOCRUZ e professora do Programa de PósGraduação em história das Ciências e da Saúde (FIOCRUZ). 2 Bolsista do Convênio FIOCRUZ/FAPERJ para Técnicos e Tecnologistas. 3 Apoio: CNPq/Fiocruz e FAPERJ/Fiocruz 1 1. O HOSPÍCIO PEDRO II E SEUS DOCUMENTOS CLÍNICOS.4 De acordo com diversos autores5, desde o século XIX a medicina e a sua especialidade psiquiátrica desempenharam importante papel na modernização da sociedade brasileira. Nesse cenário, teve especial importância a fundação do Hospício de Pedro II. Esta foi a primeira instituição psiquiátrica no Brasil, proposta em decreto por ocasião da coroação do imperador Dom Pedro II em 1841, sendo inaugurada em 1852, na Praia Vermelha6, Rio de Janeiro. De fundamental importância para o processo de institucionalização da psiquiatria no Brasil, esteve no epicentro de diversas mudanças da psiquiatria nacional, espelhando nele o crescimento de sua legitimidade. Criado para tratar alienados curáveis7 e administrado pela Santa Casa de Misericórdia, que desde 1832 recebia parte dos “loucos” encontrados nas ruas da cidade, o Hospício Pedro II foi construído e mantido através de donativos, subscrições públicas e loterias, sendo subordinado ao Ministério de Estado dos Negócios do Império. A partir de 1891, com o advento da República, passou a se chamar Hospício Nacional de Alienados (HNA) 8 tendo ao seu dispor verbas governamentais prescritas no Orçamento Geral da União, e estando, a partir de então, subordinado ao Ministério do Interior. Em 1911 passou a ser chamado de Hospital Nacional de Alienados9, ficando subordinado ao Ministério da Justiça e dos Negócios Interiores entre 1927 e 1930, quando sua pasta foi para o recém criado Ministério da Educação e da Saúde Pública (MESP). Em 1943, ganhou o nome de Centro Psiquiátrico Nacional (CPN), instituição forjada a partir do desmembramento do Hospital Nacional de Alienados, resultado da reestruturação promovida pelo MESP como parte das reformas planejadas pelo então diretor do Serviço Nacional de Doenças Mentais (órgão subordinado ao MESP),10 Adauto Botelho, a partir de 1938. 4 Referências retiradas de Facchinetti (2008). Costa, 1976; Machado et alii, 1978; Luz, 1982; Amarante, 1982; Portocarrero, 1990. 6 Na época chamada de Praia da Saudade, na chácara de Vigário Geral. 7 Isto é, pacientes passíveis de receberem alta de modo a corroborar a legitimidade da psiquiatria nascente 8 Decreto 142-A, de 11/1/1890. 9 Decreto 8.834 de 11/7/1911. Segundo Engel, a nova denominação não pegou: o HNA continuou a ser conhecido como hospício. 10 O Serviço Nacional de Doenças Mentais (SNDM) foi criado em 1941, substituindo o Serviço de Assistência a Psicopatas (SAP), mantendo-se, porém a subordinação ao MESP. Para maiores informações vide Venancio (2004). 5 2 Algumas colônias, inicialmente subordinadas ao hospício, foram também construídas para dar conta do problema da superlotação enfrentado pelo HNA ainda no início de seu funcionamento. Então, a partir de 1887, foram inauguradas as colônias masculinas de São Bento e de Conde de Mesquita, na Ilha do Governador. Em 1923, essas colônias foram desativadas e substituídas pela Colônia Agrícola de Jacarepaguá (posteriormente chamada de Colônia Juliano Moreira e hoje Instituto Municipal de Assistência a Saúde Juliano Moreira).11 Para as mulheres foi criada a Colônia de Alienadas de Engenho de Dentro, em 1911, que em 1937, na reestruturação do MESP, foi ampliada e transformada em Colônia Gustavo Riedel, para homens e mulheres, e denominada, a partir de 1943, de Centro Psiquiátrico Nacional.12 Para alienados perigosos havia uma seção no HNA, a Seção Lombroso, criada em 1916, que foi transformada em Manicômio Judiciário em 1921, no mesmo local onde ainda hoje funciona o Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Heitor Carrilho (HCTPHC).13 Assim, a chegada do século XX se fez assinalar pela introdução de novas instituições e práticas asilares. De fato, com a entrada de Juliano Moreira como diretor do Hospício, em 1903, implantou-se um novo sistema asilar, marcado pela preocupação de fazer a psiquiatria nacional participar da produção científica ocidental, por meio do rompimento com a tradição francesa e pela introdução do modelo alemão (Facchinetti, 2004). É neste contexto que o saber classificatório da psiquiatria passou a ser inserido na prática psiquiátrica: como um instrumento médico-científico para a ação do Estado e voltada para um maior controle da população e da saúde, por meio da definição que tornava patológicos os indivíduos desviantes do padrão da normalidade e ameaçavam assim a disciplina da sociedade (Portocarrero, 2002). A partir da entrada de Juliano no Hospício e na Assistência, as questões de cunho científico, como o conceito da doença mental, os critérios de classificação, o embasamento 11 Vale lembrar que a documentação dos pacientes para lá transferidos os acompanhou, apesar das queixas de Moreira (Relatório do diretor do HNA) de que não se tenha feito isso adequadamente. 12 Para maiores informações, vide Oliveira (2004). 13 Para maiores informações, vide Maciel (1999). 3 médico e terapêutico, entre outros, começaram a ser debatidas sob novos parâmetros e, sobretudo, trazidas para a prática psiquiátrica. Assim, a entrada de Juliano Moreira foi pautada pelo intuito de instituir um controle centralizador, bem como diretrizes uniformes de conduta científica, não apenas para o HNA, mas para toda a psiquiatria nacional. 