UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO EM BUSCA DA TRADUÇÃO CONSAGRADA DE MARIO QUINTANA Márcia da Anunciação Barbosa 2012 EM BUSCA DA TRADUÇÃO CONSAGRADA DE MARIO QUINTANA Márcia da Anunciação Barbosa Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessários à obtenção do Título de Doutor em Letras Neolatinas (Estudos Lingüísticos Neolatinos – Língua Francesa) Orientadora: Márcia Atálla Pietroluongo Rio de Janeiro, Maio de 2012 EM BUSCA DA TRADUÇÃO CONSAGRADA DE MARIO QUINTANA Márcia da Anunciação Barbosa Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas (Estudos Lingüísticos Neolatinos - Língua Francesa). Aprovada por: ________________________________________________________ Professora Doutora Márcia Atálla Pietroluongo - UFRJ, Orientadora ___________________________________________________________ Professora Doutora Maria Paula Frota - PUC - RJ ____________________________________________________________ Professor Doutor Marcelo Jacques de Moraes - UFRJ ____________________________________________________________ Professora Doutora Helena Franco Martins - PUC - RJ ____________________________________________________________ Professora Doutora Maria Cristina Batalha - UERJ ____________________________________________________________ Professora Doutora Branca Falabela Fabrício - UFRJ, Suplente ____________________________________________________________ Professora Doutora Maria Mercedes Riveiro Quintans Sebold - UFRJ, Suplente À minha querida avó Numinanda Barbosa (in Memoriam) que não mediu esforços para a realização dos meus sonhos e cujas lições de amor e vida me guiaram pelos caminhos corretos. Obrigada por ter me mostrado que a honestidade e o respeito são essenciais à vida e por ter me ensinado a lutar pelos meus objetivos. AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus, meu refúgio e força. A toda minha família pelo apoio constante. Em especial meus pais Guilherme e Lucy Bárbara e ao meu filho Jorge Lucas. Ao meu companheiro Jean-François Gamaury pelo apoio e incentivo constante. À minha professora e orientadora, Márcia acompanhamento e revisão do presente estudo. Atálla Pietroluongo pelo A todos os meus professores do curso de Doutorado: em especial ,Angela Maria da Silva Corrêa, Anamaria Skinner e Aurora Consuelo Alfaro Lagorio, com quem muito aprendi. Aos professores Maria Paula Frota e Marcelo Jacques pelas orientações e direcionamento dados ao trabalho por ocasião do Exame de Qualificação. Ao amigo Marcelo Vianna Lacerda de Almeida pelo incentivo e por partilhar comigo tudo o que aprendeu durante o seu próprio caminho acadêmico. À amiga Débora de castro Barros pelo incentivo e pelas longas conversas ao telefone, sempre disponível a me ajudar. À amiga Angeli de Oliveira Pacheco pela amizade, incentivo e força espiritual. Aos meus amigos do Colégio Pedro II, em especial, Aline de Paula Alves, Jorge de Azevedo Moreira, Luciana Santos da Silva e Valéria Aparecida Trambaioli de Rocha e Lima pelo incentivo. A todos os funcionários da Faculdade de Letras, pela atenção, pela disposição, e prontidão com que sempre me atenderam. Àqueles que direta ou indiretamente contribuíram para que eu chegasse até aqui. A todos meu carinho e muito obrigada. FICHA CATALOGRÁFICA BARBOSA, Márcia da Anunciação Em Busca da Tradução Consagrada de Mario Quintana. Rio de Janeiro, 2012. Tese (Doutorado em Letras Neolatinas) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras. Orientador: Profa. Doutora Márcia Atálla Pietroluongo Introdução. 1. A tradução no Brasil e a língua francesa. 2. A tradução literária no contexto social – fidelidade, etnocentrismo e invisibilidade do tradutor. 3. A consagração da tradução de Em busca do tempo perdido. 4. A luta pela legitimidade no campo – as novas traduções de Em busca do tempo perdido. Conclusões. Referências Bibliográficas. “O escritor não precisa inventar, mas traduzir, porque o único livro verdadeiro é aquele que existe em cada um de nós. O dever e a tarefa de um escritor são os de um tradutor.” (Marcel Proust) SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................13 1. A TRADUÇÃO NO BRASIL E A LINGUA FRANCESA..............................17 1.1. A TRADUÇAO ESCRITA NO BRASIL DO SÉCULO XVI AO XVIII ................................................................................................................................18 1.2. O CRESCIMENTO DA TRADUÇÃO NO BRASIL NO SÉCULO XIX COM OS ROMANCES-FOLHETINS .................................................................22 1.3. A TRADUÇÃO NO SÉCULO XX, NO BRASIL .........................................28 1.4 AUTORES-TRADUTORES NAS TRADUÇÕES DA EDITORA GLOBO..................................................................................................................33 1.4.1. AS COLEÇÕES DA EDITORA GLOBO...................................................34 1.4.2. A TRADUÇÃO PIONEIRA DE A COMÉDIA HUMANA..........................39 1.5. A EDITORA GLOBO E A TRADUÇÃO DE EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO .............................................................................................................43 1.5.1. MARIO QUINTANA TRADUTOR ...........................................................45 2. A TRADUÇÃO LITERÁRIA NO CONTEXTO SOCIAL - FIDELIDADE, ETNOCENTRISMO E INVISIBILIDADE DO TRADUTOR ................................................................................................................................51 2.1. A FIDELIDADE E A VISÃO TRADICIONAL DA TRADUÇÃO LITERÁRIA ..........................................................................................................55 2.2. O ETNOCENTRISMO E A RELAÇÃO DO TRADUTOR COM A CULTURA DE CHEGADA E DE PARTIDA......................................................60 2.3. TEORIAS SOBRE A TRADUÇÃO LITERÁRIA – A TEORIA DOS POLISSISTEMAS.................................................................................................73 2.4. A TRADUÇÃO LITERÁRIA COMO OBJETO SOCIOLÓGICO ...............78 3. A CONSAGRAÇÃO DA TRADUÇÃO DE EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO .............................................................................................................81 3.1. A TRADUÇÃO E A TEORIA DOS CAMPOS SIMBÓLICOS DE PIERRE BOURDIEU ..........................................................................................................82 3.1.1. O FUNCIONAMENTO DO CAMPO DE PRODUÇÃO LITERÁRIA ................................................................................................................................86 3.2. EVIDÊNCIAS DE FUNCIONAMENTO DO CAMPO – AS INSTÂNCIAS DE CONSAGRAÇÃO DA TRADUÇÃO DE EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO .............................................................................................................90 3.2.1. O FRANCÊS E A ORIGEM FAMILIAR DE QUINTANA ................................................................................................................................98 3.2.2. A POSIÇÃO TRADUTIVA “VISÍVEL” DE MARIO QUINTANA.....102 3.2.3. AFRIMAÇÕES DE AMOR À TRADUÇÃO E DE ABNEGAÇÃO DOS LUCROS FINANCEIROS ..................................................................................106 3. 2.4. A MÍSTICA DO ACASO NO OFÍCIO DA TRADUÇÃO –HISTÓRIAS FOLCLÓRICAS SOBRE A TRADUÇÃO DE PROUST. AS CAPAS.................................................................................................................109 4. A LUTA PELA LEGITIMIDADE NO CAMPO – AS NOVAS TRADUÇÕES DE EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO ............................................................117 4.1. A TRADUÇÃO DE FERNANDO PY........................................................119 4.2. A ESTRATÉGIA DE CONSERVAÇÃO DA EDITORA GLOBO: A TRADUÇÃO “DEFINITIVA” ...........................................................................134 4.3. A LUTA PERMANENTE NO CAMPO: ANUNCIADA NOVA TRADUÇÃO DE PROUST A SER LANÇADA EM 2012................................141 5. CONCLUSÕES ...............................................................................................147 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................152 7. ANEXOS .........................................................................................................157 RESUMO BARBOSA, Márcia da Anunciação. Em busca da tradução consagrada de Mario Quintana. Orientadora: Márcia Atálla Pietroluongo. Rio de Janeiro: UFRJ, 2011. Tese (Doutorado em Estudos Lingüísticos Neolatinos – Língua Francesa). Nesse trabalho, procuramos compreender o que faz uma tradução de determinada obra ser considerada definitiva. O estudo se deteve na tradução de importantes obras francesas, em particular, a que constitui nosso objeto de estudo - Em busca do tempo perdido de Marcel Proust. Traduzida por Mario Quintana, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Lucia Miguel Pereira, esta obra foi lançada pela Editora Globo na década de quarenta, momento em que se consolida a atividade da tradução no Brasil. Partimos da perspectiva de que a relevância dessa tradução se deveu muito ao papel daquilo que é denominado de autores-tradutores – escritores que exerceram a atividade da tradução -, e desse modo analisamos a condição consagrada de Mario Quintana como tradutor, a partir de seu reconhecimento como autor literário e, inversamente, o quanto o próprio Quintana também alcança reconhecimento ao traduzir Proust. No âmbito dessa análise, empregamos a teoria dos campos simbólicos de Pierre Bourdieu, uma vez que são as instâncias deste campo de produção que geram o produto raro e singular, tal como a tradução de uma obra literária. Palavras chave: Estudos da Tradução; Teoria dos campos simbólicos; Tradutor Literário. RESUME BARBOSA, Márcia da Anunciação. Em busca da tradução consagrada de Mario Quintana. Orientadora: Márcia Atálla Pietroluongo. Rio de Janeiro: UFRJ, 2011. Tese (Doutorado em Estudos Lingüísticos Neolatinos – Língua Francesa). Dans cette thèse, nous analyserons ce qui fait que la traduction d’une oeuvre soit considérée importante. Notre étude s’est fondée sur la traduction d’oeuvres littéraires françaises importantes, notamment celle qui constitue notre objet d’investigation – À la recherche du temps perdu, de Marcel Proust. Traduite au Brésil par Mario Quintana, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira et Lucia Miguel Pereira, cette oeuvre a été publiée par Editora Globo, dans les années quarante, période durant laquelle l’activité de traduction se consolidait au Brésil. Nous partirons du principe que l’importance de cette traduction peut être attribuée au rôle des écrivains-traducteurs – les écrivains qui ont exercé l’activité de traduction. Ainsi, analyserons-nous, en particulier, la position consacrée de Mario Quintana, à partir de son succès comme auteur littéraire et, par ailleurs, sa consécration à partir de son travail en tant que traducteur de l’oeuvre de Proust. Dans cette analyse, nous nous fonderons sur la théorie des champs symboliques de Pierre Bourdieu, étant donné que ce sont les instances de ce champ de production qui confèrent à la traduction littéraire sa rareté et son originalité. Mots-clés : Etudes de la traduction ; Théorie des champs symboliques; Traducteur Littéraire. ABSTRACT BARBOSA, Márcia da Anunciação. Em busca da tradução consagrada de Mario Quintana . Orientadora: Márcia Atálla Pietroluongo. Rio de Janeiro: UFRJ, 2011. Tese (Doutorado em Estudos Lingüísticos Neolatinos – Língua Francesa). This paper seeks to understand what makes a translation of a given work be considered a definitive translation. The study focused on the translation of important French works, in particular, the book: À la recherche du temps perdu (In search of lost time) by Marcel Proust. Translated into Portuguese as Em busca do tempo perdido by Mario Quintana, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira and Lucia Miguel Pereira, this work was released by Editora Globo during the 1940s, a time when translation was becoming consolidated in Brazil. We begin with the assumption that the relevance of this translation was largely due to the role of what are called author-translators, that is, writers who also translate. Therefore, we analyzed the established condition of Mario Quintana as a translator, based on his recognition as a literary author, and, inversely, how much recognition Quintana also received by translating Proust. Within the scope of this analysis, we used Pierre Bourdieu’s theory of symbolic fields, since it is the instances of this field of production that create a rare and unique product, such as the translation of a literary work. Key words: Translation Studies; Theory of symbolic fields; Literary Translator. INTRODUÇÃO Constantemente relegado a um plano secundário ao longo da história da tradução no Brasil, apagado na maioria das vezes, observamos que, na Era Vargas (de 1930 a 1945), o tradutor literário passa a ter destaque. Época em que interessava saber quem era o tradutor, em que seu nome contava para o sucesso de vendas da obra traduzida. Época dos autores-tradutores. Considerado um dos períodos mais produtivos da tradução literária no Brasil, foi dos anos 1930 a meados dos anos 1950 que a tradução teve no País o seu clímax. É interessante observar que essa época de pleno desenvolvimento da área é marcada pela diminuição de traduções de obras de língua francesa e pela suplantação daquelas advindas da língua inglesa. Entretanto, apesar do declínio do número de traduções de obras do francês, paradoxalmente, é também nesse período que são traduzidas importantes obras francesas. Primeiramente, interessou-nos o porquê da tradução de obras francesas que, até então, não haviam sido traduzidas, justamente quando a língua francesa começava a perder seu prestígio e quando a língua inglesa se sobrepunha à francesa. Ora, algumas dessas traduções são consagradas até hoje, como Em busca do tempo perdido, que teve Mário Quintana como tradutor dos quatro primeiros volumes, sendo lançada pela Editora Globo em 1948, mesmo após o surgimento de outras traduções. Assim, a questão central da pesquisa é como essa tradução alcançou valor e reconhecimento pelo público. Acreditamos que a consagração dessa tradução se deva ao papel de seu tradutor, Mário Quintana. Ao irmos em busca do tradutor, analisando sua condição de consagração no campo da tradução a partir de sua posição consagrada como autor literário, 14 avaliaremos a tradução como um bem simbólico. Entretanto, acreditamos que não somente a qualidade da tradução seja a responsável por sua consagração, mas todo um jogo de forças presente no campo de produção literário. Nessa perspectiva, a teoria de Pierre Bourdieu, com seu conceito de habitus adquirido e relacionado com as estratégias operadas por um campo e por determinados agentes desse campo, nos guiará. O nome e os escritos de Pierre Bourdieu estão cada vez mais presentes no campo dos Estudos da Tradução, principalmente por meio de estudiosos como Daniel Simeoni, Gouanvic JeanMarc e Inghiller Moira. Pascale Casanova, entretanto, se fez pioneira quando, em 1999, publicou La république mondiale des lettres, em que evidencia a mudança no contexto dos Estudos da Tradução ao associá-la à teoria bourdieusiana. Segundo Pascale Casanova (2002), o tradutor constitui uma das instâncias a situar no espaço literário, e de sua posição, dentre outros fatores, depende o grau de legitimidade da tradução. Assim, quanto maior o prestígio do tradutor, mais nobre é a tradução, mais ela se consagra. Primeiramente, no primeiro capítulo, faremos um histórico da tradução literária no Brasil, ressaltando a influência da cultura francesa em diferentes períodos, mostrando a posição dos tradutores ao longo da história e a formação do espaço social da tradução no Brasil. Destacaremos a fase histórica que é central neste trabalho, a Era Vargas, mostrando, então, as mudanças no País e no cenário mundial no período histórico em que os Estados Unidos passam a ter papel dominante. Ao tratar da tradução literária no referido período, observaremos que o número de traduções de língua inglesa sobrepõe-se ao de língua francesa, ressaltando as mudanças na tradução a partir desse momento. Assim, quem eram os tradutores antes? Quem eram nesse período? Depois, discorreremos sobre as principais obras traduzidas do francês nesse período: A comédia 15 humana, de Balzac, e Em busca do tempo perdido, de Proust, mostrando como aumentou a qualidade das traduções nesse momento. No segundo capítulo, verificaremos, em diferentes teorias, a concepção do que seja uma boa tradução, bem como o posicionamento do tradutor diante da tradução. Observaremos que, em uma visão dita tradicional, a questão da fidelidade é apresentada como essencial ao julgamento do que seja uma boa tradução. Depois, por meio das teorias de Antoine Berman e Lawrence Venuti, constataremos como esses autores salientam certos aspectos sociais que se refletem no posicionamento do tradutor diante do seu fazer. Um exemplo disso é a tradução etnocêntrica ou não etnocêntrica, que incidirá na visibilidade ou não do tradutor. Observaremos que, segundo Johan Heilbron e Gisele Sapiro,1 além do texto em si, questões propriamente sociológicas surgem, principalmente no que concerne às funções da tradução e de seus agentes no espaço em que se encontram. No terceiro capítulo, analisaremos as tensões que se instauram no campo, a partir da tradução de Em busca do tempo perdido, de Proust. Compreenderemos, então, não apenas quem são os tradutores, mas também como muda o status da tradução, sendo o tradutor também escritor ou intelectual consagrado. Observando a consagração sob o viés de Pierre Bourdieu, mostraremos a recepção que teve essa tradução, até chegarmos ao ponto central deste trabalho: a consagração da tradução de Em busca do tempo perdido. Destacaremos o tradutor que mais contribuiu para a consagração dessas obras: Mário Quintana. Para isso, partiremos da abordagem realizada por Bourdieu em A produção da crença, em que toma como objeto de análise entrevistas que demonstram, segundo o 1 HEILBRON, Johan; SAPIRO Gisèle. La traduction littéraire – un objet sociologique. Paris: Actes de la Recherche en Sciences Sociales, 2002. v. 144, p. 3-5. 16 próprio Bourdieu, uma “espécie de harmonia estabelecida entre o habitus do criador e a posição que ele ocupa no campo, isto é, a função que lhe foi atribuída, embora ele a tenha, aparentemente, produzido”.2 No quarto capítulo, observaremos que em todos os campos há os consagrados e os pretendentes em luta por legitimação. No espaço social da tradução não é diferente. Assim, mostraremos a luta por legitimidade efetivada pela nova tradução de Em busca do tempo perdido feita por Fernando Py para a Ediouro em 2002, mostrando que há sempre referência à tradução de Quintana por parte da crítica. Analisaremos, então, as estratégias acionadas pelo “pretendente” Fernando Py para firmar-se no campo e como se dá essa disputa. Será mostrada a reação da Editora Globo ao relançar sua tradução, atualizada, que se autodenomina “Proust Definitivo”. A fim de exemplificarmos a permanente luta no campo, mostraremos que uma nova tradução de Em busca do tempo perdido será lançada em 2012 pela Companhia das Letras, em parceria com a britânica Pengui, e como essa tradução já se demarca em relação à tradução consagrada pela Editora Globo. Por fim, apresentaremos as conclusões obtidas neste trabalho, que apontam o caminho aberto pela pesquisa ao refletirmos sobre a questão da consagração, bem como sobre a questão da denegação das traduções em língua francesa, diante da supremacia daquelas em língua inglesa. 2 BOURDIEU, Pierre. A produção da crença – contribuição para uma economia dos bens simbólicos. Tradução Guilherme João de Freitas Teixeira e Maria da Graça Jacintho Setton. Porto Alegre: Zouk, 2001. 1 A TRADUÇÃO NO BRASIL E A LÍNGUA FRANCESA Neste capítulo, mostraremos, a partir das pesquisas de Lia Wyler (2003), Sônia Maria de Amorim (2000) e Simone Souza (2004), além de outros pesquisadores na área da historiografia da tradução, um panorama da tradução literária no Brasil, desde o período colonial até meados do século XX, com o objetivo de demonstrar que a presença da língua e da cultura francesas no Brasil contribuiu para a valorização da tradução no País. Mostraremos que o crescimento da produção de literatura traduzida se deveu ao fato de que a língua francesa era parte dos costumes da classe dominante em diferentes períodos históricos do País. Essa hegemonia ocorreu até meados dos anos 1930, momento em que a cultura e a língua francesas perderam sua supremacia, em função da transferência do poder da influência linguística do francês para o inglês no mapa mundial. Observaremos, também, como se transformou a atividade da tradução ao longo de cada período histórico, até chegarmos à Era Vargas, momento em que surgem os autores-tradutores, a fim de compreendermos como as traduções naquele período histórico alcançaram um valor que, até então, não apresentavam. Finalmente, analisaremos a influência desses autores-tradutores sobre o reconhecimento obtido pelas traduções, que contribuíram sobremaneira para a valorização da tradução de uma maneira geral e para o trabalho dos tradutores. 18 1.1 A TRADUÇÃO ESCRITA NO BRASIL DO SÉCULO XVI AO SÉCULO XVIII A tradução escrita no Brasil enfrentou sérios obstáculos ao seu desenvolvimento, principalmente a falta de demanda, uma vez que somente a elite da época manifestava interesse pela leitura de textos, fossem estes traduzidos ou não. Nesse período, embora já existissem algumas escolas e livros no Brasil Colônia, a maioria absoluta da população era iletrada. Assim, a falta de um público leitor e a proibição da impressão no País, que perdurou até a chegada da Família Real, em 1808, consistiram em obstáculos à tradução. Entretanto, apesar da proibição da impressão no Brasil, ainda assim circulavam livros no País, principalmente por meio dos jesuítas, que inicialmente copiavam à mão as cartilhas de leitura e importavam livros, de maneira legal ou ilegalmente, construindo as primeiras bibliotecas. Essas obras das bibliotecas dos jesuítas constituiriam, por cerca de dois séculos, a base da formação cultural e intelectual do público letrado da época. Essas bibliotecas foram importantes para a manutenção do plurilinguismo, uma vez que contavam com muitas obras em francês, espanhol, italiano, latim e grego. Mas o francês já se sobressaía, indiscutivelmente, não somente com obras no original, como também em traduções indiretas de outras línguas. Afirma Wyler que o estrangeiramento das elites brasileiras pode ser explicado pelas influências culturais a que o Brasil estava exposto: a portuguesa, a espanhola e a francesa, e esta por intermédio dos portugueses, profundamente marcados pela cultura francesa. Dessa maneira, essa influência cultural francesa se estabeleceu no Brasil com os jesuítas, tendo o francês chegado a competir com o português pelo privilégio de ser língua nacional. É importante lembrar que é 19 somente com a Constituinte de 1823 que o português é decretado língua oficial do Brasil. Constatamos, então, que no Brasil Colônia as primeiras traduções tinham como objetivo a catequização. Não existia até esse momento a noção de autoria de tradução. Logo, não existia a figura do tradutor como sujeito autor da tradução, e tampouco a tradução como obra disposta de um valor autônomo, o que evidencia o fato de que, nesse momento histórico, ainda não havia um espaço social próprio de atividade da tradução. Observamos, assim, que o francês se fazia presente principalmente por meio dos colonizadores portugueses, sobretudo os jesuítas, que eram fortemente influenciados pela cultura francesa, e que muitas das obras presentes nas primeiras bibliotecas do País eram em língua francesa. É importante lembrar a hegemonia que a cultura francesa alcançou nos séculos XVII e XVIII, não somente no Brasil, mas em várias partes do mundo. A partir do auge da monarquia de Luís XIV, quando a França se tornou uma potência mundial, e ao longo dos séculos XVII e XVIII, a cultura francesa tornou-se o modelo ideal a ser copiado nas artes, nos modismos e no comportamento. Com a chegada da Família Real, o modo de vida das Cortes europeias passa a fazer parte da vida social do Brasil. Dois fatores correlatos viriam a mudar o quadro da ausência de tipografias – embriões das futuras editoras –, proibidas até então pela metrópole: o advento da Impressão Régia, inaugurada em 13 de maio de 1808, no Rio de Janeiro, por D. João VI, e, consequentemente, o aumento do público leitor. A Impressão Régia, inicialmente, tinha por função publicar documentos, passando, mais tarde, a publicar, também, qualquer obra, inclusive romances. 20 No artigo intitulado “Adaptações e livros baratos para a Corte: folhetos editados na Impressão Régia do Rio de Janeiro entre 1808 e 1822”, Simone Cristina Mendonça de Souza (2004) traça um panorama editorial da época, mostrando as obras publicadas pelos folhetos editados pela Impressão Régia, cujo formato se assemelhava aos dos livros que compunham a chamada Bibliothèque Bleue. Esse panorama é importante para observarmos que a tradução e a adaptação de obras francesas se fizeram de maneira ampla nesse período. Dentre os livros de prosa de ficção publicados pela Impressão Régia que circularam no Brasil no período de 1808 a 1822, destacamos algumas traduções ou adaptações de obras francesas:∗ – A choupana india. Escripta em francez pelo autor de Paulo e Virginia (o abbade Saint Pierre), e vertida em português. 1811. – Cartas de huma peruviana. Traduzidas do francez na língua portuguesa por huma senhora. Tomo I, 1811 e Tomo II, 1812. – A boa mãi. Novella: traduzida do francez. 1815. – O castigo da prostituição. Novella: traduzida do francez. 1815. – As duas desafortunadas. Novella: traduzida do francez. 1815. – A infidelidade vingada. Novella: traduzida do francez. 1815. – A má mãi. Novella: traduzida do francez. 1815. – Triste effeito de huma infidelidade. Novella: traduzida do francez. 1815. Assim, essas traduções são oferecidas a um novo público leitor. Além disso, segundo Wyler, multiplica-se o número de tradutores no Brasil no período de 1808 a 1890. Segundo Souza (2004), esses livros não constituíam propriamente uma tradução, mas uma adaptação, com capítulos recortados, versões de obras ∗ Optamos por manter os títulos com a grafia da época. 21 francesas, provavelmente alteradas e resumidas. Souza faz uma aproximação desses livros publicados pela Impressão Régia com os da Bibliothèque Bleue, analisados por Roger Chartier (1990). Os livros da Bibliothèque Bleue seguiam uma fórmula editorial de reedição de textos já consagrados e escritos originalmente para um público intelectual e que eram adaptados a fim de se tornarem mais acessíveis a um público de menores condições socioeconômicas. Dividiam-se os textos em parágrafos menores, inseriam-se resumos e recapitulações, além de cortes nos capítulos, principalmente das descrições, e da simplificação das estruturas das orações. Dessa maneira, afirma Souza, observa-se a interferência do editor na formatação das impressões, modificando o formato do livro, alterando a disposição do texto, inserindo ou retirando ilustrações, excluindo períodos do texto original, considerados longos, ou mesmo resumindo o original. Outro fator relevante é que a chegada da Família Real propiciou, também, a criação de instituições de ensino e, consequentemente, um aumento no número de pessoas alfabetizadas no País, mas ainda inexpressivo para a formação de um público leitor. Em 1821, um fato importante facilita a entrada de livros estrangeiros no País: a supressão de censura ou licença sobre esses livros. Assim, a França mantém seu domínio cultural, exportando legalmente livros para o Brasil, quando, então, algumas livrarias são abertas. Dessa forma, havia uma preponderância de livros de autores franceses no Brasil sobre os de outras nacionalidades. Além disso, os livros importados tinham um preço menor, uma vez que o custo do papel ainda era muito alto, por conta do imposto sobre sua importação. O Brasil dessa época vivia sob forte influência cultural da França. Nesse 22 contexto, duas editoras francesas se destacaram para a cultura livresca do País: Laemmert e Garnier. Essas duas editoras importavam grande quantidade de livros franceses para uma elite rica e culta brasileira, enquanto o restante da população brasileira – cerca de 84% – ainda não sabia ler. O mercado de livros se dividia entre os irmãos Laemmert e a livraria Garnier, de seu fundador e editor, Baptiste Louis Garnier. Esse editor lançou clássicos estrangeiros e foi um dos primeiros a editar os autores brasileiros, tais como José Veríssimo, Olavo Bilac, Artur Azevedo, Bernardo Guimarães, Silvio Romero, João do Rio e Joaquim Nabuco. Além disso, Garnier foi o primeiro e o principal editor de Machado de Assis, de cujas obras comprou os direitos autorais. Em relação à tradução, o estabelecimento de sua atividade no País ocorre com a constituição do mercado de obras literárias, a partir do gradativo crescimento do público leitor. Os tradutores não eram mais os religiosos, nem a tradução tinha como objetivo a catequização. Temos, então, a tradução e a adaptação de obras literárias, sobretudo as francesas, com o objetivo de atender às demandas desse público. Entretanto, o nome do tradutor ainda não é citado nas obras traduzidas, e, desse modo, a autoria da tradução permanece incógnita. 1.2 O CRESCIMENTO DA TRADUÇÃO NO BRASIL NO SÉCULO XIX COM OS ROMANCES-FOLHETINS Na segunda metade do século XIX, ocorrem importantes avanços no campo educacional, sobretudo no âmbito do ensino primário, que passa a ser oferecido em diversas escolas do País. Esse avanço é relevante, pois acarreta o crescimento de um público leitor, que faz aumentar o número das traduções, sobretudo nos 23 jornais. Segundo Wyler, mesmo com vários obstáculos de ordem política, ideológica e econômica, a política tradutória prospera no Brasil no século XIX. A tradução passa a ser disseminada no meio social através dos jornais – existentes em números razoáveis no País –, graças aos romances-folhetins. A invenção dos romances-folhetins é atribuída ao francês Émile Gerardin, na França. Esse gênero de narrativa teria se inspirado no sucesso dos melodramas encenados no teatro, nos quais sempre havia elementos sensacionalistas que prendiam a atenção do espectador. Por volta de 1836, Gerardin decidiu publicálos em jornais com características semelhantes. Esses romances, publicados no rodapé das páginas dos jornais franceses, chamou grande atenção do público, que se habituou a procurá-los nesses periódicos, nos quais se apresentavam divididos em capítulos – estratégia que gerava uma curiosidade no público, impulsionando as vendas dos jornais. Observamos, então, que o romance-folhetim atende às novas demandas de um mercado editorial. No Brasil, o gênero do romance-folhetim foi introduzido por Justiniano José da Rocha, jornalista e político de destaque no Segundo Reinado (1849-1889), que, ao perceber a popularidade do romance-folhetim na França, escreveu ele próprio alguns desses folhetins e traduziu vários outros do francês para jornais brasileiros. Como o fascínio nacional pela Europa, sobretudo pela França, era imenso e a produção brasileira de folhetins era escassa, tivemos um grande número destes, traduzidos do francês, no Brasil do século XIX. Quanto ao romance-folhetim, afirma José Paulo Paes (1990): “tão grande foi a voga do folhetim romântico no Brasil que logo se verificava um desequilíbrio entre a apetência do público e a capacidade nacional de produção”. Assim, a tradução passou a ser estimulada para atender à demanda dos jornais, envolvida com a publicação dos folhetins 24 franceses. Quanto à maneira de traduzir, observamos que a versão dos romancesfolhetins franceses feita para o português seguia moldes muito em voga na França: a denominada Belles Infidèles (Belas Infiéis). Essa maneira de traduzir consistia, em linhas gerais, no abandono da fidelidade literal, adaptando o texto traduzido à língua do leitor de determinada classe social. Na verdade, tratava-se do culto à tradução dita elegante, uma vez que a tradução se conformava às regras das classes dominantes. Esse gênero se consolidou na França no século XVII, com o intuito de se ajustar ao gosto de leitura das classes privilegiadas, eliminando, assim, das traduções dos clássicos da Antiguidade o que era estranho ou deselegante. Entretanto, difundiu-se pelo mundo, por séculos, segundo os valores morais da época e do local em que as traduções eram publicadas. Assim, eliminar, remodelar e modificar partes do texto era permitido nas traduções para o francês, em nome da polidez e da moral. Importante ressaltar que o estilo de tradução “belles infidèles” possui características muito peculiares ao período e ao momento histórico francês do século XVII, assim, o que salientamos como ponto comum é uma tradução mais voltada à cultura alvo, com o objetivo de facilitar a compreensão do público leitor. Como verificamos na justificativa de Justiniano da Rocha ao comentar suas traduções do francês de romances-folhetins: Será traduzida, será imitada, será original a novela que ofereço, leitor benévolo? Nem eu mesmo que a fiz vo-lo posso dizer. Uma obra existe em dois volumes, e em francês que se ocupa com os mesmos fatos; eu a li, segui seus desenvolvimentos, tendo o cuidado de reduzi-los aos limites de apêndices, cerceando umas, ampliando outras circunstâncias, traduzindo os lugares em que me parecia dever traduzir, substituindo com reflexões minhas o que me parecia dever ser substituído; uma coisa só eu tive em vista, agradar-vos.3 3 ROCHA, Justiniano. A paixão dos diamantes. Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, p. 27-30, mar. 1839. 25 Entretanto, um modelo de tradução mais voltado para o público alvo não era o único motivo para as adaptações nas traduções da época. Segundo Lenita Esteves (2005), na tradução dos romances-folhetins, o tradutor exercia, por vezes, o papel de autor, ou seja, as obras eram adaptadas. Ora, muitos desses romances eram traduções dos que estavam sendo publicados quase simultaneamente nos jornais franceses naquele momento. Assim, quando acontecia um atraso na chegada dos originais, o tradutor continuava a escrever a história, a fim de que a publicação não fosse interrompida. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o romance-folhetim intitulado Rocambole, de Ponson du Terrail, cuja tradução vinha sendo publicada pelo Jornal do Commercio. O tradutor chegou mesmo a matar alguns personagens, e, quando chegaram novamente os originais, o tradutor, Souza Ferreira, teve de “ressuscitar” personagens para conciliar novamente a história da tradução com a do original. Assim, o objetivo principal era a venda dos jornais, podendo ser feitas até mesmo modificações nas traduções, a fim de alcançar esse objetivo. Quanto aos tradutores, estes se mantinham quase sempre incógnitos e raramente assinavam suas traduções, exemplificado por Maria Arnoldo Coco, a partir do texto do Jornal das Senhoras, do dia 3 de julho de 1853: [...] agradecemos ao tradutor incógnito o valioso presente que nos fez, e recomendamos a todos a leitura desta história verdadeira e contemporânea cuja versão, se não é servil, se não traduz palavra por palavra, dificilmente encontrará no original uma ideia, um pensamento, que no português não tenha a frase equivalente. 4 Desse modo, no século XIX, no que concerne à tradução literária, não 4 COCO, Maria Arnoldo. O triunfo do bastardo: uma leitura dos folhetins cariocas no século XIX. Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio, Rio de Janeiro 1990. 2 v. 26 somente o romance-folhetim, mas também as peças de teatro tiveram destaque na preferência dos nossos tradutores. A pesquisa de Wyler mostra que, no período entre 1839 e 1854, foram publicados pelo menos 74 romances-folhetins franceses nos vários periódicos do Rio de Janeiro, em uma média de cinco romances por ano. A popularidade da tradução dos romances-folhetins levou vários escritores brasileiros da época a se dedicarem às traduções. Observa-se, então, o início da participação de autores literários na atividade da tradução. Entretanto, esses autores desmereciam a atividade de tradução, por considerá-la inferior, sem necessidade de grandes reflexões: A tradução é o elemento dominante, nesse caos que devia ser a arca santa onde a arte pelos lábios dos seus oráculos falasse às turbas entusiasmadas e delirantes. Transplantar uma composição dramática francesa para a nossa língua é tarefa de que se incumbe qualquer bípede que entende de letra redonda. O que provém daí? O que se está vendo. A arte tornou-se uma indústria.5 Assim, a tradução era considerada como cópia, algo que não necessitava de reflexões ou criatividade. O original era visto como arte, ao passo que a tradução era vista como algo destituído de criatividade, tal como o trabalho mecânico da indústria e, logo, menor. Essa oposição entre o texto original (atividade artística) e o texto traduzido (trabalho mecânico) está presente ao longo da história do ofício literário, e dessa visão provavelmente decorre a desvalorização da tradução e do trabalho do tradutor. Quanto aos romances-folhetins, Machado de Assis criticava o excesso de folhetins com ambientação francesa no País, uma vez que, para ele, a tradução seria um obstáculo à formação de uma literatura nacional: Em geral, o folhetinista aqui é todo parisiense; torce-se a um estilo estrangeiro, e esquece-se, nas suas divagações sobre o boulevard e o Café Tortoni, de que está 5 ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. v. III, p. 788-789. 27 sobre um adam lamascento e com uma grossa tenda lírica no meio de um deserto. Alguns vão até Paris estudar a parte fisiológica dos colegas de lá; é inútil dizer que degeneraram no físico como no moral.6 O próprio Machado de Assis, além de ter escrito em francês, traduziu muitas obras francesas para o português. É interessante constatar que Machado, antes de publicar seu primeiro romance, já havia traduzido Os trabalhadores do mar, de Victor Hugo. Quanto à atividade de Machado como tradutor, Eliane Ferreira (2004) chega a relacionar 48 textos traduzidos pelo escritor, tendo ele estreado como tradutor em 1856, com o poema Minha mãe, de William Cowper. Machado, segundo Ferreira, traduziu 16 peças de teatro, 24 poemas, dois ensaios, dois romances e um conto. Dentre os autores por ele traduzidos estão Lamartine, Alexandre Dumas Fils, Chateaubriand, Racine, La Fontaine, Alfred de Musset, Molière, Victor Hugo, Beaumarchais, Shakespeare, Charles Dickens, Edgar Allan Poe, Schiller e Heine. Apesar de essa listagem incluir, em sua maioria, autores franceses, veem-se, também, autores ingleses, americanos e alemães. Entretanto, segundo Ferreira, a única língua que Machado conhecia bem era o francês, tendose utilizado, então, da tradução indireta do francês para traduzir obras de outras línguas. O próprio Machado, ao comentar sua tradução de Schiller, afirmara não saber alemão e que traduzira aqueles versos de uma versão francesa. Observamos, então, que o crescimento da atividade tradutória no Brasil deveu-se principalmente às traduções dos romances-folhetins. Machado de Assis foi um dos primeiros autores-tradutores, tendo traduzido, conforme exemplificado, diversos textos de importantes autores, principalmente franceses. Apesar desse fato, a atividade tradutória ainda era desvalorizada, permanecendo o 6 ASSIS, Machado de apud WYLER, Lia. Línguas, poetas e bacharéis – uma crônica da tradução no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2003. p. 93. 28 tradutor incógnito na grande maioria das vezes – exceto quando se tratava de um autor reconhecido, tal como era Machado de Assis. Contudo, mesmo ele privilegiava, em suas traduções, a maneira de traduzir própria das Belles Infidèles, de modo a atender ao público consumidor das obras. Remodelar, cortar e suprimir foram recursos válidos em nome da “inteligibilidade” da tradução, tal como nos aponta um crítico da revista Veja: Uma faceta pouco conhecida de Machado de Assis é a de tradutor. Mas ele a teve. Dedicou-se, sobretudo, aos poetas estrangeiros e deixou algumas joias nesse campo, como sua versão para o poema O Corvo, do americano Edgar Allan Poe. Mais raras foram as ocasiões em que ele trabalhou sobre textos em prosa. Em 1870, deu início à tradução de Oliver Twist, do inglês Charles Dickens. Não foi o seu melhor momento. Machado não partiu do original, mas de uma versão em francês do romance. Adotou o procedimento duvidoso de resumir ou cortar passagens inteiras da obra.7 1.3 A TRADUÇÃO NO SÉCULO XX NO BRASIL A tradução no início do século XX, no Brasil, sofreu importantes transformações. A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) provocou a interdição do comércio marítimo entre a Europa e o restante do mundo ocidental, fazendo com que o Brasil voltasse atenção para si mesmo. Assim, em relação ao mercado de livros, houve um grande crescimento editorial no País. Autores nacionais passaram a ser reconhecidos, e, além disso, as publicações nacionais e as traduções de textos estrangeiros cresceram em números inéditos. Nesse período, várias editoras se estabeleceram no mercado brasileiro. Outra importante mudança se deu no âmbito da educação. Em 1930, ao assumir pela primeira vez a Presidência da República, Getúlio Vargas implanta no 7 VEJA. Periódico. São Paulo. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/200302/p_131.html>. Acesso em: 19 ago. 2011. 29 País um projeto educacional a fim de minimizar o analfabetismo e qualificar o trabalhador brasileiro. A política educacional de Vargas representou uma ampla reforma do ensino, acabando por incentivar a indústria editorial, o que imediatamente consolidou o mercado dos livros didáticos e a médio prazo ampliou o público leitor em geral. Junto com a alfabetização, houve, também, o estímulo à publicação de livros, revistas e jornais, bem como o incentivo à tradução de obras inéditas. Outro fator que contribuiu para o incremento da tradução nesse período foi o alto custo da importação de livros, que muito os encarecia no âmbito do mercado nacional. O resultado é que o livro produzido no País se tornou mais acessível em comparação ao importado, e, assim, houve um crescimento das traduções, diminuindo, consequentemente, ainda mais a importação de livros franceses. O número de editoras nacionais em atividade no País cresceu quase 50% entre 1936 e 1944. Os títulos e exemplares publicados por tais editoras quadruplicaram entre 1930 e 1950. Em 1937, Vargas criou o Instituto Nacional do Livro (INL), a fim de alavancar o processo de difusão do livro no Brasil. Caberia a esse Instituto selecionar as obras consideradas “raras” e “preciosas” – segundo um critério de interesse da cultura nacional – e subsidiar sua tradução. As demais traduções produzidas fora desse Instituto teriam de passar pelo controle do Serviço de Divulgação da Chefatura de Polícia, que tinha o objetivo de controlar a produção intelectual, visando aos interesses do regime de Governo. Segundo Maria Clara Castellões de Oliveira (2008), nos anos 1940, ocorrem outros fatores que determinam o papel desempenhado pela tradução. Além do Estado Novo, temos, também, o advento da Segunda Guerra Mundial, que tornou 30 ainda mais difícil a importação de livros europeus. Entretanto, essa interrupção da vinda de livros europeus propiciou a abertura de espaço para a entrada de livros provenientes dos Estados Unidos, em acordo com as ligações que o Brasil passou a manter com esse país, intensificando as trocas culturais entre os dois países. Também nesse período, Vargas intensificou a censura política, criando o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), a fim de controlar a entrada no País de publicações que pudessem atentar contra a ideologia e o programa de Governo. Dessa maneira, toda a produção intelectual no Brasil passou a ser vigiada pelo DIP. Dentro dessa censura muito rígida, os escritores que não se enquadravam nas regras do Governo eram presos, e suas obras, censuradas ou destruídas. A censura na Era Vargas contribuiu significativamente para que muitos escritores passassem a se dedicar à tradução, pois essa era uma maneira de manter contato com seu público leitor. Foi o período, então, do surgimento dos autorestradutores – escritores capazes de legitimar traduções de obras estrangeiras, dando-lhes credibilidade a partir do reconhecimento conquistado como escritor. Podemos dizer que, nesse momento, no Brasil, constituiu-se um espaço próprio e valorizado da atividade de tradução, funcionando como uma espécie de campo interno ou subcampo da produção literária. Tal afirmação se baseia no fato de que, pela primeira vez, houve a formação de um mercado propriamente brasileiro de obras literárias traduzidas, composto de editores, tradutores (escritores) e leitores dispostos a consumir essas obras. Sobre a Era Vargas, afirma Maria Clara Castellões de Oliveira: Esse estado de coisas exigiu que as companhias editoras tivessem em seus quadros um número considerável de profissionais para exercerem as tarefas de tradução. O fato de ainda não existir a profissionalização do ofício tradutório fez com que fossem contratados para tanto escritores cujos nomes renderam maior credibilidade 31 às traduções lançadas no mercado. Do ponto de vista desses escritores, a tradução passou a ser uma forma alternativa de expressão diante da censura que vigorava no período, tendo se transformado na sua principal fonte de renda durante o Estado Novo.8 Nessa afirmação, podemos claramente observar que a profissionalização do tradutor não se reduziu a uma espécie de funcionamento pragmático do mercado editorial, mesmo porque já existiam tradutores trabalhando de maneira incógnita. Importa assinalar que a valorização dessa profissionalização se deveu à atração de autores consagrados ou em vias de consagração para conferir legitimidade às traduções nesse período. Também nesse período, as editoras passaram a investir nas traduções, de maneira mais consistente e em maior escala, organizando coleções de autores estrangeiros, principalmente coleções de obras de ficção de autores já falecidos, para economizar com pagamentos de direitos autorais. Esse período foi, também, de grande crescimento do número de tradutores no mercado e de valorização da atividade da tradução em função da atuação do que se denomina autorestradutores – escritores reconhecidos, atraídos para a atividade da tradução. Nessa época, duas das editoras de maior relevo no País, a José Olympio, com sede no Rio de Janeiro, e a Editora Globo, com sede em Porto Alegre, passaram a contar com um grande número de escritores em seu quadro, uma vez que estes trariam maior publicidade às traduções. Dentre os escritores da primeira metade do século XX, destacam-se Monteiro Lobato – um pioneiro dos autorestradutores –, Rachel de Queiroz, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Érico Veríssimo e Mário Quintana. 8 OLIVEIRA, Maria Clara Castellões de. A cleptomania do tradutor: a tradução no Brasil da década de 40 do século XX. Anais do XI Congresso Internacional da Abralic. São Paulo: USP, 2008. 32 Segundo Wyler, a maioria dos autores-tradutores conhecia bem o francês, que nesse momento começava a perder a hegemonia para o inglês. Tal fato ocasionou que as obras literárias de outras línguas fossem traduzidas principalmente do francês, e, desse modo, esta foi também a língua da tradução indireta nesse período. Lembremo-nos que muitas obras da literatura russa, por exemplo, foram traduzidas, indiretamente, de traduções francesas. Outra consequência do reconhecimento das traduções elaboradas pelos autores-tradutores, na Era Vargas, foi o crescimento da crítica em relação às traduções, como afirma Maria Clara Castellões de Oliveira: Uma das consequências do crescimento da publicação de traduções no Brasil durante o Estado Novo foi a criação de um espaço público de crítica dessa atividade, que, como mencionado, se deu em 1944, no suplemento literário do Diário de Notícias. Por iniciativa de dois tradutores, Raul Lima, redator-chefe desse jornal, e Guilherme Figueiredo, diretor de seu suplemento literário, abriu-se nesse periódico um espaço para que seus leitores pudessem enviar comentários sobre traduções que teriam lido. Entre as opiniões emitidas, destacaram-se as de um mineiro de Barbacena, Agenor Soares de Moura, que logo se viu convidado para assinar uma seção permanente desse suplemento, intitulada “À margem das traduções”.9 O livro ocupava um lugar importante no cotidiano da classe letrada, e os jornais tinham um papel essencial no sucesso de um livro, pois eram lidos com regularidade, sendo um dos principais divulgadores das obras e constituindo uma das instâncias de consagração destas: Era um tempo livresco, digamos assim. Um tempo em que se liam livros, e também se escrevia sobre eles para chamar a atenção dos indiferentes. A escrevia sobre B e B escrevia sobre C. E se estabelecia desse modo uma espécie de equação crítica, ou uma rodinha de elogio mútuo [...]. O livro era noticiado. Era comentado. E ainda não existiam feiras de livros nem outros supermercados literários.10 9 OLIVEIRA, Maria Clara Castellões de. Op. cit. TOSTES, Theodomiro. Nosso bairro: memórias. Porto Alegre: Fundação Paulo do Couto e Silva, 1989. 10 33 Assim, as traduções eram comentadas, discutidas principalmente nos jornais. Ora, esse interesse pela crítica não se deve somente ao aumento do número de traduções na Era Vargas, mas também à importância de quem as traduzia. Dessa forma, houve um interesse maior da crítica por serem essas traduções feitas por autores-tradutores. Aos críticos interessava comentar traduções de um autor-tradutor, e não de um “tradutor qualquer”, uma vez que haveria um reconhecimento e uma valorização desses críticos através da reduplicação. 1.4 AUTORES-TRADUTORES NAS TRADUÇÕES DA EDITORA GLOBO Segundo o Anuário brasileiro de literatura, entre 1938 e 1943, a Editora Globo detinha 36% de títulos no gênero de ficção e 11% dos livros didáticos. O restante dos títulos era distribuído entre a literatura infantil e as biografias. Outras cinco editoras do mercado editorial, nessa época, foram: Companhia Editora Nacional, Civilização Brasileira, José Olympio, Francisco Alves e Melhoramentos. Dentre estas, a Globo consistia na única a figurar fora do eixo Rio–São Paulo. Nos anos 1942 e 1943, a Globo se posicionou entre as empresas da indústria editorial com o maior número de traduções; com relação às edições de autores nacionais, sua produção abrangia aproximadamente 51% do mercado. A Editora Globo efetuou vários investimentos, com o objetivo de baratear o custo, visando ao aumento das vendas para o público leitor. Cuidados com o tamanho da tiragem, o preço final ao consumidor relacionado com o tipo de papel e o formato pocket 34 book, os direitos autorais, os honorários de tradução, a propaganda, os pontos de venda e o desenho da capa das coleções foram algumas das estratégias lançadas para aumentar as vendas. Assim, várias coleções foram lançadas, e cada uma delas mantinha certas características que correspondiam aos interesses de diferentes grupos do público leitor. Érico Veríssimo, editor à época, com a preocupação de trazer ao público leitor os mais diversos gêneros da literatura, foi responsável pela divulgação de autores considerados eruditos e de leitura “difícil”, tais como Virginia Woolf, Roger Martin du Gard e Marcel Proust. 1.4.1 AS COLEÇÕES DA EDITORA GLOBO Érico Veríssimo, como editor responsável dessa editora, trouxe sua bagagem de leitor e conhecedor das literaturas francesa, inglesa e alemã. Existia também, segundo Sonia Amorim (2000), uma preocupação consciente em formar um público leitor, explicitada em várias ocasiões pelo próprio Érico Veríssimo. Assim, as coleções foram editadas seguindo uma hierarquia do que era entendido como “complexidade”. Primeiramente, com o objetivo de seduzir leitores, procurou-se lançar obras dotadas de leituras tidas como mais amenas, para então conduzir gradativamente esse público leitor a obras consideradas mais elaboradas. Ora, a publicação de traduções eliminava uma série de etapas no processo de edição, tornando mais vantajoso esse tipo de publicação para a editora, assim explicado por Amorim: “o editor estrangeiro já deu conta de quase tudo: escolheu autor e obra, definiu formato, tipologia, configuração visual do livro, sem contar 35 que já correu o risco de editar algo inédito [...]”.11 Para hierarquizar e facilitar o consumo das edições de literatura traduzida, a Globo criou nove coleções dentro desse período mais prolífico das edições – entre 1930 e 1950 –, que são as seguintes: Amarela, Biblioteca dos Séculos, Catavento, Clube do Crime, Espionagem, Globo, Nobel, Tucano e Universo. A Coleção Amarela dedicou-se ao gênero policial. A avidez com que os leitores procuravam os romances policiais fez da Coleção Amarela uma das mais consumidas e rentáveis da editora. Conforme o Relatório da Diretoria da Globo, relativo à passagem dos 100 anos da empresa, o primeiro filão de vendas descoberto por Henrique Bertaso – um dos editores da Globo – foi o das novelas policiais, obras traduzidas de autores praticamente desconhecidos no Brasil. Dessa forma, surgiu com grande sucesso de vendas, com forte apelo popular, tendo como principais autores Edgar Wallace e Agatha Christie. A Coleção Amarela se constituiu na mais longa das coleções, tendo edições durante 25 anos, até 1956. A Coleção Universo durou 10 anos, de 1932 a 1942. Tratava-se de uma coleção ligada aos romances de aventuras. Destacavam-se, nessa coleção, os livros de viagens e aventuras do escritor alemão Karl May, que teve mais de 24 títulos traduzidos, totalizando mais de 234.500 exemplares vendidos. A Coleção Nobel foi a coleção de maior prestígio editada pela Globo. É importante ressaltar que ela exerceu uma influência inegável sobre uma geração de leitores e, segundo Amorim, foi provida de grande admiração pela intelectualidade brasileira da época. Essa coleção oferecia ao leitor tanto obras reconhecidas mundialmente em sua época quanto de vanguarda, algumas, com lançamentos quase simultâneos no exterior e no Brasil. A Coleção Nobel 11 AMORIM, Sônia Maria de. Em busca de um tempo perdido – edição de literatura traduzida pela Editora Globo (1930-1950). São Paulo: Edusp, 2000. p. 71. 36 influenciou uma geração de leitores, na medida em que trouxe traduções para o português do Brasil de várias obras inéditas – entre elas Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust –, como bem aponta Osman Lins em seu Tributo à Coleção Nobel: Tinha a coleção Nobel algumas características interessantes. Ao contrário de todas as coleções que conheço e que acolhem títulos brasileiros e portugueses, só publicava livros em tradução. Quer dizer: apresentava-se francamente, sem falsos patriotismos, como uma coletânea de livros traduzidos, o que delineava com clareza o seu perfil, não admitindo confusões. [...] Muitos dos que, como eu, despertávamos para a literatura em pontos afastados do Brasil e carecíamos de informações sobre autores e obras do nosso tempo, encontrávamos na Nobel uma espécie de guia, uma porta aberta para segmentos importantes do que se escrevia em nosso século. [...] Testemunho, em primeiro lugar, como leitor. Horas das mais valiosas da minha vida foram dedicadas à leitura. E dessas, grande parte é devida à edição da Nobel.12 É na Nobel, segundo Sônia Amorim, que encontramos o mais consagrado corpo de tradutores de todas as coleções. Entre esses tradutores, os autores que mais traduziram obras foram Érico Veríssimo e Mário Quintana. Foi na década de 1940, período mais produtivo da Nobel, que se implantou na Editora Globo um sistema de tradução inédito até então. Foi criado um espaço interno inteiramente dedicado aos tradutores, onde eles trabalhavam integralmente, com remuneração fixa e melhores condições de exercício de sua atividade. Desse modo, a contratação dos autores-tradutores com salário fixo, nesse regime de trabalho integral, tinha como objetivo intensificar a produção editorial das traduções, o que acarretou a valorização do ofício do tradutor e o maior reconhecimento de sua profissão. O problema dos tradutores foi um dos mais sérios enfrentados até hoje pela Globo. Dezenas de obras foram mutiladas por maus tradutores [...]. Hoje, porém, os tradutores assim arregimentados são homens conscientes de seu trabalho, que fazem dele sua profissão.13 12 LINS, Osman. Evangelho na taba: outros problemas inculturais brasileiros. São Paulo: Summus Editorial, 1979. p. 75. 13 MARTINS, Justino apud AMORIM, Sônia Maria de. Em busca de um tempo perdido – edição 37 A convivência entre os autores-tradutores era vantajosa, uma vez que, nesse espaço de produção, eles se relacionavam, de modo que se tornava cada vez mais especializada e intelectualizada – logo, valorizada – essa produção das traduções, assim explicitada por Justino Martins: “Ocorre-lhes, porém, diversas vantagens desse método de trabalho, tais como a facilidade de consultar obras de erudição, de trocar ideias entre si e mesmo adquirir o aperfeiçoamento literário que só um ambiente intelectualizado pode oferecer.”14 Em relação às vendas por números de exemplares, segundo números da editora, figura em primeiro lugar a tradução de Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, e, em segundo lugar, Jean-Cristophe, de Rolland. A presença de obras traduzidas da língua francesa nos dois primeiros lugares de vendagem na editora. Criada por Érico Veríssimo, a Biblioteca dos Séculos era uma coleção dedicada às obras literárias tidas como os clássicos da literatura universal. Apesar de ter tido uma duração relativamente longa, 13 anos, editou pouco, cerca de dois títulos por ano. O pequeno número de títulos deveu-se à maneira especialmente cuidadosa com que tratada essa produção editorial – cuja extensão das obras editadas alcançava as 700 páginas por obra. O texto do folheto de propaganda mostra como a Biblioteca dos Séculos se apresentava ao seu público: É preciso que se leiam os escritores do passado, as obras dos precursores do pensamento e da literatura moderna [...] Estes livros não têm apenas valor histórico ou tradicional: são livros vivos, livros eternos, livros de ontem, de hoje e de de literatura traduzida pela Editora Globo (1930-1950). São Paulo: Edusp, 2000. p. 95. 14 MARTINS, Justino apud AMORIM, Sônia Maria de. Op. cit., p. 95. 38 amanhã [...]. E foi no intuito de proporcionar ao leitor brasileiro a oportunidade de formar uma cultura geral de sólidos fundamentos que a Livraria do Globo organizou a “Biblioteca dos Séculos”, da qual fazem parte somente aquelas obras que atravessaram o tempo e a crítica, figurando, portanto, nas estantes eternas.15 Assim, as obras traduzidas das duas coleções, a Nobel e a Biblioteca dos Séculos, se distinguiram no cenário literário brasileiro. A Coleção Biblioteca dos Séculos se constituiu em várias obras consideradas clássicas, tais como Diálogos, de Platão, traduzido do grego pelos professores Jorge Paleikat, Leonel Vallandro e João Cruz Costa. Entre outros lançamentos, foram também traduzidos: Vontade de potência, do filósofo alemão Friedrich Nietzsche; O contrato social e O discurso sobre a origem e desigualdade entre os homens, de Jean Jacques Rousseau; Ensaios, de Montaigne; A poética e A metafísica, de Aristóteles; O vermelho e o negro, de Stendhal; A comédia humana, de Honoré de Balzac; Guerra e paz, de Leon Tolstói. Nessa mesma coleção, a parte crítica e iconográfica de A comédia humana ficou a cargo do intelectual Paulo Rónai. Na Coleção Nobel, por sua vez, encontravam-se autores reconhecidos, tais como Cecília Meireles, Érico Veríssimo, José Lins do Rego, Leonel Vallandro, Marques Rebello, Sérgio Millet. Para a obra de Proust, foi contratado Mário Quintana. Ao analisarmos alguns dados dessas pesquisas, é interessante notar que, apesar do início de declínio da quantidade das traduções de obras francesas, houve, em contrapartida, a tradução de importantes obras do francês que, até então, não haviam chegado aos leitores brasileiros. Outra observação importante é que, das inúmeras coleções da Editora Globo, as obras traduzidas do francês ocupavam muitas vezes o primeiro lugar em vendagem. Além disso, as traduções de A comédia humana, de Honoré de Balzac, e de Em busca do tempo perdido, de 15 AMORIM, Sônia Maria de. Op. cit., p. 98. 39 Marcel Proust, são consideradas marcos da história da tradução no Brasil. Parecenos que uma mudança social relativa à hierarquia das línguas no mundo, ou seja, o fato de o francês ter perdido sua hegemonia, propiciou que obras consideradas relevantes no cenário literário e traduzidas dessa língua alcançassem maior distinção. Assim, ao traduzir obras francesas, logo “distintas”, a Editora Globo passou a obter maior prestígio, que se reverteu em lucros financeiros. 1.4.2 A TRADUÇÃO PIONEIRA DE A COMÉDIA HUMANA Segundo Amorim, poucos países editaram de forma completa A comédia humana, de Balzac: Inglaterra, Itália e Alemanha. Os dezessete volumes de A comédia humana correspondem aos volumes 30 a 46 da Biblioteca dos Séculos. Os volumes tinham em média 600 páginas. O primeiro foi publicado em 1946 e teve quatro edições, totalizando 20 mil exemplares impressos, fazendo deste um dos best-sellers por tiragem da Biblioteca dos Séculos. Coube a Paulo Rónai, um dos maiores estudiosos de Balzac, a tradução de A comédia humana, que se constitui em um verdadeiro monumento editorial. Para Sonia Amorim, algumas características dessa tradução a qualificam e a distinguem de outras edições, sendo esta considerada, segundo o Museu Balzac, de Paris, a melhor edição estrangeira da obra. Amorim destaca o que diferencia a tradução brasileira das outras:16 – Tradução: Trata-se de uma tradução nova, que tomou por base a melhor edição francesa, publicada pela Pléiade. Os tradutores, cerca de 20, foram 16 Fonte: AMORIM, Sônia Maria de. Op. cit., p. 116-118. 40 recrutados dentre os melhores de Porto Alegre e grandes nomes das letras nacionais, dentre os quais: Aurélio Buarque de Holanda, Brito Broca, Carlos Drummond de Andrade, Gomes da Silveira, Mario Quintana. – Restabelecimento da divisão em capítulos: Por motivos de economia, vários editores franceses foram suprimindo, ao longo do tempo, a divisão em capítulos e os títulos existentes nas primeiras edições e nos manuscritos de Balzac. A própria edição da Pléiade trazia um texto compacto, com extensos parágrafos, sendo, consequentemente, bastante cansativos. A tradução brasileira reintroduziu a divisão em capítulos e títulos primitivos, tornando a leitura mais acessível e prazerosa ao nosso leitor. – Documentação crítica: Vinte e seis ensaios críticos sobre o autor e a obra, escritos por grandes mestres da crítica, alguns contemporâneos de Balzac, acompanham a edição. – Documentação iconográfica: Cento e sessenta ilustrações, que incluem gravuras, desenhos e fotografias, constituem o acervo iconográfico, selecionado também por Paulo Rónai. – Biografia do autor: No volume I, uma biografia do autor, especialmente escrita para essa edição, mostra o Balzac romancista, historiador, empresário. – Prefácios: Cada um dos 89 romances e contos é precedido por um estudo tradutório, que inform ao leitor o texto subsequente, estabelecendo uma conexão com o restante da obra. – Notas de pé de página: Cerca de 12 mil notas de pé de página foram escritas para a edição brasileira de A comédia humana, em uma média de uma por página. 17 17 BARROS, Débora de Castro. As notas do tradutor como lugar discursivo: uma análise das notas 41 Assim, na tradução de A comédia humana, contamos com tradutores de peso; entretanto, o nome que se destaca é o de Paulo Rónai. Observamos que, para traduzir uma obra consagrada e obter reconhecimento para essa tradução, é necessário contratar tradutores de nome e reconhecimento, que possuam “marcas de distinção”, ou seja, características perceptíveis nas preferências de consumo e estilo de vida de determinado indivíduo que permitem que ele seja identificado por outros membros da sociedade como pertencente a determinada classe social, ao mesmo tempo que torna possível que ele se diferencie dos demais membros de sua classe. No caso de Paulo Rónai, essas marcas são seu cabedal cultural. Primeiramente quanto à formação, Rónai nasceu em Budapeste, em 13 de abril de 1907, tendo feito seus estudos na capital húngara e se formado em Literatura e Línguas Latinas e Neolatinas, em 1923, na Universidade Loránd Eötvös. Filho do livreiro judeu Miksa Rónai, desde os sete anos já nutria uma grande vontade de decifrar línguas. Rónai conta em Como aprendi português e outras aventuras que, adolescente, alimentava “em segredo a esperança de assenhorear-me, com o tempo, do maior número possível de idiomas: vinte, trinta, talvez ainda mais”. Um de seus professores lhe assegurou que “só os 15 primeiros eram difíceis”. E, nessa empreitada, o próprio Paulo Rónai declarava que, em sua juventude, passeava por sebos europeus e adquiria os mais diversos livros e gramáticas para estudá-los depois. Principiou o estudo de várias línguas, dentre elas o hebraico, o finês (língua da família magiar que os candidatos a professor de húngaro precisavam saber), o sânscrito, o dinamarquês (o qual não foi além da primeira aula) e o turco. Porém, por razões diversas – “falta de tempo, de de duas traduções brasileiras de O pai Goriot. Rio de Janeiro, 2009. Dissertação (Mestrado em Letras Neolatinas – Estudos Linguísticos Neolatinos – Opção Língua Francesa) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009. 42 entusiasmo, de perseverança”, conforme relata no mesmo livro –, o poliglota, versado em muitas línguas, lamenta não ter aprendido todas elas. Além disso, era professor de latim e de língua italiana em colégios de Budapeste, tendo, também, se especializado em literatura francesa ao defender uma tese sobre Balzac, em 1930. Assim, com bolsa de estudos do governo francês, passou uma temporada na Sorbonne, entre 1930 e 1932. Nesse período, graças a uma coleção de poesia de línguas latinas que conheceu na França, teve seu primeiro contato com a língua portuguesa, por meio de As cem melhores poesias da língua portuguesa, antologia organizada por Carolina Michaëlis. Grande estudioso de Balzac (constam várias publicações suas sobre o escritor francês), destacou-se por seu trabalho de editor em A comédia humana, o qual implicava diversas tarefas, a saber: selecionar os tradutores e orientar a tradução, bem como dar unicidade à obra mediante uma revisão cuidadosa – durante a qual acabou por gerar inúmeras notas de tradução ao longo dos 17 volumes da edição brasileira. Constam várias premiações recebidas por Rónai, inclusive do governo francês, por seu trabalho com A comédia humana. Apesar de não ter sido creditado publicamente pela Editora Globo, Rónai também é o organizador da edição brasileira dos sete volumes de Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust.18 Como a primeira edição dessa obra saiu em outubro de 1948 e, na época, Rónai tinha registro na carteira como chefe de escritório da Editora Globo, ficou provada a sua atuação, o que foi corroborado em algumas entrevistas suas. Assim, Paulo Rónai é reconhecido e legitimado não por ser unicamente tradutor, mas por ser o intelectual que traduz. Esse fato valoriza a figura do 18 ESQUEDA, Marileide. O tradutor Paulo Rónai: o desejo da tradução e do traduzir. Tese (Doutorado) – Unicamp/IEL, Campinas, 2004. 43 profissional da tradução, uma vez que não é qualquer um que traduz. Aproxima-se o tradutor do intelectual. Além disso, Paulo Rónai tem papel fundamental na qualidade das traduções literárias, deixando um legado que associa a tradução literária à circulação de nível de conhecimento. 