universidade federal do rio de janeiro em busca da tradução

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
EM BUSCA DA TRADUÇÃO CONSAGRADA DE MARIO
QUINTANA
Márcia da Anunciação Barbosa
2012
EM BUSCA DA TRADUÇÃO CONSAGRADA DE MARIO QUINTANA
Márcia da Anunciação Barbosa
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação
em
Letras
Neolatinas
da
Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte
dos requisitos necessários à obtenção do Título de
Doutor em Letras Neolatinas (Estudos Lingüísticos
Neolatinos – Língua Francesa)
Orientadora: Márcia Atálla Pietroluongo
Rio de Janeiro,
Maio de 2012
EM BUSCA DA TRADUÇÃO CONSAGRADA DE MARIO QUINTANA
Márcia da Anunciação Barbosa
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras
Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas
(Estudos Lingüísticos Neolatinos - Língua Francesa). Aprovada por:
________________________________________________________
Professora Doutora Márcia Atálla Pietroluongo - UFRJ, Orientadora
___________________________________________________________
Professora Doutora Maria Paula Frota - PUC - RJ
____________________________________________________________
Professor Doutor Marcelo Jacques de Moraes - UFRJ
____________________________________________________________
Professora Doutora Helena Franco Martins - PUC - RJ
____________________________________________________________
Professora Doutora Maria Cristina Batalha - UERJ
____________________________________________________________
Professora Doutora Branca Falabela Fabrício - UFRJ, Suplente
____________________________________________________________
Professora Doutora Maria Mercedes Riveiro Quintans Sebold - UFRJ, Suplente
À minha querida avó Numinanda Barbosa (in Memoriam) que não mediu
esforços para a realização dos meus sonhos e cujas lições de amor e vida me
guiaram pelos caminhos corretos. Obrigada por ter me mostrado que a
honestidade e o respeito são essenciais à vida e por ter me ensinado a lutar pelos
meus objetivos.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus, meu refúgio e força.
A toda minha família pelo apoio constante. Em especial meus pais Guilherme e
Lucy Bárbara e ao meu filho Jorge Lucas.
Ao meu companheiro Jean-François Gamaury pelo apoio e incentivo constante.
À minha professora e orientadora, Márcia
acompanhamento e revisão do presente estudo.
Atálla
Pietroluongo
pelo
A todos os meus professores do curso de Doutorado: em especial ,Angela Maria
da Silva Corrêa, Anamaria Skinner e Aurora Consuelo Alfaro Lagorio, com quem
muito aprendi.
Aos professores Maria Paula Frota e Marcelo Jacques pelas orientações e
direcionamento dados ao trabalho por ocasião do Exame de Qualificação.
Ao amigo Marcelo Vianna Lacerda de Almeida pelo incentivo e por partilhar
comigo tudo o que aprendeu durante o seu próprio caminho acadêmico.
À amiga Débora de castro Barros pelo incentivo e pelas longas conversas ao
telefone, sempre disponível a me ajudar.
À amiga Angeli de Oliveira Pacheco pela amizade, incentivo e força espiritual.
Aos meus amigos do Colégio Pedro II, em especial, Aline de Paula Alves, Jorge
de Azevedo Moreira, Luciana Santos da Silva e Valéria Aparecida Trambaioli de
Rocha e Lima pelo incentivo.
A todos os funcionários da Faculdade de Letras, pela atenção, pela disposição, e
prontidão com que sempre me atenderam.
Àqueles que direta ou indiretamente contribuíram para que eu chegasse até aqui.
A todos meu carinho e muito obrigada.
FICHA CATALOGRÁFICA
BARBOSA, Márcia da Anunciação
Em Busca da Tradução Consagrada de Mario Quintana.
Rio de Janeiro, 2012.
Tese (Doutorado em Letras Neolatinas)
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras.
Orientador: Profa. Doutora Márcia Atálla Pietroluongo
Introdução. 1. A tradução no Brasil e a língua francesa. 2. A tradução literária no
contexto social – fidelidade, etnocentrismo e invisibilidade do tradutor. 3. A
consagração da tradução de Em busca do tempo perdido. 4. A luta pela
legitimidade no campo – as novas traduções de Em busca do tempo perdido.
Conclusões. Referências Bibliográficas.
“O escritor não precisa inventar, mas traduzir, porque o único livro verdadeiro é
aquele que existe em cada um de nós. O dever e a tarefa de um escritor são os de
um tradutor.” (Marcel Proust)
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................13
1. A TRADUÇÃO NO BRASIL E A LINGUA FRANCESA..............................17
1.1. A TRADUÇAO ESCRITA NO BRASIL DO SÉCULO XVI AO XVIII
................................................................................................................................18
1.2. O CRESCIMENTO DA TRADUÇÃO NO BRASIL NO SÉCULO XIX
COM OS ROMANCES-FOLHETINS .................................................................22
1.3. A TRADUÇÃO NO SÉCULO XX, NO BRASIL .........................................28
1.4
AUTORES-TRADUTORES
NAS
TRADUÇÕES
DA
EDITORA
GLOBO..................................................................................................................33
1.4.1. AS COLEÇÕES DA EDITORA GLOBO...................................................34
1.4.2. A TRADUÇÃO PIONEIRA DE A COMÉDIA HUMANA..........................39
1.5. A EDITORA GLOBO E A TRADUÇÃO DE EM BUSCA DO TEMPO
PERDIDO .............................................................................................................43
1.5.1. MARIO QUINTANA TRADUTOR ...........................................................45
2. A TRADUÇÃO LITERÁRIA NO CONTEXTO SOCIAL - FIDELIDADE,
ETNOCENTRISMO
E
INVISIBILIDADE
DO
TRADUTOR
................................................................................................................................51
2.1. A FIDELIDADE E A VISÃO TRADICIONAL DA TRADUÇÃO
LITERÁRIA ..........................................................................................................55
2.2. O ETNOCENTRISMO E A RELAÇÃO DO TRADUTOR COM A
CULTURA DE CHEGADA E DE PARTIDA......................................................60
2.3. TEORIAS SOBRE A TRADUÇÃO LITERÁRIA – A TEORIA DOS
POLISSISTEMAS.................................................................................................73
2.4. A TRADUÇÃO LITERÁRIA COMO OBJETO SOCIOLÓGICO ...............78
3. A CONSAGRAÇÃO DA TRADUÇÃO DE EM BUSCA DO TEMPO
PERDIDO .............................................................................................................81
3.1. A TRADUÇÃO E A TEORIA DOS CAMPOS SIMBÓLICOS DE PIERRE
BOURDIEU ..........................................................................................................82
3.1.1. O FUNCIONAMENTO DO CAMPO DE PRODUÇÃO LITERÁRIA
................................................................................................................................86
3.2. EVIDÊNCIAS DE FUNCIONAMENTO DO CAMPO – AS INSTÂNCIAS
DE CONSAGRAÇÃO DA TRADUÇÃO DE EM BUSCA DO TEMPO
PERDIDO .............................................................................................................90
3.2.1.
O
FRANCÊS
E
A
ORIGEM
FAMILIAR
DE
QUINTANA
................................................................................................................................98
3.2.2. A POSIÇÃO TRADUTIVA “VISÍVEL” DE MARIO QUINTANA.....102
3.2.3. AFRIMAÇÕES DE AMOR À TRADUÇÃO E DE ABNEGAÇÃO DOS
LUCROS FINANCEIROS ..................................................................................106
3. 2.4. A MÍSTICA DO ACASO NO OFÍCIO DA TRADUÇÃO –HISTÓRIAS
FOLCLÓRICAS
SOBRE
A
TRADUÇÃO
DE
PROUST.
AS
CAPAS.................................................................................................................109
4. A LUTA PELA LEGITIMIDADE NO CAMPO – AS NOVAS TRADUÇÕES
DE EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO ............................................................117
4.1. A TRADUÇÃO DE FERNANDO PY........................................................119
4.2. A ESTRATÉGIA DE CONSERVAÇÃO DA EDITORA GLOBO: A
TRADUÇÃO “DEFINITIVA” ...........................................................................134
4.3.
A
LUTA
PERMANENTE
NO
CAMPO:
ANUNCIADA
NOVA
TRADUÇÃO DE PROUST A SER LANÇADA EM 2012................................141
5. CONCLUSÕES ...............................................................................................147
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................152
7. ANEXOS .........................................................................................................157
RESUMO
BARBOSA, Márcia da Anunciação. Em busca da tradução consagrada
de Mario Quintana. Orientadora: Márcia Atálla Pietroluongo. Rio de
Janeiro: UFRJ, 2011. Tese (Doutorado em Estudos Lingüísticos Neolatinos
– Língua Francesa).
Nesse trabalho, procuramos compreender o que faz uma tradução de
determinada obra ser considerada definitiva. O estudo se deteve na tradução
de importantes obras francesas, em particular, a que constitui nosso objeto
de estudo - Em busca do tempo perdido de Marcel Proust. Traduzida por
Mario Quintana, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Lucia
Miguel Pereira, esta obra foi lançada pela Editora Globo na década de
quarenta, momento em que se consolida a atividade da tradução no Brasil.
Partimos da perspectiva de que a relevância dessa tradução se deveu muito
ao papel daquilo que é denominado de autores-tradutores – escritores que
exerceram a atividade da tradução -, e desse modo analisamos a condição
consagrada de Mario Quintana como tradutor, a partir de seu
reconhecimento como autor literário e, inversamente, o quanto o próprio
Quintana também alcança reconhecimento ao traduzir Proust. No âmbito
dessa análise, empregamos a teoria dos campos simbólicos de Pierre
Bourdieu, uma vez que são as instâncias deste campo de produção que
geram o produto raro e singular, tal como a tradução de uma obra literária.
Palavras chave: Estudos da Tradução; Teoria dos campos simbólicos;
Tradutor Literário.
RESUME
BARBOSA, Márcia da Anunciação. Em busca da tradução consagrada
de Mario Quintana. Orientadora: Márcia Atálla Pietroluongo. Rio de
Janeiro: UFRJ, 2011. Tese (Doutorado em Estudos Lingüísticos Neolatinos
– Língua Francesa).
Dans cette thèse, nous analyserons ce qui fait que la traduction d’une
oeuvre soit considérée importante. Notre étude s’est fondée sur la traduction
d’oeuvres littéraires françaises importantes, notamment celle qui constitue
notre objet d’investigation – À la recherche du temps perdu, de Marcel
Proust. Traduite au Brésil par Mario Quintana, Carlos Drummond de
Andrade, Manuel Bandeira et Lucia Miguel Pereira, cette oeuvre a été
publiée par Editora Globo, dans les années quarante, période durant laquelle
l’activité de traduction se consolidait au Brésil. Nous partirons du principe
que l’importance de cette traduction peut être attribuée au rôle des
écrivains-traducteurs – les écrivains qui ont exercé l’activité de traduction.
Ainsi, analyserons-nous, en particulier, la position consacrée de Mario
Quintana, à partir de son succès comme auteur littéraire et, par ailleurs, sa
consécration à partir de son travail en tant que traducteur de l’oeuvre de
Proust. Dans cette analyse, nous nous fonderons sur la théorie des champs
symboliques de Pierre Bourdieu, étant donné que ce sont les instances de ce
champ de production qui confèrent à la traduction littéraire sa rareté et son
originalité.
Mots-clés : Etudes de la traduction ; Théorie des champs symboliques;
Traducteur Littéraire.
ABSTRACT
BARBOSA, Márcia da Anunciação. Em busca da tradução consagrada
de Mario Quintana . Orientadora: Márcia Atálla Pietroluongo. Rio de
Janeiro: UFRJ, 2011. Tese (Doutorado em Estudos Lingüísticos Neolatinos
– Língua Francesa).
This paper seeks to understand what makes a translation of a given
work be considered a definitive translation. The study focused on the
translation of important French works, in particular, the book: À la
recherche du temps perdu (In search of lost time) by Marcel Proust.
Translated into Portuguese as Em busca do tempo perdido by Mario
Quintana, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira and Lucia
Miguel Pereira, this work was released by Editora Globo during the 1940s,
a time when translation was becoming consolidated in Brazil. We begin
with the assumption that the relevance of this translation was largely due to
the role of what are called author-translators, that is, writers who also
translate. Therefore, we analyzed the established condition of Mario
Quintana as a translator, based on his recognition as a literary author, and,
inversely, how much recognition Quintana also received by translating
Proust. Within the scope of this analysis, we used Pierre Bourdieu’s theory
of symbolic fields, since it is the instances of this field of production that
create a rare and unique product, such as the translation of a literary work.
Key words: Translation Studies; Theory of symbolic fields; Literary
Translator.