2. A IMPORTÂNCIA DOS DOCUMENTOS CLÍNICOS PARA A PESQUISA HISTÓRICA Apoiada pelos estudos foucaultianos e pelas propostas da História Nova, a História das Ciências tem estabelecido esforços no sentido de desconstruir a idéia de linearidade, progresso e triunfo da ciência e de desmistificar suas figuras importantes. Igualmente, a intensa argumentação acerca da diferença entre o que é posto em discurso e o que é posto em prática impôs também considerar, para além dos documentos oficiais, os agentes sociais, as instituições em que estes se movimentam, suas negociações e suas atividades diárias. Tal proposta abriu espaço para novos personagens e para a busca de novas fontes. No caso dos estudos acerca da loucura, a história das diversas ciências que conformam o campo da saúde mental também tem sido revista através do exame de depoimentos, artigos em revistas, história oral e biografias. É nessa via que os documentos clínicos ganham interesse. Segundo Bertolli (2006,12), nele médicos, doentes e doenças são colocados em destaque por seu potencial explicativo "não só dos processos biológicos e psicológicos, mas também de múltiplas instâncias da vida social" a partir de um "movimento renovado" que atingiu as Ciências Humanas nas últimas décadas. Os arquivos médicos se mostram como novas perspectivas de análise, por serem fontes originais para o estudo das atividades das instituições e dos agentes de saúde, mas também por permitirem melhor compreensão das experiências coletivas e individuais relativas à enfermidade. Deste modo é que consideramos os documentos clínicos do HNA, parte fundamental da pesquisa, como de grande importância para a história da psiquiatria no país. Os motivos são os mais diversos: em primeiro lugar, eles nos permitem cotejar a paulatina incorporação das novas referências teóricas e de suas conseqüências para as práticas do 4 maior modelo assistencial para alienados, referência de todos os outros estados brasileiros da época. Vale ressaltar que ali se formulou, sob a liderança de Juliano Moreira, por exemplo, propostas para novas formas de tratamento como o open door, a klinoterapia e o regime hetero-familiar, bem como propostas de reorganização da assistência a partir dos referenciais modernos da psiquiatria alemã. Além disso, os prontuários nos oferecem um novo modo de conhecer as práticas de rotina institucional, o contexto histórico e cultural, os diagnósticos e terapêuticas utilizados no período, entre outros. A fonte, que poderia parecer de interesse apenas para o conhecimento acerca dos referenciais teóricos utilizados, permite observações acerca do spirit du temps do período em que foi produzida. Mais ainda, os documentos clínicos, produzidos próprio exercício do poder médico nas primeiras décadas do século XX, tornaram-se instrumentos úteis para trazer à tona alguns vestígios da vida dos “homens infames” (Foucault, 1992, apud Wadi, 2006, p.287319). Isso torna possível a reconstrução histórica, ainda que de forma lacunar, das trajetórias de vida do paciente (que, silenciado no discurso oficial, surge volta e meia nas aspas das observações médicas dos prontuários), e os processos de subjetivação ali imbricados (Foucault, 2000; Wadi, 2006). Na mesma direção, Cunha (1986) afirma que através dos documentos médicopsiquiátricos é possível perceber com maior clareza a dimensão de poder da qual está imbuído o alienista, representante do saber instituído, não mais na fala generalizante da ciência, mas na aplicação desse saber a casos específicos, individuais, irredutíveis. Ao dar voz aos pacientes, sujeitos tradicionalmente silenciados, os documentos clínicos permitemnos apreciar as contradições e os embates que moldaram o saber científico representado pelo corpo médico mental brasileiro, responsável pela institucionalização da psiquiatria no país. Engel, em sua análise sobre o processo de construção da loucura como doença mental no Rio de Janeiro, também destaca a utilização de documentos clínicos psiquiátricos como imprescindíveis para revelar seus atores como personagens "de carne e osso, com suas angústias, suas contradições, suas ambigüidades, suas sujeições e rebeldias" (Engel, 2001:12). Para a autora, permitir que os personagens dessa trama falem por si mesmos é 5 admitir que há um universo múltiplo, diverso e contraditório de manifestações culturais que formam uma sociedade (Engel, idem). Assim, para um pesquisador das ciências humanas, os documentos clínicos são entendidos como produto cultural, determinado histórica e socialmente, e marcam também o encontro, segundo Bertolli (1996), entre o saber médico e seu objeto de estudo, o enfermo. Essas características permitem que se compreenda os documentos clínicos como um lócus privilegiado de embate entre a teoria médica vigente, os processos de subjetivação ali envolvidos e um registro de informações que reivindica para si "a condição de discurso verdadeiro e neutro, porque amparado na ciência e com função de elucidar um ‘caso clínico’” (Bertolli, 2006, 13). Aqueles que acompanham a luta pela Reforma Psiquiátrica desde a década de 1980 são testemunhas do quanto é necessário encontrar meios para devolver aos chamados loucos as suas próprias vidas. Para tanto, segundo Pelbart, seria preciso estabelecer novas cartografias para essas vidas, capazes de se contraporem às forças que podem transformar a desmanicomização apenas em novas e refinadas tecnologias de normatização subjetiva, ou então em mero abandono sob a máscara da reinserção social (Pelbart, 1995 apud Wadi, 2006, p.287-319). Assim, o uso dos documentos clínicos permite a circunscrição de um objeto que é histórico e político: genealogia e biopolítica estão aí imbricadas. O mapeamento desses espaços sociais, institucionais e científicos e das resistências a eles, trazidas à tona na voz dos excluídos pela via de tais documentos, constitui-se, portanto, como um modo de contribuir para questões que continuam na ordem do dia. Como podemos ver, alguns autores vêm problematizando a utilização de documentos clínicos em pesquisas históricas e destacado sua relevância para a compreensão acerca da psiquiatria no Brasil (Bertolli, 1992; Cunha, 1986; Engel, 2001; Luz, 1982; Santos, 2008; Wadi, 2002). Entretanto, as informações contidas nessas fontes ainda não foram suficientemente sistematizadas, de modo que a questão das práticas psiquiátricas brasileiras, seus condicionantes e referenciais não podem ser considerados esgotados. Finalmente, embora não fosse o foco inicial da pesquisa, o contato com as fontes do HNA revelou-nos outros documentos de grande interesse para esta investigação: cartas pessoais e/ou de autoridades (policiais, políticas, jurídicas), autorizações judiciais e requerimentos policiais para a internação do paciente; recortes de jornal anexados aos 6 prontuários, fichas ou livros de observação e, muito freqüentemente, o contato (endereço ou telefone) de um parente ou autoridade para informações (alta, evasão, falecimento). É também bastante freqüente encontrar dados antropométricos (medidas do crânio do interno e/ou o desenho de sua circunferência), assim como dados relativos ao percurso do paciente dentro da instituição. A quantidade e complexidade desse conjunto documental, bem como o estado precário de sua conservação, fazem desse material um acervo que convoca outros intérpretes. 