1.5 A EDITORA GLOBO E A TRADUÇÃO DE EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO Vimos que, nos anos 1930, surgiu no País um novo foco de indústria editorial fora do eixo Rio–São Paulo. Era a Editora Globo, localizada em Porto Alegre, de propriedade de José Bertaso. Nela trabalharam e colaboraram as principais autoridades literárias do País. Tinha como editor, à época, o reconhecido escritor Érico Veríssimo, que veio a se tornar peça-chave da editora. Veríssimo foi convidado a realizar o trabalho de editor na recém-criada Seção Editora e tornou-se conselheiro literário da Globo, incentivando as publicações de traduções. A partir de 1931, a editora passou a ser comandada por Henrique Bertaso e Érico Veríssimo, tornando a Globo destaque no mercado editorial brasileiro, principalmente graças às traduções de clássicos estrangeiros. Nesse período, a tradução alcançou números nunca antes vistos no mercado editorial brasileiro. A posição do tradutor no campo se modificou. Temos, então, os autores-tradutores e o intelectual, que também passa a exercer o papel de tradutor, como é o caso de Paulo Rónai. É importante verificar não apenas o trabalho de pesquisa de Sônia Amorim (2000) em sua dissertação de mestrado, transformada em livro intitulado Em busca de um tempo perdido – edição de literatura traduzida pela Editora Globo, 44 no qual aponta as edições de literatura traduzida pela Editora Globo entre os anos 1930 e 1950, mas também outro relevante trabalho de pesquisa sobre essa editora, elaborado por Elisabeth Rochade Torresini (1999), intitulado Editora Globo: uma aventura editorial nos anos 30 e 40. Sirvo-me de dados presentes nessas pesquisas a fim de analisar uma questão específica em nosso trabalho: as obras francesas consagradas traduzidas nesse período. Em busca do tempo perdido, em francês À la recherche du temps perdu, é uma obra romanesca de Marcel Proust escrita entre 1908-1909 e 1922, publicada entre 1913 e 1927 em sete volumes, sendo os três últimos postumamente. A tradução brasileira foi iniciada por Mário Quintana (o primeiro volume, em 1948; o segundo, em 1951; e os demais, durante a década de 1950) e editada pela Editora Globo, de Porto Alegre. Os originais surgiram nas seguintes datas: – Du côté de chez Swann (pela Grasset, em 1913; depois uma versão modificada foi lançada pela Gallimard em 1919). – À l’ombre des jeunes filles en fleurs (pela Gallimard, em 1919; recebe o prêmio Goncourt no mesmo ano). – Le côté de Guermantes (pela Gallimard, em 1920-192,1em dois volumes). – Sodome et Gomorrhe I et II (pela Gallimard, em 1921-1922). – La prisonnière (póstumo, em 1925). – Albertine disparue (póstumo, em 1927; título original: La fugitive). – Le temps retrouvé (póstumo, em 1927). Ao verificarmos quem são os tradutores, temos Mário Quintana, responsável pelos quatro primeiros volumes: No caminho de Swann (1948), À sombra das raparigas em flor (1951), O caminho de Guermantes (1953) e Sodoma e Gomorra 45 (1954). O quinto volume, A prisioneira, coube a Manuel Bandeira e Lourdes Souza de Alencar (1954); o sexto, A fugitiva, a Carlos Drummond de Andrade (1956); e o sétimo e último, O tempo redescoberto, a Lúcia Miguel Pereira (1956). Apesar de não se poder dizer que Proust fosse um autor popular, o fato é que sucessivas tiragens da Globo se esgotaram. Para realizar tal empreitada, a editora lançou mão da experiência de publicar A comédia humana, de Balzac, entre 1945 e 1955, em 17 volumes. O empreendimento Balzac foi orquestrado por Paulo Rónai, que coordenou a equipe de tradutores e selecionou pessoalmente as introduções dentre o que de melhor havia na crítica internacional. Já a Recherche sairia em sete volumes, e o cotejamento com o original francês foi realizado também por Paulo Rónai. A partir desses projetos, segundo Teresa Dias Carneiro (2007), a Editora Globo passou a contratar tradutores de renome em tempo integral; além disso, o nome do tradutor passou a ser citado na página de rosto, o que raramente acontecia anteriormente. Esse fato contribuiu para um aumento da responsabilidade e da visibilidade do tradutor. Outra mudança em relação ao tratamento da tradução foi o fato de todas as traduções passarem por uma revisão em dois estágios: primeiramente, por um cotejamento com o original e, depois, por uma revisão gramatical e tipográfica. Em um terceiro estágio, as modificações eram discutidas entre o revisor e o tradutor. Assim, esses projetos tiveram importância fundamental na melhoria de qualidade das traduções literárias no Brasil, bem como na melhoria das condições de trabalho do tradutor. 1.6 MÁRIO QUINTANA TRADUTOR 46 Dentre os autores-tradutores, destaca-se Mário Quintana. Nascido no dia 30 de julho de 1906, na cidade de Alegrete, no Rio Grande do Sul, o poeta iniciou na infância o aprendizado da língua francesa, idioma muito usado em sua casa. Aos 13 anos, em 1919, foi estudar em regime de internato no Colégio Militar de Porto Alegre, onde também estudou o idioma. Em 1930, a Revista do Globo e o Correio do Povo publicam seus versos e, quatro anos depois, a Editora Globo lança a primeira tradução de Quintana, seis anos antes de seu primeiro livro editado. Trata-se de uma obra de Giovanni Papini, intitulada Palavras e sangue, publicada na época em que esse autor italiano era reconhecido no Brasil. A partir daí, segue-se uma série de obras francesas traduzidas para a Editora Globo. O poeta foi um dos responsáveis pelas primeiras traduções no Brasil de obras de autores canônicos. A tradução exerceu grande influência na carreira de escritor de Mário Quintana. Dois anos depois, ele transferiu-se para a Livraria da Editora Globo, onde foi trabalhar com Érico Veríssimo, também fluente em língua francesa. É por essa época que seus textos publicados na revista Ibirapuitan chegam ao conhecimento de Monteiro Lobato, que pede ao poeta gaúcho uma nova obra. Quintana escreve, então, Espelho mágico, que só é publicado em 1951, com prefácio de Lobato. Mário Quintana traduziu clássicos da literatura mundial. O número exato das obras que traduziu, no entanto, é controverso, pois o poeta gaúcho usava pseudônimos e nem mesmo se lembrava de quantos livros traduzira, fato por ele confessado em inúmeras entrevistas. Exímio conhecedor da língua francesa, afirmava ter vindo da Belle Époque, e foi desse idioma que trouxe a maior parte das obras que traduziu. Mário Quintana costumava reclamar da desvalorização da 47 atividade. Dizia que uma tradução, quando bem feita, era a estreia do autor estrangeiro na literatura de língua portuguesa e se ressentia de que isso não fosse levado em conta pelos críticos e leitores. De 1937 a 1946, pelo menos uma obra por ano de algum autor estrangeiro seria lida em português graças ao poetatradutor. Em 1948, é publicada sua tradução mais famosa: o volume No caminho de Swann, de Em busca do tempo perdido. Da obra de Marcel Proust, Quintana traduziria, ainda, os volumes À sombra das raparigas em flor, em 1951, O caminho de Guermantes, dois anos depois, e Sodoma e Gomorra, em 1954. Lançada no Brasil pela Editora Globo, a tradução do francês teria também a participação dos poetas Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, que se ocupariam dos três volumes restantes. “Uma boa companhia”, dizia Quintana, em alusão aos colegas. A fim de exemplificar a importância para a tradução no Brasil da estreita ligação entre Quintana e a Editora Globo, apresentamos a seguir, ordenados por ano de publicação, diversos autores estrangeiros consagrados que foram por ele traduzidos para a referida editora: Traduções PAPINI, Giovanni. Palavras e sangue. Porto Alegre: Globo, 1934. MASYAT, Fred. O navio fantasma. Porto Alegre: Globo, 1937. VARALDO, Alessandro. Gata persa. Porto Alegre: Globo, 1938. LUDWIG, Emil. Memórias de um caçador de homens. Porto Alegre: Globo, 1939. 48 CONRAD, Joseph. Lord Jim. Porto Alegre: Globo, 1939. STACPOOLE, H. de Vere. A laguna azul. Porto Alegre: Globo, 1940. GRAVE, R. Eu, Claudius imperador. Porto Alegre: Globo, 1940. MORGAN, Charles. Sparkenbroke. Porto Alegre: Globo, 1941. YUTANG, Lin. A importância de viver. Porto Alegre: Globo, 1941. BRAUN, Vicki. Hotel Shangai. Porto Alegre: Globo, 1942. FULOP-MILLER, René. Os grandes sonhos da humanidade. Porto Alegre: Globo, 1942 (em parceria com R. Ledoux). MAUPASSANT, Guy de. Contos. Porto Alegre: Globo, 1943. LAMB, Charles; LAMB, Mary Ann. Contos de Shakespeare. Porto Alegre: Globo, 1943. GIDE, André. A escola das mulheres. Porto Alegre: Globo, 1944. MORGAN, Charles. A fonte. Porto Alegre: Globo, 1944. MAUROIS, André. Os silêncios do coronel Branble. Porto Alegre: Globo, 1944. LEHMANN, Rosamond. Poeira. Porto Alegre: Globo, 1945. JAMES, Francis. O albergue das dores. Porto Alegre: Globo, 1945. LAFAYETTE, Condessa de. A princesa de Clèves. Porto Alegre: Globo, 1945. BEAUMARCHAIS. O barbeiro de Sevilha ou a precaução inútil. Porto Alegre: Globo, 1946. WOOLF, Virginia. Mrs. Dalloway. Porto Alegre: Globo, 1946. PROUST, Marcel. No caminho de Swann. Porto Alegre: Globo, 1948. BROW, Frederick. O tio prodigioso. Porto Alegre: Globo, 1951. HUXLEY, Aldous. Duas ou três graças. Porto Alegre: Globo, 1951. MAUGHAM, Somerset. Confissões. Porto Alegre: Globo, 1951. PROUST, Marcel. À sombra das raparigas em flor. Porto Alegre: Globo, 1951. 49 VOLTAIRE. Contos e novelas. Porto Alegre: Globo, 1951. BALZAC, Honoré de. Os sofrimentos do inventor. Porto Alegre: Globo, 1951. MAUGHAM, Somerset. Biombo chinês. Porto Alegre: Globo, 1952. THOMAS, Henry; ARNOLD, Dana. Vida de homens notáveis. Porto Alegre: Globo, 1952. GREENE, Graham. O poder e a glória. Porto Alegre: Globo, 1953. PROUST, Marcel. O caminho de Guermantes. Porto Alegre: Globo, 1953. ______. Sodoma e Gomorra. Porto Alegre: Globo, 1954. BALZAC, Honoré de. Uma paixão no deserto. Porto Alegre: Globo, 1954. MÉRIMÉE, Prosper. Novelas completas. Porto Alegre: Globo, 1954. MAUGHAM, Somerset. Cavalheiro de salão. Porto Alegre: Globo, 1954. BUCK, Pearl. Debaixo do céu. Porto Alegre: Globo, 1955. BALZAC, Honoré de. Os proscritos. Porto Alegre: Globo, 1955. ______. Seráfita. Porto Alegre: Globo, 1955.19 Mário Quintana, além da atividade ligada à poesia, traduziu não somente os quatro volumes de À la recherche du temps perdu, de Proust, como também, dentre outros autores franceses, Voltaire, Honoré de Balzac e André Gide. Também, como já visto, traduziu reconhecidos autores de língua inglesa, como Aldous Huxley, Virginia Woolf e Joseph Conrad. Muitos desses autores estrearam na língua portuguesa graças às suas traduções. Observamos que exerceu sua atividade de tradutor principalmente ao longo da década de 1930, continuando a traduzir, paralelamente a seu trabalho como poeta, nos anos 1940 e 1950. 19 DITRA. Dicionário de tradutores literários no Brasil. Florianópolis. Disponível em: <http://www.dicionariodetradutores.ufsc.br>. Acesso em: 10 maio 2010. 50 Cláudia Borges de Faveri e Eleonora Castelli, no artigo intitulado “Em busca do tradutor: Proust e Mérimée por Mario Quintana”, no qual estudam as traduções feitas pelo poeta Mário Quintana de Carmen, de Prosper Mérimée, e de À sombra das raparigas em flor (À l’ombre des jeunes filles en fleur), de Marcel Proust, baseando-se na análise das etapas do processo tradutório empreendida por Antoine Berman e na abordagem do “tradutor de carne e osso”, de Anthony Pym, denotam a estreita ligação do trabalho de tradução de Quintana com a Editora Globo de Porto Alegre. Assim, observamos o passo à frente que representaram as traduções dos autores-tradutores nesse período, bem como a valorização do trabalho dos tradutores a partir daí. Dessa forma, as traduções foram legitimadas por esses tradutores. Constatamos, também, que textos canônicos foram traduzidos nesse período e que o tradutor literário, muitas vezes relegado a um plano secundário ao longo da história da tradução no Brasil, apagado, na maioria das vezes, na Era Vargas (anos 1930 a 1945), passou a ter um destaque. Época em que interessava saber quem era o tradutor e a importância de seu nome para o sucesso de vendas da obra traduzida. Época dos autores-tradutores. 51 2 A TRADUÇÃO LITERÁRIA NO CONTEXTO SOCIAL – FIDELIDADE, ETNOCENTRISMO E INVISIBILIDADE DO TRADUTOR No capítulo anterior, observamos, ao traçarmos uma pequena historiografia da tradução no Brasil, que a chegada da Família Real propiciou a formação da atividade da tradução no País. Assim, os tradutores não eram mais os religiosos, e as traduções passaram, gradativamente, então, a constituir um mercado e a atender às demandas de um pequeno público letrado e da nobreza aqui instalada, podendo-se dizer que se tratava de um começo das traduções literárias no Brasil. Constatamos que o século XIX viu aumentar o número de obras traduzidas, principalmente graças aos romances-folhetins, e que alguns escritores, como Machado de Assis, por exemplo, foram responsáveis por inúmeras traduções. Notamos que a atividade da tradução no País somente obtém maior reconhecimento a partir da primeira metade do século XX, com a estruturação de um espaço social de produção de atividade de tradução formado por editoras, tais como a Editora Globo e a José Olympio, tradutores – escritores atraídos para essa atividade – e público leitor, formado de diversas classes sociais no Brasil. Observamos, também, quanto à maneira de traduzir, que o modelo chamado na França de Belles Infidèles era o mais presente nas traduções no País até o século XIX, tendo sido essa a maneira preponderante de traduzir obras literárias, seguindo regras que privilegiavam a língua e a cultura de chegada, cuja intenção seria a de facilitar a leitura pelo público consumidor de tais obras. Essa maneira de executar uma tradução, ainda presente nos dias de hoje, traz à tona questões que sempre foram caras aos estudos tradutológicos: a fidelidade e o etnocentrismo 52 nas traduções, que são apontados, também, como determinantes para se avaliar uma tradução. Observamos que, na Era Vargas, houve um crescimento das críticas em relação às traduções. Assim, estas eram comentadas e havia uma circulação de valores que as qualificavam de boas ou más. Procuraremos mostrar como o conceito do que seja uma boa tradução varia de acordo com diferentes perspectivas. A respeito da “definição” de tradução literária, Joseph Lambert (1998) declara que esse conceito não é tão evidente quanto possa parecer. Afirma Lambert que, assim como o conceito de “literatura”, o de tradução também não é consensual, e suas fronteiras com conceitos como “adaptação” e “imitação” não estão claras na maioria das vezes, tampouco estão traçadas da mesma forma em diferentes momentos da história, nem sequer em um mesmo período histórico da mesma comunidade linguística. Assim, a chamada “tradução literária” é o lugar no qual a discussão das diferenciações entre “tradução”, “adaptação”, “transcriação” e “imitação” parece ser mais frequente.20 Não discutiremos propriamente a origem de tais conceitos; entretanto, é necessário que tenhamos consciência de que eles põem em xeque o valor da tradução pelo ângulo da oposição original versus cópia, o que será explicitado ao longo do trabalho. A fim de refletirmos sobre o valor de uma tradução, partiremos da pergunta de Paulo Henriques Britto (2007): É possível avaliar traduções? Afirma o autor que as traduções somente poderiam ser julgadas por pessoas que delas não têm necessidade, cabendo, portanto, aos críticos avaliar as traduções, com o objetivo 20 CINTRÃO, Heloísa Pezza. Notas para um estudo da tradução literária do espanhol no Brasil. In: ROJO, Sara et al. (Orgs.). Anais do V Congresso Brasileiro de Hispanistas [e] I Congresso Internacional da Associação Brasileira de Hispanistas, 2008. p. 2.723-2.731. 53 de orientar o consumidor sobre as traduções disponíveis no mercado. Mas, haveria como avaliar objetivamente o valor de uma tradução? Sobre essa questão, indaga: Como avaliar a nova tradução do Ulysses de Joyce feita por Bernardina da Silveira Pinheiro em relação à antiga, assinada por Antônio Houaiss? Ou a nova tradução de Proust de Fernando Py em comparação com a empreendida no passado por um grupo de tradutores que incluía Carlos Drummond de Andrade e Mário Quintana?21 Ao discutir a questão da avaliação de uma tradução, Britto recorre a Lefevere, para quem apenas o leitor bilíngue, conhecedor do tipo de obra que julga, estaria capacitado para emitir tais juízos de valor. O autor levanta outra colocação possível em relação à avaliação das traduções, ao afirmar ser “possível defender uma outra posição: a de que ninguém deve fazer o trabalho de avaliação de traduções”.22 Afirma que os argumentos em favor dessa posição são vários e que possivelmente o principal deles seja o fato de que todos os juízos de valor são relativos, que não há critérios absolutos com base nos quais se possam estabelecer avaliações definitivas. Nesse caso, conclui: “na melhor das hipóteses, a crítica só revela que o crítico que aprova/reprova uma tradução parte de pressupostos semelhantes a/diferentes dos que são adotados pelo tradutor em questão”.23 Chama a atenção, também, para o fato de não haver uma linha nítida separando, por exemplo, as traduções das adaptações, sendo inúmeros os casos limítrofes, o que bastaria para desqualificar a proposta de diferenciar uma categoria da outra. Ao discutir essas questões em relação à tradução, Britto indaga: “será possível não avaliar?” Ao que ele mesmo responde: “É simplesmente impossível, em algum momento, não julgar; o máximo que se pode fazer é suspender por algum tempo o ato de julgar, e escamoteá-lo quando ele surgir. Mais cedo ou mais 21 BRITTO, Paulo Henriques. É possível avaliar traduções?. Tradução em Revista, Rio de Janeiro: PUC-Rio, n. 4, 2007. Disponível em: <http://www.maxwell.lambda.ele.puc-rio.br/cgibin>. 22 Id. 23 Id. 54 tarde, somos levados a fazer juízos de valor e a agir com base neles”. Afirma que “mesmo o leitor sempre se perguntará se a tradução é de fato confiável; se tiver acesso ao original e condições de consultá-lo, ele o fará – e, neste momento, estará novamente avaliando a tradução”. A crítica seria, então, a principal responsável pela emissão de valores em relação à tradução. Em relação à crítica de traduções no Brasil, o trabalho de Regysane Botelho Cutrim Alves (2009) mostra que são poucas. Em nossa pesquisa, observamos que há de fato pouca, para não se dizer quase nenhuma, crítica em relação ao nosso objeto de estudo, a tradução de Em busca do tempo perdido efetuada por Mário Quintana. O que há, em abundância, é a emissão de juízos de valores, com ínfima base reflexiva, sem haver tampouco critérios estabelecidos para a emissão desses juízos, o que nos conduz à conclusão de que, como se trata de uma tradução de tal modo consagrada pela estrutura do campo, não se consegue distinguir entre a significação estabelecida para a tradução e aquilo que constitui o arbitrário dissimulado pelo efeito da legitimação. Assim, essa questão da consagração e da legitimação conduziu nosso interesse para a teoria dos campos simbólicos, de Pierre Bourdieu, que mostra a produção social de um bem simbólico, no nosso caso, a tradução, além de possuir a vantagem de tornar evidente como se constitui o valor de uma tradução e a sua consagração estabelecida pelo campo de produção simbólica. Primeiramente, verificaremos, em diferentes teorias, a concepção do que seja uma boa tradução. Observaremos que, em uma visão dita tradicional, a questão da fidelidade é apresentada como essencial ao julgamento do que seja uma boa tradução. Depois, com as teorias de Antoine Berman e Lawrence Venuti, veremos a tradução sob uma perspectiva social, uma vez que esses autores 55 demonstram certos aspectos sociais que incidem no posicionamento do tradutor diante do seu fazer. Um exemplo disso é a definição da tradução como etnocêntrica, e não o fato de ser etnocêntrica como critério de qualidade de uma tradução. Apresentaremos, em seguida, a teoria dos polissistemas, que analisa a tradução sob uma perspectiva sociológica. Por fim, enfatizaremos a importância de se estudar a tradução sob uma perspectiva sociológica para a compreensão de sua consagração dentro de um campo. Nessa perspectiva, observaremos que, segundo Johan Heilbron e Gisele Sapiro,24 além do texto em si, questões propriamente sociológicas surgem, principalmente no que tange às funções da tradução e a seus agentes no espaço em que se encontram. 2.1 A FIDELIDADE E A VISÃO TRADICIONAL DA TRADUÇÃO LITERÁRIA Solange Mittmann (2003), ao resgatar algumas teorias a respeito da tradução, apresenta três autores que compartilham daquilo que a autora chama de uma perspectiva tradicional da tradução:* Eugene A. Nida, Erwing Theodor e Paulo Rónai. Consideramos importante expor algumas questões apresentadas por esses autores, a partir da leitura de Mittmann, uma vez que dessa concepção tradicional advém um modo recorrente de considerar a tradução e o tradutor, e da qual decorre a desvalorização da tradução e, consequentemente, do tradutor. 24 Ibid. Esse quadro constitui uma visão geral e por isso foram escolhidos teóricos da segunda metade do século XX, pois acreditamos que essa concepção dita tradicional ainda esteja muito presente nos estudos sobre a tradução. * 56 Eugene Nida introduziu, a partir dos anos 1960, uma novidade em metodologia de tradução da Bíblia que ficou conhecida como equivalência dinâmica. Segundo esse método, o tradutor começaria por decompor analiticamente a estrutura de superfície da mensagem em seus conceitos básicos, transferindo depois esses conceitos da língua de origem para a receptora, reestruturando, em seguida, todo o material transferido, de modo a construir uma mensagem “coerente”, no estilo da língua receptora. Assim, Nida considera a tradução como um mecanismo capaz de transportar de modo transparente uma mensagem de uma língua para outra. Segundo o autor, esse mecanismo se iniciaria com a decodificação pelo tradutor – que, nesse momento, ocupa o papel de receptor da mensagem de uma língua A e termina com sua recodificação na língua B. Nessa perspectiva da tradução como transferência, Nida alerta para o perigo da distorção da mensagem original em função da interferência exercida pelo tradutor, a partir de sua subjetividade e de seu envolvimento emocional. Outro autor que também concebe a ideia de tradução como transferência é Theodor. A fim de que essa transferência se efetive, Theodor enfatiza a necessidade da “interpretação correta” do texto original pelo tradutor. A respeito da tradução literária, afirma que o primeiro passo do trabalho do tradutor é a decodificação das informações, sendo o segundo sua recodificação em um novo texto. Nessa perspectiva, a tradução é vista como transposição, cabendo ao tradutor “aproveitar todos os recursos que seu idioma lhe reserva”, a fim de “oferecer uma mensagem o mais próxima possível ao texto original”. Ressalta, ainda, em relação à tradução literária, que o tradutor deve ser capaz de recodificar, além do sentido da mensagem, “as suas conotações culturais e civilizatórias”. Theodor apresenta a distinção entre tradução, versão e recriação. Define a 57 tradução como “trabalho consciente e exato de transposição de um idioma para outro, entretanto, desprovido de cunho artístico”; dessa maneira, a tradução está baseada na correspondência entre as palavras. Para o autor, a versão é “o trabalho de transposição, exato e artístico”, que busca “conservar a harmonia do todo”, e a recriação é o trabalho de passagem de um texto para outro idioma, artístico, mas pouco exato. Assim, para Theodor, a tradução e a versão exigem uma transposição exata, ao passo que a inexatidão caracterizaria a recriação. Também nessa perspectiva tradicional, segundo Mittmann, Paulo Rónai define a tradução como “reformulação de uma mensagem num idioma diferente daquele em que foi concebida”. Salienta Rónai que a tradução não é uma atividade mecânica de substituição de palavras, como se estivessem isoladas, já que “as palavras não possuem sentido isoladamente, mas dentro de um contexto”. É importante ressaltar que o autor chama de contexto as palavras, as frases, a página, o parágrafo ou o que for necessário para determinar “o sentido” e, consequentemente, reformulá-lo na língua de chegada. O importante, para Rónai, é a “mensagem do texto original”. Dessa maneira, a tradução não seria uma transferência de sentidos de uma palavra para outra equivalente, mas a transferência de uma mensagem. Nesse sentido, a “fidelidade”, segundo o autor, seria respeitar a língua de tradução, respeitando o que diz o autor do original, sem interferir ou deformar a mensagem, pois o tradutor faz o papel de “procurador do autor, antes que seu colaborador”. Sob essa ótica, a boa ou a melhor tradução seria aquela que decodificasse a mensagem do original, uma vez que esses três autores concebem a tradução como decodificação do pensamento do autor. Observamos, também, que a subjetividade do tradutor é tomada como empecilho para a tradução ideal, cabendo-lhe lutar 58 para manter-se o mais neutro possível, a fim de fazer fluir a mensagem do original. Sob essa perspectiva, essas teorias tomam como base para o estudo da tradução apenas o texto e a língua. Nessa visão tradicional, tem-se a ideia da tradução como uma atividade meramente mecânica, em que seu agente, o tradutor, é visto como uma “ponte” entre as ideias do chamado texto original, ou entre as ideias desse texto e o texto traduzido. Assim, há uma idealização do texto original, confundindo-se o sentido com as intenções do autor, uma vez que se acredita na transparência e na estabilidade dos sentidos. O texto original é visto como sagrado, e o tradutor quase sempre é visto como um “mal necessário”, esperandose dele sua “neutralidade”, a fim de que seja um mero canal ou ponte, para que o texto original flua no texto traduzido, e cujo maior mérito seria o apagamento total de sua figura. Nesse contexto, grande parte das teorias voltadas para a reflexão sobre a tradução, de uma maneira geral, tratavam dessa atividade como uma simples transferência de signos e significados, tendo o tradutor, nesse processo, um papel, quase mecânico, de mediador, bastando que possua um conhecimento gramatical adequado de dois ou mais idiomas e um bom dicionário para realizar a sua tarefa. Podemos observar que, na perspectiva, dita tradicional, o valor da tradução é estabelecido por uma pretensa transparência do tradutor, que efetivaria uma transposição com uma relação direta entre o original e o texto traduzido. A ideia é de que haveria uma fidelidade entre o original e a tradução. Na verdade, não há como a subjetividade do tradutor estar excluída do trabalho produzido. Não há como esse trabalho estar fora das relações sociais e da cultura produzida em torno. Torna-se impossível o tradutor estar isento do trabalho exercido, uma vez que ele mesmo participa da sociedade da cultura em que vive. 59 Lenita Esteves (1997), ao levantar a questão da originalidade, afirma que o chamado texto original, por ser um texto “inédito”, “diferente”, “inventivo”, seria único. Espera-se do texto traduzido que não seja o original, “embora a grande quimera alimentada nessa atividade seja justamente a de que a tradução seja o original”. Assim, a tradução deve repetir, de alguma maneira, a inventividade de um texto original, mas existe uma necessidade de que essa repetição seja de algum modo diferente e inferior, pois essa inferioridade da tradução garantiria o valor, a inventividade e a autonomia de um texto original. Sobre essa questão, afirma: Voltemos à questão da não perfeição das cópias. Por que será que uma tradução, na qualidade de cópia de um “original”, nunca é perfeita? Ou, pelo menos, não é perfeita eternamente? Na minha opinião, justamente pelo estatuto de cópia que a tradução tem. Costuma-se dizer que as traduções envelhecem, e o original não. Mas como um texto do século XVII pode ser mais atual que uma tradução desse mesmo texto feita há apenas vinte anos? Se aceitarmos que traduções diferentes, realizadas em diferentes épocas e contextos, conferem a esse texto do século XVII colorações diversas, está respondida a questão, que não consistia na verdade em nenhum enigma. Assim, uma tradução teria as “marcas” da época em que foi produzida. Mas e o original, por que ele não teria essas mesmas marcas?25 (grifos nossos) É justamente o estatuto de cópia que faz com que a tradução não seja única, assim como o tradutor também não o é, uma vez que uma mesma obra pode ser traduzida por vários tradutores. Nessa perspectiva, o original, sim, seria único, assim como o autor desse original. 25 ESTEVES, Lenita. Tradução fiel: a quem? a quê? por quê?. Estudos Acadêmicos Unibero, São Paulo, v. 5, p. 64-71, 1997. 60 2.2 O ETNOCENTRISMO E A RELAÇÃO DO TRADUTOR COM A CULTURA DE CHEGADA E DE PARTIDA Conforme acabamos de observar, os estudos da tradução literária, vistos pelo ângulo dos estudos linguísticos apresentados, tinham por base uma tradição que objetivava o acesso direto ao “sentido” do texto, considerando-se unicamente a relação entre as línguas de chegada e partida. Dessa maneira, era colocada de lado a diversidade dos agentes implicados na tradução – tradutores, estudiosos da produção literária, escritores, mediadores diversos e mesmo o público em seu espaço histórico e social de recepção das obras. Graças às rupturas operadas pelo pós-estruturalismo nessa concepção dita tradicional, principalmente em relação às novas teorias de concepção da linguagem, que questionam a estabilidade dos sentidos, temos uma nova noção da tradução, não mais como uma transmissão imediata de mensagens, mas como produção de sentidos. Destarte, o papel do tradutor passou a ser tema de destaque nas pesquisas sobre o fazer tradutório. A tradução, que, até então, era tida como uma atividade que não necessitava de grandes reflexões, sendo estudada geralmente sob a perspectiva da prática, passa a ser percebida como um espaço para discussões e reflexões que não ficam restritas ao texto e à língua. Assim, para alguns teóricos, já havia a necessidade de abordar o assunto de forma a possibilitar espaço para uma teoria que se ocupasse de maneira mais específica de questões referentes à tradução. Por conta disso, em meados do século XX, mais precisamente entre as décadas de 1970 e 1980, teve início um processo de institucionalização de uma área voltada especificamente para os Estudos da Tradução. Nesse novo cenário, teóricos como o francês Antoine Berman e o americano Lawrence Venuti passam a se destacar como 61 pensadores da tradução na contemporaneidade, ao propor reflexões sobre a tradução que vão além da dicotomia teoria/prática: [...] Não se trata aqui de teoria de nenhuma espécie. Mas sim de reflexão [...]. Quero situar-me inteiramente fora do quadro conceitual fornecido pela dupla teoria/prática, e substituir esta dupla pela da experiência e da reflexão. A relação entre a experiência e a reflexão não é aquela da prática e da teoria. A tradução é uma experiência que pode se abrir e se (re)encontrar na reflexão.26 Apresentaremos as concepções dos teóricos Lawrence Venuti e Antoine Berman, pois eles configuram uma ruptura em relação à perspectiva tradicional, principalmente no que tange à questão do etnocentrismo na tradução e à posição tradutiva do tradutor, apresentando uma nova perspectiva do que seria uma “melhor” tradução de um original. O teórico americano Lawrence Venuti (2002) difere daqueles teóricos tradicionais, sobre os quais discorremos anteriormente, principalmente na crítica que faz à tradução doméstica ou etnocêntrica e à invisibilidade do tradutor. Afirma Venuti que a tradução é estigmatizada como uma forma de escrita desencorajada pela lei de direitos autorais e depreciada pelas academias, apontando que o fator preponderante para a marginalidade da tradução é a impossibilidade de ser provida de autoria. Assim, enquanto a autoria é valorizada como originalidade, autoexpressão, produção de um texto único, a tradução é vista como derivada, não sendo autoexpressão, nem um texto único, mas uma imitação de outro texto. A tradução seria, assim, desmerecida, pois traria como marca a falta de autenticidade, a distorção e a contaminação de algo que seria original e único.* 26 BERMAN, Antoine. A tradução e a letra, ou o albergue do longínquo. Tradução Marie-Hélène Catherine Torres, Mauri Furlan e Andréia Guerini. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007. p. 18; grifos do autor. * Em fevereiro de 1998, foi sancionada a Lei no 9.610, que consolidou as regras de direitos autorais no Brasil. Essa lei considera a tradução como uma obra protegida pelo direito autoral. 62 Segundo Venuti, as traduções são produzidas por muitas razões e para diferentes públicos, e, desse modo, o tradutor tenderia a tomar uma posição diante do texto original que se expressasse nos princípios e nos esquemas de execução das traduções. Segundo o autor, duas são as posições efetivadas pelo tradutor: a tradução doméstica ou etnocêntrica, que pretende afastar a estranheza ao privilegiar a clareza, a fácil legibilidade, a linguagem mais familiar; e a não etnocêntrica, que é favorável à cultura de partida. Na maneira de traduzir denominada doméstica ou etnocêntrica, o texto traduzido se apresentaria como se fosse escrita original, uma expressão da intenção do autor estrangeiro, uma vez que a figura do tradutor estaria oculta. Esse tipo de tradução criaria a ilusão de estarmos lendo o texto original na língua de chegada. Já a maneira de traduzir não etnocêntrica realizaria o contrário, ou seja, não traduziria de forma a privilegiar a cultura de chegada, mas demonstraria o “estrangeiro” na tradução. Essa ocultação da figura do tradutor, entendida como uma invisibilidade de sua posição na tradução, é discutida por Venuti27 em The translator’s invisibility – a history of translation, uma referência no campo dos Estudos da Tradução. Nessa obra, o autor aponta que essa é a posição mais comum na produção das traduções, responsável pela invisibilidade do tradutor28 e por sua consequente marginalização. Venuti29 afirma que, uma vez que editores e leitores desejam uma leitura fluente por parte do leitor, sem que o faça pensar ou mesmo perceber que se trata de uma tradução, privilegia-se um “apagamento” do tradutor, possibilitando que as traduções sejam lidas como se escritas no original, 27 VENUTI, Lawrence. The translator’s invisibility: a history of translation. Londres: Routledge, 1995. 28 FROTA, M. P. Lawrence Venuti e a teoria da (in)visibilidade do tradutor. In: A singularidade na escrita tradutora. Campinas: São Paulo, 2000. Cap. II, p. 71-136. 29 VENUTI, Lawrence. Escândalos da tradução.Tradução Laureano Pelegrin. Bauru: Edusc, 2002. 