INTRODUÇÃO
Constantemente relegado a um plano secundário ao longo da história da tradução
no Brasil, apagado na maioria das vezes, observamos que, na Era Vargas (de 1930 a
1945), o tradutor literário passa a ter destaque. Época em que interessava saber quem era
o tradutor, em que seu nome contava para o sucesso de vendas da obra traduzida. Época
dos autores-tradutores. Considerado um dos períodos mais produtivos da tradução
literária no Brasil, foi dos anos 1930 a meados dos anos 1950 que a tradução teve no País
o seu clímax. É interessante observar que essa época de pleno desenvolvimento da área é
marcada pela diminuição de traduções de obras de língua francesa e pela suplantação
daquelas advindas da língua inglesa. Entretanto, apesar do declínio do número de
traduções de obras do francês, paradoxalmente, é também nesse período que são
traduzidas importantes obras francesas. Primeiramente, interessou-nos o porquê da
tradução de obras francesas que, até então, não haviam sido traduzidas, justamente
quando a língua francesa começava a perder seu prestígio e quando a língua inglesa se
sobrepunha à francesa. Ora, algumas dessas traduções são consagradas até hoje, como
Em busca do tempo perdido, que teve Mário Quintana como tradutor dos quatro
primeiros volumes, sendo lançada pela Editora Globo em 1948, mesmo após o
surgimento de outras traduções. Assim, a questão central da pesquisa é como essa
tradução alcançou valor e reconhecimento pelo público.
Acreditamos que a consagração dessa tradução se deva ao papel de seu tradutor,
Mário Quintana. Ao irmos em busca do tradutor, analisando sua condição de consagração
no campo da tradução a partir de sua posição consagrada como autor literário,
14
avaliaremos a tradução como um bem simbólico. Entretanto, acreditamos que não
somente a qualidade da tradução seja a responsável por sua consagração, mas todo um
jogo de forças presente no campo de produção literário. Nessa perspectiva, a teoria de
Pierre Bourdieu, com seu conceito de habitus adquirido e relacionado com as estratégias
operadas por um campo e por determinados agentes desse campo, nos guiará. O nome e
os escritos de Pierre Bourdieu estão cada vez mais presentes no campo dos Estudos da
Tradução, principalmente por meio de estudiosos como Daniel Simeoni, Gouanvic JeanMarc e Inghiller Moira. Pascale Casanova, entretanto, se fez pioneira quando, em 1999,
publicou La république mondiale des lettres, em que evidencia a mudança no contexto
dos Estudos da Tradução ao associá-la à teoria bourdieusiana. Segundo Pascale Casanova
(2002), o tradutor constitui uma das instâncias a situar no espaço literário, e de sua
posição, dentre outros fatores, depende o grau de legitimidade da tradução. Assim, quanto
maior o prestígio do tradutor, mais nobre é a tradução, mais ela se consagra.
Primeiramente, no primeiro capítulo, faremos um histórico da tradução literária no
Brasil, ressaltando a influência da cultura francesa em diferentes períodos, mostrando a
posição dos tradutores ao longo da história e a formação do espaço social da tradução no
Brasil. Destacaremos a fase histórica que é central neste trabalho, a Era Vargas,
mostrando, então, as mudanças no País e no cenário mundial no período histórico em que
os Estados Unidos passam a ter papel dominante. Ao tratar da tradução literária no
referido período, observaremos que o número de traduções de língua inglesa sobrepõe-se
ao de língua francesa, ressaltando as mudanças na tradução a partir desse momento.
Assim, quem eram os tradutores antes? Quem eram nesse período? Depois,
discorreremos sobre as principais obras traduzidas do francês nesse período: A comédia
15
humana, de Balzac, e Em busca do tempo perdido, de Proust, mostrando como aumentou
a qualidade das traduções nesse momento.
No segundo capítulo, verificaremos, em diferentes teorias, a concepção do que seja
uma boa tradução, bem como o posicionamento do tradutor diante da tradução.
Observaremos que, em uma visão dita tradicional, a questão da fidelidade é apresentada
como essencial ao julgamento do que seja uma boa tradução. Depois, por meio das
teorias de Antoine Berman e Lawrence Venuti, constataremos como esses autores
salientam certos aspectos sociais que se refletem no posicionamento do tradutor diante do
seu fazer. Um exemplo disso é a tradução etnocêntrica ou não etnocêntrica, que incidirá
na visibilidade ou não do tradutor. Observaremos que, segundo Johan Heilbron e Gisele
Sapiro,1 além do texto em si, questões propriamente sociológicas surgem, principalmente
no que concerne às funções da tradução e de seus agentes no espaço em que se
encontram.
No terceiro capítulo, analisaremos as tensões que se instauram no campo, a partir
da tradução de Em busca do tempo perdido, de Proust. Compreenderemos, então, não
apenas quem são os tradutores, mas também como muda o status da tradução, sendo o
tradutor também escritor ou intelectual consagrado. Observando a consagração sob o viés
de Pierre Bourdieu, mostraremos a recepção que teve essa tradução, até chegarmos ao
ponto central deste trabalho: a consagração da tradução de Em busca do tempo perdido.
Destacaremos o tradutor que mais contribuiu para a consagração dessas obras: Mário
Quintana. Para isso, partiremos da abordagem realizada por Bourdieu em A produção da
crença, em que toma como objeto de análise entrevistas que demonstram, segundo o
1
HEILBRON, Johan; SAPIRO Gisèle. La traduction littéraire – un objet sociologique. Paris: Actes de la
Recherche en Sciences Sociales, 2002. v. 144, p. 3-5.
16
próprio Bourdieu, uma “espécie de harmonia estabelecida entre o habitus do criador e a
posição que ele ocupa no campo, isto é, a função que lhe foi atribuída, embora ele a
tenha, aparentemente, produzido”.2
No quarto capítulo, observaremos que em todos os campos há os consagrados e os
pretendentes em luta por legitimação. No espaço social da tradução não é diferente.
Assim, mostraremos a luta por legitimidade efetivada pela nova tradução de Em busca do
tempo perdido feita por Fernando Py para a Ediouro em 2002, mostrando que há sempre
referência à tradução de Quintana por parte da crítica. Analisaremos, então, as estratégias
acionadas pelo “pretendente” Fernando Py para firmar-se no campo e como se dá essa
disputa. Será mostrada a reação da Editora Globo ao relançar sua tradução, atualizada,
que se autodenomina “Proust Definitivo”. A fim de exemplificarmos a permanente luta
no campo, mostraremos que uma nova tradução de Em busca do tempo perdido será
lançada em 2012 pela Companhia das Letras, em parceria com a britânica Pengui, e como
essa tradução já se demarca em relação à tradução consagrada pela Editora Globo.
Por fim, apresentaremos as conclusões obtidas neste trabalho, que apontam o
caminho aberto pela pesquisa ao refletirmos sobre a questão da consagração, bem como
sobre a questão da denegação das traduções em língua francesa, diante da supremacia
daquelas em língua inglesa.
2
BOURDIEU, Pierre. A produção da crença – contribuição para uma economia dos bens simbólicos.
Tradução Guilherme João de Freitas Teixeira e Maria da Graça Jacintho Setton. Porto Alegre: Zouk, 2001.
1
A TRADUÇÃO NO BRASIL E A LÍNGUA FRANCESA
Neste capítulo, mostraremos, a partir das pesquisas de Lia Wyler (2003),
Sônia Maria de Amorim (2000) e Simone Souza (2004), além de outros
pesquisadores na área da historiografia da tradução, um panorama da tradução
literária no Brasil, desde o período colonial até meados do século XX, com o
objetivo de demonstrar que a presença da língua e da cultura francesas no Brasil
contribuiu para a valorização da tradução no País. Mostraremos que o crescimento
da produção de literatura traduzida se deveu ao fato de que a língua francesa era
parte dos costumes da classe dominante em diferentes períodos históricos do País.
Essa hegemonia ocorreu até meados dos anos 1930, momento em que a cultura e a
língua francesas perderam sua supremacia, em função da transferência do poder
da influência linguística do francês para o inglês no mapa mundial.
Observaremos, também, como se transformou a atividade da tradução ao
longo de cada período histórico, até chegarmos à Era Vargas, momento em que
surgem os autores-tradutores, a fim de compreendermos como as traduções
naquele período histórico alcançaram um valor que, até então, não apresentavam.
Finalmente, analisaremos a influência desses autores-tradutores sobre o
reconhecimento obtido pelas traduções, que contribuíram sobremaneira para a
valorização da tradução de uma maneira geral e para o trabalho dos tradutores.
18
1.1
A TRADUÇÃO ESCRITA NO BRASIL DO SÉCULO XVI AO SÉCULO
XVIII
A tradução escrita no Brasil enfrentou sérios obstáculos ao seu
desenvolvimento, principalmente a falta de demanda, uma vez que somente a elite
da época manifestava interesse pela leitura de textos, fossem estes traduzidos ou
não. Nesse período, embora já existissem algumas escolas e livros no Brasil
Colônia, a maioria absoluta da população era iletrada. Assim, a falta de um
público leitor e a proibição da impressão no País, que perdurou até a chegada da
Família Real, em 1808, consistiram em obstáculos à tradução.
Entretanto, apesar da proibição da impressão no Brasil, ainda assim
circulavam livros no País, principalmente por meio dos jesuítas, que inicialmente
copiavam à mão as cartilhas de leitura e importavam livros, de maneira legal ou
ilegalmente, construindo as primeiras bibliotecas. Essas obras das bibliotecas dos
jesuítas constituiriam, por cerca de dois séculos, a base da formação cultural e
intelectual do público letrado da época. Essas bibliotecas foram importantes para a
manutenção do plurilinguismo, uma vez que contavam com muitas obras em
francês, espanhol, italiano, latim e grego. Mas o francês já se sobressaía,
indiscutivelmente, não somente com obras no original, como também em
traduções indiretas de outras línguas.
Afirma Wyler que o estrangeiramento das elites brasileiras pode ser
explicado pelas influências culturais a que o Brasil estava exposto: a portuguesa, a
espanhola e a francesa, e esta por intermédio dos portugueses, profundamente
marcados pela cultura francesa. Dessa maneira, essa influência cultural francesa
se estabeleceu no Brasil com os jesuítas, tendo o francês chegado a competir com
o português pelo privilégio de ser língua nacional. É importante lembrar que é
19
somente com a Constituinte de 1823 que o português é decretado língua oficial do
Brasil.
Constatamos, então, que no Brasil Colônia as primeiras traduções tinham
como objetivo a catequização. Não existia até esse momento a noção de autoria de
tradução. Logo, não existia a figura do tradutor como sujeito autor da tradução, e
tampouco a tradução como obra disposta de um valor autônomo, o que evidencia
o fato de que, nesse momento histórico, ainda não havia um espaço social próprio
de atividade da tradução.
Observamos, assim, que o francês se fazia presente principalmente por meio
dos colonizadores portugueses, sobretudo os jesuítas, que eram fortemente
influenciados pela cultura francesa, e que muitas das obras presentes nas primeiras
bibliotecas do País eram em língua francesa. É importante lembrar a hegemonia
que a cultura francesa alcançou nos séculos XVII e XVIII, não somente no Brasil,
mas em várias partes do mundo. A partir do auge da monarquia de Luís XIV,
quando a França se tornou uma potência mundial, e ao longo dos séculos XVII e
XVIII, a cultura francesa tornou-se o modelo ideal a ser copiado nas artes, nos
modismos e no comportamento.
Com a chegada da Família Real, o modo de vida das Cortes europeias passa
a fazer parte da vida social do Brasil. Dois fatores correlatos viriam a mudar o
quadro da ausência de tipografias – embriões das futuras editoras –, proibidas até
então pela metrópole: o advento da Impressão Régia, inaugurada em 13 de maio
de 1808, no Rio de Janeiro, por D. João VI, e, consequentemente, o aumento do
público leitor. A Impressão Régia, inicialmente, tinha por função publicar
documentos, passando, mais tarde, a publicar, também, qualquer obra, inclusive
romances.
20
No artigo intitulado “Adaptações e livros baratos para a Corte: folhetos
editados na Impressão Régia do Rio de Janeiro entre 1808 e 1822”, Simone
Cristina Mendonça de Souza (2004) traça um panorama editorial da época,
mostrando as obras publicadas pelos folhetos editados pela Impressão Régia, cujo
formato se assemelhava aos dos livros que compunham a chamada Bibliothèque
Bleue. Esse panorama é importante para observarmos que a tradução e a
adaptação de obras francesas se fizeram de maneira ampla nesse período.
Dentre os livros de prosa de ficção publicados pela Impressão Régia que
circularam no Brasil no período de 1808 a 1822, destacamos algumas traduções
ou adaptações de obras francesas:∗
– A choupana india. Escripta em francez pelo autor de Paulo e Virginia (o
abbade Saint Pierre), e vertida em português. 1811.
– Cartas de huma peruviana. Traduzidas do francez na língua portuguesa
por huma senhora. Tomo I, 1811 e Tomo II, 1812.
– A boa mãi. Novella: traduzida do francez. 1815.
– O castigo da prostituição. Novella: traduzida do francez. 1815.
– As duas desafortunadas. Novella: traduzida do francez. 1815.
– A infidelidade vingada. Novella: traduzida do francez. 1815.