3. PERIPÉCIAS PARA UMA PESQUISA EM FONTES PRIMÁRIAS A trajetória dessas diversas instituições, iniciada com a abertura do Hospício Pedro II, se reflete nos caminhos e descaminhos dos documentos clínicos por elas produzidos. De fato, a coleta do material durante a pesquisa foi idealizada como meio de reunir os documentos de valor histórico produzidos no interior do antigo hospício, que foram pulverizados nas mais diferentes instituições, por conta da trajetória institucional trilhada, encontrando-se atualmente distribuídos em quatro diferentes acervos. Como dissemos acima, durante os primeiros anos do século XX, a psiquiatria ampliou seu objeto e o hospício foi reformado para se transformar em um hospital sem grades, muros altos nem coletes de força. Foram criadas as colônias agrícolas e a produção do open door, dando a ilusão de liberdade ao doente, com o objetivo de deixá-lo mais receptivo ao tratamento. A clinoterapia e os banhos foram também implantados, marcando sua reforma como modelo para todas as outras instituições asilares do país. Foi no cenário das mudanças que, em 1911, foi instalada a Colônia das Alienadas do Engenho de Dentro, ocupada inicialmente pelo excesso de pacientes crônicos do sexo feminino do Hospício Nacional de Alienados para lá enviados, junto com seus documentos clínicos. No ano seguinte, a Colônia foi ampliada com um pavilhão para 200 internas, posteriormente passando a receber pacientes de ambos os sexos. Se até 1918 a Colônia teve um papel apenas complementar no que tange a assistência psiquiátrica do Hospício Nacional, a partir desse ano o papel da Colônia sofreu reformulações que fizeram dela destaque na assistência psiquiátrica do período. Assim, paulatinamente, a Colônia de 7 Psicopatas do Engenho de Dentro (1932), firmou-se como uma proposta hegemônica em relação ao Hospício Nacional da Praia Vermelha (Oliveira, 2004). Em 1921 surgiu também o Manicômio Judiciário sob a direção de Heitor Carrilho. Os pacientes da Seção Lombroso do HNA foram transferidos para a nova instituição que passou a abrigar os loucos criminosos e/ou perigosos. Com eles, mais uma vez, suas papeletas, fichas e prontuários. Em 1938, Adauto Botelho assumiu a direção da Assistência de Alienados, e propôs a criação do Serviço Nacional de Doenças Mentais (SNDM)14, renomeando a Colônia como Centro Psiquiátrico Nacional (Oliveira, 2004). Desde o início de sua gestão, Adauto Botelho queria transferir o Hospício Nacional de Alienados da Praia Vermelha para o recém criado Centro Psiquiátrico Nacional. Em 1943 esta transferência foi realizada, e com ela o acervo clínico e administrativo acumulado durante cem anos foi deslocado para o Engenho de Dentro. O Hospício Nacional passou a fazer parte do complexo do Engenho de Dentro com o nome de Hospital Pedro II.15 Ficou na Praia Vermelha o Pavilhão de Observação e Diagnóstico, que passou a se chamar Instituto de Psicopatologia, hoje o Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ex-IPUB - Instituto de Psiquiatria da Universidade do Brasil) e o Instituto de Neuro-Sífilis, hoje o Instituto Philippe Pinel (Oliveira, 2004). Ambos, portanto, foram responsáveis pela permanência de um acervo de documentos clínicos, até hoje parcialmente encontrados no IPUB. A documentação transferida para o CPN na década de 1940 espalhou-se pelas seções, por salas inteiras do complexo hospitalar, e aos poucos foi transformada de arquivo morto em lixo, pelas péssimas condições de armazenamento e manutenção do material. Com a mudança da capital federal e o processo de descentralização / municipalização, parte considerável do patrimônio acumulado ficou relegada ao segundo plano. No que toca à saúde, privilegiou-se a assistência e esqueceu-se do aspecto histórico-científico do projeto. A Secretaria de Saúde tem se voltado para outras prioridades. Mas apesar de relegado, é inegável este patrimônio arquivístico e bibliográfico que o Rio de Janeiro possui, assim como a importância histórica da antiga capital como caixa de ressonância para todo o país. No entanto, é impossível determinar o volume exato dessas 14 15 Que vai se transformar em DINSAN (Divisão Nacional de Saúde Mental) na década de 1960. Depois Hospital Odilon Galloti e hoje o Centro Comunitário. 8 fontes16, dadas às condições de conservação em que se encontram e a falta de inventários. Além disso, o acesso a esse material é muito precário; em algumas instituições é restrito ou impedido, em outras a falta de tratamento e higienização impedem o manuseio do material. Lastimavelmente, a história da psiquiatria está em risco eminente de perder definitivamente parte desse precioso acervo. Esta realidade vem sendo repetidamente discutida nos textos e nos encontros entre pesquisadores da área e é hegemônica a constatação da urgente necessidade de ações que revertam, de modo permanente, o quadro a que nos referimos. Outra característica dessa dispersão diz respeito às diferentes instâncias políticas que passaram a controlar os acervos. Deste modo, grande parte dos documentos clínicos produzidos pertence hoje ao Ministério da Saúde e está sob a guarda do Instituto Municipal de Assistência a Saúde Nise da Silveira (IMAS-NS), no Engenho de Dentro; outros pertencem à Secretaria Municipal de Saúde e estão sob a guarda do Instituto Municipal de Assistência a Saúde Juliano Moreira (IMAS-JM), em Jacarepaguá. Os livros de observação e índices de pacientes do HNA estão sob a guarda do IPUB, instituição originária do Instituto de Psicopatologia e Assistência a Psicopatas (1938), e pertencem à UFRJ. Uma outra parte, a que advém da extinta Seção Lombroso do HNA, pertence hoje ao Estado do Rio de Janeiro, e pode ser encontrada no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Heitor Carrilho (HCTPHC), no Catumbi, subordinado a Secretaria de Administração Penitenciária. Já o material referente à Colônia Agrícola de Jacarepaguá pertence ao acervo da DINSAN e está sob a guarda do IMAS-JM, da Secretaria Municipal de Saúde, para onde foram deslocados documentos do HNA, bem como os advindos das antigas Colônias de São Bento e Conde de Mesquita. Finalmente, farta documentação do próprio SNDM foi alocado no acervo da DINSAN, e também está sob a guarda do IMAS-JM. Embora a Base de Documentos Clínicos tenha tido como proposta recuperar as informações contidas em prontuários produzidos entre 1900 e 1960, o que corresponde ao interesse dos pesquisadores envolvidos na identificação das relações entre as práticas psiquiátricas e os discursos oficiais da Assistência na primeira metade do XX, os acervos abrigam documentos clínicos produzidos desde 1841 (desde o anexo para alienados da Santa Casa) até as últimas décadas. 