63 eliminando-se, assim, as diferenças culturais. O teórico propõe uma posição de visibilidade do tradutor que acarretaria a valorização de seu trabalho, tanto em termos de regulamentação e de remuneração quanto de prestígio cultural. O norteamericano reconhece que alguma apropriação etnocêntrica é inevitável, mas afirma que o tradutor deve se mostrar visível e revelar em seu texto o elemento estrangeiro e seu modo de significar. Dessa forma, o texto traduzido não apareceria como doméstico. Venuti critica a visão tradicional de autoria, segundo a qual a tradução é definida como uma representação inferior ao original, sendo este, sim, considerado a expressão autêntica da personalidade e das intenções de seu autor. Para Venuti, o tradutor não deveria aceitar sua condição demérita e lutar pela legitimidade do produto de seu ofício. Essa estratégia se constituiria em um tipo de ato tradutório no qual o texto traduzido parecesse realmente uma tradução, ao não apagar traços da cultura do original. Desse modo, Venuti (1995) questiona o tradicional conceito de autoria única do texto original, criticando o conceito de sujeito cartesiano, e afirma, em relação à subjetividade, que esta é: “[...] constituída por determinações culturais e sociais que são diversas e mesmo conflitantes, que medeiam qualquer uso da linguagem e que variam segundo cada formação social e cada momento histórico”.30 Ao conceber a subjetividade como uma dimensão necessariamente constituída pelo social e pelo histórico, Venuti nega a possibilidade de autoria como criatividade absolutamente individual. Nega, assim, a dicotomia entre a tradução livre e a tradução fiel, ao mostrar que nem uma nem outra podem de fato ocorrer, já que não é possível ao tradutor despojar-se de sua bagagem ideológica e 30 Ibid.; tradução nossa. 64 cultural que o constitui como sujeito. Assim, a suposta neutralidade do ato tradutório é apresentada como um efeito ilusório, gerada por determinada posição do tradutor. Segundo Venuti (1995, p. 15), a tradução etnocêntrica forma a subjetividade dos leitores dos textos traduzidos na língua de chegada, por propiciar um processo de “espelhamento” e seu autorreconhecimento na obra traduzida. O teórico afirma que o texto estrangeiro torna-se inteligível quando o leitor se reconhece na tradução, identificando os valores domésticos que motivaram a seleção daquele texto estrangeiro em particular e que nele são inscritos por meio de estratégia específica. Assim, as traduções colocam os leitores em inteligibilidades domésticas que também são posições ideológicas, conjuntos de valores, crenças e representações que favorecem os interesses de certos grupos sociais em detrimento de outros. Essa fluência das traduções atende a imposições econômicas, uma vez que, quanto mais “legível”, isto é, quanto mais o seu leitor nela reconhecer sua própria cultura, mais “consumível” e rentável a tradução será. As ideias de Lawrence Venuti se coadunam com as de Antoine Berman, quando este propõe uma resistência às tendências etnocêntricas da tradução, visto que para ambos a tendência etnocêntrica da tradução seria responsável por essa invisibilidade (e, consequentemente, por seu desmerecimento) do tradutor. Nesse ponto, não nos deteremos na extensa teoria tradutória do autor francês. Entretanto, esse aspecto de sua teoria é relevante, na medida em que nos conduz ao que Berman denomina posição tradutiva. Esse aspecto nos interessa, uma vez que a posição tradutiva, tal como nos é apresentada por Berman, constitui-se em uma posição social do tradutor diante do texto original a ser traduzido. Afirma Berman que não há tradutor sem posição tradutiva, embora ela não seja claramente 65 anunciada. Para ele, a fidelidade ao sentido é a infidelidade à letra, fidelidade relacionada com o jogo de significantes. O tradutor deveria assumir uma posição de visibilidade, com liberdade para buscar uma relação que não apenas assimilasse o estrangeiro, mas que fizesse aparecer relações entre as culturas de partida e de chegada. Sob esse ponto de vista, tanto para o teórico norteamericano quanto para o teórico francês o tradutor deve se posicionar diante do texto que traduz, preservando características fundamentais para colocar o Outro em evidência. Nesse sentido, o teórico francês baseia seu conceito de tradução ética na relação entre as culturas doméstica e estrangeira, incorporada pelo texto traduzido. Para Berman, uma tradução de má qualidade seria a que apresenta uma atitude doméstica, ou seja, a posição da tradução etnocêntrica, ao passo que uma boa tradução visaria a pôr fim a essa negação, pois esta representa “uma abertura, um diálogo, uma hibridação, uma descentralização” e, dessa maneira, força a língua e a cultura domésticas a registrarem a “estrangeiridade” do texto traduzido. Em A prova do estrangeiro, um estudo tradutológico no qual se instaura um debate político e ético que aponta a relação entre a própria cultura na qual a tradução é feita e a cultura do “Outro” (em maiúscula para designar o estrangeiro, o que é de fora), Berman (1984) propõe uma visada ética da tradução com o objetivo de defender a tradução como abertura ao Outro. Isso, segundo ele, tornase possível a partir do momento em que se identificam as deformações típicas que redundam em uma tradução etnocêntrica – o que Berman chamará de “má tradução”. No entanto, ele também admite a impossibilidade de que a relação travada com o Outro seja isenta de traços etnocêntricos. Assim, uma analítica da tradução, que auxilia na identificação dos elementos deformadores, oferece a 66 possibilidade de que as interferências deformadoras sejam, ao menos, minimizadas durante o fazer tradutório. Nesse sentido, uma “boa tradução”, na análise de Berman, seria aquela em que as características etnocêntricas são amenizadas, apresentando, assim, uma nova maneira de concepção de valor.31 A prova do estrangeiro discute conceitos relativos à tradução na Alemanha do século XVIII. Dos conceitos bermanianos, três serão destacados e apresentados, a fim de que possamos discutir questões importantes à prática da tradução etnocêntrica e não etnocêntrica: a Weltliteratur (literatura mundial), a Bildung, processo no qual a relação de si mesmo se afirma em relação ao estrangeiro, produzindo uma relação de interação, e a Translation, como teoria que mostra a passagem de uma língua-cultura a outra. Nessa obra, Berman mostra como Madame de Staël, com a tradução de Goethe, introduz na consciência europeia a ideia de um mercado literário mundial, a Weltliteratur, como um vasto espaço de diálogo e de troca que oferece a cada literatura nacional o modo de se renovar. Berman nos apresenta, assim, uma necessidade maior da tradução que a comumente reconhecida. A partir da prática dos poetas românticos alemães, mostra que uma cultura não pode permanecer voltada para si mesma, que ela necessita de outras culturas para se constituir. Desse modo, o teórico francês demonstra o complexo diálogo instaurado pela tradução ao mostrar que esta não é simplesmente um espelho em que a obra literária admira seu reflexo, mas, antes, a relação da obra consigo mesma. O texto traduzido permite, dessa maneira, um novo olhar sobre o texto de partida. A tradução intervém, então, não somente na relação entre si e o outro, mas na relação consigo mesmo. A partir do conceito de Weltliteratur, muda-se a relação 31 PETRY, Simone Christina. A noção bermaniana de relação sob o viés derridiano da hospitalidade. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Letras, UFPR, 2011. 67 com o estrangeiro. Essa relação, que antes era de troca e de recusa, tende, então à interação, à troca, como reitera Berman: “Com a chegada da literatura mundial, a relação torna-se mais complexa, na medida em que as diversas culturas buscam, a partir de então, contemplar-se no espelho das outras, a buscar nelas o que não podem encontrar em si mesmas.”32 Outro conceito, o de Translation, dá conta da interação entre a tradução e o meio literário. A Translation pode ser definida, de maneira simplificada, como uma teoria geral de passagem de uma “língua-cultura a outra”. Segundo Berman, cada ato de tradução se dá em uma mediação que compreende ao mesmo tempo determinantes conceituais, estéticos e políticos. Assim, a Translation é essencial à questão da consciência histórica, aparecendo como interação e revelação. Ao mostrar a Weltliteratur, discutindo e ampliando essa ideia, Berman levanta questões importantes à tradução, mas destacamos aqui aquela que sempre foi fulcral: a fidelidade. Para discutir a ideia de original, partimos da citação do poeta Octávio Paz,33 estando diametralmente oposta à que se encontra tradicionalmente no campo: “Todo texto é único e é, ao mesmo tempo, a tradução de outro texto. Nenhum texto é completamente original porque a própria língua em sua essência já é uma tradução.” A partir dessa afirmativa, questiona-se o conceito de originalidade, ligado diretamente ao de fidelidade, uma vez que, tradicionalmente, acredita-se que há um texto original, concebido por um autor que ali deposita conscientemente suas ideias, cabendo à tradução a tarefa de transportá-las. Assim, Berman, ao discutir a Weltliteratur, questiona a identidade da cultura nacional, reconduzindo a crítica 32 BERMAN, Antoine. A prova do estrangeiro. Tradução Maria Emília Pereira Chanut. Santa Catarina: Edusc, 2002. p. 117. 33 Apud ARROJO, Rosemary. Oficina de tradução. São Paulo: Ática, 2003. 68 em relação à tradução na direção da impossibilidade do “original” e da “fidelidade”. Já discutimos a Weltliteratur e a Translation, verificando como a tradução revela questões das relações culturais a partir da relação com o Outro. Passaremos agora a outro conceito trabalhado pelo autor francês, o da Bildung, relacionando-o com a questão da tradução etnocêntrica, analisando, também, a tradição das Belles Infidèles na França. A palavra alemã Bildung significa, genericamente, cultura. Observa-se a natureza circular e alternante da Bildung, a de ser ao mesmo tempo progressão e retorno. Vejamos como isso se dá em relação à tradução. Na cultura alemã do século XVIII, a tradução tem um papel essencial. Assim, à medida que a Bildung se define como certa provação (ou prova) do estrangeiro, a tradução se manifesta como um dos principais agentes da formação de um povo. Entretanto, a história da tradução tem mostrado que essa prova do estrangeiro é geralmente recusada. Berman observa, como prova disso, que o povo francês é essencialmente etnocêntrico, dando como exemplo o gênero de tradução intitulado Belles Infidèles. Referindo-se às Belles Infidèles, Berman (1985) afirma que esse gênero, que dominou as traduções na França nos séculos XVII e XVIII, pode parecer ultrapassado, mas continua muito vivo. As Belles Infidèles, conforme observamos no capítulo anterior, constituíam-se, em linhas gerais, em um afrancesamento das obras traduzidas, procurando-se produzir textos traduzidos como se tivessem sido escritos originalmente em francês. As Belles Infidèles podem ser definidas como “traduções que para agradar e se adaptar ao gosto e ao costumes da época seriam versões revistas e corrigidas por tradutores conscientes da superioridade da língua 69 para a qual traduz”.34 Assim, palavras consideradas imorais, cenas que pudessem chocar o público francês eram cortadas ou adaptadas. Esse procedimento nas traduções provocou fortes críticas. O próprio nome, Belles Infidèles, vem de uma expressão utilizada por Ménage (1613-1691), que, ao criticar as traduções de Nicolas Perrot, compara: “Elas me lembram uma mulher que amei muito em Tours, que era linda, mas infiel.” Assim, os críticos franceses da época identificavam a fidelidade como uma qualidade à tradução; entretanto, apesar de à época terem surgido algumas traduções que se propunham mais “fiéis”, estas não caíram no gosto do público, que preferiram as “belas infiéis”, que eliminavam elementos estranhos à cultura receptora da tradução. Para Berman, a realização da proposta das Belles Infidèles deixou traços de uma tradição etnocêntrica de tradução. Observa Berman,que há uma tendência mundial à tradução etnocêntrica, em maior ou menor grau, mas sempre com traços de etnocentrismo. Entretanto, para o autor, uma boa tradução, uma tradução ética é justamente aquela que realiza o inverso das Belles Infidèles, ou seja, uma tradução que não apaga a língua e a cultura estrangeiras. Dessa maneira, a boa tradução seria a “tradução da letra”, a que se abre, “no plano da escrita, a uma relação com o Outro” e “fecunda o Próprio pela mediação do estrangeiro”. Berman propõe uma tradução ética, poética e pensante que se vale tanto da reflexão sobre o próprio processo tradutório e de composição do texto original (tradução como crítica) como da experiência da obra e da língua, ou, em última análise, do Outro. Como afirma: Fazer uma experiência com o que quer que seja [...] isso quer dizer: deixá-lo vir sobre nós, que nos atinja, que nos caia em cima, nos deite ao chão e nos transforme noutro. Nesta expressão “fazer” não significa precisamente que somos os 34 HORGUELIN, Paul. Anthologie de la manière de traduire: domaine français. Montréal: Linguatech, 1981. p. 76, 230 p.; Les instruments de la docilité. Palimpsestes, Paris: Presses de la Sorbonne Nouvelle, n. 8; tradução nossa. 70 operadores da experiência, “fazer” quer dizer aqui, tal como na locução “faire une maladie”, passar por, sofrer de uma ponta à outra, aguentar, acolher aquilo que nos atinge submetendo-nos a ele. 35 Outra consequência da tradução etnocêntrica seria a invisibilidade do tradutor, uma vez que, ao traduzir de tal forma que não se perceba que se trata de uma tradução, ao eliminar o que é estrangeiro, o tradutor se apaga, tornando-se invisível, pois, conforme observamos, na visão bermaniana, a tradução etnocêntrica priva o leitor do caráter estrangeiro do texto traduzido, negando, de certa forma, o processo de tradução. A consequência é a produção de textos traduzidos sem deixar marcas da tradução, que passam como originais. Assim, na perspectiva da tradução etnocêntrica, a invisibilidade é o maior mérito do tradutor. Quanto à posição tradutiva, é improvável ao tradutor alcançar, na prática, uma visada pura da tradução, ou ainda, escolher apenas não fazer uma tradução etnocêntrica. Isso porque não é possível se desvincular totalmente de pressupostos ideológicos – constitutivos de uma opção etnocêntrica –, já que estes estão enraizados nas inúmeras culturas, e o tradutor está ligado à sua cultura e a determinadas práticas sociais. Devemos nos interrogar se, em relação ao público leitor, esse tipo de tradução não etnocêntrica não correria o risco de se tornar ininteligível. Tanto Berman quanto Venuti defendem que a tradução preocupada em reduzir o próprio etnocentrismo não se arrisca necessariamente a ser ininteligível e, logo, culturalmente marginal. Um projeto tradutório pode se distanciar das normas domésticas a fim de evidenciar a “estrangeiridade” do texto traduzido e criar um público leitor mais aberto a diferenças linguísticas e culturais. Entretanto, o tradutor pode evitar recorrer a experiências estilísticas tão alienadoras que possam 35 BERMAN, Antoine. A tradução e a letra, ou o albergue do longínquo. Op. cit., p. 18. 71 recusar a inteligibilidade do texto traduzido e, assim, causar o próprio fracasso. Berman, assim como Venuti, afirma que uma ética tradutória não deve se restringir a uma noção de fidelidade. Notamos pontos comuns entre os dois teóricos. Ambos manifestam-se a favor da visibilidade do Outro nas traduções, ao afirmarem que o tradutor deve tornar-se visível ao revelar o Outro e seu modo de significar. Observamos, também, que a questão do tipo de tradução, se etnocêntrica ou não, apresenta o tradutor confrontado com uma escolha: ser fiel à fonte ou levar em consideração a cultura de chegada. Ora, não podemos acreditar na “livre” escolha do tradutor. O tradutor está inserido dentro de um tempo, de um lugar, ou seja, mais do que determinar, ele é determinado pelo contexto social, econômico e político do qual faz parte. Pudemos observar, com as concepções de Berman e de Venuti, que a maneira de conceber a tradução muda de polo; assim, ao invés de concebê-la dentro da perspectiva do texto, elementos sociais são considerados, sobretudo na questão da recepção das obras. Vimos, também, que, para os dois teóricos, a concepção de uma boa tradução seria aquela que não priva o público do gosto estrangeiro, ou seja, uma tradução não etnocêntrica. Dessa maneira, anuncia-se a relação da tradução com a cultura; entretanto, há uma limitação em reconhecer o papel ideológico do tradutor nessa relação entre as culturas. Como deveria ocorrer, pois, para esses teóricos essa relação do tradutor com as culturas? Como o tradutor deve deixar transparecer o Outro, sendo parte da cultura de chegada? Seria qualquer tradutor que tomaria determinada posição tradutiva? Ou deveria ele dispor de determinado capital cultural para efetivar essa relação? Parece-nos que há uma idealização desse tradutor. 72 Em relação à posição tradutiva do tradutor, algumas reflexões devem ser feitas. Para que serve (politicamente) essa invisibilidade do tradutor? Já dissemos que a noção corrente é a de que “o tradutor nunca pode fazer o que o original fez”; assim, a tradução é vista como cópia de um original, este, sim, tido como produto raro, produzido por um criador único, o autor. Acreditamos que esse apagamento da figura do tradutor se constitua em uma produção simbólica do campo, que mostra quem é valorizado dentro dele. A invisibilidade ou a visibilidade do tradutor consistem em estratégias efetivadas pelo tradutor para se posicionar de maneira social diante da obra a ser traduzida. Esse posicionamento se reflete no resultado da tradução, visto que, ao assumir qualquer das posições, o tradutor oferece ao público leitor uma tradução mais ou menos acessível. Na posição tradutiva relacionada com a invisibilidade do tradutor, a intenção é de que o texto traduzido não pareça uma tradução do texto original proveniente de outra cultura. Acreditamos que tais estratégias já se constituem em uma forma de consagração. Destarte, qualquer das estratégias assumidas pelo tradutor, seja a da invisibilidade ou a da não invisibilidade, reverte-se em consagração para ele e sua tradução, uma vez que a invisibilidade ou a visibilidade do tradutor trata-se de um posicionamento no campo que constitui uma prática que demonstra uma posição mais ou menos consagrada dentro do campo, ou seja, são formas sociais de construção da prática da tradução. Retomaremos a questão da visibilidade ou da invisibilidade do tradutor no próximo capítulo, ao observarmos a posição visível do tradutor Mário Quintana. 73 2.3 TEORIAS SOBRE A TRADUÇÃO LITERÁRIA: A TEORIA DOS POLISSISTEMAS Observamos que as teorias de Berman e de Venuti apresentam uma perspectiva diferente da concepção tradicional de tradução, ao deslocarem a questão para o universo da recepção das obras, ou seja, ao observá-las para além do texto. Foi a partir dessa contextualização que teóricos como Lieven d’Hulst, Raymond van den Broeck e Theo Hermans, juntamente com André Lefevere, o israelense Gideon Toury e a britânica Susan Bassnett, propuseram uma abordagem para estudar as traduções literárias que tomava como base a visão da literatura como sistema, inicialmente desenvolvida pelos formalistas russos e retomada na década de 1970 por Itamar Even-Zohar, teórico da tradução israelense que formulou a teoria dos polissistemas. 36 O modelo inicial proposto por Itamar Even-Zohar (2007) visava a elaborar uma base teórica capaz de explicar as particularidades da história da literatura israelense e das traduções literárias realizadas nessa cultura, utilizando as ideias dos formalistas russos envolvidos com a historiografia literária, tomando o conceito de sistema para designar uma estrutura formada por várias camadas de elementos que se relacionam. Baseada na noção sistêmica proposta por Tinianov, a teoria dos polissistemas concebe determinada cultura como um grande sistema que é internamente composto por subsistemas que se relacionam com outros sistemas paralelos. Assim, dentro do polissistema de uma cultura, figura, por exemplo, o sistema literário, que, por sua vez, abriga o sistema da literatura traduzida. É importante ressaltar que os elementos do polissistema se encontram em luta constante. Na disputa pela consagração, eles lutam pela centralização, 36 MARTINS, Marcia do Amaral Peixoto. As contribuições de André Lefevere e Lawrence Venuti para a teoria da tradução. Cadernos de Letras, Rio de Janeiro: UFRJ, n. 27, dez. 2010. 74 pela hegemonia, a fim de se tornar um cânone. Nessa disputa, segundo o autor, ocorreria uma tensão entre os princípios literários primários (inovadores) e os secundários (conservadores). Dessa maneira, uma obra primária passaria a ser considerada consagrada ao chegar ao centro e manter-se por algum tempo nessa posição. Ao alcançarem a consagração, os adeptos que antes adotavam uma estrutura inovadora passam a adotar uma postura conservadora, pois lutam para manter-se no centro e passam a rejeitar o que é novo. Para os Estudos da Tradução, Even-Zohar abriu espaço para uma discussão sobre o papel e a importância da literatura traduzida em um dado polissistema. Salienta o autor que nem sempre as obras traduzidas ocuparão uma posição periférica em determinado polissistema literário, apresentando três situações em que essas obras podem assumir uma posição central e exercer um papel mais influente nesse polissistema: (i) quando uma literatura em fase de desenvolvimento utiliza modelos antigos, encontrados na literatura traduzida, como critério de referência; (ii) quando a literatura nacional de um país ou região se revela fraca e acaba obscurecida por outra maior; (iii) quando a literatura nacional enfrenta uma crise ou momento decisivo, e os modelos antigos deixam de ter apelo e geram um vácuo no sistema literário, possibilitando a introdução de novos modelos por via da tradução. A teoria dos polissistemas proposta por Even-Zohar contribui, então, para ampliar a noção de tradução. Anteriormente baseada em fórmulas, textos que não seguiam essas determinações eram comumente tidos como “imitações”, “adaptações” ou “versões”. Even-Zohar, ao invés de restringir as discussões a uma noção tradicional sobre a equivalência existente entre o texto-fonte e o textoalvo, passou a concentrar seus estudos no texto traduzido, por considerá-lo parte 75 integrante do polissistema-alvo. A abordagem voltou-se, então, para o polo receptor, resultando em um grande volume de trabalho descritivo sobre a natureza do texto-alvo, ou seja, o produto da tradução, passando os textos traduzidos a ser vistos como resultado de procedimentos gerais, determinados pelo polissistemaalvo. Essas reflexões mostram a importância da tradução no contexto maior dos estudos literários. Se, anteriormente, em uma visão tradicional, acreditava-se na capacidade do tradutor – tal como um produtor neutro – de obter um texto equivalente, a teoria dos polissistemas, ao contrário, acredita que as normas sociais e as convenções literárias da cultura de chegada influenciam as decisões tradutórias. A partir da concepção de Even-Zohar da literatura como um polissistema inserido em outro maior, o da cultura, temos em André Lefevere e no conceito de patronagem por ele desenvolvido alguns aspectos relevantes em relação à tradução. Lefevere define, em linhas gerais, a patronagem como o poder exercido por pessoas, instituições, partidos políticos, classes sociais, editores e mídia sobre o sistema literário. Assim, o patrocinador, mesmo do lado de fora do sistema literário, não interfere diretamente no seu funcionamento, mas delega autoridade aos profissionais para fazê-lo em seu nome. Segundo o autor, há, no sistema de patronagem, três elementos centrais: o ideológico, que determina a forma e o conteúdo do que será publicado; o econômico, que define a remuneração dos (re)escritores; e o status, que confere aos (re)escritores reconhecimento e prestígio. O sistema literário, segundo Lefevere, pode ser controlado por patronagens diferenciadas ou não diferenciadas. A patronagem diferenciada centraliza seu interesse no sucesso econômico, e isso necessariamente não fornece status. Já a patronagem não diferenciada envolve os três elementos – o ideológico, 76 o econômico e o status. Nesse sentido, o patrocinador – que é sempre o mesmo – tenta regular a relação entre o sistema literário e os outros sistemas de uma cultura. Ele controla o (re)escritor, o produto de seu esforço intelectual e sua distribuição. Ao relacionar a tradução com a cultura e suas estruturas de poder, Lefevere mostra o papel das editoras e das instituições, que, por meio de incentivo e de patrocínio, interferem nas decisões editoriais e na implementação de políticas culturais. Dessa maneira, a tradução é vista, também, sob a perspectiva de elementos políticos e ideológicos. Quanto ao tradutor, Lefevere salienta seu papel de “reescrever”, deslocando o conceito de fidelidade para além da exatidão, salientando que a posição tradutiva depende de uma série de fatores: Na maior parte dos casos, os tradutores [...] reescrevem, tanto no nível do conteúdo quanto no estilo [...]. Pode-se mostrar, portanto, que a “fidelidade” em tradução não é exatidão, nem primeiramente uma questão de ajustes no nível linguístico. Envolve, mais precisamente, uma complexa rede de decisões tomadas pelos tradutores nos níveis da ideologia, da poética e do universo do discurso.37 Nessa perspectiva, a teoria dos polissistemas apresenta, conforme observaremos, muitos traços em comum com a teoria dos campos simbólicos de Pierre Bourdieu, na medida em que se reconhece a existência de uma instituição literária, autônoma, bem como sua relação com outros sistemas. Assim, a teoria dos polissistemas e todos os conceitos que lhe são inerentes (nuclear, periférico, tensional, primário, secundário etc.) explicam a diferença fundamental entre tradução literária e literatura traduzida. Entretanto, a teoria dos polissistemas descreve a luta por um posicionamento central dentro do sistema literário, baseado em uma lógica interna. Dessa maneira, não concebe que dessa luta por posicionamento legítimo participam pessoas com sua origem familiar e social, ou 37 LEFEVERE, André apud RODRIGUES, Cristina Carneiro. Tradução e diferença. São Paulo: Unesp, 2000. p. 129. 77 seja, não leva em conta que uma hierarquia social, cultural, determina uma maneira mais ou menos ousada de se posicionar dentro de um espaço social. Acreditamos que, ao lutar pelo posicionamento central e pela manutenção como cânone, não está em jogo apenas a luta pelo posicionamento legítimo, mas a angariação de capital simbólico a priori, com vistas a arrecadar lucros financeiros mais adiante. Essa questão é tratada por Rainier Grutman, em seu artigo Le virage social dans les études sur la traduction – une rupture sur fond de continuité38, no qual aponta não somente a contribuição que trabalhos associados à teoria de Pierre Bourdieu trouxeram à tradutologia, como levanta pontos em comum entre a teoria dos polissistemas de Even-Zohar e a teoria dos campos simbólicos de Pierre Bourdieu. Dentre as distinções feitas pelo autor, destacamos o conceito de ‘sistema’ (Zohar) e ‘campo’ (Bourdieu). Nas duas teorias, tanto o campo, quanto o sistema se caracterizam pela luta. Para Grutman, no conjunto semiótico que é o sistema de Even-Zohar, os elementos, sejam eles concretos ou abstratos (como os gêneros literários, por exemplo), vistos individualmente ou reagrupados em repertórios, ocupam diversas posições que se tornariam ultrapassadas e assim migrariam do centro para a periferia do sistema ou, inversamente, na medida em que a inovação por eles apresentada passasse a ser reconhecida pelo centro e se tornasse uma referência. Essas migrações, motores da mudança no sistema literário, são acompanhadas de transformações graças às quais são atribuídas 38 GRUTMAN, Rainier. Le virage social dans les études sur la traduction – une rupture sur fond de continuité. Publicado em Carrefour de la Sociocritique- números 45 e 46. P.136-152. Toronto, 2009. Disponível em: <http://uottawa.academia.edu/RainierGrutman/Papers/682824/LE_VIRAGE_SOCIAL_DANS_LE S_ETUDES_SUR_LA_TRADUCTION_UNE_RUPTURE_SUR_FOND_DE_CONTINUITE> Acesso em 13/06/2012. 78 novas funções aos elementos formais constitutivos do repertório. Para Grutman, a ausência de reflexão explícita sobre os agentes de mudança literária mostra a pertinência de suprir essa lacuna pelos aportes da teoria dos campos simbólicos. Em Bourdieu, no espaço social denominado campo, os agentes lutam por consagração ao tomar posições em função de suas disposições socialmente adquiridas denominadas habitus, permitindo a determinado autor (ou grupo, revistas, etc.) perceber os impasses, ou ao contrário, as possibilidades de inovação. Assim, graças não somente ao seu talento, mas também consideravelmente favorecidos por seu habitus, os agentes ocuparão uma série de posições, como dominantes ou pretendentes. 2.4 A TRADUÇÃO LITERÁRIA COMO OBJETO SOCIOLÓGICO Conforme já dissemos, o campo de pesquisa denominado Translation Studies (Estudos da Tradução), constituído a partir dos anos 1970, fez emergir trabalhos com concepção diferente da tradicional. Assim, ao invés de estudar as traduções unicamente por meio da relação original versus tradução, os Translation Studies se interessam cada vez mais pelas questões concernentes ao funcionamento das traduções dentro de diferentes contextos de produção e de recepção, ou seja, ao invés de se fechar em problemáticas puramente intertextuais, por meio da relação do original com sua tradução, questões propriamente sociológicas são suscitadas, como as que levam em consideração as funções das traduções, as editoras, os editores e os tradutores no espaço no qual se situam.39 39 HEILBRON, Johan ; SAPIRO Gisèle. La traduction littéraire – un objet sociologique. Paris: Actes de la Recherche en Sciences Sociales, 2002. v. 144, p. 3-5. 79 Assim, acreditamos que a tradução constitua um objeto sociológico e que suas práticas são determinadas socialmente. Segundo Johan Heilbron e Gisele Sapiro (2002), autores que trabalham sob a perspectiva sociológica de Pierre Bourdieu, em vez de se tomar como base a problemática intertextual na relação original/tradução, questões propriamente sociológicas surgem, principalmente no que tange às funções da tradução e a seus agentes no espaço em que se encontram. Para esses autores, a tradução das literaturas estrangeiras depende da estrutura do espaço de recepção, uma vez que este também é regido pela lógica do mercado ou por uma lógica política; assim, a recepção será em parte determinada pelas representações da cultura de origem e do status da língua. Afirmam, ainda, os autores que a tradução apresenta múltiplas funções, tais como instrumento de mediação e troca, mas constitui, também, um modo de legitimação, dos quais autores e mediadores podem se beneficiar. Assim, a tradução nas línguas centrais constituiria uma consagração que modificaria a posição de um autor no campo de origem, ao passo que, para as literaturas nacionais em vias de construção, a tradução constituiria um modo de acumulação de capital literário. Dessa forma, no nível das instâncias, se os editores detiverem importante capital literário, terão o poder de consagrar os autores que são traduzidos. Em relação aos mediadores, pode haver a consagração desses autores, bem como a consagração do tradutor. Pierre Bourdieu (1998) põe em xeque a mística do autor como criador único, pois, para o teórico francês, o autor faz a obra e é ao mesmo tempo construído socialmente pelo campo literário. Essa noção é claramente apontada por Fernanda Maria Abreu Coutinho: [...] o conceito de campo literário é uma possibilidade versátil de entendimento da engrenagem que envolve a produção, a circulação e o consumo do material 80 artístico, por ser estreitamente vinculado à noção de valor, bem como pressupõe tomadas de posição que definem a boa ou má acolhida das obras em seu interior e sua duradoura ou efêmera permanência na memória do sistema literário. Propõe Bourdieu que se esqueça o papel que cada um destes elementos, escritores, leitores, editores, livreiros, críticos, escola etc. exerce por si mesmo, reenquadrando-os através de uma lógica interativa.40 No âmbito do nosso objeto de estudo, observaremos, no próximo capítulo, por meio de diversos exemplos, como as instâncias do campo de produção literária cooperam para consagrar traduções que passam a ser consideradas como boas traduções. A tradução de Em busca do tempo perdido, de Proust, elaborada pelo reconhecido escritor Mário Quintana, passa, nessa perspectiva, a ser considerada como “imortal” ou “definitiva”. Embora Mário Quintana ainda não fosse efetivamente consagrado no momento em que traduziu Proust, já era reconhecido no meio dos intelectuais e escritores, o que possibilitou a Érico Veríssimo lhe confiar traduções de importantes obras de língua francesa. Nesse sentido, as traduções elaboradas por Quintana alcançaram devidamente sua consagração a partir da circularidade de valores operados dentro do campo de produção literária. Assim, quando se apresenta como tradutor de obras de autores “imortais”, tais como Voltaire, Balzac e Proust, Mário Quintana amealha gradativamente a consagração dentro do campo. 40 COUTINHO, Fernanda Maria Abreu. Pierre Bourdieu e a gênese do campo literário. Revista de Letras, UFC, v. 1-2, n. 25, –jan./dez. 2003. 81 3 A CONSAGRAÇÃO DA TRADUÇÃO DE EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO Vimos no capítulo anterior que não há uma concepção única do que seria uma boa tradução de uma obra literária. Assim, verificamos que, na visão dita tradicional, a fidelidade ao texto e às ideias do original é condição para uma “boa tradução”. Constatamos, por meio das teorias de Antoine Berman e de Lawrence Venuti, que a discussão sobre o etnocentrismo e o não etnocentrismo na tradução conduz a outra concepção do que seria uma boa tradução, sendo, segundo esses autores, aquela que não privilegia a cultura de chegada, ou seja, que não priva o público do gosto estrangeiro. Na teoria dos polissistemas, constatamos que as relações entre os agentes são levadas em conta, e a tradução é vista dentro da perspectiva das relações entre eles. Anuncia-se, também, a relação da tradução com a cultura; entretanto, o papel do tradutor nessa relação entre as culturas é visto sem demonstrar todo um jogo de forças que se trava no espaço social da tradução. A fim de esclarecer as relações sociais produzidas entre os diversos atores posicionados no espaço social da produção literária (editores, tradutores, autores-tradutores, críticos e recepção), fundamentamo-nos nos preceitos teóricos de Pierre Bourdieu, que, por meio de sua teoria dos campos simbólicos, indica como é possível entendermos como determinada obra, no nosso caso uma tradução, alcança um valor único ou venha a ser considerada a tradução “definitiva”. Neste capítulo, veremos, por meio de diversas evidências, como as instâncias do campo de produção literária cooperam para consagrar traduções que passam a ser consideradas como boas traduções, ou, como no caso aqui abordado, uma tradução imortal ou definitiva. Primeiramente, discorreremos sobre a teoria 82 dos campos simbólicos, de Pierre Bourdieu, e apresentaremos as instâncias de produção, legitimação e recepção de uma obra dentro de um campo de produção de bens simbólicos. Depois, observaremos a circularidade de valores dentro do campo de produção literária, que acabam por produzir a crença em um objeto “raro” e “insubstituível”. Nesse sentido, mostraremos as evidências da consagração da tradução de Em busca do tempo perdido, elaborada por Mário Quintana, a partir do funcionamento do campo de produção. 