– A má mãi. Novella: traduzida do francez. 1815.
– Triste effeito de huma infidelidade. Novella: traduzida do francez. 1815.
Assim, essas traduções são oferecidas a um novo público leitor. Além disso,
segundo Wyler, multiplica-se o número de tradutores no Brasil no período de
1808 a 1890. Segundo Souza (2004), esses livros não constituíam propriamente
uma tradução, mas uma adaptação, com capítulos recortados, versões de obras
∗
Optamos por manter os títulos com a grafia da época.
21
francesas, provavelmente alteradas e resumidas. Souza faz uma aproximação
desses livros publicados pela Impressão Régia com os da Bibliothèque Bleue,
analisados por Roger Chartier (1990).
Os livros da Bibliothèque Bleue seguiam uma fórmula editorial de reedição
de textos já consagrados e escritos originalmente para um público intelectual e
que eram adaptados a fim de se tornarem mais acessíveis a um público de
menores condições socioeconômicas. Dividiam-se os textos em parágrafos
menores, inseriam-se resumos e recapitulações, além de cortes nos capítulos,
principalmente das descrições, e da simplificação das estruturas das orações.
Dessa maneira, afirma Souza, observa-se a interferência do editor na
formatação das impressões, modificando o formato do livro, alterando a
disposição do texto, inserindo ou retirando ilustrações, excluindo períodos do
texto original, considerados longos, ou mesmo resumindo o original.
Outro fator relevante é que a chegada da Família Real propiciou, também, a
criação de instituições de ensino e, consequentemente, um aumento no número de
pessoas alfabetizadas no País, mas ainda inexpressivo para a formação de um
público leitor.
Em 1821, um fato importante facilita a entrada de livros estrangeiros no
País: a supressão de censura ou licença sobre esses livros. Assim, a França
mantém seu domínio cultural, exportando legalmente livros para o Brasil, quando,
então, algumas livrarias são abertas. Dessa forma, havia uma preponderância de
livros de autores franceses no Brasil sobre os de outras nacionalidades. Além
disso, os livros importados tinham um preço menor, uma vez que o custo do papel
ainda era muito alto, por conta do imposto sobre sua importação.
O Brasil dessa época vivia sob forte influência cultural da França. Nesse
22
contexto, duas editoras francesas se destacaram para a cultura livresca do País:
Laemmert e Garnier. Essas duas editoras importavam grande quantidade de livros
franceses para uma elite rica e culta brasileira, enquanto o restante da população
brasileira – cerca de 84% – ainda não sabia ler. O mercado de livros se dividia
entre os irmãos Laemmert e a livraria Garnier, de seu fundador e editor, Baptiste
Louis Garnier. Esse editor lançou clássicos estrangeiros e foi um dos primeiros a
editar os autores brasileiros, tais como José Veríssimo, Olavo Bilac, Artur
Azevedo, Bernardo Guimarães, Silvio Romero, João do Rio e Joaquim Nabuco.
Além disso, Garnier foi o primeiro e o principal editor de Machado de Assis, de
cujas obras comprou os direitos autorais.
Em relação à tradução, o estabelecimento de sua atividade no País ocorre
com a constituição do mercado de obras literárias, a partir do gradativo
crescimento do público leitor. Os tradutores não eram mais os religiosos, nem a
tradução tinha como objetivo a catequização. Temos, então, a tradução e a
adaptação de obras literárias, sobretudo as francesas, com o objetivo de atender às
demandas desse público. Entretanto, o nome do tradutor ainda não é citado nas
obras traduzidas, e, desse modo, a autoria da tradução permanece incógnita.
1.2
O CRESCIMENTO DA TRADUÇÃO NO BRASIL NO SÉCULO XIX COM
OS ROMANCES-FOLHETINS
Na segunda metade do século XIX, ocorrem importantes avanços no campo
educacional, sobretudo no âmbito do ensino primário, que passa a ser oferecido
em diversas escolas do País. Esse avanço é relevante, pois acarreta o crescimento
de um público leitor, que faz aumentar o número das traduções, sobretudo nos
23
jornais. Segundo Wyler, mesmo com vários obstáculos de ordem política,
ideológica e econômica, a política tradutória prospera no Brasil no século XIX. A
tradução passa a ser disseminada no meio social através dos jornais – existentes
em números razoáveis no País –, graças aos romances-folhetins.
A invenção dos romances-folhetins é atribuída ao francês Émile Gerardin,
na França. Esse gênero de narrativa teria se inspirado no sucesso dos melodramas
encenados no teatro, nos quais sempre havia elementos sensacionalistas que
prendiam a atenção do espectador. Por volta de 1836, Gerardin decidiu publicálos em jornais com características semelhantes. Esses romances, publicados no
rodapé das páginas dos jornais franceses, chamou grande atenção do público, que
se habituou a procurá-los nesses periódicos, nos quais se apresentavam divididos
em capítulos – estratégia que gerava uma curiosidade no público, impulsionando
as vendas dos jornais. Observamos, então, que o romance-folhetim atende às
novas demandas de um mercado editorial.
No Brasil, o gênero do romance-folhetim foi introduzido por Justiniano José
da Rocha, jornalista e político de destaque no Segundo Reinado (1849-1889), que,
ao perceber a popularidade do romance-folhetim na França, escreveu ele próprio
alguns desses folhetins e traduziu vários outros do francês para jornais brasileiros.
Como o fascínio nacional pela Europa, sobretudo pela França, era imenso e a
produção brasileira de folhetins era escassa, tivemos um grande número destes,
traduzidos do francês, no Brasil do século XIX. Quanto ao romance-folhetim,
afirma José Paulo Paes (1990): “tão grande foi a voga do folhetim romântico no
Brasil que logo se verificava um desequilíbrio entre a apetência do público e a
capacidade nacional de produção”. Assim, a tradução passou a ser estimulada para
atender à demanda dos jornais, envolvida com a publicação dos folhetins
24
franceses.
Quanto à maneira de traduzir, observamos que a versão dos romancesfolhetins franceses feita para o português seguia moldes muito em voga na França:
a denominada Belles Infidèles (Belas Infiéis). Essa maneira de traduzir consistia,
em linhas gerais, no abandono da fidelidade literal, adaptando o texto traduzido à
língua do leitor de determinada classe social. Na verdade, tratava-se do culto à
tradução dita elegante, uma vez que a tradução se conformava às regras das
classes dominantes. Esse gênero se consolidou na França no século XVII, com o
intuito de se ajustar ao gosto de leitura das classes privilegiadas, eliminando,
assim, das traduções dos clássicos da Antiguidade o que era estranho ou
deselegante. Entretanto, difundiu-se pelo mundo, por séculos, segundo os valores
morais da época e do local em que as traduções eram publicadas. Assim, eliminar,
remodelar e modificar partes do texto era permitido nas traduções para o francês,
em nome da polidez e da moral.
Importante ressaltar que o estilo de tradução
“belles infidèles” possui
características muito peculiares ao período e ao momento histórico francês do
século XVII, assim, o que salientamos como ponto comum é uma tradução mais
voltada à cultura alvo, com o objetivo de facilitar a compreensão do público leitor.
Como verificamos na justificativa de Justiniano da Rocha ao comentar suas
traduções do francês de romances-folhetins:
Será traduzida, será imitada, será original a novela que ofereço, leitor benévolo?
Nem eu mesmo que a fiz vo-lo posso dizer. Uma obra existe em dois volumes, e
em francês que se ocupa com os mesmos fatos; eu a li, segui seus
desenvolvimentos, tendo o cuidado de reduzi-los aos limites de apêndices,
cerceando umas, ampliando outras circunstâncias, traduzindo os lugares em que me
parecia dever traduzir, substituindo com reflexões minhas o que me parecia dever
ser substituído; uma coisa só eu tive em vista, agradar-vos.3
3
ROCHA, Justiniano. A paixão dos diamantes. Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, p. 27-30,
mar. 1839.
25
Entretanto, um modelo de tradução mais voltado para o público alvo não
era o único motivo para as adaptações nas traduções da época. Segundo Lenita
Esteves (2005), na tradução dos romances-folhetins, o tradutor exercia, por vezes,
o papel de autor, ou seja, as obras eram adaptadas. Ora, muitos desses romances
eram traduções dos que estavam sendo publicados quase simultaneamente nos
jornais franceses naquele momento. Assim, quando acontecia um atraso na
chegada dos originais, o tradutor continuava a escrever a história, a fim de que a
publicação não fosse interrompida. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o
romance-folhetim intitulado Rocambole, de Ponson du Terrail, cuja tradução
vinha sendo publicada pelo Jornal do Commercio. O tradutor chegou mesmo a
matar alguns personagens, e, quando chegaram novamente os originais, o tradutor,
Souza Ferreira, teve de “ressuscitar” personagens para conciliar novamente a
história da tradução com a do original. Assim, o objetivo principal era a venda dos
jornais, podendo ser feitas até mesmo modificações nas traduções, a fim de
alcançar esse objetivo. Quanto aos tradutores, estes se mantinham quase sempre
incógnitos e raramente assinavam suas traduções, exemplificado por Maria
Arnoldo Coco, a partir do texto do Jornal das Senhoras, do dia 3 de julho de
1853:
[...] agradecemos ao tradutor incógnito o valioso presente que nos fez, e
recomendamos a todos a leitura desta história verdadeira e contemporânea cuja
versão, se não é servil, se não traduz palavra por palavra, dificilmente encontrará
no original uma ideia, um pensamento, que no português não tenha a frase
equivalente. 4
Desse modo, no século XIX, no que concerne à tradução literária, não
4
COCO, Maria Arnoldo. O triunfo do bastardo: uma leitura dos folhetins cariocas no século XIX.
Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio, Rio de Janeiro
1990. 2 v.
26
somente o romance-folhetim, mas também as peças de teatro tiveram destaque na
preferência dos nossos tradutores. A pesquisa de Wyler mostra que, no período
entre 1839 e 1854, foram publicados pelo menos 74 romances-folhetins franceses
nos vários periódicos do Rio de Janeiro, em uma média de cinco romances por
ano. A popularidade da tradução dos romances-folhetins levou vários escritores
brasileiros da época a se dedicarem às traduções. Observa-se, então, o início da
participação de autores literários na atividade da tradução. Entretanto, esses
autores desmereciam a atividade de tradução, por considerá-la inferior, sem
necessidade de grandes reflexões:
A tradução é o elemento dominante, nesse caos que devia ser a arca santa onde a
arte pelos lábios dos seus oráculos falasse às turbas entusiasmadas e delirantes.
Transplantar uma composição dramática francesa para a nossa língua é tarefa de
que se incumbe qualquer bípede que entende de letra redonda. O que provém daí?
O que se está vendo. A arte tornou-se uma indústria.5
Assim, a tradução era considerada como cópia, algo que não necessitava de
reflexões ou criatividade. O original era visto como arte, ao passo que a tradução
era vista como algo destituído de criatividade, tal como o trabalho mecânico da
indústria e, logo, menor. Essa oposição entre o texto original (atividade artística) e
o texto traduzido (trabalho mecânico) está presente ao longo da história do ofício
literário, e dessa visão provavelmente decorre a desvalorização da tradução e do
trabalho do tradutor.
Quanto aos romances-folhetins, Machado de Assis criticava o excesso de
folhetins com ambientação francesa no País, uma vez que, para ele, a tradução
seria um obstáculo à formação de uma literatura nacional:
Em geral, o folhetinista aqui é todo parisiense; torce-se a um estilo estrangeiro, e
esquece-se, nas suas divagações sobre o boulevard e o Café Tortoni, de que está
5
ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. v. III,
p. 788-789.
27
sobre um adam lamascento e com uma grossa tenda lírica no meio de um deserto.
Alguns vão até Paris estudar a parte fisiológica dos colegas de lá; é inútil dizer que
degeneraram no físico como no moral.6
O próprio Machado de Assis, além de ter escrito em francês, traduziu muitas
obras francesas para o português. É interessante constatar que Machado, antes de
publicar seu primeiro romance, já havia traduzido Os trabalhadores do mar, de
Victor Hugo. Quanto à atividade de Machado como tradutor, Eliane Ferreira
(2004) chega a relacionar 48 textos traduzidos pelo escritor, tendo ele estreado
como tradutor em 1856, com o poema Minha mãe, de William Cowper. Machado,
segundo Ferreira, traduziu 16 peças de teatro, 24 poemas, dois ensaios, dois
romances e um conto. Dentre os autores por ele traduzidos estão Lamartine,
Alexandre Dumas Fils, Chateaubriand, Racine, La Fontaine, Alfred de Musset,
Molière, Victor Hugo, Beaumarchais, Shakespeare, Charles Dickens, Edgar Allan
Poe, Schiller e Heine. Apesar de essa listagem incluir, em sua maioria, autores
franceses, veem-se, também, autores ingleses, americanos e alemães. Entretanto,
segundo Ferreira, a única língua que Machado conhecia bem era o francês, tendose utilizado, então, da tradução indireta do francês para traduzir obras de outras
línguas. O próprio Machado, ao comentar sua tradução de Schiller, afirmara não
saber alemão e que traduzira aqueles versos de uma versão francesa.