16 Uma das tentativas de circunscrever ao menos o número de entradas de pacientes está sendo feita nos livros de matrículas do IPUB. 9 Deste modo, ainda que se possa afirmar a existência consistente de fontes e a relativa facilidade em localizá-las, as dificuldades de acesso, a dispersão dos acervos e a falta de inventários disponíveis ao pesquisador são obstáculos à utilização e publicização do material. 4. A VIRTUALIZAÇÃO COMO SOLUÇÃO: A BASE DE DADOS DE DOCUMENTOS CLÍNICOS DA PSIQUIATRIA NACIONAL Tendo em vista a precariedade dessas fontes tão importantes para a história da saúde mental no Brasil é que ao longo da pesquisa17, decidimos desenvolver um Banco de Dados acerca das práticas psiquiátricas no Brasil. A primeira base a ser idealizada foi a Base de Documentos Clínicos. Isso porque o projeto de pesquisa original (FACCHINETTI, C. Diagnósticos de Uma Nação, 2004, apoio CNPq/FIOCRUZ) tinha como fundo a pesquisa em fontes documentais, no caso, os prontuários médicos produzidos no HNA oriundos do acervo do IMAS-NS. A princípio, a transposição desses prontuários para planilhas do Excel era feita de acordo com o modelo de prontuário encontrado no acervo do IMAS-NS, de forma que os campos existentes nos prontuários eram transpostos para as colunas e, a partir daí, as informações eram inseridas nas planilhas. Com o desdobramento do projeto, outras instituições herdeiras do HNA e que também mantinham acervos, como o HCTPHC, o IMAS-JM e o IPUB, foram incorporadas, e houve então a necessidade de se repensar a estrutura das planilhas, assim como a forma como os documentos vinham sendo interpretados. Após muitas reuniões de equipe, chegou-se a um modelo de preenchimento dos campos que se adequava à variedade de tipos documentais encontrados (prontuários e fichas de observação encontradas no IMAS-JM, livros de observação e laudos médicos do HCTPHC e livros de observação do IPUB). Produziu-se, além disso, um manual de preenchimento para uso do pesquisador. Alguns campos criados no modelo de preenchimento original foram suprimidos e outros foram adicionados para atender a essa necessidade. 17 “A prática psiquiátrica e o campo biomédico no Brasil (1900-1960)” (apoio: FAPERJ/FIOCRUZ) 10 Como resultado desse processo, temos hoje uma estrutura definida para a Base de Documentos Clínicos, com trinta e oito campos. Destes, trinta são passíveis de pesquisa: ano, instituição/seção, nação/estado, classe, cor, sexo, constituição, temperamento, entrada, idade, estatura, estado civil, profissão, residência, procedência, requerente, diagnóstico 1, diagnóstico 2, diagnóstico 3, alta/saída, falecimento, causa mortis, observações médicas, palavras-chave, outras internações/transferência, terapêutica, delito, instrução, laudo, documentos anexo; e oito campos ocultos (nome, médico, diretor, médico de alta/falecimento, outras identidades, número de registro e observações do pesquisador), para controle da equipe de pesquisa. A base conta hoje com cerca de três mil e quinhentos documentos clínicos já inseridos. A estruturação dessa base foi trabalhosa e além dela mesma, gerou um rico material de apoio, como: o Glossário de Termos Médicos, a Lista de Diretores e Médicos do Hospital Nacional de Alienados, além de amplo material informativo (textual, visual e sonoro) sobre as seções e pavilhões do HNA, sobre as instituições mantenedoras de acervo e sobre os diagnósticos da época. Esse trabalho de produção paralelo motivou a criação de outras bases, como a Base Biográfica sobre os médicos que trabalharam e se formaram no HNA; a Base Bibliográfica com o material produzido e usado como referência para os pesquisadores envolvidos no projeto; o Dicionário de Classificações Psiquiátricas, com verbetes produzidos por especialistas da área (coord. Cristiana Facchinetti); e a Base de Periódicos Não-Correntes da Biblioteca de Manguinhos/Fiocruz, com material de pesquisa produzido por uma equipe do LAPS - ENSP/Fiocruz (coord. Paulo Amarante). Diante de tão vasto material informativo, foi preciso contar com a colaboração do Serviço de Gestão da Informação da COC / Fiocruz para descobrir não só como disponibilizar esse material para o maior número de usuários, mas também como manter a identidade dessas várias bases, evitando sua dispersão no espaço cibernético. Estas bases de dados deverão estar integradas à Biblioteca Virtual em Saúde História e Patrimônio Cultural da Saúde (BVS HPCS), coordenada pela COC/Fiocruz em parceria com o Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde/BIREME/OPAS/OMS. A BVS HPCS será um espaço de convergência da informação e conhecimento científico e técnico sobre a história da saúde mental, tornando 11 disponível para os pesquisadores deste campo, e para a sociedade em geral, os resultados produzidos por este projeto de pesquisa. É por isso que profissionais da área das Ciências da Informação devem e são, cada vez mais, demandados a colaborar em projetos de pesquisa que envolvem a manutenção, produção e divulgação de informações produzidas pelos profissionais das ciências humanas e sociais. No caso específico, o Serviço de Gestão da Informação da COC/Fiocruz trabalha em conjunto com a equipe de pesquisadores em História das Ciências da Saúde da instituição com o objetivo de