3.1 A TRADUÇÃO E A TEORIA DOS CAMPOS SIMBÓLICOS, DE PIERRE BOURDIEU Segundo Pierre Bourdieu (2007), o campo de produção de bens simbólicos artísticos e intelectuais definiu-se como um campo autônomo, em oposição às esferas que até então dominavam a produção desses bens – as esferas religiosas e aristocráticas, por volta do século XV na Europa: Embora a vida intelectual e artística estivesse sob a tutela, durante toda a Idade Média, em grande parte do Renascimento e, na França, com a vida na corte, durante todo o período clássico, de instâncias de legitimidade externas, libertou-se progressivamente, tanto econômica como socialmente, do comando da aristocracia e da Igreja, bem como de suas demandas éticas e estéticas.41 Em relação ao campo de produção literária, essa transformação se deu com a invenção da imprensa, que possibilitou ao público em geral o acesso a obras literárias. A função artística, antes sob o jugo das autoridades religiosas e do poder aristocrático, se modifica. Assim, produtores de obras literárias passam a 41 BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Tradução Sergio Miceli, Silvia de Almeida Prado, Sonia Miceli e Wilson Campos Vieira. São Paulo: Perspectiva, 2007. p. 100. 83 criar dentro de um espaço autônomo, ditando suas próprias regras e padrões. Dessa maneira, afirma Bourdieu, ocorre o processo de autonomização do campo: Destarte, o processo de autonomização da produção intelectual e artística é correlato à constituição de uma categoria socialmente distinta de artistas ou de intelectuais profissionais, cada vez mais inclinados a levar em conta exclusivamente as regras firmadas pela tradição propriamente intelectual ou artística herdada de seus predecessores, e que lhes fornece um ponto de partida ou um ponto de ruptura, e cada vez mais propensos a liberar sua produção e seus produtos de toda e qualquer dependência social.42 Cabe ressaltar que, nesse momento, surge uma nova categoria do artista em oposição ao não artista (artesão). Na medida em que se constitui o campo de produção simbólica, instaura-se uma oposição entre o campo da indústria cultural e o campo de produção erudita, por meio da “dissociação entre a arte como simples mercadoria e a arte como pura significação, cisão produzida por uma intenção meramente simbólica e destinada à apropriação simbólica”.43 Segundo o sociólogo francês,44 o campo de produção autônomo se define de forma variada nas diferentes áreas artísticas e intelectuais, e a oposição existente entre esses campos se define da seguinte maneira: o campo de produção erudita detém normas próprias de condução, avaliação e legitimação de suas próprias obras, enquanto o campo da indústria cultural produz obras destinadas ao “grande público” e às frações não intelectuais das classes dominantes. Assim, enquanto as obras produzidas pelo primeiro campo encontram seu reconhecimento no próprio campo, já que os produtos são direcionados aos próprios produtores de bens simbólicos, seus pares artísticos e frações intelectuais das classes dominantes, as obras da indústria cultural esforçam-se por atingir na concorrência do mercado o seu reconhecimento e avaliação. 42 Ibid., p. 100. Ibid., p. 100. 44 Ibid., p. 100. 43 84 Nessa perspectiva, houve um aumento da produção de obras literárias, tais como romances e folhetins, originadas de escritores que passaram a estabelecer as próprias regras do campo, constituindo-se em representantes e juízes de uma tradição artística a partir da constituição de uma economia de bens simbólicos, propiciada pelo aumento do público leitor. A ampla difusão dessas obras foi, então, possibilitada pela produção em larga escala no âmbito da Revolução Industrial. Para Bourdieu, o campo consiste no espaço em que ocorrem relações entre os agentes e as instituições, espaço esse sempre dinâmico e que obedece a leis próprias, cujo motor são as disputas ocorridas em seu interior, no qual o objetivo de seus componentes é a legitimidade para exercer o domínio sobre a produção de bens literários. A consequência principal é a arrecadação de um capital simbólico que se exprime na forma de lucros financeiros. Na dinâmica desse campo, há uma luta em que o escritor se empenha para se afirmar como artista legítimo, disposto a produzir “autêntica” literatura. É importante ainda ressaltar que o campo de produção simbólica, ao qual se refere Pierre Bourdieu, não se reduz meramente a um campo de atuação profissional, mas se estrutura em um espaço de relações sociais. Conforme verificaremos pela teoria de Bourdieu, nesse campo de produção autônomo efetiva-se o valor de um bem simbólico, tal como uma obra literária traduzida, na medida em que há a circulação de valores e qualidades acerca dessas obras entre as instâncias do campo. É importante ainda ressaltar que houve a necessidade de efetuarmos uma transposição da análise de Bourdieu para o nosso objeto de estudo, uma vez que o autor examina, em sua teoria, o campo da produção artística na Europa. 85 Primeiramente, uma questão a ser definida é que o espaço da atividade da tradução não se constitui em um campo autônomo, uma vez que a produção de um texto traduzido já não é a criação de um texto original e a autoria da obra traduzida permanece, conforme observamos nas capas das traduções. Na verdade, a tradução é uma atividade pertencente ao campo de produção literária – este, sim, legítimo como uma produção “cultural” –, do qual extrai a sua legitimidade. Michaela Wolf afirma que não há campo da tradução; entretanto, sua explicação reside no fato de que os tradutores não lutariam por posicionamento, uma vez que trabalham subordinados a regimes de trabalhos independentes, sujeitos a prazos. Ora, sob essa perspectiva, Wolf não leva em consideração que, a despeito desse modo de trabalho, o tradutor luta por um posicionamento em outro nível, além do profissional – o posicionamento simbólico. É a partir dessa posição que ele arrecada os ganhos financeiros de sua prática profissional. Ou seja, Wolf ignora que os tradutores alcancem um posicionamento simbólico no campo literário, que lhes confere trabalhos mais ou menos notáveis e de remuneração diferenciada. Entretanto, embora haja luta por legitimidade entre os tradutores, eles não formam um campo autônomo, mas participam do campo de produção simbólica da atividade literária, na medida em que sua atividade tende a se demarcar em relação à atividade literária propriamente dita. Desse modo, escritores e tradutores lutam por legitimidade dentro do campo de produção de literatura, embora os tradutores em geral detenham um posicionamento legítimo inferior ao dos escritores. Daí podermos afirmar que maior valor é conferido a determinada tradução quando o tradutor é um escritor, e que esse autor-tradutor, por sua vez, angaria prestígio ao traduzir obras de autores consagrados. 86 Assim, examinaremos as relações entre escritores e tradutores dentro do funcionamento do campo de produção literária – estruturado sobre regras próprias –, pois a partir daí poderemos compreender o valor alcançado por determinadas traduções, elaboradas de escritores dotados de legitimidade no campo de produção literária, bem como os reflexos e a consagração para o próprio trabalho de escritor. 3.1.1 O FUNCIONAMENTO DO CAMPO DE PRODUÇÃO LITERÁRIA Examinamos anteriormente a estruturação do campo de produção literária e a posição da atividade da tradução nesse campo de produção cultural. Observamos como escritores consagrados no campo de produção foram capazes de promover suas traduções junto ao público, uma vez que esses autores não eram somente tradutores que comumente denominamos profissionais, contratados para a tarefa de tradução de uma obra qualquer. Desse modo, torna-se fácil entender como se deu a consagração da tradução de importantes obras francesas, em particular a que constitui nosso objeto de estudo – Em busca do tempo perdido –, traduzida pelo escritor e poeta Mário Quintana em 1948. Podemos verificar que a consagração dessas obras traduzidas se deveu muito ao papel daquilo que é denominado autores-tradutores – escritores e intelectuais que exerceram a atividade da tradução. Interessa-nos sobremaneira essa relação autor–tradutor, pois é a partir do reconhecimento de um autor literário que se manifesta o valor da tradução por ele produzida. Ao autor literário que exerce a função de tradutor, por sua vez, não interessa associar seu nome a 87 traduções destituídas de valor simbólico, mas, sim, a traduções de autores consagrados. Assim, ao irmos em busca do escritor, analisando sua posição consagrada como autor literário, concebemos o valor da tradução como um bem simbólico. Em relação à consagração, afirma Bourdieu que: “[...] é a raridade do produtor (isto é, a raridade da posição que ele ocupa em seu campo) que faz a raridade do produto”.45 Em outra afirmação, esse autor também define que: “[...] o poder mágico do criador [...] não poderá agir se não for mobilizado por uma pessoa autorizada, ou, melhor ainda, se não for identificado com uma pessoa e seu carisma, além de ser garantido por sua assinatura”.46 Dessa maneira, podemos afirmar que não há como mensurarmos objetivamente o valor da tradução, mas, sim, observar que tal valor ocorre a partir da assinatura de quem a executou – escritor consagrado sobre o qual se produz a crença de um autor único e insubstituível. Assim, não é possível apontar, analisando apenas os elementos textuais da obra traduzida, a qualidade da tradução. Isso não quer dizer que não haja qualidades intrínsecas às traduções; entretanto, não é apenas a qualidade do texto traduzido que determina a consagração de uma tradução. Dessa maneira, o que nos interessa é observar a circularidade dos valores do campo de produção que produzem sua consagração.47 Essa consagração é por vezes tão poderosa que não se consegue distinguir entre a 45 BOURDIEU, Pierre. A produção da crença – contribuição para uma economia dos bens simbólicos. Tradução Guilherme João de Freitas Teixeira e Maria da Graça Jacintho Setton. Porto Alegre: Zouk, 2001. 46 Id. 47 ALMEIDA, Marcelo Vianna Lacerda de Almeida. A eficiência do signo gráfico empresarial: forma consagrada pelo campo do design nas instâncias da cultura visual moderna. Tese (Doutorado em Design) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio, Departamento de Artes & Design, Rio de Janeiro, 2010. 88 reconhecida qualidade da tradução e aquilo que constitui o “arbitrário dissimulado”48 pelo efeito da legitimação; ou seja, a tradução de Mário Quintana se apresenta com uma inegável qualidade, afastando a possibilidade de haver outra que “revele” o texto original. Observamos que essa qualidade é atribuída a partir de um julgamento operado dentro do campo de produção. Segundo Bourdieu, a principal função do campo de produção simbólica é a consagração dos autores e das obras que fazem com que o público as reconheça como autênticas obras da literatura. No espaço da atividade da tradução, sempre demarcado em relação à atividade literária no âmbito do campo de produção, verificamos que a tradução de Mário Quintana para Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, constitui-se em indubitável exemplo desse funcionamento do campo. Afirma Bourdieu que qualquer bem simbólico produzido nesses campos autônomos de produção somente alcança valor a partir da circularidade de valores das instâncias desse campo. Para entendermos como é operada a consagração da tradução elaborada por Mário Quintana, faz-se necessário observarmos a circularidade de valores entre essas instâncias do campo, capaz de alçar a tradução a uma espécie de “modelo” único e singular para acesso à obra original. Bourdieu (2007) aponta a cooperação entre as três instâncias do campo de produção simbólica como o elemento gerador do produto consagrado e reconhecido. A primeira é a instância de produção e refere-se àqueles que estão envolvidos na produção dos bens simbólicos, que, nesse caso, se compõe dos autores, dos editores e dos tradutores, no âmbito das editoras. A segunda é a instância de legitimação e consagração das obras do campo, constituída de instituições tais como: (i) as escolas e as universidades dotadas dos cursos de 48 BOURDIEU, Pierre. Op. cit., 2007. 89 Letras, capacitadas a reproduzir o conhecimento do que seria a “verdadeira” literatura e a classificar os autores-produtores, distinguindo-os entre clássicos e vanguardistas, além de formar agentes dispostos a manter a autonomia do campo; (ii) as academias, as bienais, os eventos nacionais e internacionais de literatura – antigos salões –, dotados de autoridade para apresentar e premiar autores consagrados; (iii) as instituições de conservação de obras literárias – bibliotecas e centros culturais privados capazes tanto de conservar quanto de expor obras consagradas de autores legítimos; e, por último, (iv) os meios de difusão – suplementos literários de jornais e periódicos especializados, providos de críticos e articulistas autorizados a escrever artigos e resenhas, discernindo para o público leitor o que há de excelente em literatura e tradução, e ainda as peças de propaganda sobre obras literárias. A terceira instância consiste na instância de recepção – o público leitor das obras literárias lançadas pelas editoras, que se divide em diversos grupos de interesse por variadas “classes” de literatura, determinadas pela instância de consagração. Segundo o autor, nem todas as instâncias de consagração têm o mesmo poder para consagrar. Na concorrência pela legitimidade, é possível observar que é a autoridade para consagrar que faz com que a legitimação proposta por ela se torne duradoura. Ao analisar a constituição do campo literário no qual se articulam todos os processos de consagração de uma obra literária, Bourdieu (1998) reafirma que a produção, a editoração, as expectativas de mercado e a presença em revistas literárias, na mídia e nas instituições educacionais seriam algumas das engrenagens do mecanismo consagrador das obras, as quais somente podem ser avaliadas na perspectiva desse valor literário a elas atribuído. 90 A seguir, examinaremos o funcionamento das instâncias do campo de produção literária que, por meio da circularidade de valores em seu interior, conferem raridade ao bem simbólico, tal como a tradução de uma obra literária. Assim, poderemos observar com nitidez esse funcionamento do campo simbólico por meio de diversas evidências que demonstram como a obra de Proust pode ser apreciada pelo público brasileiro por meio da tradução do reconhecido escritor Mário Quintana. 3.2 EVIDÊNCIAS DE FUNCIONAMENTO DO CAMPO – AS INSTÂNCIAS DE CONSAGRAÇÃO DA TRADUÇÃO DE EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO Conforme observamos, três são as instâncias de produção simbólica do campo a que se refere Bourdieu. Em relação a nosso objeto de estudo, a tradução de Proust elaborada em 1948, notamos que a instância de produção do campo se estruturou sobre a Editora Globo, que dispunha dos autores-tradutores – escritores em vias de consagração –, tais como Mário Quintana, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira; do revisor Paulo Rónai; e do editor e escritor consagrado Érico Veríssimo. O papel das instâncias de consagração na época dessa tradução ficou reservado à crítica em jornais a respeito dessa tradução, que fez com que a obra fosse amplamente aceita pelo público letrado pertencente à instância de recepção. A Editora Globo, localizada em Porto Alegre, tinha como editor, à época, o escritor Érico Veríssimo, que veio a se tornar peça-chave da editora, já na condição de escritor consagrado. Em 1931, Veríssimo – reconhecido pelo 91 empresário Henrique Bertaso – foi convidado para realizar o trabalho de editor na recém-criada Seção Editora e veio a se tornar conselheiro literário da Globo, com autoridade para selecionar as obras a serem traduzidas. É importante notar, na perspectiva do funcionamento do campo com vistas à legitimação, que, além de selecionar as obras a serem lançadas, Veríssimo também atuava como tradutor, assinando traduções de obras originais providas de distinção e utilizando um pseudônimo quando as obras eram consideradas menores ou “comerciais”. Segundo Sônia Amorim (2000), algumas das traduções de Veríssimo, principalmente na Coleção Amarela, voltada para o gênero policial, com grande tiragem na época, eram assinadas por Gilberto Miranda, pseudônimo do escritor. Comenta Veríssimo: [...] trata-se duma “personalidade de conveniência” que inventei, uma espécie de factótum literário [...] Gilberto Miranda não tem idade [...] Miranda continua jovem: tem sempre trinta anos, a mesma cara, a mesma disposição para o trabalho e continua a ser suficientemente cínico (ou prático) para emprestar seu nome a qualquer empreendimento literário, por mais medíocre que seja.49 A partir de 1931, a editora passou a ser comandada por Henrique Bertaso e Érico Veríssimo, tornando a Globo destaque no mercado editorial brasileiro, principalmente graças às traduções de clássicos estrangeiros. Nesse período, a tradução alcançou números nunca antes vistos nesse mercado. A posição do tradutor no campo se modificou. Temos, então, os autores-tradutores e o intelectual, que também passa a exercer o papel de tradutor, como é o caso de Paulo Rónai. A tradução desses clássicos deu à Editora Globo o prestígio necessário para obter uma posição de destaque no campo das editoras, e os autores-tradutores, por sua vez, tiveram papel importante na legitimação das traduções. O próprio termo (autores-tradutores) cunhado na primeira metade do 49 VERÍSSIMO, Érico. Um certo Henrique Bertaso. Porto Alegre: Globo, 1972. 92 século XX, 50 denota que se trata de uma produção simbólica do campo, que mostra uma distinção em relação ao tradutor comum, ou seja, trata-se de uma categoria específica, que o coloca no mesmo grau de comparação com o autor. Ao traçarmos uma pequena historiografia da tradução no Brasil, observamos que as críticas em relação às traduções aumentaram na Era Vargas, e concluímos, então, que esse aumento se deveu, também, à presença dos autores das traduções. Assim, o crescimento da crítica em relação às traduções demonstra o valor que elas passaram a ter naquele período histórico. É importante notar que a crítica não é feita a qualquer tradução. Uma tradução, para ser objeto de crítica, geralmente tem seu original já consagrado. Assim, como textos canônicos foram traduzidos na Era Vargas por tradutores de “renome”, os autores-tradutores, a crítica passou a demonstrar interesse por essas traduções. Mas, por que a crítica não se interessava pela tradução até o momento dos autores-tradutores? Bourdieu, ao falar da estrutura e do funcionamento do campo de produção erudita, demonstra que o sistema de produção de bens simbólicos se estrutura a partir de várias relações que acontecem entre as instâncias de produção, de reprodução e de difusão desses bens. Desse modo, o campo de produção se define de forma variada nas diferentes áreas artísticas e intelectuais, como uma oposição entre um campo de produção erudita, que tem suas próprias normas de condução, de avaliação e de legitimação de suas próprias obras, e o campo da indústria cultural, que produz obras destinadas ao “grande público” e às frações não intelectuais das classes dominantes. Como já assinalado, enquanto as obras produzidas pelo primeiro campo encontram seu reconhecimento no próprio campo, já que os produtos são direcionados aos próprios produtores de bens 50 ROLIM, Lia. Práticas de tradução no Ocidente: uma retrospectiva histórica. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio, Rio de Janeiro, 2006. 93 simbólicos, ou seja, seus pares artísticos e frações intelectuais das classes dominantes, as obras da indústria cultural esforçam-se por atingir na concorrência do mercado o seu reconhecimento e avaliação. Conforme Bourdieu, à medida que o campo de arte se autonomiza, dá-se o desenvolvimento de uma indústria cultural que coincide com o aumento do número de potenciais consumidores das obras produzidas, graças também ao acesso de maior parcela da população ao ensino elementar, organizando-se um mercado de bens intelectuais. Notamos, entretanto, a representação dos autores como “criadores únicos e insubstituíveis”, ao passo que o tradutor não tem o mesmo status, uma vez que a tradução é vista como cópia, e não como criação. Assim, a existência desse artista autônomo, criador de obras únicas e insubstituíveis, não encontra correspondência na tradução, exceto quando o tradutor é legitimado no campo literário. Acreditamos que seja possível, a partir dessa oposição entre o campo da produção erudita e o campo da indústria cultural, entender principalmente a estruturação e o funcionamento do campo, bem como as relações internas entre os produtores, a representação que eles produzem entre si e entre eles e o campo, e a lógica de execução, concepção e estruturação dos bens produzidos. Sob essa ótica, no espaço social da tradução, há de se fazer uma distinção entre traduções produzidas para atender à indústria cultural, dependente do mercado, e as traduções de obras consagradas, como Em busca do tempo perdido. Assim o tradutor, de obras pertencentes ao campo da indústria cultural tenderia a ser menos valorizado que o tradutor de obras ligadas ao campo da produção erudita. Para os críticos, é mais interessante comentar traduções de obras consagradas, principalmente as elaboradas por autores-tradutores, como Mario Quintana, por 94 exemplo, do que as traduções de um tradutor qualquer, uma vez que a valorização do produto, ou seja, dessas traduções, agregaria valor também a esses produtores das instâncias de legitimação, ou seja, aos críticos. Dentre as críticas publicadas à época da tradução de Mario Quintana, destaca-se uma seção de crítica de tradução de 1944 a 1946 no jornal carioca Diário de Notícias, intitulada “À margem das traduções”, a qual, com as iniciais C.T. (supostamente Crítico de Traduções), era assinada por Agenor Soares de Moura. O anonimato serviria para protegê-lo de uma tarefa nada fácil, ou seja, criticar as traduções desses consagrados escritores da literatura brasileira. Outro crítico que se destaca é Paulo Rónai. Também escritores como João Cabral de Melo Neto e Manuel Bandeira se dedicaram às críticas de traduções. Assim, a crítica corrobora a circularidade dos valores de determinadas traduções. Em relação à instância de recepção, observamos, no Capítulo 1, como uma série de transformações permitiram a formação de um público leitor que viria a se tornar consumidor dessas traduções. Assim, na Era Vargas, o aumento da escolaridade e o crescimento econômico do País proporcionaram o fortalecimento de um público leitor fortemente incrementado pelo surgimento de editoras de porte, tais como Globo e José Olympio, com suas coleções hierarquizadas do mais “popular” ao mais “erudito”. O público leitor aceita e reconhece o valor das traduções por meio da circularidade dos valores a elas atribuídos. As instâncias do campo de produção literária cooperam para consagrar traduções que passam a ser consideradas como boas traduções, ou, como no caso aqui abordado, como tradução “imortal” ou “definitiva”. Pascale Casanova (2002) afirma que o tradutor é uma das instâncias a situar no espaço literário mundial. De sua posição dependerá a operação da tradução efetuada, a posição do texto (ou do 95 autor) traduzido, ou seja, seu grau de legitimidade. Ressalta, ainda, ser a tradução uma das formas de transferência de capital literário e que, assim sendo, o valor da tradução e seu grau de legitimidade dependerão do capital linguístico-literário do tradutor e do capital linguístico-literário da língua de chegada, além do grau de legitimação do editor, do prestígio da coleção ou da revista em que o texto traduzido aparece. Pode-se afirmar, então, que da posição do mediador no campo nacional, da posição da língua-alvo e, secundariamente, da posição do editor dependerá o grau de legitimidade do livro traduzido: “Quanto maior o prestígio do mediador, mais nobre é a tradução, mais ela consagra.”51 Assim, compreender o papel do tradutor supõe inseri-lo em um conjunto. O tradutor não é um consagrador único, ele se encontra em uma cadeia complexa de mediadores, que compreende agentes literários, editores, críticos etc. A respeito dos tradutores, Pascale Casanova (2002) observa que alguns podem ser nomeados de “consagradores consagrados”, que ela denomina, também, “consagradores carismáticos”, cujo poder de consagração depende do grau de sua própria consagração. São os que consagram de uma maneira pessoal, em oposição aos “consagradores institucionais”, que seriam os pertencentes a instituições acadêmicas ou escolares. Segundo a autora, no caso dos tradutores “consagradores carismáticos”, que podem ser escritores, intelectuais respeitados, por exemplo, a tradução já seria por si mesma uma consagração e não precisaria ser legitimada nem por comentários nem por análises ou prêmios; ao passo que, sendo o tradutor pouco dotado ou desprovido de capital específico, ou seja, com pouca consagração, a operação de troca de capital seria, então, transferida a outros mediadores mais dotados, como os prefacistas, analistas e críticos prestigiados. 51 CASANOVA, Pascale. Consécration et accumulation de capital littéraire: la traduction comme échange inégal. Paris: Actes de la Recherche en Sciences Sociales, 2002. v. 144, p. 17. 96 Como o tradutor não apresenta, nesse caso, um capital necessário à consagração da tradução, a legitimação dessa tradução é embasada por outros protagonistas do espaço literário. A cadeia depende, de um lado, da posição do tradutor, do grau de legitimidade inicial conferido pela própria tradução, e, de outro, de seu lugar de publicação. Nessa perspectiva, conforme observamos, alguns tradutores, segundo Pascale Casanova, podem ser nomeados de “consagradores consagrados” ou “consagradores carismáticos” e seu poder de consagração depende do grau de sua própria consagração, ou seja, os tradutores que consagram de uma maneira pessoal – como é o caso do escritor Mário Quintana. No campo, dentre outros fatores, a consagração de uma tradução depende da posição que o tradutor ocupa, isto é, de seu posicionamento como agente no campo de produção. Isso é importante, porque tal posição determina o significado do trabalho do tradutor e das práticas, dos esquemas e dos princípios técnicos envolvidos na produção, capazes de, pela circularidade e pela reciprocidade de reconhecimento no campo, explicitar a posição desse tradutor, tanto nesse campo quanto na hierarquia cultural da sociedade. Sob essa ótica, a consagração de uma tradução depende da posição desse tradutor pertencente ao campo e de suas relações com as instâncias de legitimação e de consagração. Isso explica por que uma posição mais ou menos consagrada ou legítima de um tradutor reveste a tradução de um reconhecimento maior ou não. Assim, uma tradução assinada por Mário Quintana, tradutor consagrado no campo da tradução, apresenta mais possibilidades de reconhecimento do que uma tradução elaborada por outro tradutor em busca de reconhecimento. 97 Entretanto, como afirma Bourdieu, nunca podemos expor a posição de um agente no campo sem admitir os vetores de força que partem de outros integrantes em diversas instâncias. Observaremos, assim, que as instâncias de legitimação apontam a relevância que determinado tradutor tem ou não no campo, estabelecendo uma aceitação por todos. Nessa relação, os mecanismos sociais – a origem social, a formação familiar e cultural – podem orientar os produtores para certa posição no campo. Notaremos, também, uma reduplicação da consagração do autor do original em relação ao tradutor. Assim, ao traduzir Proust, autor consagrado, Mário Quintana também busca sua própria consagração, ocorrendo, assim, uma espécie de transferência de prestígio do autor para o tradutor, uma vez que Proust constitui esse artista autônomo, criador de obras únicas e insubstituíveis. Segundo Bourdieu (2001), pode-se mostrar uma “espécie de harmonia estabelecida entre o habitus do criador e a posição que ele ocupa no campo, isto é, a função que lhe foi atribuída, embora ele a tenha, aparentemente, produzido”. Por isso, entrevistas de Mário Quintana serão utilizadas neste recorte, em cujos enunciados verificaremos seu domínio da língua francesa, aspectos biográficos que demonstram como se deu sua relação com a língua e a cultura francesas, o que ele pensa sobre o ofício da tradução, o que fala sobre os autores que traduziu, em especial Proust, bem como sua relação com seus pares consagrados ou não consagrados. Agora, nos debruçaremos sobre as evidências da consagração pelo ponto de vista da instância de produção, especificamente enfocando o autor-tradutor Mário Quintana. Esse conjunto de evidências abrange: (i) entrevistas com Mário Quintana; (ii) críticas e resenhas em suplementos culturais que tecem 98 considerações sobre essa tradução; (iii) opiniões e considerações em blogs dedicados à atividade literária; e (iv) capas de livros em que é exposto o nome (assinatura) de Quintana. Embora também se constituam em evidências da consagração da tradução de Quintana, as traduções mais recentes dessa obra de Proust serão apresentadas no próximo capítulo, visto que necessitam de melhor análise no que se refere à luta constante por legitimidade diante de uma tradução já consagrada tal como a de Quintana. * Veremos que essas novas traduções somente reforçam a consagração de Quintana, uma vez que elas, em busca de legitimidade, se demarcam em relação à tradução “definitiva” da Editora Globo. 3.2.1 O FRANCÊS E A ORIGEM FAMILIAR DE QUINTANA Podemos observar que a origem familiar e social de Quintana lhe confere distinção como autor-tradutor que conhece e manuseia a língua francesa desde o âmbito familiar. Assim, nesse recorte, observaremos que Mário Quintana valoriza em seu discurso a importância da língua francesa no mundo, que, embora estivesse perdendo a condição de língua hegemônica mundial para a língua inglesa, manteve seu status de língua relacionada com a produção cultural – artística e intelectual. Ao fazê-lo, Quintana denota o valor de distinção da língua que ele mesmo domina. Além disso, ressalta a importância do francês como língua de tradução, uma vez que importantes obras da literatura mundial puderam ser lidas graças às traduções francesas, citando principalmente a tradução do russo para o francês. * A primeira tradução é de Fernando Py. PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. A segunda tradução terá a assinatura de Mario Sergio Conti, e seu primeiro volume será lançado ainda neste ano 2012 pela Editora Companhia das Letras. 99 A seguir, em suas entrevistas, notaremos como a origem familiar e social de Quintana lhe permite se distinguir como um autor-tradutor que conhece profundamente a língua da qual traduz. Mário Quintana revela sua estreita ligação com a língua francesa, idioma que aprendeu desde muito cedo, em casa. Minha mãe lecionava francês. Aprendi com meus pais, naquele tempo todo mundo falava francês, fazia parte da educação das moças: estudar piano, estudar pintura e falar francês. Acho uma coisa muito engraçada. Eu me lembro que, quando houve uma revolução lá em Alegrete, foi feita quase toda em francês – as senhoras iam visitar as madames e se comunicavam em francês para os criados não saberem o que é que se estava tramando.52 (grifos nossos) [...] o francês era moda e a minha mãe era professora de francês. Então, quando a gente, por exemplo, não queria que os empregados soubessem o que a gente estava dizendo, aí se falava em francês. Grande parte da revolução de 23, por exemplo, foi preparada em francês, porque se reuniam as senhoras dos oficiais para tomarem chá e comunicavam as coisas todas em francês. Imagine que na minha terra, em Alegrete, se fez revolução em francês. 53 (grifos nossos) [...] Meu pai foi conspirador da revolução de 23. Então, para os criados não entenderem as conspirações e também as coisas íntimas, falava-se em francês. 54 (grifo nosso) A culpa foi também de meu pai, que adorava La Fontaine e me fez decorar algumas de suas fábulas antes que eu as pudesse ler. Assim as névoas e perigos do Cabo Tormentório eram varados pelo riso claro e simples do bonhomme fabulista. Não admira, pois, que, mais tarde, eu adorasse Racine, a par de Shakespeare.55 (grifos nossos) É interessante notar que Quintana demonstra como aprendeu francês dentro de casa com a família, algo que não era acessível a qualquer família. Toda família ocupa uma posição no espaço social. Ao receber uma educação ligada a uma posição de determinada classe, Mário Quintana reproduz de maneira espontânea, em seus pensamentos e palavras, as relações sociais existentes no momento da aprendizagem. Observamos que Quintana relaciona a aprendizagem da língua 52 PENA AZUL DE LITERATURA E ARTE. Entrevista a Hermes Rodrigues Nery. Disponível em: <http://medei.sites.uol.com.br/penazul/geral/entrevis/quin.htm>. Acesso em: 17 ago. 2010. 53 REVISTA TERRA. Entrevista com Mario Quintana. Disponível em: <http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI1090046-EI6595,00.html>. Acesso em: 9 maio 2010. 54 PENA AZUL DE LITERATURA E ARTE. Entrevista a Hermes Rodrigues Nery. Op. cit. 55 Entrevista concedida a Edla van Steen e publicada no livro Viver & escrever. Porto Alegre: L&PM, 2008. v. 1. 