Observamos, então, que o crescimento da atividade tradutória no Brasil
deveu-se principalmente às traduções dos romances-folhetins. Machado de Assis
foi
um
dos
primeiros
autores-tradutores,
tendo
traduzido,
conforme
exemplificado, diversos textos de importantes autores, principalmente franceses.
Apesar desse fato, a atividade tradutória ainda era desvalorizada, permanecendo o
6
ASSIS, Machado de apud WYLER, Lia. Línguas, poetas e bacharéis – uma crônica da tradução
no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2003. p. 93.
28
tradutor incógnito na grande maioria das vezes – exceto quando se tratava de um
autor reconhecido, tal como era Machado de Assis. Contudo, mesmo ele
privilegiava, em suas traduções, a maneira de traduzir própria das Belles Infidèles,
de modo a atender ao público consumidor das obras. Remodelar, cortar e suprimir
foram recursos válidos em nome da “inteligibilidade” da tradução, tal como nos
aponta um crítico da revista Veja:
Uma faceta pouco conhecida de Machado de Assis é a de tradutor. Mas ele a teve.
Dedicou-se, sobretudo, aos poetas estrangeiros e deixou algumas joias nesse
campo, como sua versão para o poema O Corvo, do americano Edgar Allan Poe.
Mais raras foram as ocasiões em que ele trabalhou sobre textos em prosa. Em 1870,
deu início à tradução de Oliver Twist, do inglês Charles Dickens. Não foi o seu
melhor momento. Machado não partiu do original, mas de uma versão em francês
do romance. Adotou o procedimento duvidoso de resumir ou cortar passagens
inteiras da obra.7
1.3
A TRADUÇÃO NO SÉCULO XX NO BRASIL
A tradução no início do século XX, no Brasil, sofreu importantes
transformações. A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) provocou a interdição
do comércio marítimo entre a Europa e o restante do mundo ocidental, fazendo
com que o Brasil voltasse atenção para si mesmo. Assim, em relação ao mercado
de livros, houve um grande crescimento editorial no País. Autores nacionais
passaram a ser reconhecidos, e, além disso, as publicações nacionais e as
traduções de textos estrangeiros cresceram em números inéditos. Nesse período,
várias editoras se estabeleceram no mercado brasileiro.
Outra importante mudança se deu no âmbito da educação. Em 1930, ao
assumir pela primeira vez a Presidência da República, Getúlio Vargas implanta no
7
VEJA. Periódico. São Paulo. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/200302/p_131.html>.
Acesso em: 19 ago. 2011.
29
País um projeto educacional a fim de minimizar o analfabetismo e qualificar o
trabalhador brasileiro. A política educacional de Vargas representou uma ampla
reforma do ensino, acabando por incentivar a indústria editorial, o que
imediatamente consolidou o mercado dos livros didáticos e a médio prazo
ampliou o público leitor em geral.
Junto com a alfabetização, houve, também, o estímulo à publicação de
livros, revistas e jornais, bem como o incentivo à tradução de obras inéditas.
Outro fator que contribuiu para o incremento da tradução nesse período foi o alto
custo da importação de livros, que muito os encarecia no âmbito do mercado
nacional. O resultado é que o livro produzido no País se tornou mais acessível em
comparação ao importado, e, assim, houve um crescimento das traduções,
diminuindo, consequentemente, ainda mais a importação de livros franceses. O
número de editoras nacionais em atividade no País cresceu quase 50% entre 1936
e 1944. Os títulos e exemplares publicados por tais editoras quadruplicaram entre
1930 e 1950.
Em 1937, Vargas criou o Instituto Nacional do Livro (INL), a fim de
alavancar o processo de difusão do livro no Brasil. Caberia a esse Instituto
selecionar as obras consideradas “raras” e “preciosas” – segundo um critério de
interesse da cultura nacional – e subsidiar sua tradução. As demais traduções
produzidas fora desse Instituto teriam de passar pelo controle do Serviço de
Divulgação da Chefatura de Polícia, que tinha o objetivo de controlar a produção
intelectual, visando aos interesses do regime de Governo.
Segundo Maria Clara Castellões de Oliveira (2008), nos anos 1940, ocorrem
outros fatores que determinam o papel desempenhado pela tradução. Além do
Estado Novo, temos, também, o advento da Segunda Guerra Mundial, que tornou
30
ainda mais difícil a importação de livros europeus. Entretanto, essa interrupção da
vinda de livros europeus propiciou a abertura de espaço para a entrada de livros
provenientes dos Estados Unidos, em acordo com as ligações que o Brasil passou
a manter com esse país, intensificando as trocas culturais entre os dois países.
Também nesse período, Vargas intensificou a censura política, criando o
Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), a fim de controlar a entrada no
País de publicações que pudessem atentar contra a ideologia e o programa de
Governo. Dessa maneira, toda a produção intelectual no Brasil passou a ser
vigiada pelo DIP. Dentro dessa censura muito rígida, os escritores que não se
enquadravam nas regras do Governo eram presos, e suas obras, censuradas ou
destruídas.
A censura na Era Vargas contribuiu significativamente para que muitos
escritores passassem a se dedicar à tradução, pois essa era uma maneira de manter
contato com seu público leitor. Foi o período, então, do surgimento dos autorestradutores – escritores capazes de legitimar traduções de obras estrangeiras,
dando-lhes credibilidade a partir do reconhecimento conquistado como escritor.
Podemos dizer que, nesse momento, no Brasil, constituiu-se um espaço próprio e
valorizado da atividade de tradução, funcionando como uma espécie de campo
interno ou subcampo da produção literária. Tal afirmação se baseia no fato de que,
pela primeira vez, houve a formação de um mercado propriamente brasileiro de
obras literárias traduzidas, composto de editores, tradutores (escritores) e leitores
dispostos a consumir essas obras.
Sobre a Era Vargas, afirma Maria Clara Castellões de Oliveira:
Esse estado de coisas exigiu que as companhias editoras tivessem em seus quadros
um número considerável de profissionais para exercerem as tarefas de tradução. O
fato de ainda não existir a profissionalização do ofício tradutório fez com que
fossem contratados para tanto escritores cujos nomes renderam maior credibilidade
31
às traduções lançadas no mercado. Do ponto de vista desses escritores, a tradução
passou a ser uma forma alternativa de expressão diante da censura que vigorava no
período, tendo se transformado na sua principal fonte de renda durante o Estado
Novo.8
Nessa afirmação, podemos claramente observar que a profissionalização do
tradutor não se reduziu a uma espécie de funcionamento pragmático do mercado
editorial, mesmo porque já existiam tradutores trabalhando de maneira incógnita.
Importa assinalar que a valorização dessa profissionalização se deveu à atração de
autores consagrados ou em vias de consagração para conferir legitimidade às
traduções nesse período.
Também nesse período, as editoras passaram a investir nas traduções, de
maneira mais consistente e em maior escala, organizando coleções de autores
estrangeiros, principalmente coleções de obras de ficção de autores já falecidos,
para economizar com pagamentos de direitos autorais. Esse período foi, também,
de grande crescimento do número de tradutores no mercado e de valorização da
atividade da tradução em função da atuação do que se denomina autorestradutores – escritores reconhecidos, atraídos para a atividade da tradução.
Nessa época, duas das editoras de maior relevo no País, a José Olympio,
com sede no Rio de Janeiro, e a Editora Globo, com sede em Porto Alegre,
passaram a contar com um grande número de escritores em seu quadro, uma vez
que estes trariam maior publicidade às traduções. Dentre os escritores da primeira
metade do século XX, destacam-se Monteiro Lobato – um pioneiro dos autorestradutores –, Rachel de Queiroz, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles,
Manuel Bandeira, Érico Veríssimo e Mário Quintana.
8
OLIVEIRA, Maria Clara Castellões de. A cleptomania do tradutor: a tradução no Brasil da
década de 40 do século XX. Anais do XI Congresso Internacional da Abralic. São Paulo: USP,
2008.
32
Segundo Wyler, a maioria dos autores-tradutores conhecia bem o francês,
que nesse momento começava a perder a hegemonia para o inglês. Tal fato
ocasionou que as obras literárias de outras línguas fossem traduzidas
principalmente do francês, e, desse modo, esta foi também a língua da tradução
indireta nesse período. Lembremo-nos que muitas obras da literatura russa, por
exemplo, foram traduzidas, indiretamente, de traduções francesas.
Outra consequência do reconhecimento das traduções elaboradas pelos
autores-tradutores, na Era Vargas, foi o crescimento da crítica em relação às
traduções, como afirma Maria Clara Castellões de Oliveira:
Uma das consequências do crescimento da publicação de traduções no Brasil
durante o Estado Novo foi a criação de um espaço público de crítica dessa
atividade, que, como mencionado, se deu em 1944, no suplemento literário do
Diário de Notícias. Por iniciativa de dois tradutores, Raul Lima, redator-chefe
desse jornal, e Guilherme Figueiredo, diretor de seu suplemento literário, abriu-se
nesse periódico um espaço para que seus leitores pudessem enviar comentários
sobre traduções que teriam lido. Entre as opiniões emitidas, destacaram-se as de
um mineiro de Barbacena, Agenor Soares de Moura, que logo se viu convidado
para assinar uma seção permanente desse suplemento, intitulada “À margem das
traduções”.9
O livro ocupava um lugar importante no cotidiano da classe letrada, e os
jornais tinham um papel essencial no sucesso de um livro, pois eram lidos com
regularidade, sendo um dos principais divulgadores das obras e constituindo uma
das instâncias de consagração destas:
Era um tempo livresco, digamos assim. Um tempo em que se liam livros, e também
se escrevia sobre eles para chamar a atenção dos indiferentes. A escrevia sobre B e
B escrevia sobre C. E se estabelecia desse modo uma espécie de equação crítica, ou
uma rodinha de elogio mútuo [...]. O livro era noticiado. Era comentado. E ainda
não existiam feiras de livros nem outros supermercados literários.10
9
OLIVEIRA, Maria Clara Castellões de. Op. cit.
TOSTES, Theodomiro. Nosso bairro: memórias. Porto Alegre: Fundação Paulo do Couto e
Silva, 1989.
10
33
Assim, as traduções eram comentadas, discutidas principalmente nos
jornais. Ora, esse interesse pela crítica não se deve somente ao aumento do
número de traduções na Era Vargas, mas também à importância de quem as
traduzia. Dessa forma, houve um interesse maior da crítica por serem essas
traduções feitas por autores-tradutores. Aos críticos interessava comentar
traduções de um autor-tradutor, e não de um “tradutor qualquer”, uma vez que
haveria um reconhecimento e uma valorização desses críticos através da
reduplicação.
1.4
AUTORES-TRADUTORES NAS TRADUÇÕES DA EDITORA GLOBO
Segundo o Anuário brasileiro de literatura, entre 1938 e 1943, a Editora
Globo detinha 36% de títulos no gênero de ficção e 11% dos livros didáticos. O
restante dos títulos era distribuído entre a literatura infantil e as biografias. Outras
cinco editoras do mercado editorial, nessa época, foram: Companhia Editora
Nacional,
Civilização
Brasileira,
José
Olympio,
Francisco
Alves
e
Melhoramentos. Dentre estas, a Globo consistia na única a figurar fora do eixo
Rio–São Paulo.
Nos anos 1942 e 1943, a Globo se posicionou entre as empresas da indústria
editorial com o maior número de traduções; com relação às edições de autores
nacionais, sua produção abrangia aproximadamente 51% do mercado. A Editora
Globo efetuou vários investimentos, com o objetivo de baratear o custo, visando
ao aumento das vendas para o público leitor. Cuidados com o tamanho da tiragem,
o preço final ao consumidor relacionado com o tipo de papel e o formato pocket
34
book, os direitos autorais, os honorários de tradução, a propaganda, os pontos de
venda e o desenho da capa das coleções foram algumas das estratégias lançadas
para aumentar as vendas. Assim, várias coleções foram lançadas, e cada uma
delas mantinha certas características que correspondiam aos interesses de
diferentes grupos do público leitor. Érico Veríssimo, editor à época, com a
preocupação de trazer ao público leitor os mais diversos gêneros da literatura, foi
responsável pela divulgação de autores considerados eruditos e de leitura “difícil”,
tais como Virginia Woolf, Roger Martin du Gard e Marcel Proust.
1.4.1
AS COLEÇÕES DA EDITORA GLOBO
Érico Veríssimo, como editor responsável dessa editora, trouxe sua
bagagem de leitor e conhecedor das literaturas francesa, inglesa e alemã. Existia
também, segundo Sonia Amorim (2000), uma preocupação consciente em formar
um público leitor, explicitada em várias ocasiões pelo próprio Érico Veríssimo.