produzir bases de dados adequadas às necessidades do tipo de material que vem sendo produzido. Quanto aos objetivos relacionados à formação de pessoal científico, aos meios de viabilização, potencialização e divulgação de resultados, a formação do banco e sua disponibilização visam contribuir para o aprimoramento da qualidade de outras pesquisas individuais através da ampliação da alimentação do banco de dados. Objetiva-se, assim, permitir a integração virtual do maior número possível de prontuários do HNA, de modo a permitir a reunião coesa de informações do conjunto documental de prontuários dispersos em diferentes acervos e fomentando, deste modo, a multiplicação de pesquisas com as fontes e a conseqüente ampliação dos debates. Tais condições criam um ambiente de desenvolvimento intelectual que, a partir de uma infra-estrutura adequada, resultará no adensamento da qualidade do trabalho acadêmico. Pretendemos efetuar, assim, uma atividade sistemática de divulgação e extroversão dos resultados através de intercâmbio com pesquisadores de instituições nacionais e internacionais e por meio da discussão dos resultados parciais, bem como pela publicação, sob a forma de livros ou artigos, de modo a alimentar o debate das questões em foco. 4.1. A BIBLIOTECA VIRTUAL EM SAÚDE, HISTÓRIA E PATRIMÔNIO CULTURAL DA SAÚDE (BVS HPCS) A Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) é um espaço virtual que abriga uma rede de fontes de informação e oferece acesso à informação a profissionais, pesquisadores, gestores, estudantes e outras pessoas interessadas na área. Usuários de níveis e localização distintos podem interagir e navegar no espaço de uma ou várias fontes de informação, 12 independente de sua localização física. As fontes de informação são geradas, atualizadas, armazenadas e operadas virtualmente por produtores, integradores e intermediários de modo descentralizado, obedecendo a metodologias comuns (BIREME/OPS/OMS, 2007). A informação é organizada em uma estrutura que integra e interconecta bases de dados referenciais, diretórios de especialistas, eventos e instituições, catálogo de recursos de informação disponíveis na Internet, coleções de textos completos, com destaque para a coleção SciELO (Scientific Eletronic Online) de revistas científicas, serviços de disseminação seletiva de informação, fontes de informação de apoio à educação e a tomada de decisão, notícias, listas de discussão e apoio a comunidades virtuais (BIREME/OPS/OMS, 2007). A participação e convergência de instituições, sistemas, redes e iniciativas de produtores, intermediários e usuários na operação de redes de fontes de informação locais, nacionais, regionais e internacionais, de acesso aberto e universal, são a base da estrutura fundamental da manutenção das BVSs, por sua vez pilar do modelo de gestão da Bireme/OPAS. Atualmente, todos os países da América Latina e do Caribe participam direta ou indiretamente dos produtos e serviços cooperativos gerados pela BVS, o que envolve mais de mil instituições em 30 países (BIREME/OPS/OMS, 2007). A estrutura da BVS se divide em quatro áreas. A primeira é a de metabusca, onde se realiza a busca simultânea nas principais fontes de informação. A segunda é a de fontes de informação, que apresenta a coleção de fontes de informação organizada e agrupada por tipo de informação (base de dados bibliográficos, diretórios, catálogos, terminologia, etc.). A terceira é a área de rede, onde se encontram os links para a rede BVS, SciELO. E a última é a área de destaques e notícias (BIREME/OPS/OMS, 2007). A área de fontes de informação está dividida em Busca Bibliográfica, onde estão disponíveis as bases de dados bibliográficos, divididas por grupos (LILACS, Medline, a biblioteca eletrônica SciELO, a Biblioteca Cochrane, as bases de dados especializados e de organismos internacionais); Acesso a Documentos, onde está disponível o serviço SCAD que permite o acesso ao texto completo através do envio de cópias dos documentos por meio eletrônico, correio ou fax, além de um catálogo de revistas em saúde disponíveis na Rede da BVS; Diretórios e Portais, onde está o diretório de eventos e instituições da Rede BVS, um catálogo de fontes de informação em saúde disponível na Internet e selecionadas 13 segundo critérios de qualidade, e o link para o Portal de Comunicação Científica em Saúde, onde se pode acessar o Portal DeCS, e ter acesso à lista de Descritores em Ciências da Saúde; Comunicação, que é o espaço destinado para divulgação, comunicação e notícias da Rede BVS; e por fim, Sobre a BVS, onde se encontram as informações sobre a BVS e também sobre a Bireme, instituição coordenadora da BVS (BIREME/OPS/OMS, 2007). Pensa-se em adequar os produtos do projeto de pesquisa em andamento, A Prática Psiquiátrica e o Campo Biomédico no Brasil (1900-1960), a área de fontes de informação e incluí-la na estrutura da BVS História e Patrimônio Cultural da Saúde, que segue o mesmo formato das demais bibliotecas da Rede BVS. As diversas bases poderão ser encontradas na área de informações, assim como, os diretórios de pesquisa (links para os projetos participantes) e o espaço para intercâmbio científico (lista de discussão sobre temas de interesse da área de saúde mental). Na área de metabusca poderá ser feita a busca por palavras, por relevância ou diretamente na web. A busca também poderá ser feita na área de informações. Os resultados serão mostrados separadamente para cada base de dados disponível. Para fazer uma busca diretamente na base de dados desejada, basta clicar nos resultados dessa base e uma nova janela se abrirá permitindo ao usuário localizar informações somente na base selecionada. O formato de apresentação dos resultados é similar a outros métodos de busca que utilizam a interface de busca IAH18 (BIREME/OPS/OMS, 2007). A interface IAH oferece a busca livre (por palavras) e a busca avançada ou combinada, que permite a busca em diversos campos (descritor de assunto, autor, ano de publicação, etc) simultaneamente (BIREME/OPS/OMS, 2007). Já a busca por descritores de assunto - DeCS (Descritores em Ciências da Saúde)/ MeSH (Medical Subject Headings) é uma interface que opera a metabusca nas fontes de informação que usam o vocabulário controlado DeCS/MeSH no processo de indexação do seu conteúdo, como é o caso das diversas bases aqui reunidas. Idem Os Descritores em Ciências da Saúde são um vocabulário controlado estruturado usado para representar o conteúdo dos documentos nos idiomas inglês, português e espanhol. Foi desenvolvido a partir do MeSH da U.S. National Library of Medicine. Os conceitos que compõe o DeCS 18 Interface de Acesso para Informação em Saúde (na sigla em inglês) desenvolvida pela BIREME/OPAS em 1999. 