100 francesa com a de outras artes. Assim, o francês constitui um elemento de distinção ligado às artes, tais como a pintura e a música. O francês é citado como uma língua não acessível aos empregados, logo, como elemento de distinção de determinada classe social. Em várias entrevistas compiladas, Quintana repete essa mesma história, ressaltando sempre que sua relação com a língua francesa se deu desde a infância, que sua mãe era professora de francês e que o francês era falado em sua casa, o que pode ser confirmado nos exemplos a seguir, nos quais a palavra “francês” se repete inúmeras vezes. Assim, ao ressaltar todo o tempo a importância da língua francesa e de como foi influenciado por ela, Quintana se demarca como legítimo conhecedor da língua e da cultura francesas. A França era a capital literária do mundo. Eu, quando estava na farmácia do velho, tinha conta numa livraria francesa. Eles mandavam os boletins e eu encomendava. Tudo vinha direto de Paris para Alegrete. 56(grifos nossos) [...] francês era o veículo literário do mundo naquele tempo, e até há pouco tempo. E nós devemos muito ao conde de Belchior de Vogué, que traduziu os russos. Se os russos não tivessem sido traduzidos para o francês nós desconheceríamos Dostoiévski até hoje. O que é desconhecer uma terça parte da alma humana. Porque a alma humana está dividida em três partes, uma em Shakespeare, outra na Bíblia, outra em Dostoiévski. Pelo menos para mim. 57 (grifo nosso) O que devemos à França não é a cultura francesa, é a cultura universal. Toda obra, para universalizar-se, teria de passar pelos tradutores franceses. (grifo nosso)58 Em outra entrevista, percebe-se a própria valorização a partir do domínio de uma língua hegemônica como o francês. Quintana se demarca como leitor de autores franceses, por quem demonstra profunda admiração, mostrando a estreita ligação com a literatura francesa, identificando-se com Appollinaire e Verlaine, o que lhe traz capital simbólico como autor e tradutor. Assim, Quintana, ao se demarcar como conhecedor da língua e da cultura francesas, angaria prestígio. 56 REVISTA TERRA. Entrevista com Mario Quintana. Op. cit. PENA AZUL DE LITERATURA E ARTE. Entrevista a Hermes Rodrigues Nery. Op. cit. 58 Id. 57 101 Fala de um lugar próprio, uma vez que seu capital cultural lhe dá o direito de falar desse lugar. A gente sempre admira o que mais se parece com a gente, não é? O que mais se parece comigo ou com quem mais eu me pareço foi Guilhaume Appollinaire, e outro que a gente não pode deixar de admirar é o mestre dos simbolistas, o Verlaine. Os outros são discípulos, seguidores, continuadores. Uma estratégia acionada por Mário Quintana para valorizar seu conhecimento da língua francesa consistiu em desmerecer a língua inglesa, bem como a literatura norte-americana. O objetivo de tal estratégia estava em valorizar o conhecimento que tinha, o que está evidenciado no exemplo a seguir, quando, ao ser interpelado pelo entrevistador, defende invariavelmente a língua francesa: Não posso esquecer que minha infância se passou na belle époque, quando até os americanos sabiam falar francês. Tenho uma amiga que foi para a Alemanha apenas sabendo francês [...]. Aproveito a ocasião para lançar o meu protesto contra essa ideia de tirarem a língua francesa do currículo escolar. (grifo nosso) Quintana reivindicava que o francês voltasse ao currículo escolar, por isso, podemos apreender que o francês fazia essencialmente parte desse currículo no Brasil. Exemplos da estratégia de “desmerecimento” da língua inglesa e da cultura norte-americana estão evidenciados a seguir: [...] Mas a minha queixa é contra os americanos. Já disse e repito que, se há males que vêm para bem, há bens que vêm para mal. Exemplo: os Estados Unidos ganharam a guerra. Resultado: o povo, em geral, só lê os best-sellers americanos que eles nos impingem. São tão ruins que chego a acreditar que sejam apenas literatura de exportação [...]59 Ao ser indagado se gosta da literatura norte-americana, Quintana responde: [...] gosto de Scott Fitzgerald, o que não é de admirar porque ele pertence à minha geração: o mesmo caldo de cultura, a mesma sensibilidade. Gosto de Edgar Poe, e eu não compreendo como é que ele foi aparecer por lá. Deve ter havido um engano de país ou de planeta. 59 Entrevista concedida a Edla van Steen e publicada no livro Viver & escrever. Op. cit. 102 Ao desmerecer a língua inglesa, que passava a prevalecer, Quintana revela que se distinguia como conhecedor da língua francesa, o que acabou lhe rendendo o cargo de tradutor da Editora Globo, a convite de Érico Veríssimo, valorizando, assim, seu capital cultural: Como há males que vêm para bem, os Estados Unidos ganharam a guerra, e eu com ela. Todo mundo começou a estudar inglês – como ainda hoje –, mas o Érico (Veríssimo) lembrou que eu era o único conhecido que falava francês e me chamou para a Editora Globo.60 (grifo nosso) 3.2.2 A POSIÇÃO TRADUTIVA “VISÍVEL” DE QUINTANA A posição que um tradutor ocupa no campo da tradução, isto é, seu papel de agente na produção, interessa-nos, uma vez que determina o significado do trabalho do tradutor e das práticas – esquemas e princípios técnicos – envolvidas na produção, capazes de, pela circularidade e reciprocidade de reconhecimento no campo, explicitar a posição de determinado agente tanto nesse campo quanto na hierarquia cultural da sociedade. Observemos, portanto, na prática, o funcionamento nesse campo de produção, juntamente com os outros integrantes do espaço da tradução. No capítulo anterior, discutimos as tendências ao etnocentrismo nas traduções e a invisibilidade do tradutor. Observamos que a noção corrente é de que “o tradutor nunca pode fazer o que o original fez”, e que, dessa maneira, a tradução é vista como cópia de um original, este, sim, tido como produto raro, produzido por um criador único, o autor. Segundo Venuti, ao realizar uma tradução etnocêntrica, o tradutor, ao tentar apagar os traços da tradução, acabaria 60 QUINTANA, Mario. Instituto Estadual do Livro. Mario Quintana. Autores Gaúchos, Porto Alegre: IEL/ULBRA/AGE, 1996. 103 ele mesmo por apagar-se. Venuti afirma que o tradutor deve utilizar como estratégia de tradução o não apagamento dos traços da cultura de partida, a fim de que sua figura não seja também apagada, o que é defendido, também, por Lenita Esteves: A partir do momento em que se aceitar de forma geral a ideia de que o tradutor interfere no texto que traduz; que, em resumo, ele não é invisível, ele assumirá também responsabilidades mais sérias em relação a esse texto. O que aconteceu tempos atrás com a noção de autoria pode ser aplicado para a tradução. Se o tradutor interfere no texto que produz, o que considero inevitável, ele também é um pouco responsável por ele. É preciso que se tenha um rigor, um cuidado ao traduzir que muitas vezes não se tem. Assim como a tradução não pode ser qualquer coisa, o tradutor não pode ser qualquer tradutor.61 Seria possível ao tradutor fazê-lo de forma consciente? Poderia qualquer tradutor fazer evidenciar a cultura da língua de partida e não se apagar? Acreditamos que esse apagamento da figura do tradutor constitua uma produção simbólica do campo, que mostra quem é valorizado ou não dentro dele. Assim, não depende unicamente da vontade do tradutor que ele seja visível; essa visibilidade dependerá do seu nível de consagração, determinado pelo campo. Na evidência a seguir, Quintana concebe uma boa tradução, aquela que segue o estilo do autor, definindo, desse modo, o que seria sua concepção de uma boa tradução: Aquela que segue o estilo do autor, e não o do tradutor. Os períodos de quadra e meia de Proust (sim, o período dele dava volta na quadra) não poderiam ser divididos em pedacinhos, por amor da clareza ou coisa que o valha, como acontece às vezes na tradução castelhana.62 (grifos nossos) Desse modo, Quintana não somente se demarca como um tradutor não etnocêntrico, como também critica quem faz uma tradução nos moldes etnocêntricos, ao afirmar que os períodos de Proust “não podem ser divididos em 61 ESTEVES, Lenita M. R. Tradução fiel: a quem? A quê? Por quê?. p. 12. Disponível em: <http://www.lenitaesteves.pro.br/MicrosoftWord-fielaquem.DOC.pdf>. Acesso em: 24 ago. 2011. 62 Entrevista concedida a Edla van Steen e publicada no livro Viver & escrever. Op. cit. 104 pedacinhos por amor à clareza ou coisa que o valha”. Na estratégia de Quintana, não há preocupação em facilitar a vida do leitor, que se evidencia na maneira “literária”, e não “literal”, de sua tradução, conforme afirma: Há sempre uma diferença entre tradução literal e tradução literária. Creio que a tradução de um autor é, nada mais, nada menos, a estreia desse autor na literatura da língua para a qual ele foi traduzido. Daí, a responsabilidade enorme de traduzir um Proust, um Voltaire, gente assim. Os críticos parecem corroborar essa ideia: Ao longo deste trabalho recorreremos à tradução de Em busca do tempo perdido publicada pela Editora Globo; tradução que recebe, nos quatro primeiros volumes dos 7 que compõem a edição brasileira, a assinatura do poeta Mário Quintana. A recorrência, nesta comunicação, ao texto traduzido, em lugar daquele em francês, justifica-se, inicialmente, pela alta qualidade da tradução de Quintana e dos demais responsáveis pelos três volumes finais. Quintana traduziu Proust à maneira de Proust, respeitando aqueles períodos do romancista que dão volta e meia na página.63 (grifos nossos) Em suas entrevistas, Mário Quintana se posiciona como tradutor, demonstrando sua relação com a tradução e com o ofício de escrever: “Mas, como eu ia dizendo, traduzia porque gostava daqueles livros. E quanto mais difícil o livro, mais eu gostava”64 (grifos nossos). Em outro trecho, afirma que começara a traduzir desde muito cedo, sem compromisso profissional. Essa relação com a tradução está ligada a um constructo social mais valorizado, pois remete a uma forma “natural”, portanto, “genuína”, do ofício de traduzir, especificamente obras do francês: “Cheguei a começar por conta e risco uma tradução da Ifigênia, de Racine, e do Sonho de 63 ANAIS do V Congresso de Ciências Humanas, Letras e Artes da Ufop. Disponível em: <http://www.ichs.ufop.br/conifes/anais/LCA/lca2602.htm>. Acesso em: 20 abr. 2010. 64 CASA DE CULTURA MARIO QUINTANA. Disponível em: <http://www.estado.rs.gov.br/marioquintana>. Acesso em: 10 ago. 2009. 105 uma noite de verão, as quais infelizmente se perderam. Ou felizmente, nunca se sabe.”65 Mário Quintana valoriza a tradução e o ofício do tradutor; contudo, não menciona a tradução de escritores menos renomados, mas as traduções de escritores consagrados, e especialmente da língua francesa, e, ao fazê-lo, valoriza a si mesmo, como observamos no exemplo a seguir, já citado anteriormente: Há sempre uma diferença entre tradução literal e tradução literária. Creio que a tradução de um autor é, nada mais, nada menos, a estreia desse autor na literatura da língua para a qual ele foi traduzido. Daí, a responsabilidade enorme de traduzir um Proust, um Voltaire, gente assim. (grifos nossos) No enunciado seguinte, o entrevistador qualifica Quintana de um tradutor de “obras clássicas”. Já na indagação do entrevistador se abre a possibilidade de Quintana responder a essa pergunta valorizando a mística de Proust como autor de difícil tradução: – E como foi traduzir Proust? (pergunta do entrevistador) – Foi uma coisa horrível. Mas eu gostei, exatamente por causa da dificuldade. A dificuldade é uma coisa que pode cansar, mas é o mesmo que a ginástica, faz bem. [...] Uma barbaridade traduzir aqueles períodos que dão volta na esquina e não se sabe onde vão parar. (resposta de Quintana)66 (grifos nossos) Percebe-se que Mário Quintana cita os autores “imortais” por ele traduzidos, tais como Merimée, Voltaire e Proust, o que lhe rende capital simbólico. Observamos, também, a maneira como Quintana se utiliza da mística de Proust, como “gente assim”, “que não é brinquedo”, “difícil”, para valorizar seu próprio trabalho – uma empreitada de “dificuldade” que, segundo ele, pela qual há de se ter amor, de grandes proporções, e que não há dinheiro que pague. Amealha, assim, consagração ao se colocar como tradutor de obras tidas como difíceis: “[...] 65 Entrevista concedida a Edla van Steen e publicada no livro Viver & escrever. Op. cit. QUINTANA, Mario. Instituto Estadual do Livro. Mario Quintana. Autores Gaúchos, Porto Alegre: IEL/ULBRA/AGE, 1996. 66 106 De maneira que é uma enorme responsabilidade. Olha que eu traduzi Proust, o que não é brinquedo. E traduzi Voltaire, traduzi Merimée, traduzi esta gente assim”67 (grifos nossos). 3.2.3 AFIRMAÇÕES DE AMOR À TRADUÇÃO E DE ABNEGAÇÃO DOS LUCROS FINANCEIROS A seguir, podemos verificar que, em algumas entrevistas, Mário Quintana se mostra como tradutor abnegado, tal como um autor que trabalha por “amor à arte”, na medida em que não busca lucros financeiros: “Traduzi Proust por amor à dificuldade da tradução. Quando soube que Proust estava incluso no programa editorial da Globo, pedi para traduzi-lo, por medo que caísse em outras mãos” (grifos nossos). Ao afirmar ter traduzido por “amor”, Quintana demarca-se em relação a um “tradutor comum” que tira da tradução seu sustento. Antes, coloca-se na posição de artista “abnegado”, interessado na “arte pela arte”. Como se a associação entre arte e dinheiro não pudesse ser feita. Assim, lança mão do que Bourdieu chama de denegação, ou seja, negar um lucro material, a fim de colher capital simbólico. Afirma, também, ter traduzido Proust por “medo que caísse em outras mãos”. Desse modo, coloca-se como um tradutor interessado pela arte, sem interesse material, o que podemos comprovar ainda no exemplo a seguir, no qual afirma que até “pagaria” para traduzir Proust: Antes de tudo, Proust foi para mim um trabalho e um prazer ao mesmo tempo, porque olha que traduzir Proust... Ele tem períodos enormes que dão volta na página e eu devia traduzir preservando a mesma clareza do original. Tanto que 67 PENA AZUL DE LITERATURA E ARTE. Entrevista a Hermes Rodrigues Nery. Op. cit. 107 comentei com o Érico Veríssimo, que dirigia o setor de traduções da Editora Globo: “Estou gostando tanto de traduzir o Proust que, se eu tivesse dinheiro, eu é que pagava para vocês”. [...]68 (grifos nossos) Quintana não fala da tradução de uma obra qualquer, mas de uma obra de Proust, autor consagrado e tido como difícil de ser traduzido. Ao afirmar que traduzira Proust “por amor”, ele se coloca como artista abnegado, sem interesse material, associando a tradução a um trabalho artístico. Quintana se contradiz, uma vez que, na mesma entrevista, afirma ter pedido demissão da Editora Globo por não ter sido contemplado com aumento salarial: Retirei-me do quadro de funcionários da Globo quando, por ocasião de um aumento de salário, eu não fui contemplado, sob a alegação de que me demorava muito na tradução de Proust. Traduzi da primeira até a quarta parte (Sodoma e Gomorra).69 (grifos nossos) O que é corroborado em outra entrevista, na qual Quintana demonstra sua insatisfação por não ter recebido aumento. Como fora informado de que tal fato se devera à demora em fazer a tradução de Proust, demonstra indignação, afirmando que deveria levar tanto tempo para traduzir quanto Proust levou para escrever. Assim, Quintana se demarca como um tradutor diferenciado, não um tradutor qualquer, colocando-se na posição de autor. Notamos que suas afirmações acerca do seu “amor” à tradução em oposição ao tradutor comum o direciona para uma posição mais ousada e consagrada dentro do campo da tradução. Quando houve o primeiro aumento geral, fui o único a não ser aumentado. Naturalmente, tomei satisfações. A resposta que me deram foi que eu levava muito tempo na tradução. “Você, afinal, levou quatro meses para traduzir um volume.” Ora, eles não compreendiam que eu tinha que demorar tanto tempo quanto Proust levara para escrever o original, para fazer uma tradução digna. Queriam que eu traduzisse com a mesma velocidade com que traduzia romances sem civilização nenhuma, ditados para uma estenógrafa em uma semana. Por causa disso, 68 CASA DE CULTURA MARIO QUINTANA. <http://www.estado.rs.gov.br/marioquintana>. Acesso em: 10 ago. 2009. 69 Id. Disponível em: 108 abandonei minhas funções de tradutor na Globo e fui trabalhar no Correio do Povo.”70 (grifos nossos) Podemos observar que há uma reduplicação da consagração do autor do original em relação ao tradutor. Assim, ao traduzir Proust, autor consagrado, Mário Quintana também se consagra, ocorrendo, assim, uma espécie de transferência de prestígio do autor para o tradutor. Proust se constitui nesse artista autônomo, criador de obras únicas e insubstituíveis, que valida no campo de bens artísticos a constituição de um campo de produção erudita, caracterizado por uma autonomia em conduzir as operações de produção, avaliação e legitimação dentro do próprio campo. Na entrevista que segue, Quintana afirma que não se dá valor ao trabalho do tradutor. É interessante notar que elogia apenas os pares consagrados, por meio dos quais possa alcançar mais prestígio: Bandeira e Drummond, não citando Lúcia Miguel Pereira, que traduziu O tempo redescoberto em 1956: Não se dá valor ao trabalho do tradutor. Isso sempre me deixou indignado. A tradução é uma coisa muito séria. [...] Eu traduzi quatro volumes do Proust. Os outros foram traduzidos por Manuel Bandeira e por Carlos Drummond de Andrade. Fiquei em ótima companhia e acho que Proust não pode se queixar da gente, pelo menos da parte do Bandeira e do Drummond.71 (grifos nossos) O fato de citar apenas Drummond e Bandeira nos leva a algumas reflexões. Pierre Bourdieu (1998), ao tentar definir as regras próprias à criação artística, analisa a configuração do campo intelectual francês no final do século XIX, período no qual, segundo o autor, esse campo atinge o seu maior grau de autonomização. Nesse período, as transformações sociais decorrentes do desenvolvimento das forças produtivas desestabilizavam a posição do artista, que 70 REVISTA TERRA. Entrevista com Mario Quintana. Op. cit. GOVERNO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Disponível em: <http://www.estado.rs.gov.br/marioquintana/entrevistas/Entrevista%20com%20Patricia%20Bins>. Acesso em: 17 abr. 2010. 71 109 era, então, obrigado a optar entre servir ao mercado e aos salões da burguesia e engajar-se nas causas políticas. Bourdieu cita como exemplo o poeta francês Charles Baudelaire, que teria percebido como nenhum outro a nova configuração do campo intelectual, ou seja, a de que o “verdadeiro” valor do escritor não seria garantido por seu empenho na esfera política ou pelo mercado, nem estaria associado à volta a um mecenato aristocrático nos moldes do século XVIII, mas, sim, pelo reconhecimento de seus pares. Esse reconhecimento não seria imediato, mas a longo prazo, e, dentro desse processo, o papel da crítica seria importantíssimo. 3.2.4 MÍSTICA DO “ACASO” NO OFÍCIO DA TRADUÇÃO – HISTÓRIAS FOLCLÓRICAS SOBRE A TRADUÇÃO DE PROUST – AS CAPAS A consagração da tradução de Mário Quintana se evidencia pela circularidade de valores no campo. Ao analisarmos os relatos em relação à maneira como Quintana traduzia, constatamos uma idealização do ato da tradução, feita com “despojamento”, sem “pompa ou solenidade”. O que é corroborado no exemplo a seguir: Examinando mais de perto o trabalho que Quintana executava e constatando a excelência da tradução, Broca exclamou algo como: “É incrível, como você consegue fazer?”, ao que Quintana respondeu sorrindo, ao mesmo tempo em que acendia um novo cigarro: “Com o primeiro da série Em busca do tempo perdido, tive alguma dificuldade. Agora, as coisas estão bem mais fáceis.”72 Algumas histórias são contadas a respeito da famosa tradução de Proust. Essas histórias sobre a tradução de Quintana para a obra de Proust não são 72 Artigo de Elias Pinto. Jornal Diário do Pará. 25 fev. 2007. Disponível em: <http://www.achanoticias.com.br/noticia.kmf?noticia=5830965>. Acesso em: 19 mar. 2010. 110 gratuitas e, além de denotarem a consagração do tradutor, constituem uma reduplicação dessa consagração, uma vez que, pela circularidade do campo, ao falar da relação de Quintana com a tradução, o crítico ou o jornalista também se consagram. Ora, o que poderiam ser apenas histórias pitorescas sobre a tradução, na verdade, são evidências da consagração de Quintana como tradutor. Somente um tradutor consagrado teria histórias comentadas a respeito da tradução de Proust, que chegam a soar como folclóricas, como as que passamos a relatar. No começo da década de 1950, em visita à editora, o crítico Brito Broca, autor de A vida literária no Brasil de 1900, observara Mário Quintana traduzir Proust “como se estivesse copiando um texto numa folha de papel almaço. Ficou impressionadíssimo”, conta José Otávio Bertaso no livro A Globo da Rua da Praia. “Os longos períodos proustianos eram traduzidos por Quintana sem a menor hesitação. Decerto, para os padrões do eixo Rio–São Paulo, uma tradução de Marcel Proust deveria revestir-se de toda pompa e solenidade, e não do despojamento e da facilidade aparente com que Mário Quintana procedia.”73 Alguns fatos que cercam a tradução de Em busca do tempo perdido chegam a ser citados como atípicos, como veremos no exemplo a seguir, relatado por um crítico e que foi tratado por ele como “Proust no galinheiro”: Doutra vez, em seu quarto de pensão, traduzindo um dos volumes de Proust, o poeta deixou sobre a mesa mais da metade de sua produção cuidadosamente manuscrita e esqueceu a janela aberta. Voltando de madrugada de mais uma noite de boemia, se deu conta de que uma súbita ventania, seguida de uma forte chuva, havia espalhado pelos pátios de sua pensão e galinheiros circunvizinhos mais de duzentas laudas de seu trabalho. Outras evidências mostram que a consagração da tradução de Quintana de Em busca do tempo perdido somente cresce com o tempo. As capas das traduções da obra de Proust pela Editora Globo, por exemplo, constituem prova disso. 73 Ibid. 111 Fig. 2. Imagem da capa de No caminho de Swann, a primeira edição de 1948 do primeiro volume de Em busca do tempo perdido. Na primeira tradução, datada de 1948 (Fig. 2), observamos que o nome de Mário Quintana não apareceu na capa, apenas na folha de rosto. Tal fato demonstra que o autor-tradutor já apresentava certa consagração que permitia a citação de seu nome como tradutor em um local de relativo destaque. Entretanto, essa consagração ainda não era suficiente para figurar na capa da obra – local destinado, em princípio, apenas ao nome do autor da obra original. Essa situação, 112 da ausência do nome de Quintana na capa das traduções, se repetiu nas décadas de 1950 (Fig. 3) e 1960, isto é, seu nome ficou reservado à folha de rosto. Fig. 3. Imagem da capa de No caminho de Swann, edição de 1956. Ao longo das sucessivas traduções, nos anos 1950, notamos que seu nome ainda não consta da capa. Tal fato nos permite afirmar que nomes de tradutores nas capas, mesmo autores-tradutores, somente ocorrem após um processo de duradoura consagração. A próxima capa data do ano 1981. Notamos que o nome de Quintana aparece nela; entretanto, em letras menores, na parte inferior e longe do título e do nome do autor (Fig. 4). 113 Fig. 4. Imagem da capa de No caminho de Swann, edição de 1981. Percebemos uma significativa mudança na imagem da capa de 1988, na qual o nome de Quintana não somente se destaca, como também fica mais próximo ao título – o nome do tradutor aumenta de tamanho de acordo com seu reconhecimento (Fig. 5). 114 Fig. 5. Imagem da capa de No caminho de Swann, edição de 1988. Ao observarmos a capa de 2005, percebemos que a consagração se torna gradativamente mais consolidada, na medida em que o nome do tradutor não deixa mais de se apresentar na capa, e seu nome figura, de certa forma, próximo ao do autor e ao título da obra (Fig. 6). 115 Fig. 6. Imagem da capa de No caminho de Swann, edição de 2005. Outro fato interessante e que demonstra a consagração da tradução de Quintana é que a editora, ao lançar as histórias em quadrinhos do clássico de Proust, faz referência ao nome dos tradutores da primeira tradução de Em busca do tempo perdido. Em 2003, a Jorge Zahar Editora lançou uma adaptação em quadrinhos de Em busca do tempo perdido – no caminho de Swann. O site “Universo em Quadrinhos”, a fim de referendar a obra de Proust e mostrar a importância que ela tem, menciona que foi traduzida para o português por Carlos Drummond de Andrade e Mário Quintana: Uma novidade tão inesperada quanto agradável acaba de chegar às livrarias, pela Jorge Zahar Editora. Trata-se de Em busca do tempo perdido – no caminho de 116 Swann: Combray. Adaptação de um clássico da literatura mundial, escrito por Marcel Proust, para a linguagem dos quadrinhos.74 Para se ter noção da importância de Em busca do tempo perdido, um longo romance em sete volumes, no Brasil a obra foi traduzida por escritores como Carlos Drummond de Andrade. Para os conhecedores de Proust, no entanto, a melhor tradução para o português é de Mário Quintana, escritor, crítico e poeta gaúcho. 75 (grifos nossos) Assim, a fim de ressaltar a importância da obra de Proust que acabara de ser lançada em quadrinhos, cita a tradução da Editora Globo e, evidentemente, os tradutores que a consagraram. Essas evidências demonstram como as instâncias do campo de produção literária cooperam para consagrar a tradução à medida que há uma circularidade de valores relativos à tradução de Quintana, contribuindo para a crença em um objeto “raro” e “insubstituível”, como a tradução de Em busca do tempo perdido, elaborada por ele. No próximo capítulo, veremos como o espaço da atividade da tradução no campo da atividade literária é eficaz em sua luta por legitimidade, na medida em que podemos observar o lançamento de outras traduções de Em busca do tempo perdido. Uma delas foi lançada pela Editora Ediouro nos anos 1990 e elaborada por Fernando Py; outra, a ser lançada brevemente pela Editora Companhia das Letras, está em fase de elaboração por Mario Sergio Conti. Desse modo, verificaremos a luta incessante por legitimidade nesse espaço social da tradução, uma vez que o lançamento de novas traduções e a ação das instâncias de consagração evidenciam a disputa dessas traduções posteriores com a tradução “definitiva” de Mário Quintana. 74 UNIVERSO EM QUADRINHOS. Disponível em: <http://www.universohq.com/quadrinhos/2003/n01122003_02.cfm-01/12/2003>. Acesso em: 1 set. 2009. 75 Ibid. 117 4 A LUTA PELA LEGITIMIDADE NO CAMPO – AS NOVAS TRADUÇÕES DE EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO Neste capítulo, poderemos constatar como é vigoroso o funcionamento do campo em sua busca de legitimação. Observaremos como duas novas traduções de Em busca do tempo perdido, a de Fernando Py, lançada em 1993 pela Ediouro, e a de Mario Sergio Conti, que deverá ter seu primeiro volume lançado em 2012 pela Companhia das Letras, pretendem demonstrar a si próprias como legítimas diante daquela que se diz a “definitiva”, como se intitula a edição da Editora Globo, relançada em 2006, que tem como tradutores Mário Quintana, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Lúcia Miguel Pereira. Como a tradução de Quintana inaugura a obra de Proust no Brasil, é inevitável que se faça uma relação com as traduções posteriores. Antoine Berman (1985, p. 105), ao refletir sobre a retradução, assinala que é necessário distinguir “dois espaços (e dois tempos) de tradução: o das primeiras traduções e o das retraduções”. Nesse contexto, entende Berman que as primeiras traduções não são nem podem ser as maiores. Para esse autor, a retradução encontra-se em uma posição crítica privilegiada, que lhe permite e, em certo sentido, obriga a constituir-se em função de um diálogo temporal e retórico-formalmente marcado. Afirma o teórico francês que a retradução não tem relação apenas com o original, mas com dois, ou seja, com a primeira tradução também. Assim, quando afirma que a retradução há de se relacionar não somente com o original, mas também com a primeira tradução, Berman demonstra como essas traduções posteriores têm de se demarcar em relação às primeiras. No caso das traduções posteriores à tradução de Quintana, notamos que a primeira tradução encontra-se de tal modo consagrada no campo de produção literária que as traduções posteriores se apresentam como pretendentes (BOURDIEU, 2001) à dominação do 118 campo, encetando uma verdadeira luta por legitimidade no interior do campo. Como exemplo dessa luta, apresentaremos tanto a tradução de Em busca do tempo perdido elaborada por Fernando Py – lançada pela Ediouro em 1993 – quanto uma nova tradução a ser lançada em 2012 pela Companhia das Letras, cuja elaboração está a cargo de Mario Sergio Conti. Se há quase que um consenso de que as traduções, produzidas em determinado momento, devem sofrer modificações que as tornem “atualizadas”, a pergunta que se faz é: qual o sentido de elaborar uma nova tradução de uma obra clássica, tal como a de Proust, uma vez que já se tem uma tradução reconhecida como “definitiva”? Podemos observar que, na perspectiva de funcionamento do campo de produção simbólica, tais retraduções têm por objetivo – que vai além de atender às demandas do público – lutar por legitimidade própria diante daquela previamente reconhecida como única. Não nos parece que o interesse de duas outras editoras, ao lançarem nos dias de hoje a tradução de Em busca do tempo perdido, seja o de apresentar ao público a obra de Proust. Cremos que o mais importante para elas seja recolher prestígio, ou seja, capital simbólico, na medida em que contariam com uma obra clássica de porte em seu catálogo. Esse prestígio cultural amealhado pela editora lhe traz os lucros financeiros adquiridos por possuir uma obra clássica que lhe possibilita o reconhecimento para a venda de tantas outras obras de seu catálogo, contidas nos segmentos considerados culturais e comerciais. 119 4.1 A TRADUÇÃO DE FERNANDO PY Em 1993, cerca de meio século depois do lançamento da tradução da Editora Globo, a Ediouro lançou uma nova tradução de Em busca do tempo perdido, em sete volumes, elaborada por Fernando Py. Em 2002, uma segunda edição, revista, foi lançada de maneira condensada em apenas três volumes. Ora, o relançamento da tradução de Py não foi por acaso. Nesse mesmo ano, a Ediouro adquiriu a Editora Agir, uma das mais tradicionais do País, e assim agregou seus 3.500 títulos ao catálogo, dos quais 600 considerados como clássicos. Dentre essas obras estão livros de reconhecidos autores brasileiros. A Ediouro atingiu a marca de mais de 2 milhões de livros de ficção e não ficção vendidos em 2001, posicionando-se entre as maiores editoras do País. O ritmo dos lançamentos também foi dinâmico, com mais de 10 títulos novos lançados por mês. No final do ano 2006, adquiriu 100% do controle acionário da Editora Nova Fronteira. A luta dessa editora por reconhecimento se fez notar na medida em que se propôs relançar a obra Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust. Para a tarefa da tradução dessa obra, foi escolhido o escritor Fernando Py. A escolha desse autor literário não foi aleatória, pois Fernando Py é poeta, colunista, crítico literário e tradutor. Reconhecido articulista, colabora em diversos jornais, entre eles O Globo, Jornal do Brasil, Jornal da Tarde, Estado de Minas e Correio do Povo. Sua biografia mostra, de modo similar à de Quintana, um relacionamento com a língua francesa desde a infância em um colégio fundado por professoras belgas. De sua origem familiar, além da língua francesa, fazia parte a língua espanhola. Além disso, em seus estudos primários também aprendeu a língua inglesa. Sua atividade como tradutor inclui vários tipos de obras, tais como as enciclopédias (Grande Enciclopédia Delta Larousse e a Enciclopédia Mirador 120 Internacional), obras de divulgação científica, romances, livros de contos, de poesia, principalmente da língua francesa. De suas traduções, destacam-se, além de Em busca do tempo perdido, as obras da autora francesa Marguerite Duras. Podemos observar que esse autor-tradutor detém certa legitimidade no campo que lhe confere o reconhecimento necessário à sua contratação pela editora para a tradução da obra de Proust e para “fazer frente” à tradução consagrada de Mário Quintana, pertencente à Editora Globo. Observamos, então, que se instaura uma luta entre as duas traduções pela própria legitimidade dentro do campo de produção literária. Essa disputa, conforme Bourdieu aponta, consiste em uma luta entre dominantes – representados pela tradução de Quintana – e pretendentes – representados pela tradução de Py. A fim de observarmos as estratégias de Fernando Py para “enfrentar” a tradução de Quintana, recorreremos às indicações de Bourdieu, para quem cada campo de produção simbólica se constitui em palco de disputa entre dominantes e pretendentes, evidenciada pelos critérios de classificação e de hierarquização dos bens simbólicos produzidos e, indiretamente, pelas pessoas e instituições que a produzem. Assim, os indivíduos e as instituições que representam as formas dominantes da cultura buscam manter sua posição privilegiada, apresentando seus bens culturais como superiores àqueles que buscam legitimidade no campo. É o que Bourdieu chamou de violência simbólica, quando o arbitrário, imposto como natural, é dissimulado no processo de inculcação dos valores dominantes. Aos pretendentes restaria reconhecer o status da dominação e se armar de estratégias para reagir contra tal dominação. A seguir, observaremos diversos enunciados que demonstram essa luta entre a tradução de Fernando Py – com pretensões à consagração no campo da atividade da tradução – e a de Mário Quintana, em posição consagrada. Nos enunciados a seguir, de 121 Fernando Py, há o reconhecimento do próprio tradutor de que o principal problema de sua tradução foi superar a tradução de Mário Quintana (juntamente com Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Lúcia Miguel Pereira). Fernando Py o faz por meio do prefácio de sua tradução de Em busca do tempo perdido, em um subcapítulo intitulado “Critérios desta tradução”: “O principal desafio foi enfrentar os antigos tradutores.”76 “[...] não é tarefa tranquila traduzir uma obra de vulto como a de Proust. Ainda mais quando já existem outras em português”.77 Nesses enunciados, o próprio tradutor Fernando Py reconhece que seu principal desafio é “enfrentar” a tradução já consagrada e seus tradutores. Ao reconhecer esse desafio, Py busca reconhecimento, já que a tarefa de “enfrentar” os antigos tradutores não é dada a um tradutor qualquer; sendo assim, compara-se aos tradutores consagrados. Nas afirmações a seguir, observamos novamente o uso do termo “enfrentar” (a tradução de Mário Quintana) para definir a tarefa de Fernando Py: Py enfrentou a tradução já consagrada entre nós, publicada no início dos anos 50 pela Globo.78 (grifo nosso) [...] o fato de um único tradutor ter enfrentado esse desafio. 