Assim, as coleções foram editadas seguindo uma hierarquia do que era entendido
como “complexidade”. Primeiramente, com o objetivo de seduzir leitores,
procurou-se lançar obras dotadas de leituras tidas como mais amenas, para então
conduzir gradativamente esse público leitor a obras consideradas mais elaboradas.
Ora, a publicação de traduções eliminava uma série de etapas no processo
de edição, tornando mais vantajoso esse tipo de publicação para a editora, assim
explicado por Amorim: “o editor estrangeiro já deu conta de quase tudo: escolheu
autor e obra, definiu formato, tipologia, configuração visual do livro, sem contar
35
que já correu o risco de editar algo inédito [...]”.11
Para hierarquizar e facilitar o consumo das edições de literatura traduzida, a
Globo criou nove coleções dentro desse período mais prolífico das edições – entre
1930 e 1950 –, que são as seguintes: Amarela, Biblioteca dos Séculos, Catavento,
Clube do Crime, Espionagem, Globo, Nobel, Tucano e Universo.
A Coleção Amarela dedicou-se ao gênero policial. A avidez com que os
leitores procuravam os romances policiais fez da Coleção Amarela uma das mais
consumidas e rentáveis da editora. Conforme o Relatório da Diretoria da Globo,
relativo à passagem dos 100 anos da empresa, o primeiro filão de vendas
descoberto por Henrique Bertaso – um dos editores da Globo – foi o das novelas
policiais, obras traduzidas de autores praticamente desconhecidos no Brasil. Dessa
forma, surgiu com grande sucesso de vendas, com forte apelo popular, tendo
como principais autores Edgar Wallace e Agatha Christie. A Coleção Amarela se
constituiu na mais longa das coleções, tendo edições durante 25 anos, até 1956.
A Coleção Universo durou 10 anos, de 1932 a 1942. Tratava-se de uma
coleção ligada aos romances de aventuras. Destacavam-se, nessa coleção, os
livros de viagens e aventuras do escritor alemão Karl May, que teve mais de 24
títulos traduzidos, totalizando mais de 234.500 exemplares vendidos.
A Coleção Nobel foi a coleção de maior prestígio editada pela Globo. É
importante ressaltar que ela exerceu uma influência inegável sobre uma geração
de leitores e, segundo Amorim, foi provida de grande admiração pela
intelectualidade brasileira da época. Essa coleção oferecia ao leitor tanto obras
reconhecidas mundialmente em sua época quanto de vanguarda, algumas, com
lançamentos quase simultâneos no exterior e no Brasil. A Coleção Nobel
11
AMORIM, Sônia Maria de. Em busca de um tempo perdido – edição de literatura traduzida
pela Editora Globo (1930-1950). São Paulo: Edusp, 2000. p. 71.
36
influenciou uma geração de leitores, na medida em que trouxe traduções para o
português do Brasil de várias obras inéditas – entre elas Em busca do tempo
perdido, de Marcel Proust –, como bem aponta Osman Lins em seu Tributo à
Coleção Nobel:
Tinha a coleção Nobel algumas características interessantes. Ao contrário de todas
as coleções que conheço e que acolhem títulos brasileiros e portugueses, só
publicava livros em tradução. Quer dizer: apresentava-se francamente, sem falsos
patriotismos, como uma coletânea de livros traduzidos, o que delineava com
clareza o seu perfil, não admitindo confusões. [...] Muitos dos que, como eu,
despertávamos para a literatura em pontos afastados do Brasil e carecíamos de
informações sobre autores e obras do nosso tempo, encontrávamos na Nobel uma
espécie de guia, uma porta aberta para segmentos importantes do que se escrevia
em nosso século. [...] Testemunho, em primeiro lugar, como leitor. Horas das mais
valiosas da minha vida foram dedicadas à leitura. E dessas, grande parte é devida à
edição da Nobel.12
É na Nobel, segundo Sônia Amorim, que encontramos o mais consagrado
corpo de tradutores de todas as coleções. Entre esses tradutores, os autores que
mais traduziram obras foram Érico Veríssimo e Mário Quintana. Foi na década de
1940, período mais produtivo da Nobel, que se implantou na Editora Globo um
sistema de tradução inédito até então. Foi criado um espaço interno inteiramente
dedicado aos tradutores, onde eles trabalhavam integralmente, com remuneração
fixa e melhores condições de exercício de sua atividade. Desse modo, a
contratação dos autores-tradutores com salário fixo, nesse regime de trabalho
integral, tinha como objetivo intensificar a produção editorial das traduções, o que
acarretou a valorização do ofício do tradutor e o maior reconhecimento de sua
profissão.
O problema dos tradutores foi um dos mais sérios enfrentados até hoje pela Globo.
Dezenas de obras foram mutiladas por maus tradutores [...]. Hoje, porém, os
tradutores assim arregimentados são homens conscientes de seu trabalho, que
fazem dele sua profissão.13
12
LINS, Osman. Evangelho na taba: outros problemas inculturais brasileiros. São Paulo: Summus
Editorial, 1979. p. 75.
13
MARTINS, Justino apud AMORIM, Sônia Maria de. Em busca de um tempo perdido – edição
37
A convivência entre os autores-tradutores era vantajosa, uma vez que, nesse
espaço de produção, eles se relacionavam, de modo que se tornava cada vez mais
especializada e intelectualizada – logo, valorizada – essa produção das traduções,
assim explicitada por Justino Martins: “Ocorre-lhes, porém, diversas vantagens
desse método de trabalho, tais como a facilidade de consultar obras de erudição,
de trocar ideias entre si e mesmo adquirir o aperfeiçoamento literário que só um
ambiente intelectualizado pode oferecer.”14
Em relação às vendas por números de exemplares, segundo números da
editora, figura em primeiro lugar a tradução de Em busca do tempo perdido, de
Marcel Proust, e, em segundo lugar, Jean-Cristophe, de Rolland. A presença de
obras traduzidas da língua francesa nos dois primeiros lugares de vendagem na
editora.
Criada por Érico Veríssimo, a Biblioteca dos Séculos era uma coleção
dedicada às obras literárias tidas como os clássicos da literatura universal. Apesar
de ter tido uma duração relativamente longa, 13 anos, editou pouco, cerca de dois
títulos por ano. O pequeno número de títulos deveu-se à maneira especialmente
cuidadosa com que tratada essa produção editorial – cuja extensão das obras
editadas alcançava as 700 páginas por obra.
O texto do folheto de propaganda mostra como a Biblioteca dos Séculos se
apresentava ao seu público:
É preciso que se leiam os escritores do passado, as obras dos precursores do
pensamento e da literatura moderna [...] Estes livros não têm apenas valor histórico
ou tradicional: são livros vivos, livros eternos, livros de ontem, de hoje e de
de literatura traduzida pela Editora Globo (1930-1950). São Paulo: Edusp, 2000. p. 95.
14
MARTINS, Justino apud AMORIM, Sônia Maria de. Op. cit., p. 95.
38
amanhã [...]. E foi no intuito de proporcionar ao leitor brasileiro a oportunidade de
formar uma cultura geral de sólidos fundamentos que a Livraria do Globo
organizou a “Biblioteca dos Séculos”, da qual fazem parte somente aquelas obras
que atravessaram o tempo e a crítica, figurando, portanto, nas estantes eternas.15
Assim, as obras traduzidas das duas coleções, a Nobel e a Biblioteca dos
Séculos, se distinguiram no cenário literário brasileiro. A Coleção Biblioteca dos
Séculos se constituiu em várias obras consideradas clássicas, tais como Diálogos,
de Platão, traduzido do grego pelos professores Jorge Paleikat, Leonel Vallandro e
João Cruz Costa. Entre outros lançamentos, foram também traduzidos: Vontade de
potência, do filósofo alemão Friedrich Nietzsche; O contrato social e O discurso
sobre a origem e desigualdade entre os homens, de Jean Jacques Rousseau;
Ensaios, de Montaigne; A poética e A metafísica, de Aristóteles; O vermelho e o
negro, de Stendhal; A comédia humana, de Honoré de Balzac; Guerra e paz, de
Leon Tolstói. Nessa mesma coleção, a parte crítica e iconográfica de A comédia
humana ficou a cargo do intelectual Paulo Rónai. Na Coleção Nobel, por sua vez,
encontravam-se autores reconhecidos, tais como Cecília Meireles, Érico
Veríssimo, José Lins do Rego, Leonel Vallandro, Marques Rebello, Sérgio Millet.
Para a obra de Proust, foi contratado Mário Quintana.
Ao analisarmos alguns dados dessas pesquisas, é interessante notar que,
apesar do início de declínio da quantidade das traduções de obras francesas,
houve, em contrapartida, a tradução de importantes obras do francês que, até
então, não haviam chegado aos leitores brasileiros. Outra observação importante é
que, das inúmeras coleções da Editora Globo, as obras traduzidas do francês
ocupavam muitas vezes o primeiro lugar em vendagem. Além disso, as traduções
de A comédia humana, de Honoré de Balzac, e de Em busca do tempo perdido, de
15
AMORIM, Sônia Maria de. Op. cit., p. 98.
39
Marcel Proust, são consideradas marcos da história da tradução no Brasil. Parecenos que uma mudança social relativa à hierarquia das línguas no mundo, ou seja, o
fato de o francês ter perdido sua hegemonia, propiciou que obras consideradas
relevantes no cenário literário e traduzidas dessa língua alcançassem maior
distinção. Assim, ao traduzir obras francesas, logo “distintas”, a Editora Globo
passou a obter maior prestígio, que se reverteu em lucros financeiros.
1.4.2
A TRADUÇÃO PIONEIRA DE A COMÉDIA HUMANA
Segundo Amorim, poucos países editaram de forma completa A comédia
humana, de Balzac: Inglaterra, Itália e Alemanha. Os dezessete volumes de A
comédia humana correspondem aos volumes 30 a 46 da Biblioteca dos Séculos.
Os volumes tinham em média 600 páginas. O primeiro foi publicado em 1946 e
teve quatro edições, totalizando 20 mil exemplares impressos, fazendo deste um
dos best-sellers por tiragem da Biblioteca dos Séculos.
Coube a Paulo Rónai, um dos maiores estudiosos de Balzac, a tradução de A
comédia humana, que se constitui em um verdadeiro monumento editorial. Para
Sonia Amorim, algumas características dessa tradução a qualificam e a
distinguem de outras edições, sendo esta considerada, segundo o Museu Balzac,
de Paris, a melhor edição estrangeira da obra. Amorim destaca o que diferencia a
tradução brasileira das outras:16
– Tradução: Trata-se de uma tradução nova, que tomou por base a melhor
edição francesa, publicada pela Pléiade. Os tradutores, cerca de 20, foram
16
Fonte: AMORIM, Sônia Maria de. Op. cit., p. 116-118.
40
recrutados dentre os melhores de Porto Alegre e grandes nomes das letras
nacionais, dentre os quais: Aurélio Buarque de Holanda, Brito Broca, Carlos
Drummond de Andrade, Gomes da Silveira, Mario Quintana.
– Restabelecimento da divisão em capítulos: Por motivos de economia,
vários editores franceses foram suprimindo, ao longo do tempo, a divisão em
capítulos e os títulos existentes nas primeiras edições e nos manuscritos de
Balzac. A própria edição da Pléiade trazia um texto compacto, com extensos
parágrafos, sendo, consequentemente, bastante cansativos. A tradução brasileira
reintroduziu a divisão em capítulos e títulos primitivos, tornando a leitura mais
acessível e prazerosa ao nosso leitor.
– Documentação crítica: Vinte e seis ensaios críticos sobre o autor e a obra,
escritos por grandes mestres da crítica, alguns contemporâneos de Balzac,
acompanham a edição.
– Documentação iconográfica: Cento e sessenta ilustrações, que incluem
gravuras, desenhos e fotografias, constituem o acervo iconográfico, selecionado
também por Paulo Rónai.
– Biografia do autor: No volume I, uma biografia do autor, especialmente
escrita para essa edição, mostra o Balzac romancista, historiador, empresário.
– Prefácios: Cada um dos 89 romances e contos é precedido por um estudo
tradutório, que inform ao leitor o texto subsequente, estabelecendo uma conexão
com o restante da obra.
– Notas de pé de página: Cerca de 12 mil notas de pé de página foram
escritas para a edição brasileira de A comédia humana, em uma média de uma por
página. 17
17
BARROS, Débora de Castro. As notas do tradutor como lugar discursivo: uma análise das notas
41
Assim, na tradução de A comédia humana, contamos com tradutores de
peso; entretanto, o nome que se destaca é o de Paulo Rónai. Observamos que, para
traduzir uma obra consagrada e obter reconhecimento para essa tradução, é
necessário contratar tradutores de nome e reconhecimento, que possuam “marcas
de distinção”, ou seja, características perceptíveis nas preferências de consumo e
estilo de vida de determinado indivíduo que permitem que ele seja identificado
por outros membros da sociedade como pertencente a determinada classe social,
ao mesmo tempo que torna possível que ele se diferencie dos demais membros de
sua classe. No caso de Paulo Rónai, essas marcas são seu cabedal cultural.