14 são organizados em uma estrutura hierárquica permitindo a execução da busca em termos mais amplos ou mais específicos ou em todos os termos que pertençam a uma mesma estrutura hierárquica. A atualização dos termos descritores é feita periodicamente pelo Comitê Técnico DeCS, visando manter a fidedignidade dos termos de busca, garantindo assim melhores resultados. Além disso, a confluência de descritores DeCS/MeSH permite ao usuário um maior espectro de busca, uma vez que este vocabulário é trilíngüe (inglês, espanhol e português) (BIREME/OPS/OMS, 2007). 5. DISCUSSÃO DA ADEQUAÇÃO DAS FONTES AO FORMATO BANCO E AO FORMATO DIGITAL A produção da Base de Documentos Clínicos foi um trabalho extenso da equipe de pesquisa que gerou bons frutos e outras bases de dados. Mas, para contribuir com a discussão, é preciso considerar as dificuldades encontradas para se chegar ao atual estado da arte. O primeiro desafio encontrado foi o de decidir como armazenar o material. A idéia de digitalização integral das fontes, ainda que sonhada inicialmente, teve que ser deixada de lado em virtude de problemas diversos, como o alto custo do projeto, diferentes posições acerca da proposta por parte das instituições mantenedoras do acervo, entre outras. Tampouco nos servia para a pesquisa apenas a localização do material e sua organização, uma vez que a dificuldade de acesso ao mesmo implicava na coleta do maior número possível de informações a cada visita ao acervo. Por outro lado, optamos por nos centrar em temas caros à pesquisa dos pesquisadores e de seus bolsistas e alunos. A escolha de um modelo de apresentação das informações coletadas, que não espelhasse o documento na íntegra, nem tampouco o modelo básico de referência bibliográfica/arquivística, respondeu, assim, a uma necessidade prática dos pesquisadores envolvidos relacionada diretamente ao objeto de pesquisa e às questões por ele suscitadas; correspondeu também à forte impressão causada pelo contato com fontes de tão difícil acesso (em vias de se perder) e, ao mesmo tempo, tão importantes para a História das Ciências; foi levado em consideração, igualmente, o forte potencial de divulgação por meio digital. 15 O próximo desafio foi o de reunir fontes documentais de tipos diferentes (documentos clínicos, fichas de observação, laudos periciais e livros de observação), mas similares, em uma mesma base. Para tanto, foi necessário padronizar, ou melhor, criar um padrão de inserção dos documentos na base. Se a tarefa parece simples vista retrospectivamente, é preciso dizer que a necessidade de encontrar um meio termo entre a capacidade de armazenamento de uma base de dados e a infinidade de informações contidas nos documentos originais demandou muito esforço e discussão não só dos pesquisadores envolvidos, que tiveram que delimitar quais e como os temas de suas pesquisas poderiam e deveriam ser traduzidos/reduzidos para “caber” no instrumento de pesquisa idealizado, mas também dos profissionais das Ciências da Informação, que se esforçaram para entender a especificidade do produto que estava sendo criado e a necessidade e até exigência de não ser demasiadamente reducionista, de forma a dar conta da riqueza do material pesquisado. Então, como disponibilizar informações contidas em fontes de formato variado e criar um padrão de informação? A primeira tarefa a ser feita foi a revisão dos campos criados na primeira versão da Base de Documentos Clínicos. Com o acesso as novas fontes documentais, depositadas nos acervos do HCTPHC, IPUB e IMAS-JM, novos campos tiveram que ser criados, como delito e laudo, por exemplo, para dar conta das informações presentes nessas novas fontes. Por outro lado, alguns dos campos já existentes não davam conta dessas informações, como, por exemplo, o campo haveres. A solução encontrada foi a reformulação dos campos, de forma que eles não mais refletissem em suas nomenclaturas exatamente o documento, que tornaria a base limitada em termos de referências. As nomenclaturas de alguns campos foram alteradas, privilegiando-se o tipo de informação constante no documento. Os campos nação e estado foram mesclados em um mesmo campo nomeado nação/estado, assim como o campo seção (a que pertence o paciente dentro da instituição) tornou-se instituição (criado a partir da necessidade em se diferenciar, o HNA da CJM ou do MJ), passando a chamar-se instituição/seção. O campo alta passou a ser nomeado alta/saída, por se entender que nem sempre o paciente deixa a instituição por alta médica, e o campo transferência passou a ser nomeado outras internações/transferência, para dar conta das reinternações do paciente no interior da instituição. O campo correspondência foi substituído por documentos anexos, 16 uma vez que existem outros tipos de documentos acoplados às fontes documentais além de cartas; exames, recortes de jornal e laudos também estão presentes, e a criação de novos campos só poderia ser feita quando não houvesse a opção de ampliar a capacidade de inserção de um campo já existente de agregar informações similares. Foram criados campos como localização do acervo, para permitir o acesso às fontes primárias pelo pesquisador interessado, e outras identidades19, para dar conta dos diferentes nomes e sobrenomes que um mesmo paciente apresenta em mais de uma entrada e quantas são essas entradas. Um dos campos, haveres, foi excluído, por se entender que as informações dele constantes não eram suficientemente relevantes, pois não permitiam a quantificação da informação. Finalmente, um dos campos diagnóstico foi também retirado, por se entender que a manutenção de três campos de diagnóstico era