79 (grifo nosso) [...] não é o que pensa o poeta Fernando Py, que assina a segunda tradução da grande catedral literária francesa Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust. Com o objetivo “de tornar mais palatável” o texto do autor francês, Py enfrentou a tradução já consagrada entre nós, publicada no início dos anos 50 pela Globo de Porto Alegre. 80 (grifo nosso) Já nos dois enunciados a seguir, vemos que há questionamento da qualidade da tradução de Fernando Py. Embora sejam expostos elogios à sua tradução, no primeiro enunciado o crítico alerta o público da instância da recepção para uma “magnífica 76 MENDES, Taynèe. Os desafios da tradução dos clássicos da literatura universal . Jornal do Brasil. 10 abr. 2010. Disponível em: <http://www.jb.com.br/cultura/noticias/2010/04/10/os-desafios-da-traducaodos-classicos-da-literatura-universal>. Acesso em: 15 jun. 2010. 77 PROUST, Marcel. No caminho de Swann / À sombra das moças em flor. Tradução Fernando Py. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. p. 12. 78 MENDES, Taynèe. Os desafios da tradução dos clássicos da literatura universal . Jornal do Brasil. Op. cit.. 79 Id. 80 Id. 122 tradução” desse mesmo volume, deixando entrever sua preferência. No segundo, um leitor lamenta, no espaço dos comentários do público no próprio site da editora da tradução de Py – a Ediouro –, que a tradução não seja a de Mário Quintana. A tradução de Py é boa? Poderia ser, às vezes, menos prosaica. Entretanto, só a façanha de traduzir sozinho um livro como esse já merece o louvor de quem gosta de ler. Mesmo assim, não custa prevenir ao meu leitor de que há uma magnífica tradução desse mesmo volume, feita por Lúcia Miguel Pereira (sucedendo Mário Quintana, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, responsáveis pelos anteriores), com o título O tempo redescoberto.81 Um ótimo livro, sem sombra de dúvida. Inesquecível para aqueles que conseguem navegar nas reflexões que não cessam de ocorrer ao longo do livro. Pena haver somente o primeiro da coleção (composta por 7 livros) e a tradução não ser a do Mário Quintana. Tudo seria mais fácil se tivéssemos bons tradutores em todas as línguas. Confiáveis, ao menos. Houve melhores quando, além de Quintana, mestres como Drummond, Bandeira e Millôr traduziam. Há alguns que hoje merecem respeito. [...] esse cidadão chamado Fernando Py, que fez nova tradução de Proust em edição bonita, elegante, que vem dentro de uma caixa. A embalagem bonita esconde péssima versão em português, do que se deduz que o senhor Py pode até saber francês, mas não sabe bom português.82 (grifos nossos) Podemos verificar nesses enunciados que a tradução de Fernando Py se demarca, de maneira inequívoca, em relação à tradução de Mário Quintana. O reconhecimento de Py, no primeiro enunciado apresentado, evidencia de maneira clara a consagração de Quintana, na medida em que a sua atividade da tradução da obra de Proust deve considerar a incontornável tradução anterior e se define como um enfrentamento. Ora, o próprio tradutor Fernando Py usa a tradução de Mário Quintana como referência, o que está evidenciado no prefácio de sua tradução, em um subcapítulo intitulado “Critérios desta tradução”, no qual justifica a mudança dos títulos de Em busca do tempo perdido, tendo sempre de citar a tradução da Editora Globo. Ao citá-la, Py demonstra conhecimento do campo e do jogo. Sabe exatamente a posição dominante 81 MACHADO, Cassiano Elek. Principal obra de Marcel Proust é relançada no Brasil. Folha de S. Paulo. 30 mar. 2002. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u22602.shtml>. Acesso em: 10 mar. 2010. 82 IDEIAS. Disponível em: <http://www.revistaideias.com.br/ideias/coluna/monoglota>. Acesso em: 9 ago. 2010. 123 de Quintana e se coloca em busca da consagração, lançando mão de estratégias. Essas estratégias são acionadas no interior do campo de produção pelo pretendente Fernando Py, com o propósito de assim enfrentar, disposto de argumentos “objetivos”, a tradução “imortalizada” de Quintana: [...] O “Tempo recuperado”, pois de modo algum se trata de uma redescoberta. De outra parte, “Du côté de chez Swann” [...] preferimos manter o título já consagrado no país, pois o termo “caminho” indica melhor em português a situação do “côté” em francês [...]. Em “À l’ombre des jeunes filles en fleurs”, preferimos verter “jeunes filles” para “moças”, vocábulo de uso corrente no Brasil. Essa luta observada no campo entre dominantes e pretendentes, definida por Bourdieu em A produção da crença, se estrutura sobre a “estratégia de desmerecimento”, assim definida: É a luta entre os detentores e os pretendentes, entre os detentores do título (de escritor, de filósofo, de sábio etc.) e seus desafiantes, como se diz no boxe, que faz a história do campo: o envelhecimento dos autores, das escolas e das obras é resultado da luta entre aqueles que marcaram época (criando uma nova posição no campo) e que lutam para persistir (tornar-se “clássicos”) e aqueles que, por seu turno, só podem marcar época enviando para o passado aqueles que têm interesse em eternizar o estado presente e em parar a história.83 A seguir, observaremos diversas estratégias de desmerecimento utilizadas por Fernando Py e pelas instâncias de legitimação para confrontar a posição consagrada da tradução de Quintana. Bourdieu afirma que os pretendentes, ou seja, aqueles que estão em busca da consagração no interior do campo de produção, tendem a desmerecer as obras de seus antecessores dominantes julgando-as ultrapassadas, no intuito de superá-las e, assim, obter a posição legítima. Uma primeira estratégia de desmerecimento consiste em se colocar como um tradutor atualizado, moderno, apresentando em sua tradução um Proust mais “palatável”, atualizado para os dias de hoje, e classificar a tradução de Quintana de ultrapassada. Dessa maneira, a tradução de Fernando Py é apontada como 83 BOURDIEU, Pierre. Razões práticas. Campinas: Papirus, 1996. p. 69. 124 um Proust mais “palatável”, ou seja, uma tradução mais acessível ao público leitor, e a pretensão de apresentá-lo como “preocupado em facilitar” o entendimento da obra pelo público leitor lhe confere um valor, na medida em que a obra de Proust poderia, então, ser lida por uma maior parcela de leitores. Ao observarmos a proposta da tradução de Fernando Py de um Proust “palatável’, verifica-se um aspecto marcante nessa tradução que se opõe à de Quintana: a tendência de preservar aspectos culturais franceses em sua tradução. Nesse sentido, notamos que Quintana, em nenhum momento, em seus enunciados, afirmou querer “facilitar” a leitura de Proust. A posição dessa tradução no campo de produção é a de uma tradução não etnocêntrica, que se atém à cultura-fonte, levando o leitor à atmosfera francesa. Essa característica de Quintana nos levou a discutir questões levantadas por Berman e por Venuti no que tange às tendências etnocêntricas da tradução e à invisibilidade do tradutor. É pertinente indagarmos se há objetivamente tendências opostas nas duas traduções ou se são estratégias utilizadas pelos dois tradutores para mostrar seu posicionamento no campo de produção literária. Percebe-se que, nessa primeira estratégia de desmerecimento, Py mudou os títulos das obras e usou, por exemplo, o termo “moças” em oposição ao termo “raparigas”, para traduzir o termo em francês “jeunes filles”, então utilizado por Quintana. Tal tradução foi produzida no intuito de apresentar um termo mais moderno, sem que possamos julgar objetivamente qual seria o termo mais apropriado, uma vez que a tradução de Quintana foi elaborada em outra época e representava a imagem de outra mulher. A seguir temos dois enunciados que evidenciam tal estratégia: Com o objetivo “de tornar mais palatável” o texto do autor francês, Py enfrentou a tradução já consagrada entre nós, publicada no início dos anos 50 pela Globo de Porto Alegre. O poeta Mário Quintana traduziu No caminho de Swann, À sombra das raparigas em flor, O caminho de Guermantes e Sodoma e Gomorra, para só então passar a bola para Manuel Bandeira, que ficou com A prisioneira, em parceria com Lourdes Sousa de 125 Alencar. Carlos Drummond de Andrade se encarregou de A fugitiva, e Lúcia Miguel Pereira finalizou a tarefa com O tempo redescoberto.84 (grifo nosso) Fernando Py mudou alguns títulos dos romances do ciclo já consagrados em português. Em À sombra das raparigas em flor, esse jeunes filles foi vertido para moças. Ficou À sombra das moças em flor. Em Le temps retrouvé, Py julgou mais acertado o título O tempo recuperado em vez de O tempo redescoberto, na tradução anterior de Lúcia Miguel Pereira, o último título.85 A busca de Fernando Py foi oferecer uma linguagem mais acessível que acarretaria, consequentemente, maior número de leitores. De imediato pode-se notar a alteração do título À sombra das raparigas em flor para À sombra das moças em flor, justificado pela conotação pejorativa em algumas regiões do Brasil. O último livro, Le temps retrouvé, foi traduzido como O tempo recuperado em vez de O tempo redescoberto, usado pela Globo.86 (grifo nosso) Uma segunda estratégia de desmerecimento acionada é afirmar que a tradução da Editora Globo não fora feita por um único tradutor. Dessa maneira, na busca de consagração, Py procura desmerecer a tradução de Quintana, ao afirmar a sua vantagem em ser o tradutor único da obra completa no País, evidenciado no enunciado a seguir, publicado no Jornal do Brasil: “Se por um lado rivalizar com grandes escritores era um problema, por outro o fato de ser tradutor único deu-me a vantagem de uniformizar o estilo, já que a tradução da Globo prejudicou a uniformidade da obra.”87 Essa mesma estratégia de desmerecimento também se apresenta na crítica especializada sobre a tradução de Py. Elogia-se o fato de ser Py o único tradutor da obra, o fato de ele ter lido a obra de Proust por 26 anos, e de terem sido necessários quatro anos para concluir essa tradução: Único até agora a fazer o trabalho completo e sozinho, Py começou a traduzir a obra a pedido da Ediouro em maio de 1991, e fez apenas uma exigência: a ausência de prazos para a entrega. A fim de reproduzir em português a fluência musical de cada frase, a simetria e as comparações metafóricas – principais desafios em matéria de tradução 84 EDITAR & REESCREVER. Disponível em: <editarereescrever.blogspot.com/2011/02/o-desafio-datraducao-literaria.htlm>. Acesso em: 12 maio 2010. 85 DIÁRIO DO PARÁ. Coluna de Elias Pinto. 25 fev. 2007. Disponível em: <http://www.achanoticias.com.br/noticia.kmf?noticia=5830965>. Acesso em: 10 abr. 2010. 86 EDITAR & REESCREVER. Disponível em: <editarereescrever.blogspot.com/2011/02/o-desafio-datraducao-literaria.htlm>. Acesso em: 12 maio 2010. 87 MENDES, Taynèe. Os desafios da tradução dos clássicos da literatura universal . Jornal do Brasil. Op. cit. 126 literária – sem falar da extensão dos parágrafos de Proust, demorou quatro anos para entregar o original completo. 88 [...] a Ediouro lançou uma tradução revista e ampliada de Em busca do tempo perdido, assinada pelo poeta e advogado Fernando Py. Ele costuma dizer que sua tradução é “definitiva por enquanto”. Contudo, tendo em vista a extraordinária dificuldade colocada pela tradução da prosa de Proust, creio que o fato de um único tradutor ter enfrentado esse desafio, saindo-se dele muito bem, é mais um sinal de que temos sim, no Brasil, tradutores de grande envergadura. (grifos nossos) Na verdade, Mário Quintana foi um dos tradutores de Em busca do tempo perdido; dos sete volumes que compõem essa obra, há também uma (ou mais) traduções de Carlos Drummond de Andrade. Para muitos, são traduções que, apesar de excelentes, pecam pela desunião do conjunto, isto é: os volumes teriam perdido a unidade por terem sido traduzidos por pessoas diferentes. Dizem as más línguas, inclusive, que os textos de Quintana e Drummond foram publicados sem revisão.89 (grifos nossos) A falta de padronização é reconhecida principalmente quando se compara a tradução dos primeiros quatro volumes.90 A terceira estratégia de desmerecimento se apresenta no fato de Py criticar as expressões consideradas por ele “lusas”, utilizadas por seu antecessor “como se estivesse elaborando uma tradução para ser lida em Lisboa”. Ele se deixou levar pelo linguajar tipicamente regional, preenchendo as traduções que lhe couberam de gauchismos, além de vocábulos e expressões lusas, como se estivesse elaborando uma tradução para ser lida em Lisboa – comenta [...].91 Além do estilo próprio de cada autor que transparece facilmente, Py – que já traduziu mais de 30 livros, entre eles o inacabado romance póstumo de Proust, Jean Santeuil – critica o excesso de expressões gaúchas e lusitanas presentes no texto de Quintana.92 A quarta estratégia para enfrentar a tradução anterior consiste nas afirmações da crítica acerca do original usado como base por Fernando Py para sua tradução: a edição francesa considerada como a “versão definitiva” da obra de Proust, inteiramente concluída e editada pela Gallimard em 1954. O argumento utilizado pela instância de legitimação atual é a proximidade da tradução de Py do original, que, embora não tenha 88 BALAIO DE NOTÍCIAS. Aracaju, ed. 38, 14-21 set. 2003. Disponível em: <http://www.sergipe.com.br/balaiodenoticias/entrevistaj38.htm>. Acesso em: 10 maio 2010. 89 Id. 90 Site da empresa de traduções SPS, de Portugal. Disponível em: < http://sps-traducoes.com.pt/wp2 >. Acesso em: 10 jul. 2010. 91 Id. 92 Id. 127 o mesmo prestígio da anterior consagrada – graças ao “estofo literário de seus tradutores” –, lhe é conferido o valor de ter sido elaborada a partir de um original concluído e definitivo. [...] a primeira edição da Globo foi feita e lançada antes do aparecimento da edição crítica francesa de Pierre Clarac e André Ferré pela Gallimard, de 1954, deixando a desejar quanto à exatidão do texto.93 Se a primeira tradução ganha em prestígio (e no estofo literário dos tradutores, que vez ou outra vem à tona), o trabalho do poeta carioca, que já traduziu mais de 30 livros – incluindo o inacabado romance proustiano “Jean Santeuil” e a grande biografia do autor, de Georges Painter – tem algumas vantagens. Proust morreu antes de concluir a publicação da obra, e não chegou a fazer a revisão final nem dos livros que editou em vida. A primeira edição crítica saiu na França em 1954. Py usou a que, na época em que traduziu pela primeira vez a “Recherche”, era considerada a versão definitiva, a feita em 1987 pela Gallimard.94 (grifos nossos) Observamos que, em meio à estratégia de desmerecimento, Py coloca sua tradução como mais próxima do original, como mais “fiel” perante a tradução de Quintana, por este ter utilizado um original considerado inacabado. Por não deter o mesmo prestígio de Quintana, são propostos argumentos segundo os quais a tradução de Quintana não foi tão fiel ao original. A fidelidade ao original é posta em questão e Quintana é apontado como tradutor comum, passível de “infidelidades”. Alerta-se para o fato de que existe um “original” a ser tomado como referência para uma tradução “fiel” à obra de Proust e, portanto, essa tradução seria superior à tradução consagrada de Quintana. Em meio à luta pela legitimidade no campo de produção, torna-se difícil definir com objetividade qual seria exatamente a melhor tradução da obra de Proust. A pergunta incontornável, que se apresenta ao público leitor, ao ser lançada uma nova tradução, é a seguinte: qual seria a melhor tradução de Em busca do tempo perdido? 93 MENDES, Taynèe. Os desafios da tradução dos clássicos da literatura universal . Jornal do Brasil. Op. cit.. 94 Id. 128 É interessante notar, no enunciado a seguir, como determinado agente da instância de consagração do campo qualifica – de posse das duas traduções a que nos referimos – a tradução de Quintana como a melhor. Entretanto, essa qualificação não se baseia em quaisquer critérios técnicos, uma vez que o jornalista não aponta objetivamente qual é a “longa e torneada frase de Proust” que “ainda se ajusta melhor entre nós no torno moldado por Quintana”: Pesada, medida e comparada, depois de uma breve hesitação (não sou nenhum especialista; fiz minha Aliança Francesa mal e porcamente; baseio-me mesmo é no gosto, no tato e audição, e no paladar olfativo, se é que isso existe, por se tratar de Proust), confesso que ainda prefiro a primeira versão, que leva principalmente a assinatura do poeta gaúcho Mário Quintana, responsável pela tradução dos quatro primeiros volumes de Em busca do tempo perdido. Cheguei a ler No caminho de Swann simultaneamente, com os livros espalmados sobre a mesa, a tradução de Quintana, a de Fernando Py e o original. Doideiras. Mas acho que a longa e torneada frase de Proust ainda se ajusta melhor entre nós no torno moldado por Quintana.95 A expressão no enunciado “a longa e torneada frase de Proust ainda se ajusta melhor entre nós no torno moldado por Quintana” revela-nos o habitus que conduz o tradutor em sua prática, tal como um agente pertencente ao campo de produção simbólica. O “torno” a que se refere o jornalista são justamente os princípios e os esquemas legítimos do campo operados pelo autor-tradutor para dar forma legítima à tradução da obra original. Tais princípios e esquemas, longe de se constituírem em normas objetivas para a elaboração da tradução, são uma construção cultural levada a efeito pelo próprio campo de produção literária que conduz o tradutor em sua prática. Em artigo intitulado “The pivotal status of the translator’s habitus”, Daniel Simeoni96 afirma, corroborando as afirmações de Bourdieu, que, embora existam normas e regras que guiem os tradutores e intérpretes na prática profissional, o que é determinante na maneira de traduzir é a influência do campo com suas regras, que acabam sendo 95 96 DIÁRIO DO PARÁ. Coluna de Elias Pinto. 25 fev. 2007. Op. cit. SIMEONI, Daniel. The pivotal status of the translator’s habitus. Target, v. 10, n. 1, p. 1-39, 1998. 129 incorporadas, não de modo consciente pelo tradutor, na sua luta pela legitimidade no interior do campo. Em blogs dedicados à literatura, verificamos comentários que comparam as duas traduções e observamos que não há critérios objetivos para analisar a tradução. Trata-se de julgamentos sociais emitidos por agentes das instâncias de legitimação do campo, por meio de adjetivos e qualificações que lhes conferem maior ou menor valor. Traduzir o Proust não deve ser nada fácil, mas vamos lá, o Fernando Py mantém os parágrafos e as frases no seu tamanho original, o que é um belíssimo e honesto reconhecimento pela linguagem elaborada do autor. Mas o Quintana e seus companheiros colocaram mais vida, tomaram mais opções deliberadas, fizeram escolhas mais cuidadosas de certas palavras.97 Confesso que tenho lá uma queda por essa tradução, pois foi por ela que cheguei até Marcel Proust, mas ainda assim creio que a melhor é mesmo a de Mário Quintana (e outros), da Editora Globo. A tarefa de traduzir Proust e seus longos períodos não é nada fácil, mas Quintana, em especial, conseguiu manter o espírito do original praticamente intacto, na minha humilde opinião. 98 [...] claro, os tradutores da Globo são só gente grande, mas tem aquele problema de ter sido feita a várias mãos, falta uma certa unidade de estilo e tem uns lusitanismos tipo “raparigas em flor” difícil de engolir. E a nova tradução supera alguns desses problemas, mas claro, nunca cotejei detalhadamente. 99 No primeiro dos três enunciados, notamos que a comparação entre as duas traduções ocorre de maneira mais geral, na qual apenas são apontadas duas questões: o honesto reconhecimento da escrita elaborada de Proust na manutenção do tamanho das frases originais por Py e a vida colocada por Quintana, por meio de escolhas cuidadosas de certas palavras. Tais questões envolvem qualificações das traduções, sem que possam ser apontadas objetivamente a honestidade e a vida existentes as traduções. No segundo enunciado, embora o leitor do blog afirme que foi por meio da tradução de Py o seu primeiro contato com a obra de Proust, declara que a tradução de 97 ORKUT. Comunidade dedicada à literatura. Disponível em: <http://www.orkut.com/CommMsgs?cmm=82607&tid=486935&na=3&nst=11&nid=82607-4869352433923162387649970. Acesso 29/09/2011>. 98 Id. 99 Id. 130 Quintana mantém “o espírito do original praticamente intacto”. Novamente verificamos que se torna impossível indicar objetivamente no que consiste o “espírito do original”. Já no terceiro enunciado, podemos observar como o leitor aponta uma questão crucial relacionada com os princípios e esquemas do campo: a utilização de um termo que deveria, em princípio, corresponder de maneira eficaz a seu correspondente original, dada a tradução consagrada de Quintana. O leitor reconhece nos tradutores da Editora Globo “só gente grande”, mas registra o “problema de ter sido feita a várias mãos”, o que indicaria uma falta de “unidade de estilo”. Entretanto, a afirmação mais relevante para a nossa análise é a que considera os lusitanismos do “tipo ‘raparigas em flor’” como algo “difícil de engolir”, visto que aponta claramente um termo que parece inadequado ao original justamente na tradução ocupante da posição consagrada e dominante do campo, desconhecendo, inclusive, a pertinência dessa escolha à época de sua publicação. A seguir, poderemos constatar, ao compararmos trechos das traduções de Mário Quintana e de Fernando Py, que não há uma forma melhor ou mais adequada para retratar o sentido da obra original. Trata-se, conforme observamos, de um julgamento social acerca da tradução, pois não há, exceto a necessidade da aplicação da correspondência básica entre as palavras das diferentes línguas, valor intrínseco em determinado termo expressivo utilizado para descrever o termo correspondente na língua original – no caso aqui examinado, a língua francesa. PROUST, Marcel. À l’ombre des jeunes filles en fleur. Paris: Gallimard, 1979. p. 3. Autour de Mme Swann Ma mère, quand il fut question d’avoir pour la première fois M. de Norpois à dîner, ayant exprimé le regret que le professeur Cottard fût en voyage et qu’elle-même eût entièrement cessé de fréquenter Swann, car l’un et l’autre eussent sans doute intéressé l’ancien Ambassadeur, mon père répondit qu’un convive éminent, un savant illustre, comme Cottard, ne pouvait jamais mal faire dans un dîner, mais que Swann, avec son 131 ostentation, avec sa manière de crier sur les toits ses moindres relations, était un vulgaire esbroufeur que le marquis de Nortois eût sans doute trouvé, selon son expression, puant. Tradução de Mário Quintana PROUST, Marcel. À sombra das raparigas em flor. São Paulo: Globo, p. 18. Em torno da Sra. Swann Quando pela primeira vez se tratou de convidar o Sr. de Norpois para jantar em nossa casa, como lamentasse minha mãe que o Professor Cottard estivesse em viagem e que ela própria houvesse deixado completamente de frequentar Swann, pois tanto um como outro certamente interessariam ao ex-Embaixador, respondeu-lhe meu pai que um conviva eminente, um sábio ilustre como Cottard nunca faria má figura à mesa, mas que Swann, com sua ostentação, com aquele jeito de proclamar aos quatro ventos as mínimas relações, não passava de um vulgar parlapapão que o Marquês de Norpois sem dúvida acharia, segundo sua expressão, “nauseabundo”. Tradução de Fernando Py PROUST, Marcel. À sombra das moças em flor. Rio de Janeiro: Ediouro. 2004, p. 336. Em torno da Sra. Swann Quando se cuidou de receber ao jantar, pela primeira vez, o Sr. de Norpois, tendo minha mãe lamentado que o professor Cottard estivesse viajando e que ela própria tivesse deixado completamente de frequentar Swann, pois ambos teriam sem dúvida interessado o antigo embaixador, meu pai respondeu que um conviva eminente, um sábio ilustre, como Cottard, jamais poderia fazer má figura num jantar, ao passo que Swann, com sua ostentação, sua mania de alardear aos quatro ventos as suas relações, era um vulgar fanfarrão que o marquês de Norpois sem dúvida teria achado, conforme sua própria expressão, “nauseante”. Em relação aos termos utilizados, a tradução de Quintana parece-nos mais literária, mais ajustada a um tipo de princípio e esquema literário do campo de produção literária, por se tratar de um autor-tradutor, bem como pelo distanciamento do tempo, fazendo seu português soar como mais pomposo. Daí o emprego dos lusitanismos, tal como “rapariga”, talvez mais próximo da época e do contexto da obra original. Py parece ter a preocupação em atualizar os termos, mostrar-se mais atual e acessível ao publico leitor. Essa análise, entretanto, baseia-se em critérios subjetivos. Ao 132 examinarmos as duas traduções, não temos como efetivamente colocar uma como inequivocamente superior à outra: – “pois tanto um como outro” × “pois ambos” – Observa-se uma síntese na tradução de Py. – Cottard nunca faria má figura à mesa × Cottard jamais poderia fazer má figura num jantar – nauseabundo × nauseante. Assim, constatamos que a consagração ou não de uma primeira tradução pode ser percebida pela luta empreendida pelas traduções que vêm depois dessa. No caso da tradução de Em busca do tempo perdido, observa-se que as outras traduções se fazem à sombra da tradução de Quintana e de seus pares, tida como referência. Percebemos que ocorre uma demarcação entre elas, ou seja, uma relação entre o legítimo, representado pela tradução de Quintana, pertencente à Editora Globo, e o não legítimo ou em busca de legitimidade, figurado pela tradução de Fernando Py, lançada pela Ediouro. Verificamos que a tradução de Quintana é a dominante no campo, a partir da crença produzida pelo próprio campo. Fernando Py, por sua vez, não detém a mesma consagração, daí sua posição de pretendente. Podemos constatar essa menor consagração ao observamos que, ao contrário do que ocorre nas capas das traduções de Quintana para a Editora Globo, o nome do tradutor Fernando Py – evidência de reconhecimento do agente – não figura nas capas dos volumes de Em busca do tempo perdido das obras traduzidas pela Ediouro: 133 Fig. 7. Capa da tradução de Em busca do tempo perdido. Ediouro, 2002. v. 1. 134 Fig. 8. Capa da tradução de Em busca do tempo perdido. Ediouro, 2002. v. 3. 4.2 A ESTRATÉGIA DE CONSERVAÇÃO DA EDITORA GLOBO: A TRADUÇÃO “DEFINITIVA” Observamos as estratégias de desmerecimento dos pretendentes. Agora, observaremos estratégias de conservação da posição dominante, ou seja, daqueles consagrados no interior do campo. Em 2006, quatro anos depois do lançamento pela 135 Ediouro da edição mais recente da tradução de Fernando Py, a Editora Globo relançou a tradução reconhecida de Quintana. Como estratégia de conservação, imprimiu como destaque nas capas a expressão “Proust Definitivo”, para determinar de maneira cabal ser essa a tradução irrevogável da obra de Proust. Nesse campo de produção, a posição dominante aparece na assinatura e na forma como se classifica a obra de maior valor. Nesse caso, a Editora Globo, detentora da tradução consagrada de Em busca do tempo perdido, se opõe aos pretendentes por meio daquilo que Bourdieu denomina estratégias de conservação, que têm por objetivo a manutenção do capital simbólico progressivamente acumulado ao longo do tempo. É interessante notar que, de todas as reimpressões e reedições lançadas pela Editora Globo * da obra traduzida de Proust, somente na edição de 2006 (Fig. 9) passou a figurar a expressão “Proust Definitivo”. Tal fato demonstra que a Editora Globo acionou uma estratégia de conservação para reafirmar sua posição consagrada, a partir do momento em que a tradução de Py foi lançada para desafiar a posição estável e definitiva de quem domina o campo de produção. * A primeira edição foi lançada em 1948 e teve inúmeras reimpressões. Houve a segunda edição, revista, em 1988, com 15 reimpressões. A edição “definitiva” foi lançada, acrescida de prefácio, resumo, notas e posfácio, em 2006, com uma nova reimpressão em 2008. 136 Fig. 9. Capa da tradução de Em busca do tempo perdido. Globo, 2006. v. 1. 137 Fig. 10. Capa da tradução de Em busca do tempo perdido. Globo, 2006. v. 2. 138 Fig. 11. Capa da tradução de Em busca do tempo perdido. Globo, 2006. v. 3. Observaremos, a seguir, enunciados que evidenciam essa luta entre dominantes e pretendentes pelo domínio do campo de produção literária. Os enunciados, selecionados de jornais online dedicados à literatura e de sites de editoras, demonstram como a tradução assinada por Quintana, que é intitulada “definitiva”, lançada em 2006 pela Editora Globo, se constitui em um modelo para quaisquer outras que porventura venham a se apresentar: A Editora Globo está relançando a obra de Marcel Proust Em busca do tempo perdido, cuja tradução é feita por um time respeitoso, no qual figuram nomes como os de Mário Quintana, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira. Esta nova edição, além de demonstrar a importância perpétua das obras de arte que são significativas, demonstra o interesse dos brasileiros por Proust e vem brindar os seus leitores com uma revisão (necessária, haja vista a idade da tradução) de Olgária Matos e posfácio da respeitada 139 filósofa Jeanne-Marie Gagnebin, estudiosa de Benjamin, que se refere ao francês em vários momentos de sua obra. Traz ainda a nova edição um material com prefácio, cronologia, notas e resumo do historiador, articulista e professor da USP Guilherme Ignácio da Silva.101 (grifos nossos) E é o tema por excelência de Em busca do tempo perdido, seu ciclo de romances em sete volumes, que os brasileiros têm a sorte de poder ler na tradução de Mário Quintana, Carlos Drummond de Andrade e outros. No final de 2006, a Editora Globo começou a relançá-los, com maior aparato editorial (notas, resumos etc.) e projeto gráfico de Raul Loureiro, muito feliz na escolha das cores de capa e da elegante fonte Walbaum.102 (grifos nossos) Esta reedição pela Editora Globo de Em busca do tempo perdido, obra capital de Marcel Proust, um dos maiores escritores do século XX, é de grande importância para seus velhos e novos amantes. À sombra das raparigas em flor saiu em 1951, magistralmente traduzido por Quintana. Esta reedição ultrapassa as anteriores porque foi cuidadosamente preparada. À sombra das raparigas em flor conta com revisão de Maria Lúcia Machado, traz prefácio, notas e resumo de Guilherme Ignácio da Silva e posfácio de Rolf Renner, professor da Universidade de Freiburg (Alemanha).103 (grifos nossos) No terceiro enunciado, há a curiosa afirmação de que a edição “ultrapassa” as anteriores – não somente a tradução posterior de Fernando Py, como as edições lançadas pela própria editora. Podemos verificar o acionamento da estratégia de conservação do capital simbólico, na medida em que essa edição foi “cuidadosamente preparada” para reafirmar sua posição consagrada, ao apresentar diversificado material referente à própria tradução – prefácio, cronologia, posfácio, entre outros. Entretanto, o texto “magistralmente traduzido por Quintana” se mantém, tal como nas edições anteriores. A Editora Globo começou a relançar uma das maiores obras de ficção do século XX, Em busca do tempo perdido de Marcel Proust. Na capa dessa edição está estampada a audaciosa frase “Proust Definitivo”. Audaciosa principalmente porque não se trata de uma nova tradução, mas sim das traduções já clássicas de autores como Mário Quintana, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. Audaciosa também porque há pouco tempo a Ediouro lançou uma caixa belíssima com todos os sete tomos, divididos em três volumes, com uma excelente tradução de Fernando Py. Mas, apesar disso tudo, o termo “definitivo” realmente se justifica.104 (grifos nossos) 101 JORNAL OPÇÃO. Periódico sobre literatura. 21-27 jan. 2007. Disponível em: <http://www.jornalopcao.com.br/posts/opcao-cultural>. Acesso em: 10 maio 2010. 102 EDITORA PERSPECTIVA. Disponível em: <http://www.digestivocultural.com/ensaios/ensaio.asp?codigo=192.>. Acesso em: 20 out. 2011. 103 EDITORA GLOBO. Disponível em: <http://globolivros.globo.com/busca_detalhesprodutos.asp?pgTipo=COLECOES&idProduto>. Acesso em: 10 maio 2010. 104 ODISSÉIA 2005. Disponível em: <http://odisseia2005.blogspot.com/2006/12/proust-para-comearbem-o-ano.html>. Acesso em: 17 maio 2010. 140 Podemos observar no enunciado anterior, de um blog dedicado à literatura, evidências da luta entre a tradução daquele que domina o campo e a tradução proposta pelo pretendente à dominação. Essa nova tradução é vista como “audaciosa”, visto que se confronta com uma “excelente tradução de Fernando Py”, mesmo tendo relançado as “traduções clássicas de autores como Mário Quintana, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade”. Tais qualificações são atribuídas às duas traduções, sem que possamos observar uma análise objetiva dos termos empregados nos textos traduzidos. No enunciado a seguir um leitor expõe sua dúvida em relação ao que seria a edição “definitiva”: Comprei o primeiro volume de “Em Busca do Tempo Perdido” de Marcel Proust, tradução de Mário Quintana, a edição definitiva. Mas agora “tá” difícil achar o segundo volume na edição definitiva, há alguma diferença relevante entre a definitiva e a não definitiva?105 (grifos nossos) É interessante notar como o leitor que adquiriu o primeiro volume da edição “definitiva”, na tentativa de adquirir o próximo volume dessa obra traduzida, enuncia sua dificuldade para entender objetivamente o que distingue uma tradução definitiva de uma tradução não definitiva, uma vez que a qualificação não é intrínseca à obra, ou seja, não está localizada nos elementos textuais constituintes da tradução, mas em uma crença. 105 YAHOO. Lista de discussão sobre diversos assuntos. Disponível em: <http://br.answers.yahoo.com/question/index?qid=20101008164716AAtR7Y>. Acesso em: 20 ago. 2010. 