Primeiramente quanto à formação, Rónai nasceu em Budapeste, em 13 de
abril de 1907, tendo feito seus estudos na capital húngara e se formado em
Literatura e Línguas Latinas e Neolatinas, em 1923, na Universidade Loránd
Eötvös. Filho do livreiro judeu Miksa Rónai, desde os sete anos já nutria uma
grande vontade de decifrar línguas. Rónai conta em Como aprendi português e
outras aventuras que, adolescente, alimentava “em segredo a esperança de
assenhorear-me, com o tempo, do maior número possível de idiomas: vinte, trinta,
talvez ainda mais”. Um de seus professores lhe assegurou que “só os 15 primeiros
eram difíceis”. E, nessa empreitada, o próprio Paulo Rónai declarava que, em sua
juventude, passeava por sebos europeus e adquiria os mais diversos livros e
gramáticas para estudá-los depois. Principiou o estudo de várias línguas, dentre
elas o hebraico, o finês (língua da família magiar que os candidatos a professor de
húngaro precisavam saber), o sânscrito, o dinamarquês (o qual não foi além da
primeira aula) e o turco. Porém, por razões diversas – “falta de tempo, de
de duas traduções brasileiras de O pai Goriot. Rio de Janeiro, 2009. Dissertação (Mestrado em
Letras Neolatinas – Estudos Linguísticos Neolatinos – Opção Língua Francesa) – Faculdade de
Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
42
entusiasmo, de perseverança”, conforme relata no mesmo livro –, o poliglota,
versado em muitas línguas, lamenta não ter aprendido todas elas.
Além disso, era professor de latim e de língua italiana em colégios de
Budapeste, tendo, também, se especializado em literatura francesa ao defender
uma tese sobre Balzac, em 1930. Assim, com bolsa de estudos do governo
francês, passou uma temporada na Sorbonne, entre 1930 e 1932. Nesse período,
graças a uma coleção de poesia de línguas latinas que conheceu na França, teve
seu primeiro contato com a língua portuguesa, por meio de As cem melhores
poesias da língua portuguesa, antologia organizada por Carolina Michaëlis.
Grande estudioso de Balzac (constam várias publicações suas sobre o
escritor francês), destacou-se por seu trabalho de editor em A comédia humana, o
qual implicava diversas tarefas, a saber: selecionar os tradutores e orientar a
tradução, bem como dar unicidade à obra mediante uma revisão cuidadosa –
durante a qual acabou por gerar inúmeras notas de tradução ao longo dos 17
volumes da edição brasileira.
Constam várias premiações recebidas por Rónai, inclusive do governo
francês, por seu trabalho com A comédia humana. Apesar de não ter sido
creditado publicamente pela Editora Globo, Rónai também é o organizador da
edição brasileira dos sete volumes de Em busca do tempo perdido, de Marcel
Proust.18 Como a primeira edição dessa obra saiu em outubro de 1948 e, na época,
Rónai tinha registro na carteira como chefe de escritório da Editora Globo, ficou
provada a sua atuação, o que foi corroborado em algumas entrevistas suas.
Assim, Paulo Rónai é reconhecido e legitimado não por ser unicamente
tradutor, mas por ser o intelectual que traduz. Esse fato valoriza a figura do
18
ESQUEDA, Marileide. O tradutor Paulo Rónai: o desejo da tradução e do traduzir. Tese
(Doutorado) – Unicamp/IEL, Campinas, 2004.
43
profissional da tradução, uma vez que não é qualquer um que traduz. Aproxima-se
o tradutor do intelectual. Além disso, Paulo Rónai tem papel fundamental na
qualidade das traduções literárias, deixando um legado que associa a tradução
literária à circulação de nível de conhecimento.
1.5
A EDITORA GLOBO E A TRADUÇÃO DE EM BUSCA DO TEMPO
PERDIDO
Vimos que, nos anos 1930, surgiu no País um novo foco de indústria
editorial fora do eixo Rio–São Paulo. Era a Editora Globo, localizada em Porto
Alegre, de propriedade de José Bertaso. Nela trabalharam e colaboraram as
principais autoridades literárias do País. Tinha como editor, à época, o
reconhecido escritor Érico Veríssimo, que veio a se tornar peça-chave da editora.
Veríssimo foi convidado a realizar o trabalho de editor na recém-criada Seção
Editora e tornou-se conselheiro literário da Globo, incentivando as publicações de
traduções. A partir de 1931, a editora passou a ser comandada por Henrique
Bertaso e Érico Veríssimo, tornando a Globo destaque no mercado editorial
brasileiro, principalmente graças às traduções de clássicos estrangeiros. Nesse
período, a tradução alcançou números nunca antes vistos no mercado editorial
brasileiro. A posição do tradutor no campo se modificou. Temos, então, os
autores-tradutores e o intelectual, que também passa a exercer o papel de tradutor,
como é o caso de Paulo Rónai.
É importante verificar não apenas o trabalho de pesquisa de Sônia Amorim
(2000) em sua dissertação de mestrado, transformada em livro intitulado Em
busca de um tempo perdido – edição de literatura traduzida pela Editora Globo,
44
no qual aponta as edições de literatura traduzida pela Editora Globo entre os anos
1930 e 1950, mas também outro relevante trabalho de pesquisa sobre essa editora,
elaborado por Elisabeth Rochade Torresini (1999), intitulado Editora Globo: uma
aventura editorial nos anos 30 e 40. Sirvo-me de dados presentes nessas
pesquisas a fim de analisar uma questão específica em nosso trabalho: as obras
francesas consagradas traduzidas nesse período.
Em busca do tempo perdido, em francês À la recherche du temps perdu, é
uma obra romanesca de Marcel Proust escrita entre 1908-1909 e 1922, publicada
entre 1913 e 1927 em sete volumes, sendo os três últimos postumamente. A
tradução brasileira foi iniciada por Mário Quintana (o primeiro volume, em 1948;
o segundo, em 1951; e os demais, durante a década de 1950) e editada pela
Editora Globo, de Porto Alegre.
Os originais surgiram nas seguintes datas:
– Du côté de chez Swann (pela Grasset, em 1913; depois uma versão
modificada foi lançada pela Gallimard em 1919).
– À l’ombre des jeunes filles en fleurs (pela Gallimard, em 1919; recebe o
prêmio Goncourt no mesmo ano).
– Le côté de Guermantes (pela Gallimard, em 1920-192,1em dois volumes).
– Sodome et Gomorrhe I et II (pela Gallimard, em 1921-1922).
– La prisonnière (póstumo, em 1925).
– Albertine disparue (póstumo, em 1927; título original: La fugitive).
– Le temps retrouvé (póstumo, em 1927).
Ao verificarmos quem são os tradutores, temos Mário Quintana, responsável
pelos quatro primeiros volumes: No caminho de Swann (1948), À sombra das
raparigas em flor (1951), O caminho de Guermantes (1953) e Sodoma e Gomorra
45
(1954). O quinto volume, A prisioneira, coube a Manuel Bandeira e Lourdes
Souza de Alencar (1954); o sexto, A fugitiva, a Carlos Drummond de Andrade
(1956); e o sétimo e último, O tempo redescoberto, a Lúcia Miguel Pereira
(1956). Apesar de não se poder dizer que Proust fosse um autor popular, o fato é
que sucessivas tiragens da Globo se esgotaram.
Para realizar tal empreitada, a editora lançou mão da experiência de publicar
A comédia humana, de Balzac, entre 1945 e 1955, em 17 volumes. O
empreendimento Balzac foi orquestrado por Paulo Rónai, que coordenou a equipe
de tradutores e selecionou pessoalmente as introduções dentre o que de melhor
havia na crítica internacional. Já a Recherche sairia em sete volumes, e o
cotejamento com o original francês foi realizado também por Paulo Rónai.
A partir desses projetos, segundo Teresa Dias Carneiro (2007), a Editora
Globo passou a contratar tradutores de renome em tempo integral; além disso, o
nome do tradutor passou a ser citado na página de rosto, o que raramente
acontecia
anteriormente.
Esse
fato
contribuiu
para
um
aumento
da
responsabilidade e da visibilidade do tradutor. Outra mudança em relação ao
tratamento da tradução foi o fato de todas as traduções passarem por uma revisão
em dois estágios: primeiramente, por um cotejamento com o original e, depois,
por uma revisão gramatical e tipográfica. Em um terceiro estágio, as modificações
eram discutidas entre o revisor e o tradutor. Assim, esses projetos tiveram
importância fundamental na melhoria de qualidade das traduções literárias no
Brasil, bem como na melhoria das condições de trabalho do tradutor.
1.6
MÁRIO QUINTANA TRADUTOR
46
Dentre os autores-tradutores, destaca-se Mário Quintana. Nascido no dia 30
de julho de 1906, na cidade de Alegrete, no Rio Grande do Sul, o poeta iniciou na
infância o aprendizado da língua francesa, idioma muito usado em sua casa. Aos
13 anos, em 1919, foi estudar em regime de internato no Colégio Militar de Porto
Alegre, onde também estudou o idioma.
Em 1930, a Revista do Globo e o Correio do Povo publicam seus versos e,
quatro anos depois, a Editora Globo lança a primeira tradução de Quintana, seis
anos antes de seu primeiro livro editado. Trata-se de uma obra de Giovanni
Papini, intitulada Palavras e sangue, publicada na época em que esse autor
italiano era reconhecido no Brasil. A partir daí, segue-se uma série de obras
francesas traduzidas para a Editora Globo. O poeta foi um dos responsáveis pelas
primeiras traduções no Brasil de obras de autores canônicos. A tradução exerceu
grande influência na carreira de escritor de Mário Quintana.
Dois anos depois, ele transferiu-se para a Livraria da Editora Globo, onde
foi trabalhar com Érico Veríssimo, também fluente em língua francesa. É por essa
época que seus textos publicados na revista Ibirapuitan chegam ao conhecimento
de Monteiro Lobato, que pede ao poeta gaúcho uma nova obra. Quintana escreve,
então, Espelho mágico, que só é publicado em 1951, com prefácio de Lobato.
Mário Quintana traduziu clássicos da literatura mundial. O número exato
das obras que traduziu, no entanto, é controverso, pois o poeta gaúcho usava
pseudônimos e nem mesmo se lembrava de quantos livros traduzira, fato por ele
confessado em inúmeras entrevistas. Exímio conhecedor da língua francesa,
afirmava ter vindo da Belle Époque, e foi desse idioma que trouxe a maior parte
das obras que traduziu. Mário Quintana costumava reclamar da desvalorização da
47
atividade. Dizia que uma tradução, quando bem feita, era a estreia do autor
estrangeiro na literatura de língua portuguesa e se ressentia de que isso não fosse
levado em conta pelos críticos e leitores. De 1937 a 1946, pelo menos uma obra
por ano de algum autor estrangeiro seria lida em português graças ao poetatradutor.
Em 1948, é publicada sua tradução mais famosa: o volume No caminho de
Swann, de Em busca do tempo perdido. Da obra de Marcel Proust, Quintana
traduziria, ainda, os volumes À sombra das raparigas em flor, em 1951, O
caminho de Guermantes, dois anos depois, e Sodoma e Gomorra, em 1954.
Lançada no Brasil pela Editora Globo, a tradução do francês teria também a
participação dos poetas Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, que se
ocupariam dos três volumes restantes. “Uma boa companhia”, dizia Quintana, em
alusão aos colegas.
A fim de exemplificar a importância para a tradução no Brasil da estreita
ligação entre Quintana e a Editora Globo, apresentamos a seguir, ordenados por
ano de publicação, diversos autores estrangeiros consagrados que foram por ele
traduzidos para a referida editora:
Traduções
PAPINI, Giovanni. Palavras e sangue. Porto Alegre: Globo, 1934.
MASYAT, Fred. O navio fantasma. Porto Alegre: Globo, 1937.
VARALDO, Alessandro. Gata persa. Porto Alegre: Globo, 1938.
LUDWIG, Emil. Memórias de um caçador de homens. Porto Alegre: Globo,
1939.
48
CONRAD, Joseph. Lord Jim. Porto Alegre: Globo, 1939.
STACPOOLE, H. de Vere. A laguna azul. Porto Alegre: Globo, 1940.
GRAVE, R. Eu, Claudius imperador. Porto Alegre: Globo, 1940.
MORGAN, Charles. Sparkenbroke. Porto Alegre: Globo, 1941.
YUTANG, Lin. A importância de viver. Porto Alegre: Globo, 1941.
BRAUN, Vicki. Hotel Shangai. Porto Alegre: Globo, 1942.
FULOP-MILLER, René. Os grandes sonhos da humanidade. Porto Alegre:
Globo, 1942 (em parceria com R. Ledoux).
MAUPASSANT, Guy de. Contos. Porto Alegre: Globo, 1943.
LAMB, Charles; LAMB, Mary Ann. Contos de Shakespeare. Porto Alegre:
Globo, 1943.