suficiente para abrigar os diagnósticos permanentes e provisórios definidos pelos médicos. Os campos número de registro e observações do pesquisador dizem respeito a informações necessárias para a verificação e controle dos registros inseridos na base. Os demais campos foram mantidos e, em geral, se referem aos dados pessoais, descrições físicas e sociais do paciente ou a movimentação do mesmo dentro da instituição. Definido um novo formato para a planilha de preenchimento da base (ver Anexo/Figura 1), uma outra questão que preocupava a equipe de pesquisa era o sistema de recuperação de informação que seria utilizado. Como garantir que as informações inseridas e o material produzido pudessem ser encontrados, através de pesquisa feita por um usuário que não teve acesso as etapas do trabalho de produção da Base de Documentos Clínicos? Mais uma vez, o apoio dos profissionais das Ciências da Informação foi indispensável. Muitos dos campos criados se prestam facilmente à recuperação, como aqueles que abrigam datas e números (ano, entrada, alta/saída) ou poucas variáveis (sexo, cor, estado civil). Mas muitos dos campos contêm uma infinidade de variáveis, como temperamento, constituição, terapêutica, de difícil quantificação. Nesse grupo, o campo que apresentou o maior desafio para a equipe de pesquisa foi, sem dúvida, o de observações médicas. Isso porque, na primeira versão da base, as informações contidas nos documentos originais referentes a esse campo, eram transcritas, quase literalmente, para a planilha de 19 Este item não estará disponível a consulta. Ver lei nº8159, de 8 de janeiro de 1991 e resolução do Conselho Federal de Medicina nº1639 de 2002. 17 preenchimento. A inserção de um número extenso de caracteres impossibilitaria não só a recuperação desse tipo de informação, por si só, bastante complexa ao se considerar a grafia dos médicos e os termos utilizados à época, mas também a alimentação contínua da base. A opção sugerida pelos profissionais da área de Informação e tendo em vista a inserção das diversas bases produzidas em um segmento temático da BVS foi traduzir as diversas informações inseridas pelos médicos responsáveis pelo preenchimento dos documentos clínicos referentes ao campo observações médicas em palavras-chave que fizessem parte do vocabulário estruturado DeCS/MeSH. A equipe trabalhou, assim, para criar uma lista de palavras-chave20 que refletisse os temas relacionados ao projeto de pesquisa, mas que também permitisse, ao usuário final do produto, encontrar possíveis fontes de pesquisa para o seu projeto individual de pesquisa. Se por um lado o usuário final não mais teria acesso a informações detalhadas escritas pelo punho do médico responsável, a inclusão de palavras-chave ou descritores permitiria uma maior integração dessas fontes de pesquisa, facilitando a recuperação dessa informação. Mas, a produção de uma lista de descritores não nos pareceu suficiente para dar conta dos diferentes tipos de informação presentes nos campos. De forma que, para garantir uma melhor recuperação da informação, o usuário final poderá optar por três tipos de busca. A busca via DeCS, utilizando os descritores que fazem parte do vocabulário controlado, cuja lista pode ser acessada na própria página de busca ou na área de metabusca; via termos livres, utilizando descritores não constantes da lista DeCS, criados pela equipe de pesquisa em acordo com a Bireme, que pode ser acessado através da busca avançada; e a busca de varredura, através da digitação de qualquer termo na caixa de busca, o sistema recuperará os documentos que contenham o termo desejado. Será disponibilizado um tutorial na página de abertura para que o usuário possa otimizar sua busca. 20 A lista de categorias temáticas, ou palavras-chave, é composta pelos seguintes termos: sexualidade, distúrbio dos órgãos sexuais, gênero, homossexualidade, homicídio, suicídio, periculosidade, vadiagem, hormônios/glândulas, tuberculose, sífilis, orfandade, prostituição, lenocínio, raça, degeneração, estigmas, misticismo e hereditariedade. 18 6. CONCLUSÃO Ao percorrer o tortuoso processo de construção de uma base de documentos clínicos de interesse para a História das Ciências e da Saúde, a equipe também se deparou com questões subjacentes à pesquisa propriamente dita. Afinal, não se pode ignorar que todo trabalho de organização da informação, todo trabalho que é feito com material de arquivo, necessariamente produzido por outrem (às vezes distante, às vezes próximo), é um trabalho de recorte. Ao criar uma nova “cara”, uma nova forma de se organizar os documentos e transformá-los em um arquivo, conferimos uma nova direção e um novo sentido aos documentos antes dispersos em uma sala. Assim, ao longo de percurso de produção, fomos nos deparando com um mal-estar decorrente dos diversos recortes que fomos instados a fazer. Por causa desse mal-estar, a organização das fontes primárias, tal como executada, com vistas à disponibilização em rede, acabou por resultar paralelamente numa reflexão da equipe de trabalho acerca da impossibilidade de evitar um direcionamento de leitura. Para nos auxiliar nessa reflexão, seguimos a trilha de Jacques Derrida, em seu livro Mal de Arquivo: uma impressão freudiana (2001). Com apoio de sua leitura é que assumimos coletivamente termos produzido sentido ao darmos nova forma a um corpo de conhecimento, e consideramos termos dado novo corpo a uma forma de conhecimento. De fato, ao elaborar uma crítica ao conceito de arquivo, Derrida nos propõe uma reflexão sobre a maneira como construímos a história e sobre quem são os sujeitos da história. Mais ainda, permitiu-nos uma reflexão sobre os documentos como suporte de história. Deste modo, fomos tomando consciência de que se muitas vezes, o documento por si só nos diz muitas coisas sobre o momento e o sujeito em que/por quem foi produzido, sua organização e articulação nos diz muito mais sobre o momento em que foi organizado, ordenado para ser arquivado e, não sempre, tornado público. Derrida distingue duas acepções para o conceito de arquivo: uma que diz respeito à origem, ao começo, que pode ser considerada natural ou histórica, a que ele denomina como