141 4.3 A LUTA PERMANENTE POR LEGITIMIDADE NO CAMPO: ANUNCIADA NOVA TRADUÇÃO DE PROUST PARA 2012 A Companhia das Letras anunciou, para este ano 2012, o lançamento de uma nova tradução de Em busca do tempo perdido, por meio da marca criada em parceria com a editora britânica Penguin, dedicada aos clássicos – a marca Penguin-Companhia. A obra ganhará edição com a extensão de sete volumes. O primeiro volume deverá ser lançado ainda no segundo semestre de 2012. É interessante notar que há um selo diferenciado da editora dedicado aos clássicos, nesse caso, o Penguin-Companhia, fruto da associação da Companhia das Letras com a Editora Penguin: O selo Penguin-Companhia das Letras editará em português obras do riquíssimo catálogo da Penguin [...]. Grandes títulos do atual catálogo da Companhia e algumas obras-primas da língua portuguesa serão publicados nas duas séries. O cuidado com os livros começa na escolha do tradutor, e passa pela seleção do rico material de apoio que acompanha cada edição: são cronologias, prefácios escritos por especialistas, notas que contextualizam e enriquecem as obras.106 (grifo nossso) Selo criado em parceria com a britânica Penguin e dedicado aos clássicos, o PenguinCompanhia prepara o lançamento de outro gigante da literatura: a série Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, que inspirou a escrita de, entre outros, Gilberto Freyre. A obra ganhará edição em sete volumes. O primeiro deve sair no 2o semestre de 2012.107 Nesses enunciados, a notícia do lançamento dessa nova tradução foi divulgada tanto em jornais, como a Folha de S. Paulo, quanto em revistas, como a Veja. Nota-se, nessas peças de divulgação, que o nome do tradutor Mario Sergio Conti não é ainda citado, embora no primeiro enunciado se faça uma menção ao “cuidado” relacionado com a “escolha do tradutor”. Em um artigo do blog Conteúdo Livre, denominado “Livro de Proust pode ganhar novo título brasileiro”, o escritor Marco Rodrigo Almeida – colaborador do periódico 106 EDITORA COMPANHIA DAS LETRAS. Disponível em: <http://www.companhiadasletras.com.br/penguin/quemsomos.ph>. Acesso em: 15 out. 2010. 107 VEJA. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/blog/meus-livros/tag/em-busca-do-tempo-perdido/>. Acesso em: 12 maio 2010. 142 Folha de S. Paulo – apresenta certos aspectos da futura tradução de Mario Sergio Conti que nos interessam na análise do funcionamento do campo de produção literária: [...] O jornalista Mario Sergio Conti apenas começa sua epopeia. Conti, 56, vai traduzir nos próximos anos os sete volumes que compõem a obra “Em Busca do Tempo Perdido”, de Marcel Proust. [...] com notas explicativas e textos introdutórios. O primeiro volume deve sair no segundo semestre do ano que vem. A ideia é fazer uma versão barata, com introdução didática, atualizada para o público do século 21. Conti vem traduzindo aos poucos, nas folgas do horário de trabalho como editor da revista “Piauí”. Ele descobriu Proust aos 18 anos e desde então vem lendo o autor também em francês e inglês. Além da intimidade com a obra, Conti tem a seu favor centenas de livros escritos sobre o autor francês nas últimas décadas, que permitem um trabalho mais acurado.108 Assim, nos enunciados acima, podemos observar diferentes afirmações, nas quais já se antecipa o valor da tradução a partir do seu produtor: o escritor e editor Mario Sergio Conti. Além de o trabalho ser qualificado como uma “epopeia” – um grande acontecimento, por isso dotado de “notas explicativas e textos introdutórios” –, o tradutor é apresentado, a exemplo de Mário Quintana e de Fernando Py, como um profundo conhecedor da obra de Proust e da língua francesa. Sobre a tradução de Quintana, afirma Conti: A primeira tradução brasileira do livro, feita por Mário Quintana na década de 40, foi um ato heroico. Quase não havia bibliografia sobre Proust na época. Os 60 e poucos anos que separam as traduções dão margem a novas abordagens – inclusive no título da obra.109 108 CONTEÚDO LIVRE. Disponível em: <http://sergyovitro.blogspot.com/2011/04/peitando-osclassicos-marco-rodrigo.html>. Acesso em: 10 maio 2010. 109 Idem. 143 Podemos verificar, nos enunciados acima que a citação da tradução de Quintana evidencia uma forma de Conti colocar “louros em si mesmo”, na medida em que elogia o ato “heroico” de Quintana por ter traduzido Proust na década de 1940, época em que havia pouca bibliografia crítica sobre Proust. Embora sua tradução nem tenha ainda sido lançada, Conti traz o nome de Quintana à cena e demonstra seu conhecimento do funcionamento do campo de produção simbólica, pois, ao reconhecer quem é consagrado, se consagra pela implícita comparação ao tradutor Quintana. É interessante notar que Conti em nenhum momento cita o tradutor Fernando Py e a tradução deste da obra de Proust, pois ele entende que a luta por legitimidade se dá sobretudo com Quintana, que detém a sólida consagração no campo de produção, com quem os outros dois tradutores se interessam em medir forças. O tradutor Mario Sergio Conti, a exemplo de Fernando Py, empreende previamente a luta por legitimidade de sua tradução por meio da utilização de algumas estratégias, tal como a do desmerecimento da tradução consagrada de Quintana. Inicialmente, similar a Py, Conti propõe uma versão mais atualizada da obra e aponta a tradução de Quintana como “antiga” e “ultrapassada”: “Os 60 e poucos anos que separam as traduções dão margem a novas abordagens – inclusive no título da obra.”110 Nos enunciados a seguir, observamos que Conti se utiliza da estratégia de desmerecimento em relação à tradução de Quintana, ao indicar o que seria para ele a “solução mais apropriada”, “a que mais se aproxima” ou “a mais correta” para a tradução da obra de Proust. Nessa estratégia, a pretensão de Conti é, na verdade, destituir aspectos da tradução de Quintana; para isso, ele utiliza o argumento de que o original deve ser “respeitado”, ou seja, propõe uma tradução mais “fiel” ao original de Proust. A tradução de Fernando Py não é citada por Conti. 110 CONTEÚDO LIVRE. Disponível em: <http://sergyovitro.blogspot.com/2011/04/peitando-osclassicos-marco-rodrigo.html>. Acesso em: 10 maio 2010. 144 Ele defende que “Em Busca do Tempo Perdido” não é a solução mais apropriada para o original “À la Recherche du Temps Perdu”. “A palavra ‘recherche’ pode ser tanto ‘busca’ como ‘procura’. Mas acho que ‘à la recherche’ se aproxima mais de ‘à procura’. ‘Busca’, no sentido de ‘descoberta’, está mais no verbo ‘quêter’. Talvez eu faça essa mudança, ainda não decidi.” Uma frase do início do primeiro livro da série, “No Caminho de Swann”, também recebe nova interpretação. O tradutor conta que “Longtemps, je me suis couché de bonne heure” foi traduzido por Quintana como “Durante muito tempo, costumava deitar-me cedo”. O mais correto, explica, seria “Durante muito tempo, deitei-me cedo”. “A escolha adoça e atenua a aspereza da frase original de Proust. Por isso novas traduções são sempre úteis: para atualizar a visão que temos sobre as obras.” Observamos como é vigorosa a luta por legitimidade no campo de produção simbólica. No campo de produção literária, observamos relações objetivas – estratégias, por meio de objetos, enunciados, citações – entre indivíduos ou instituições que competem por um mesmo objeto. Classificamos a tradução de Mário Quintana na posição dos dominantes, ou seja, aqueles que detêm em maior grau o poder de constituir objetos raros pelo procedimento da griffe; aqueles que possuem maior capital simbólico. Assim, conforme afirma Bourdieu (1984) sobre o processo de consagração, o que faz o valor é a conivência efetuada entre os agentes do sistema de produção de bens consagrados. Os circuitos de consagração são mais poderosos quando são mais longos, mais complexos e mais ocultos aos olhos de quem deles participa e se beneficia. Dessa forma, um ciclo de consagração eficaz é um ciclo no qual A consagra B, que consagra C, que consagra D, que consagra A. Quanto mais invisível é o ciclo de consagração, quanto menos sua estrutura é reconhecida, maior é o efeito da crença.111 Uma tradução consagrada, a da Editora Globo, uma posterior, de Fernando Py pela Ediouro, uma reação do dominante, “Proust Definitivo”, e uma segunda tradução pretendente a ser lançada. Assim como Fernando Py, Mario Sergio Conti contesta o “monopólio” da tradução de Quintana. Entretanto, como afirma Bourdieu, essa revolta tem limites. O limite é o respeito constituído dentro do campo. Por isso, não se pode 111 BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983. p. 154-161. 145 desqualificar demais a tradução anterior, uma vez que, se “qualquer um” for capaz de traduzir Proust, o campo é que é desprestigiado. “Esta é a lei geral dos campos”, afirma Bourdieu, 112 os detentores da posição dominante, os que têm maior capital específico, se opõem por uma série de meios aos recém-chegados, os pretendentes, que nesse caso são representados pelas traduções de Proust feitas por Fernando Py e Mario Sergio Conti. Os antigos possuem estratégias de conservação que têm por objetivo obter lucro do capital progressivamente acumulado, como a Editora Globo, ao lançar “Proust Definitivo”. Os recém-chegados possuem estratégias de subversão orientadas para uma acumulação de capital específica, que supõe uma inversão mais ou menos radical do quadro de valores, uma redefinição mais ou menos revolucionária dos princípios da produção e da apreciação dos produtos e, ao mesmo tempo, uma desvalorização do capital detido pelos dominantes. Ora, no espaço social da tradução, assim como acontece no campo artístico, a cada surgimento de uma nova tradução em lugar de outra já consagrada, um embate se trava entre os estreantes, em busca de reconhecimento, e os consagrados, que buscam manter as prerrogativas que contribuíram para sua aceitação e conservação contra as investidas dos recém-chegados. Após a inserção, torna-se necessário lutar pela permanência e pela distinção, superando as “provas” definidas pelos anteriormente legitimados na busca do reconhecimento das produções. No campo de produção, é possível também observar, além das estratégias de desmerecimento próprias da luta entre os agentes do campo, a estratégia de denegação acionada pelas instâncias de produção do campo – as editoras. Denegação, definida por Bourdieu (2001), como uma estratégia utilizada pelos agentes do campo para alcançar os lucros financeiros, embora ajam como se tal preocupação não existisse, uma vez que a lógica comercial é considerada brutal com a preocupação apenas centrada nos índices 112 Ibid. 146 de venda. Os editores, nesse caso, demonstram “desinteresse” por dinheiro, visto que arte e dinheiro não devem se misturar. O objetivo dos agentes, nessa estratégia, é recusar aquilo que é considerado comercial, para assim amealhar o capital simbólico, que posteriormente se verterá de forma duradoura nos lucros econômicos, a partir do prestígio simbólico adquirido pela rejeição dos lucros “fáceis” e “imediatos”. Uma das evidências da denegação aparece no modo pelo qual as novas traduções de Em busca do tempo perdido devem ser apresentadas ao público leitor: sua apresentação em um selo catalogado como não comercial, mas cultural, por exemplo. A outra evidência se verifica no fato em si de uma editora nos dias de hoje se propor produzir uma nova tradução de uma obra clássica tal como Em busca do tempo perdido, de Proust, quando já se observa a existência de uma tradução reconhecida como de qualidade no País. 147 5 CONCLUSÕES Nesta pesquisa, analisamos a questão da consagração da tradução de Em busca do tempo perdido, levando em conta a consagração de seu principal tradutor, o escritor Mário Quintana. Observamos que não somente a qualidade da tradução contribui para essa consagração, mas todo um jogo de forças presente no campo de produção literário. Para chegarmos a esse entendimento, no primeiro capítulo, traçamos um histórico da tradução literária no Brasil, no qual destacamos a presença e a influência da literatura e da cultura francesas em diferentes períodos. Observamos que os primeiros tradutores foram os jesuítas, e que somente com a chegada da Família Real ao País e com a criação da Impressão Régia passamos a ter a publicação e consumo de romances traduzidos. Nesse período, entretanto, o nome do tradutor permanecia incógnito. Notamos que foi somente na segunda metade do século XIX, graças ao aumento do público leitor, propiciado pela maior oferta de ensino no País, que houve um incremento no número de traduções. Essas traduções foram disseminadas no meio social pelos jornais, graças aos romances-folhetins. Nesse período, tivemos os primeiros autores que se dedicaram à atividade da tradução, como Machado de Assis, por exemplo. Quanto à maneira de traduzir, observamos que os moldes das Belles Infidèles eram os mais utilizados. Vimos, também, que a tradução no século XX passou por profundas transformações no Brasil, não somente por conta da Primeira Guerra Mundial, que provocou a interrupção da importação de livros da Europa, propiciando a tradução de romances, mas também pela implantação no País de um projeto educacional por Getúlio Vargas, nos anos 1930, possibilitando a ampliação do público leitor. Nesse período, a Editora Globo teve importante participação no mercado editorial brasileiro, com a tradução de inúmeras obras em diversas coleções. Destacamos o papel de 148 Érico Veríssimo como editor, bem como a contratação de autores-tradutores para a elaboração dessas traduções, como Mário Quintana, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, entre outros. Observamos, também, que, nesse período, foram traduzidas importantes obras, como A comédia humana, de Honoré de Balzac, e Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, e notamos um crescimento das críticas em relação às traduções, graças, sobretudo, ao prestígio de quem as traduzia. No segundo capítulo, observamos que a concepção do que seria uma boa tradução varia nas diferentes teorias. Na visão tradicional, a fidelidade ao texto original é condição primordial para uma “boa tradução”. Nas teorias de Antoine Berman e de Lawrence Venuti, a tradução etnocêntrica ou a não etnocêntrica nos conduziram à discussão sobre a posição do tradutor diante da tradução e nas teorias tradutórias, e que, para esses autores, a tradução não etnocêntrica, aquela em que o tradutor não é invisível, seria a melhor tradução. Constatamos que a invisibilidade ou a visibilidade do tradutor trata-se de um posicionamento no campo, que se apresenta de modo prático, mas que, na verdade, constitui uma prática que demonstra uma posição mais ou menos consagrada dentro do campo, ou seja, são formas sociais de construção da prática da tradução. Notamos que em algumas teorias a relação entre a tradução e a cultura é tomada como base, e, nessa perspectiva, na teoria dos polissistemas, constatamos que as relações entre os agentes são levadas em conta, entretanto sem demonstrar o jogo de forças que se trava no espaço social da tradução. Assim, com o objetivo de esclarecer as relações sociais produzidas entre os diversos atores posicionados no espaço da produção literária, ou seja, editores, tradutores, autores-tradutores, críticos e recepção, empregamos o autor francês Pierre Bourdieu, a fim de, com a teoria dos campos simbólicos, podermos compreender como determinada tradução, no nosso caso, Em busca do tempo perdido, alcança um valor único. 149 No terceiro capítulo, pudemos observar esse funcionamento do campo simbólico por meio de diversas evidências que demonstraram como a obra de Proust pôde ser apreciada com a tradução de Mário Quintana pela Editora Globo, e como as instâncias de produção simbólica do campo contribuíram para sua consagração. Constatamos, assim, que as instâncias do campo de produção literária cooperam para consagrar traduções que passam a ser consideradas como boas traduções, ou, como no caso aqui abordado, tradução imortal ou definitiva. Para isso, além de discorrermos sobre a teoria dos campos simbólicos de Pierre Bourdieu, na qual apresentamos as instâncias de produção, de legitimação e de recepção de uma obra dentro de um campo de produção de bens simbólicos, também observamos a circularidade de valores dentro do campo de produção literária que acabam por produzir a crença em um objeto “raro” e “insubstituível”. Em relação a nosso objeto de estudo, a tradução de Proust elaborada pela Editora Globo em 1948, notamos que a instância de produção do campo se estruturou sobre a Editora Globo, que dispunha dos autores-tradutores – escritores em vias de consagração –, tais como Mário Quintana, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira; do revisor Paulo Rónai; e do editor e escritor consagrado Érico Veríssimo. Constatamos que o papel das instâncias de consagração na época dessa tradução ficou reservado à crítica em jornais acerca dessa tradução, que fez com que a obra fosse amplamente aceita pelo público letrado pertencente à instância de recepção. Assim, observamos que tradução alcançou valor a partir da consagração no campo de produção literária, e tomamos como base as evidências da consagração pelo ponto de vista da instância de produção e de legitimação. Entrevistas com Mário Quintana, críticas e resenhas em suplementos culturais que teciam considerações sobre essa tradução, opiniões e considerações em blogs dedicados à atividade literária, bem como capas de 150 livros nas quais é exposto o nome de Quintana, foram utilizadas a fim de demonstrar essa consagração. Como também se constituem evidências da consagração da tradução de Quintana, as traduções mais recentes da obra de Proust foram apresentadas no Capítulo 4. Vimos que essas novas traduções somente reforçam a consagração de Quintana, uma vez que, em busca de sua própria legitimidade, se demarcam em relação a uma tradução “definitiva”. Verificamos, também, como é vigoroso o funcionamento do campo em sua busca de legitimação, ao observarmos como duas novas traduções de Em busca do tempo perdido, a de Fernando Py, lançada em 1993 pela Ediouro, e a de Mario Sergio Conti, que deverá ter seu primeiro volume lançado em 2012 pela Companhia das Letras, pretendem demonstrar a si próprias como legítimas diante daquela que se diz a “definitiva”, como se intitula a edição da Editora Globo, relançada em 2006. Constatamos, assim, que, no espaço social da tradução, a cada surgimento de uma nova tradução em lugar de outra já consagrada, um embate se trava entre os estreantes, em busca de reconhecimento, e os consagrados, que buscam manter as prerrogativas que contribuíram para sua aceitação e conservação contra as investidas dos recém-chegados. Notamos que, após a inserção, torna-se necessário lutar pela permanência e pela distinção, superando as “provas” definidas pelos anteriormente legitimados na busca do reconhecimento das produções. Ao examinarmos o campo de produção, pudemos observar Uma tradução consagrada, a da Editora Globo, uma posterior, de Fernando Py pela Ediouro, uma reação do dominante, “Proust Definitivo”, e uma segunda tradução pretendente a ser lançada. Dessa maneira, foi possível observar, além das estratégias de desmerecimento próprias da luta entre os agentes do campo, a estratégia de denegação acionada pelas instâncias de produção do campo, ao traduzirem a obra de Proust 151 com o intuito de colherem capital simbólico que mais tarde será convertido em lucro financeiro. 152 6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Historiografia da Tradução ALVES, Regysane Botelho Cutrim Alves. A crítica de traduções na teoria e na prática: o caso da “Versão Brasileira”. Dissertação de Mestrado. 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No caminho de Swann - Em busca do tempo perdido. Tradução de Mário Quintana. Porto Alegre: Globo, 1948, v. 1. ________. A sombra das raparigas em flor - Em busca do tempo perdido. Tradução de Mário Quintana. Porto Alegre: Globo, 1948, v.2. ____. O caminho de Guermantes - Em busca do tempo perdido. Tradução de Mário Quintana. Porto Alegre: Globo, 1953, v. 3. ____. Sodoma e Gomorra - Em busca do tempo perdido, Tradução de Mário Quintana. Porto Alegre: Globo, 1954, v. 4. ____. A Prisioneira - Em busca do tempo perdido, Tradução de Lourdes Souza de Alencar e Manuel Bandeira. PortoAlegre: Globo, 1954, v. 5 ____. A Fugitiva - Em busca do tempo perdido, Tradução de Carlos Drummond de Andrade. Porto Alegre: Globo, 1956, v. 6. PROUST, Marcel. O tempo redescoberto - Em busca do tempo perdido, Tradução de Lúcia Miguel Pereira. Porto Alegre: Globo, 1956. ____. Em busca do tempo perdido. Trad. Fernando Py. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. 157 7. ANEXOS ENTREVISTAS DE MARIO QUINTANA: ENTREVISTA 11 “- O senhor diz que gosta de fazer projetos a longo prazo, para “desafiar o diabo”. Que último desafio o senhor lançou? QUINTANA: - O último desafio foi uma viagem – gorada – a Paris. O próximo, já em execução, é aprender a falar inglês. Eu era apenas tradutor de francês da Editora Globo. Aprendi, sozinho, a língua inglesa numa gramática, para traduzir. Mas apenas lia o que estava escrito, sem saber a pronúncia. Agora, estou lidando com um curso de inglês da Inglaterra por meio de fitas cassete. O primeiro tradutor de Virginia Woolf no Brasil fui eu. A tradução foi bem recebida pela crítica.” PATRÍCIA BINS – Você sobreviveu a vida inteira de escrever: em jornais, revistas, traduzindo excelentes livros e, claro, como poeta. Se viesse ao mundo de novo, escolheria o mesmo modo de viver (e de sobreviver)? QUINTANA – O mesmíssimo modo, sem tirar nem pôr. (entrevista disponível no site: http://www.estado.rs.gov.br/marioquintana/entrevistas/Entrevista%20com%20Patricia% 1 :. ENTREVISTA a HERMES RODRIGUES NERY julho 1988 disponível no site: http://medei.sites.uol.com.br/penazul/geral/entrevis/quin.htm. 1 Site Pen Azul de Literatura e Arte. Entrevista a Hermes Rodrigues Nery. Disponível em: <http://medei.sites.uol.com.br/penazul/geral/entrevis/quin.htm>. Acesso em: 17 ago. 2010. 1 Revista Terra. Entrevista com Mario Quintana. Disponível em< http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI1090046-EI6595,00.html>. Acesso em 09 maio 2010. 158 20Bins.pdf. “- O senhor traduziu Proust, Voltaire. Como foi seu contato inicial com a língua francesa? QUINTANA: - Minha mãe lecionava francês. Aprendi com meus pais, naquele tempo todo mundo falava francês, fazia parte da educação das moças: estudar piano, estudar pintura e falar francês. Acho uma coisa muito engraçada. Eu me lembro que, quando houve uma revolução lá em Alegrete, foi feita quase toda em francês — as senhoras iam visitar as madames e se comunicavam em francês para os criados não saberem o que é que se estava tramando.” (ENTREVISTA A HERMES RODRIGUES NERY julho 1988 disponível no site: http://medei.sites.uol.com.br/penazul/geral/entrevis/quin.htm) QUINTANA: - Meu pai foi conspirador da revolução de 23. Então, para os criados não entenderem as conspirações e também as coisas íntimas, falava-se em francês.” (ENTREVISTA in AUTORES GAÚCHOS. MARIO QUINTANA, Ed. Da ULBRA, 1996) “ Dentre os poetas franceses quais os que mais admira? QUINTANA: - A gente sempre admira o que mais se parece com a gente, não é? O que mais se parece comigo ou com quem mais eu me pareço foi Guilhaume Appollinaire, e outro que a gente não pode deixar de admirar é o mestre dos simbolistas, o Verlaine. Os outros são discípulos, seguidores, continuadores.” (ENTREVISTA a HERMES RODRIGUES NERY julho 1988 disponível no site: http://medei.sites.uol.com.br/penazul/geral/entrevis/quin.htm) “- Francês e Latim saíram do currículo das escolas. Isso empobrece culturalmente o 159 aluno de hoje? QUINTANA: - O latim nunca fez parte do meu currículo -eu fui educado no Colégio Militar de Porto Alegre, uma escola fundada pelos militares que eram positivistas e não queriam saber de nada que cheirasse a padre... Mas retirar o francês foi a maior injustiça, o francês era o veículo literário do mundo naquele tempo, e até há pouco tempo. E nós devemos muito ao conde de Belchior de Vogué, que traduziu os russos. Se os russos não tivessem sido traduzidos para o francês nós desconheceríamos Dostoiévski até hoje. O que é desconhecer uma terça parte da alma humana. Porque a alma humana está dividida em três partes, uma em Shakespeare, outra na Bíblia, outra em Dostoiévski. Pelo menos para mim.” ENTREVISTA (A HERMES RODRIGUES NERY julho 1988 disponível no site: http://medei.sites.uol.com.br/penazul/geral/entrevis/quin.htm) - Além de poeta, o senhor é tradutor de obras clássicas, como vários volumes de Marcel Proust. Que semelhança pode existir entre o trabalho de tradução e o ofício da criação poética? QUINTANA: - Há sempre uma diferença entre tradução literal e tradução literária. Creio que a tradução de um autor é, nada mais, nada menos, a estréia desse autor na literatura da língua para a qual ele foi traduzido. Daí, a responsabilidade enorme de traduzir um Proust, um Voltaire, gente assim. -Como tradutor, como vê esta profissão? 160 QUINTANA: - Eu acho uma coisa de grande responsabilidade. Porque eu creio que a tradução de um poeta para a nossa língua é nada mais, nada menos, que a estréia deste poeta na literatura brasileira. De maneira que é uma enorme responsabilidade. Olha que eu traduzi Proust o que não é brinquedo. E traduzi Voltaire, traduzi Merimée, traduzi esta gente assim. - E como foi traduzir Proust? QUINTANA: - Foi uma coisa horrível. Mas eu gostei, exatamente por causa da dificuldade. A dificuldade é uma coisa que pode cansar, mas é o mesmo que a ginástica, faz bem. ENTREVISTA 2 – (publicada em 1989 na Crisis – disponível em http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI1090046-EI6595,00.html) - Quantos livros você traduziu? QUINTANA - Eu traduzi para a Livraria do Globo, cento e trinta e oito livros. No tempo em que eu era criança, o francês era moda e a minha mãe era professora de francês. Então, quando a gente, por exemplo, não queria que os empregados soubessem o que a gente estava dizendo, aí se falava em francês. Grande parte da revolução de 23, por exemplo, foi preparada em francês, porque se reuniam as senhoras dos oficiais para tomarem chá e comunicavam as coisas todas em francês. Imagine que na minha terra, em Alegrete, se fez revolução em francês. Que barbaridade! Naquele tempo as 161 comunicações com a Europa eram bem mais fáceis que hoje. A França era a capital literária do mundo. Eu, quando estava na farmácia do velho, tinha conta numa livraria francesa. Eles mandavam os boletins e eu encomendava. Tudo vinha direto de Paris para Alegrete. ENTREVISTA 3- concedida à Edla van Steen e publicada no livro: Viver & escrever. V. 1. Porto Alegre: L&PM, 2008. - Entre outros autores você traduziu Proust e Virginia Woolf. Foi amor pelas obras ou alguma necessidade financeira que o teriam levado à tradução? QUINTANA: - Traduzi Proust por amor à dificuldade da tradução. Quando soube que Proust estava incluso no programa editorial da Globo, pedi para traduzi-lo, por medo que caísse em outras mãos. Retirei-me do quadro de funcionários da Globo quando, por ocasião de um aumento de salário, eu não fui contemplado, sob a alegação de que me demorava muito na tradução de Proust. Traduzi da primeira até a quarta parte (Sodoma e Gomorra). Por felicidade, o restante foi cair em excelentes mãos (Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade). E Virginia Woolf? Pois foi isso mesmo: eu não tive medo de Virginia Woolf! Mrs. Dalloway é um denso, belo, misterioso poema. Brito Broca julgou a minha tradução à altura do autor. Fiquei contente de ter sido o outro livro de Virgínia (Orlando) traduzido por um poeta como Cecília Meireles. Em tempo: quem me introduziu na vida literária foi Cecília Meireles. Lembro que ela publicou a Canção do Meio do Mundo no suplemento do Diário de Noticias, com uma bela ilustração de Correia Dias. Outro que sempre fez muito por mim foi Augusto Meyer, o nosso último humanista. O que mais me admira em Augusto Meyer é a 162 admiração que eu tenho por ele. Embora apenas quatro anos mais velho do que eu, sempre o considerei um mestre. A saudação que ele me fez de improviso na Academia Brasileira de Letras em 1966, o Aurélio Buarque de Holanda me confessou que era uma obra-prima, com o perdão da palavra. Não sei se foi gravada. - No seu entender, o que é uma boa tradução? QUINTANA: - Aquela que segue o estilo do autor, e não o do tradutor. Os períodos de quadra e meia de Proust (sim, o período dele dava volta na quadra) não poderiam ser divididos em pedacinhos, por amor da clareza ou coisa que o valha, como acontece às vezes na tradução castelhana. Mas a maior alegria que tive como tradutor foi quando a minha tradução dos Romans, Voltaire, um calhamaço enorme. Com jóias como Cândido e A princesa da Babilônia, foi remetida à apreciação de Paulo Rónai, especializado em literatura clássica francesa. Ele devolveu os meus originais com a seguinte nota: “É preciso ortografar”. A tradução de Voltaire foi também a meu pedido. Você há de espantar-se que eu, assombrado com Camões, envolto de Virginia Woolf, tenha me comprazido na luz mediterrânea de Voltaire. A culpa foi também de meu pai, que adorava La Fontaine e me fez decorar algumas de suas fábulas antes que eu as pudesse ler. Assim as névoas e perigos do Cabo Tormentório eram varados pelo riso claro e simples do bonhomme fabulista. Não admira, pois, que, mais tarde, eu adorasse Racine, a par de Shakespeare. Cheguei a começar por conta e risco uma tradução da Ifigênia, de Racine, e do Sonho de uma noite de verão, as quais infelizmente se perderam. Ou felizmente, nunca se sabe. Bem, eu estava falando nas minhas atuais leituras. Há uma época de ler e uma época de reler, como diria o Eclesiastes. Agora, para descanso, estou na época de desler. E, como continuo insone 163 (uma vez escrevi que não tenho medo do sono eterno, mas da insônia eterna), agora leio principalmente para adormecer. É uma leitura de fora para dentro, como quem olha distraidamente a televisão. As outras leituras, as leituras de dentro para fora, excitam o cérebro e não são recomendáveis no meu caso. Leio ficção científica, uma espécie de volta a O tico-tico. A falar verdade, o que de melhor e pior se publica atualmente nos Estados Unidos são as novelas de ficção científica. Entre elas, descobri as de um grande poeta, Ray Bradbury. É dessas obras que a gente gostaria de ter escrito. - Você gosta da literatura norte-americana? QUINTANA: - Gosto de Scott Fitzgerald, o que não é de admirar porque ele pertence à minha geração: o mesmo caldo de cultura, a mesma sensibilidade. Gosto de Edgar Poe, e eu não compreendo como é que ele foi aparecer por lá. Deve ter havido um engano de país ou de planeta. Gosto de Gertrude Stein (Três Vidas eu já li outras tantas vezes). - Só? QUINTANA: - Só. Não posso esquecer que minha infância se passou na belle époque, quando até os americanos sabiam falar francês. Tenho uma amiga que foi para a Alemanha apenas sabendo francês. Como eu lhe observasse que era pouco, ela respondeu: "Não vale a pena conhecer alemães que não saibam francês". Aproveito a ocasião para lançar o meu protesto contra essa idéia de tirarem a língua francesa do currículo escolar. O que devemos à França não é a cultura francesa, é a cultura universal. Toda obra, para universalizar-se, teria de passar pelos tradutores franceses. Se não fosse a França. o mundo ocidental teria perdido Dostoiévski. Imagine você o que teríamos de conhecimento da alma humana se não conhecêssemos Dostoiévski. 164 Nada. Ou quase nada. Pois me lembrei agora de Shakespeare. Mas a minha queixa é contra os americanos. Já disse e repito que, se há males que vêm para bem, há bens que vêm para mal. Exemplo: os Estados Unidos ganharam a guerra. Resultado: o povo, em geral, só lê os best-sellers americanos que eles nos impingem. São tão ruins que chego a acreditar que sejam apenas literatura de exportação. Enquanto isto, os livros brasileiros bons não são reeditados. Nem são reeditadas as traduções de bons livros estrangeiros. Onde está, por exemplo, a minha tradução de Poeira, de Rosamond Lehman, o meu Sparkenbrook, de Charles Morgan? ENTREVISTA 4 in AUTORES GAÚCHOS. MARIO QUINTANA, Ed. Da ULBRA, 1996 QUINTANA: - Meu pai foi conspirador da revolução de 23. Então, para os criados não entenderem as conspirações e também as coisas íntimas, falava-se em francês.” Fala de sua entrada para a Ed. Globo, como tradutor, aos 28 anos: QUINTANA: - Como há males que vêm para bem, os Estados Unidos ganharam a Guerra, e eu com ela. Todo mundo começou a estudar Inglês-como ainda hoje, mas o Érico (Veríssimo) lembrou que eu era o único conhecido que falava francês e me chamou para a Editora Globo. Lembra o quanto foi difícil traduzir Proust e sua obra Em busca do tempo perdido: QUINTANA: - Uma barbaridade traduzir aqueles períodos que dão volta na esquina e não se sabe onde vão parar. 165 ENTREVISTA 5: (Casa de Cultura Mário Quintana. http://www.estado.rs.gov.br/marioquintana/ averi, Cláudia Borges de ; Castelli, Eleonora. Em busca do tradutor: Proust e Mérimée por MárioQuintanaUFSC.http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/viewFil e/6588/6066) Mas, como eu ia dizendo, traduzia porque gostava daqueles livros. E quanto mais difícil o livro, mais eu gostava. Por isso, entre todos os autores que traduzi, o que me deu mais satisfação foi Virgínia Woolf. Mesmo porque o páreo era duro: antes de mim, quem havia traduzido a Virgínia no Brasil era nada menos do que Cecília Meireles. Eu tinha que ser digno da minha amizade e admiração pela Cecília.[...] Antes de tudo, Proust foi para mim um trabalho e um prazer ao mesmo tempo, porque olha que traduzir Proust... Ele tem períodos enormes que dão volta na página e eu devia traduzir preservando a mesma clareza do original. Tanto que comentei com o Érico Veríssimo, que dirigia o setor de traduções da Editora Globo: “Estou gostando tanto de traduzir o Proust que, se eu tivesse dinheiro, eu é que pagava para vocês”. [...] 166 “Quando houve o primeiro aumento geral, fui o único a não ser aumentado. Naturalmente, tomei satisfações. A resposta que me deram foi que eu levava muito tempo na tradução. “Você,afinal, levou quatro meses para traduzir um volume”. Ora, eles não compreendiam que eu tinha que demorar tanto tempo quanto Proust levara para escrever o original, para fazer uma tradução digna. Queriam que eu traduzisse com a mesma velocidade com que traduzia romances sem civilização nenhuma, ditados para uma estenógrafa em uma semana. Por causa disso, abandonei minhas funções de tradutor na Globo e fui trabalhar no Correio do Povo.”