GIDE, André. A escola das mulheres. Porto Alegre: Globo, 1944.
MORGAN, Charles. A fonte. Porto Alegre: Globo, 1944.
MAUROIS, André. Os silêncios do coronel Branble. Porto Alegre: Globo, 1944.
LEHMANN, Rosamond. Poeira. Porto Alegre: Globo, 1945.
JAMES, Francis. O albergue das dores. Porto Alegre: Globo, 1945.
LAFAYETTE, Condessa de. A princesa de Clèves. Porto Alegre: Globo, 1945.
BEAUMARCHAIS. O barbeiro de Sevilha ou a precaução inútil. Porto Alegre:
Globo, 1946.
WOOLF, Virginia. Mrs. Dalloway. Porto Alegre: Globo, 1946.
PROUST, Marcel. No caminho de Swann. Porto Alegre: Globo, 1948.
BROW, Frederick. O tio prodigioso. Porto Alegre: Globo, 1951.
HUXLEY, Aldous. Duas ou três graças. Porto Alegre: Globo, 1951.
MAUGHAM, Somerset. Confissões. Porto Alegre: Globo, 1951.
PROUST, Marcel. À sombra das raparigas em flor. Porto Alegre: Globo, 1951.
49
VOLTAIRE. Contos e novelas. Porto Alegre: Globo, 1951.
BALZAC, Honoré de. Os sofrimentos do inventor. Porto Alegre: Globo, 1951.
MAUGHAM, Somerset. Biombo chinês. Porto Alegre: Globo, 1952.
THOMAS, Henry; ARNOLD, Dana. Vida de homens notáveis. Porto Alegre:
Globo, 1952.
GREENE, Graham. O poder e a glória. Porto Alegre: Globo, 1953.
PROUST, Marcel. O caminho de Guermantes. Porto Alegre: Globo, 1953.
______. Sodoma e Gomorra. Porto Alegre: Globo, 1954.
BALZAC, Honoré de. Uma paixão no deserto. Porto Alegre: Globo, 1954.
MÉRIMÉE, Prosper. Novelas completas. Porto Alegre: Globo, 1954.
MAUGHAM, Somerset. Cavalheiro de salão. Porto Alegre: Globo, 1954.
BUCK, Pearl. Debaixo do céu. Porto Alegre: Globo, 1955.
BALZAC, Honoré de. Os proscritos. Porto Alegre: Globo, 1955.
______. Seráfita. Porto Alegre: Globo, 1955.19
Mário Quintana, além da atividade ligada à poesia, traduziu não somente os
quatro volumes de À la recherche du temps perdu, de Proust, como também,
dentre outros autores franceses, Voltaire, Honoré de Balzac e André Gide.
Também, como já visto, traduziu reconhecidos autores de língua inglesa, como
Aldous Huxley, Virginia Woolf e Joseph Conrad. Muitos desses autores estrearam
na língua portuguesa graças às suas traduções. Observamos que exerceu sua
atividade de tradutor principalmente ao longo da década de 1930, continuando a
traduzir, paralelamente a seu trabalho como poeta, nos anos 1940 e 1950.
19
DITRA. Dicionário de tradutores literários no Brasil. Florianópolis. Disponível em:
<http://www.dicionariodetradutores.ufsc.br>. Acesso em: 10 maio 2010.
50
Cláudia Borges de Faveri e Eleonora Castelli, no artigo intitulado “Em
busca do tradutor: Proust e Mérimée por Mario Quintana”, no qual estudam as
traduções feitas pelo poeta Mário Quintana de Carmen, de Prosper Mérimée, e de
À sombra das raparigas em flor (À l’ombre des jeunes filles en fleur), de Marcel
Proust, baseando-se na análise das etapas do processo tradutório empreendida por
Antoine Berman e na abordagem do “tradutor de carne e osso”, de Anthony Pym,
denotam a estreita ligação do trabalho de tradução de Quintana com a Editora
Globo de Porto Alegre.
Assim, observamos o passo à frente que representaram as traduções dos
autores-tradutores nesse período, bem como a valorização do trabalho dos
tradutores a partir daí. Dessa forma, as traduções foram legitimadas por esses
tradutores. Constatamos, também, que textos canônicos foram traduzidos nesse
período e que o tradutor literário, muitas vezes relegado a um plano secundário ao
longo da história da tradução no Brasil, apagado, na maioria das vezes, na Era
Vargas (anos 1930 a 1945), passou a ter um destaque. Época em que interessava
saber quem era o tradutor e a importância de seu nome para o sucesso de vendas
da obra traduzida. Época dos autores-tradutores.
51
2
A TRADUÇÃO LITERÁRIA NO CONTEXTO SOCIAL –
FIDELIDADE, ETNOCENTRISMO
E INVISIBILIDADE DO TRADUTOR
No capítulo anterior, observamos, ao traçarmos uma pequena historiografia
da tradução no Brasil, que a chegada da Família Real propiciou a formação da
atividade da tradução no País. Assim, os tradutores não eram mais os religiosos, e
as traduções passaram, gradativamente, então, a constituir um mercado e a atender
às demandas de um pequeno público letrado e da nobreza aqui instalada,
podendo-se dizer que se tratava de um começo das traduções literárias no Brasil.
Constatamos que o século XIX viu aumentar o número de obras traduzidas,
principalmente graças aos romances-folhetins, e que alguns escritores, como
Machado de Assis, por exemplo, foram responsáveis por inúmeras traduções.
Notamos que a atividade da tradução no País somente obtém maior
reconhecimento a partir da primeira metade do século XX, com a estruturação de
um espaço social de produção de atividade de tradução formado por editoras, tais
como a Editora Globo e a José Olympio, tradutores – escritores atraídos para essa
atividade – e público leitor, formado de diversas classes sociais no Brasil.
Observamos, também, quanto à maneira de traduzir, que o modelo chamado na
França de Belles Infidèles era o mais presente nas traduções no País até o século
XIX, tendo sido essa a maneira preponderante de traduzir obras literárias,
seguindo regras que privilegiavam a língua e a cultura de chegada, cuja intenção
seria a de facilitar a leitura pelo público consumidor de tais obras. Essa maneira
de executar uma tradução, ainda presente nos dias de hoje, traz à tona questões
que sempre foram caras aos estudos tradutológicos: a fidelidade e o etnocentrismo
52
nas traduções, que são apontados, também, como determinantes para se avaliar
uma tradução.
Observamos que, na Era Vargas, houve um crescimento das críticas em
relação às traduções. Assim, estas eram comentadas e havia uma circulação de
valores que as qualificavam de boas ou más. Procuraremos mostrar como o
conceito do que seja uma boa tradução varia de acordo com diferentes
perspectivas.
A respeito da “definição” de tradução literária, Joseph Lambert (1998)
declara que esse conceito não é tão evidente quanto possa parecer. Afirma
Lambert que, assim como o conceito de “literatura”, o de tradução também não é
consensual, e suas fronteiras com conceitos como “adaptação” e “imitação” não
estão claras na maioria das vezes, tampouco estão traçadas da mesma forma em
diferentes momentos da história, nem sequer em um mesmo período histórico da
mesma comunidade linguística. Assim, a chamada “tradução literária” é o lugar
no qual a discussão das diferenciações entre “tradução”, “adaptação”,
“transcriação” e “imitação” parece ser mais frequente.20 Não discutiremos
propriamente a origem de tais conceitos; entretanto, é necessário que tenhamos
consciência de que eles põem em xeque o valor da tradução pelo ângulo da
oposição original versus cópia, o que será explicitado ao longo do trabalho.
A fim de refletirmos sobre o valor de uma tradução, partiremos da pergunta
de Paulo Henriques Britto (2007): É possível avaliar traduções? Afirma o autor
que as traduções somente poderiam ser julgadas por pessoas que delas não têm
necessidade, cabendo, portanto, aos críticos avaliar as traduções, com o objetivo
20
CINTRÃO, Heloísa Pezza. Notas para um estudo da tradução literária do espanhol no Brasil. In:
ROJO, Sara et al. (Orgs.). Anais do V Congresso Brasileiro de Hispanistas [e] I Congresso
Internacional da Associação Brasileira de Hispanistas, 2008. p. 2.723-2.731.
53
de orientar o consumidor sobre as traduções disponíveis no mercado. Mas, haveria
como avaliar objetivamente o valor de uma tradução? Sobre essa questão, indaga:
Como avaliar a nova tradução do Ulysses de Joyce feita por Bernardina da Silveira
Pinheiro em relação à antiga, assinada por Antônio Houaiss? Ou a nova tradução
de Proust de Fernando Py em comparação com a empreendida no passado por um
grupo de tradutores que incluía Carlos Drummond de Andrade e Mário Quintana?21
Ao discutir a questão da avaliação de uma tradução, Britto recorre a
Lefevere, para quem apenas o leitor bilíngue, conhecedor do tipo de obra que
julga, estaria capacitado para emitir tais juízos de valor. O autor levanta outra
colocação possível em relação à avaliação das traduções, ao afirmar ser “possível
defender uma outra posição: a de que ninguém deve fazer o trabalho de avaliação
de traduções”.22 Afirma que os argumentos em favor dessa posição são vários e
que possivelmente o principal deles seja o fato de que todos os juízos de valor são
relativos, que não há critérios absolutos com base nos quais se possam estabelecer
avaliações definitivas. Nesse caso, conclui: “na melhor das hipóteses, a crítica só
revela que o crítico que aprova/reprova uma tradução parte de pressupostos
semelhantes a/diferentes dos que são adotados pelo tradutor em questão”.23
Chama a atenção, também, para o fato de não haver uma linha nítida separando,
por exemplo, as traduções das adaptações, sendo inúmeros os casos limítrofes, o
que bastaria para desqualificar a proposta de diferenciar uma categoria da outra.
Ao discutir essas questões em relação à tradução, Britto indaga: “será
possível não avaliar?” Ao que ele mesmo responde: “É simplesmente impossível,
em algum momento, não julgar; o máximo que se pode fazer é suspender por
algum tempo o ato de julgar, e escamoteá-lo quando ele surgir. Mais cedo ou mais
21
BRITTO, Paulo Henriques. É possível avaliar traduções?. Tradução em Revista, Rio de Janeiro:
PUC-Rio, n. 4, 2007. Disponível em: <http://www.maxwell.lambda.ele.puc-rio.br/cgibin>.
22
Id.
23
Id.
54
tarde, somos levados a fazer juízos de valor e a agir com base neles”. Afirma que
“mesmo o leitor sempre se perguntará se a tradução é de fato confiável; se tiver
acesso ao original e condições de consultá-lo, ele o fará – e, neste momento,
estará novamente avaliando a tradução”.
A crítica seria, então, a principal responsável pela emissão de valores em
relação à tradução. Em relação à crítica de traduções no Brasil, o trabalho de
Regysane Botelho Cutrim Alves (2009) mostra que são poucas. Em nossa
pesquisa, observamos que há de fato pouca, para não se dizer quase nenhuma,
crítica em relação ao nosso objeto de estudo, a tradução de Em busca do tempo
perdido efetuada por Mário Quintana. O que há, em abundância, é a emissão de
juízos de valores, com ínfima base reflexiva, sem haver tampouco critérios
estabelecidos para a emissão desses juízos, o que nos conduz à conclusão de que,
como se trata de uma tradução de tal modo consagrada pela estrutura do campo,
não se consegue distinguir entre a significação estabelecida para a tradução e
aquilo que constitui o arbitrário dissimulado pelo efeito da legitimação. Assim,
essa questão da consagração e da legitimação conduziu nosso interesse para a
teoria dos campos simbólicos, de Pierre Bourdieu, que mostra a produção social
de um bem simbólico, no nosso caso, a tradução, além de possuir a vantagem de
tornar evidente como se constitui o valor de uma tradução e a sua consagração
estabelecida pelo campo de produção simbólica.
Primeiramente, verificaremos, em diferentes teorias, a concepção do que
seja uma boa tradução. Observaremos que, em uma visão dita tradicional, a
questão da fidelidade é apresentada como essencial ao julgamento do que seja
uma boa tradução. Depois, com as teorias de Antoine Berman e Lawrence Venuti,
veremos a tradução sob uma perspectiva social, uma vez que esses autores
55
demonstram certos aspectos sociais que incidem no posicionamento do tradutor
diante do seu fazer. Um exemplo disso é a definição da tradução como
etnocêntrica, e não o fato de ser etnocêntrica como critério de qualidade de uma
tradução. Apresentaremos, em seguida, a teoria dos polissistemas, que analisa a
tradução sob uma perspectiva sociológica.
Por fim, enfatizaremos a importância de se estudar a tradução sob uma
perspectiva sociológica para a compreensão de sua consagração dentro de um
campo. Nessa perspectiva, observaremos que, segundo Johan Heilbron e Gisele
Sapiro,24 além do texto em si, questões propriamente sociológicas surgem,
principalmente no que tange às funções da tradução e a seus agentes no espaço em
que se encontram.