possuidora de um caráter ontológico; e uma outra dimensão, que ele relaciona com o exercício do poder, e por isso, a denomina como nomológica. A palavra grega arckhêion, referida ao lugar (casa, domicílio) onde residiam os magistrados superiores, isto é, os funcionários da administração pública que detinham o poder de manter sob sua guarda os 19 documentos produzidos ao longo da sua administração é a mesma que dá origem a palavra arconte, usada como designação desses funcionários, que, além das funções de guarda, eram também incumbidos de organizar e dar sentido a massa documental ali concentrada. A palavra archium ou archivum, do latim, por sua vez, deu origem à palavra arquivo por nós utilizada em português para designar um conjunto documental, mas também o lugar de guarda desses documentos (Derrida, 2001, págs.12 e 13). Os acervos escolhidos se encontram sob a guarda de instituições públicas brasileiras situadas na cidade do Rio de Janeiro. Ora federais, ora estaduais, ora municipais, são essas instituições de Saúde que detêm o poder de guarda das fontes primárias, sendo os seus respectivos funcionários os responsáveis pela disposição desse acervo. Ao considerarmos o estágio diferenciado de organização desses diferentes acervos, e de acesso, inclusive, podemos fazer algumas inferências sobre a importância (ou inexistência dessa) desses documentos para o poder público em seus vários níveis, bem como as disputas de poder, que apontam para aqueles que podem ou não ter acesso a um dado documento. Mas não é só desses arcontes que tivemos de tratar. Ao organizar o nosso arquivo virtual e acordarmos sua direção, de acordo com nossas pesquisas e com nossa compreensão do que vale ou não ser divulgado, também nos tornamos arcontes, produzindo um novo arquivo, o que implica a intromissão de nossos interesses de pesquisa e mesmo institucionais no campo. Diante do impacto causado por tal percepção, tivemos que assumir que o nosso também é um lócus específico de ação, dentro de uma unidade mais estreitamente ligada a História das Ciências da Saúde, uma arckhêion, instituição de pesquisa pública de âmbito nacional, reconhecida internacionalmente, com um perfil bastante específico. Ignorar e não explicitar esse lócus de ação seria omitir o quanto ele define a relação dos pesquisadores com o objeto pesquisado (os acervos de documentos clínicos) e definem o resultado alcançado. Deste modo, concordamos que falar da existência de um sentido - explicitar que o nosso archivum é também um recorte específico - é nossa maneira de informar que essa não é a única, mas uma das inúmeras maneiras possíveis de ler/interpretar os documentos coletados. Pensamos ser esse um modo de deixar fendas para a entrada da pulsão de morte, o que permite o desmanche e a formação de novos arquivos (Derrida, 2001). Esperamos, assim, que o modo pelo qual organizamos, com vistas a dar sentido para nossos temas, não 20 impeça que o mal se instale, tal como Derrida propõe, viabilizando assim outros arranjos, outros sentidos, outras pesquisas. Esse conjunto de bases (de fontes primárias e secundárias) oferece acesso a novos acervos, novas fontes de trabalho e permite a realização de pesquisas qualitativas e quantitativas. A busca por temas, através, por exemplo, de palavras-chave como diagnóstico ou delito, possibilita o cruzamento de informações, cujo resultado pode ser um gráfico com valores percentuais sobre quantas pessoas com determinado diagnóstico cometeram determinado crime; ou, ao se relacionar ao fator temporal, a incidência de um diagnóstico específico em determinada época; assim como, ao se considerar os campos sexo e delito, pode-se verificar a relação entre gênero, loucura e crime dos que foram internados; permite, ainda, uma pesquisa aprofundada sobre o tema escolhido, uma vez que a referência de localização do documento permite ao pesquisador realizar o seu trabalho in loco. Além disso, com a busca por termos livres (varredura) o pesquisador pode achar informações e seguir uma trilha de pesquisa não pensada anteriormente. Acreditamos, enfim, que nossa experiência possa servir como motivação ao debate e a ampliação do intercâmbio entre profissionais de diferentes campos disciplinares, instituições e países, tanto no que se refere a novos produtos, como no que se refere à preservação de fontes históricas de valor inestimável. A disponibilização dos produtos advindos do projeto de pesquisa em foco, assim como a possibilidade de manter um espaço (diretório) na internet para que pesquisadores de outras instituições (nacionais e internacionais) possam contribuir com novos documentos (imagens, textos, entrevistas) e também estreitar relações com os pesquisadores deste projeto é um passo significativo para que possamos compreender o objeto de nosso estudo de modo mais profundo e generalizado, entendendo que essa experiência inovadora deve servir para que os profissionais de diferentes áreas incrementem o diálogo na busca por mecanismos de acesso à informação mais abrangentes. 21 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BERTOLLI Filho; Cláudio. História social do tuberculoso: perspectivas documentais. Cadernos de História e Saúde da Fiocruz, Rio de Janeiro, v. 2, p. 42-50, 1992. __________. Prontuários Médicos: fonte para o estudo da história social da medicina e da enfermidade. HCSM, vol.3, mar-jun.1996, 173-180. __________. 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Um ensaio sobre limites e possibilidades da reconstituição histórica de trajetórias de vida de pessoas internas como loucas”, Anos 90, Porto Alegre, v. 13, n. 23/24, p.287-319, jan./dez. 2006 23 ANEXO: Formulário de Preenchimento – Base de Documentos Clínicos do HNA/ COC-Fiocruz Número de Registro Localização do Acervo Instituição/Seção Ano Nome Nação/Estado Classe Cor Sexo Constituição Temperamento Data de Entrada Idade Estatura Estado Civil Profissão Residência Procedência Requerente Diag1 Diag2 Diag3 Médico Diretor Data de Alta Falecimento Causa Mortis Médico de Alta/Falecimento Observações Médicas Outras Identidades Novas Internações/Transferência Terapêutica Delito Instrução Laudo Documentos Anexos Observações do Pesquisador 24