2.1
A FIDELIDADE E A VISÃO TRADICIONAL
DA TRADUÇÃO LITERÁRIA
Solange Mittmann (2003), ao resgatar algumas teorias a respeito da
tradução, apresenta três autores que compartilham daquilo que a autora chama de
uma perspectiva tradicional da tradução:* Eugene A. Nida, Erwing Theodor e
Paulo Rónai. Consideramos importante expor algumas questões apresentadas por
esses autores, a partir da leitura de Mittmann, uma vez que dessa concepção
tradicional advém um modo recorrente de considerar a tradução e o tradutor, e da
qual decorre a desvalorização da tradução e, consequentemente, do tradutor.
24
Ibid.
Esse quadro constitui uma visão geral e por isso foram escolhidos teóricos da segunda metade do
século XX, pois acreditamos que essa concepção dita tradicional ainda esteja muito presente nos
estudos sobre a tradução.
*
56
Eugene Nida introduziu, a partir dos anos 1960, uma novidade em
metodologia de tradução da Bíblia que ficou conhecida como equivalência
dinâmica. Segundo esse método, o tradutor começaria por decompor
analiticamente a estrutura de superfície da mensagem em seus conceitos básicos,
transferindo depois esses conceitos da língua de origem para a receptora,
reestruturando, em seguida, todo o material transferido, de modo a construir uma
mensagem “coerente”, no estilo da língua receptora. Assim, Nida considera a
tradução como um mecanismo capaz de transportar de modo transparente uma
mensagem de uma língua para outra. Segundo o autor, esse mecanismo se
iniciaria com a decodificação pelo tradutor – que, nesse momento, ocupa o papel
de receptor da mensagem de uma língua A e termina com sua recodificação na
língua B. Nessa perspectiva da tradução como transferência, Nida alerta para o
perigo da distorção da mensagem original em função da interferência exercida
pelo tradutor, a partir de sua subjetividade e de seu envolvimento emocional.
Outro autor que também concebe a ideia de tradução como transferência é
Theodor. A fim de que essa transferência se efetive, Theodor enfatiza a
necessidade da “interpretação correta” do texto original pelo tradutor. A respeito
da tradução literária, afirma que o primeiro passo do trabalho do tradutor é a
decodificação das informações, sendo o segundo sua recodificação em um novo
texto. Nessa perspectiva, a tradução é vista como transposição, cabendo ao
tradutor “aproveitar todos os recursos que seu idioma lhe reserva”, a fim de
“oferecer uma mensagem o mais próxima possível ao texto original”. Ressalta,
ainda, em relação à tradução literária, que o tradutor deve ser capaz de recodificar,
além do sentido da mensagem, “as suas conotações culturais e civilizatórias”.
Theodor apresenta a distinção entre tradução, versão e recriação. Define a
57
tradução como “trabalho consciente e exato de transposição de um idioma para
outro, entretanto, desprovido de cunho artístico”; dessa maneira, a tradução está
baseada na correspondência entre as palavras. Para o autor, a versão é “o trabalho
de transposição, exato e artístico”, que busca “conservar a harmonia do todo”, e a
recriação é o trabalho de passagem de um texto para outro idioma, artístico, mas
pouco exato. Assim, para Theodor, a tradução e a versão exigem uma
transposição exata, ao passo que a inexatidão caracterizaria a recriação.
Também nessa perspectiva tradicional, segundo Mittmann, Paulo Rónai
define a tradução como “reformulação de uma mensagem num idioma diferente
daquele em que foi concebida”. Salienta Rónai que a tradução não é uma
atividade mecânica de substituição de palavras, como se estivessem isoladas, já
que “as palavras não possuem sentido isoladamente, mas dentro de um contexto”.
É importante ressaltar que o autor chama de contexto as palavras, as frases, a
página, o parágrafo ou o que for necessário para determinar “o sentido” e,
consequentemente, reformulá-lo na língua de chegada. O importante, para Rónai,
é a “mensagem do texto original”. Dessa maneira, a tradução não seria uma
transferência de sentidos de uma palavra para outra equivalente, mas a
transferência de uma mensagem. Nesse sentido, a “fidelidade”, segundo o autor,
seria respeitar a língua de tradução, respeitando o que diz o autor do original, sem
interferir ou deformar a mensagem, pois o tradutor faz o papel de “procurador do
autor, antes que seu colaborador”.
Sob essa ótica, a boa ou a melhor tradução seria aquela que decodificasse a
mensagem do original, uma vez que esses três autores concebem a tradução como
decodificação do pensamento do autor. Observamos, também, que a subjetividade
do tradutor é tomada como empecilho para a tradução ideal, cabendo-lhe lutar
58
para manter-se o mais neutro possível, a fim de fazer fluir a mensagem do
original. Sob essa perspectiva, essas teorias tomam como base para o estudo da
tradução apenas o texto e a língua. Nessa visão tradicional, tem-se a ideia da
tradução como uma atividade meramente mecânica, em que seu agente, o tradutor,
é visto como uma “ponte” entre as ideias do chamado texto original, ou entre as
ideias desse texto e o texto traduzido. Assim, há uma idealização do texto original,
confundindo-se o sentido com as intenções do autor, uma vez que se acredita na
transparência e na estabilidade dos sentidos. O texto original é visto como
sagrado, e o tradutor quase sempre é visto como um “mal necessário”, esperandose dele sua “neutralidade”, a fim de que seja um mero canal ou ponte, para que o
texto original flua no texto traduzido, e cujo maior mérito seria o apagamento total
de sua figura. Nesse contexto, grande parte das teorias voltadas para a reflexão
sobre a tradução, de uma maneira geral, tratavam dessa atividade como uma
simples transferência de signos e significados, tendo o tradutor, nesse processo,
um papel, quase mecânico, de mediador, bastando que possua um conhecimento
gramatical adequado de dois ou mais idiomas e um bom dicionário para realizar a
sua tarefa.
Podemos observar que, na perspectiva, dita tradicional, o valor da tradução
é estabelecido por uma pretensa transparência do tradutor, que efetivaria uma
transposição com uma relação direta entre o original e o texto traduzido. A ideia é
de que haveria uma fidelidade entre o original e a tradução. Na verdade, não há
como a subjetividade do tradutor estar excluída do trabalho produzido. Não há
como esse trabalho estar fora das relações sociais e da cultura produzida em torno.
Torna-se impossível o tradutor estar isento do trabalho exercido, uma vez que ele
mesmo participa da sociedade da cultura em que vive.
59
Lenita Esteves (1997), ao levantar a questão da originalidade, afirma que o
chamado texto original, por ser um texto “inédito”, “diferente”, “inventivo”, seria
único. Espera-se do texto traduzido que não seja o original, “embora a grande
quimera alimentada nessa atividade seja justamente a de que a tradução seja o
original”. Assim, a tradução deve repetir, de alguma maneira, a inventividade de
um texto original, mas existe uma necessidade de que essa repetição seja de algum
modo diferente e inferior, pois essa inferioridade da tradução garantiria o valor, a
inventividade e a autonomia de um texto original. Sobre essa questão, afirma:
Voltemos à questão da não perfeição das cópias. Por que será que uma tradução, na
qualidade de cópia de um “original”, nunca é perfeita? Ou, pelo menos, não é
perfeita eternamente? Na minha opinião, justamente pelo estatuto de cópia que a
tradução tem. Costuma-se dizer que as traduções envelhecem, e o original não.
Mas como um texto do século XVII pode ser mais atual que uma tradução desse
mesmo texto feita há apenas vinte anos? Se aceitarmos que traduções diferentes,
realizadas em diferentes épocas e contextos, conferem a esse texto do século XVII
colorações diversas, está respondida a questão, que não consistia na verdade em
nenhum enigma. Assim, uma tradução teria as “marcas” da época em que foi
produzida. Mas e o original, por que ele não teria essas mesmas marcas?25 (grifos
nossos)
É justamente o estatuto de cópia que faz com que a tradução não seja única,
assim como o tradutor também não o é, uma vez que uma mesma obra pode ser
traduzida por vários tradutores. Nessa perspectiva, o original, sim, seria único,
assim como o autor desse original.
25
ESTEVES, Lenita. Tradução fiel: a quem? a quê? por quê?. Estudos Acadêmicos Unibero, São
Paulo, v. 5, p. 64-71, 1997.
60
2.2
O ETNOCENTRISMO E A RELAÇÃO DO TRADUTOR COM A
CULTURA DE CHEGADA E DE PARTIDA
Conforme acabamos de observar, os estudos da tradução literária, vistos
pelo ângulo dos estudos linguísticos apresentados, tinham por base uma tradição
que objetivava o acesso direto ao “sentido” do texto, considerando-se unicamente
a relação entre as línguas de chegada e partida. Dessa maneira, era colocada de
lado a diversidade dos agentes implicados na tradução – tradutores, estudiosos da
produção literária, escritores, mediadores diversos e mesmo o público em seu
espaço histórico e social de recepção das obras. Graças às rupturas operadas pelo
pós-estruturalismo nessa concepção dita tradicional, principalmente em relação às
novas teorias de concepção da linguagem, que questionam a estabilidade dos
sentidos, temos uma nova noção da tradução, não mais como uma transmissão
imediata de mensagens, mas como produção de sentidos. Destarte, o papel do
tradutor passou a ser tema de destaque nas pesquisas sobre o fazer tradutório. A
tradução, que, até então, era tida como uma atividade que não necessitava de
grandes reflexões, sendo estudada geralmente sob a perspectiva da prática, passa a
ser percebida como um espaço para discussões e reflexões que não ficam restritas
ao texto e à língua. Assim, para alguns teóricos, já havia a necessidade de abordar
o assunto de forma a possibilitar espaço para uma teoria que se ocupasse de
maneira mais específica de questões referentes à tradução. Por conta disso, em
meados do século XX, mais precisamente entre as décadas de 1970 e 1980, teve
início um processo de institucionalização de uma área voltada especificamente
para os Estudos da Tradução. Nesse novo cenário, teóricos como o francês
Antoine Berman e o americano Lawrence Venuti passam a se destacar como
61
pensadores da tradução na contemporaneidade, ao propor reflexões sobre a
tradução que vão além da dicotomia teoria/prática:
[...] Não se trata aqui de teoria de nenhuma espécie. Mas sim de reflexão [...].
Quero situar-me inteiramente fora do quadro conceitual fornecido pela dupla
teoria/prática, e substituir esta dupla pela da experiência e da reflexão. A relação
entre a experiência e a reflexão não é aquela da prática e da teoria. A tradução é
uma experiência que pode se abrir e se (re)encontrar na reflexão.26
Apresentaremos as concepções dos teóricos Lawrence Venuti e Antoine
Berman, pois eles configuram uma ruptura em relação à perspectiva tradicional,
principalmente no que tange à questão do etnocentrismo na tradução e à posição
tradutiva do tradutor, apresentando uma nova perspectiva do que seria uma
“melhor” tradução de um original.
O teórico americano Lawrence Venuti (2002) difere daqueles teóricos
tradicionais, sobre os quais discorremos anteriormente, principalmente na crítica
que faz à tradução doméstica ou etnocêntrica e à invisibilidade do tradutor.
Afirma Venuti que a tradução é estigmatizada como uma forma de escrita
desencorajada pela lei de direitos autorais e depreciada pelas academias,
apontando que o fator preponderante para a marginalidade da tradução é a
impossibilidade de ser provida de autoria. Assim, enquanto a autoria é valorizada
como originalidade, autoexpressão, produção de um texto único, a tradução é vista
como derivada, não sendo autoexpressão, nem um texto único, mas uma imitação
de outro texto. A tradução seria, assim, desmerecida, pois traria como marca a
falta de autenticidade, a distorção e a contaminação de algo que seria original e
único.*
26
BERMAN, Antoine. A tradução e a letra, ou o albergue do longínquo. Tradução Marie-Hélène
Catherine Torres, Mauri Furlan e Andréia Guerini. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007. p. 18; grifos do
autor.
*
Em fevereiro de 1998, foi sancionada a Lei no 9.610, que consolidou as regras de direitos autorais
no Brasil. Essa lei considera a tradução como uma obra protegida pelo direito autoral.
62
Segundo Venuti, as traduções são produzidas por muitas razões e para
diferentes públicos, e, desse modo, o tradutor tenderia a tomar uma posição diante
do texto original que se expressasse nos princípios e nos esquemas de execução
das traduções. Segundo o autor, duas são as posições efetivadas pelo tradutor: a
tradução doméstica ou etnocêntrica, que pretende afastar a estranheza ao
privilegiar a clareza, a fácil legibilidade, a linguagem mais familiar; e a não
etnocêntrica, que é favorável à cultura de partida.
Na maneira de traduzir denominada doméstica ou etnocêntrica, o texto
traduzido se apresentaria como se fosse escrita original, uma expressão da
intenção do autor estrangeiro, uma vez que a figura do tradutor estaria oculta.
Esse tipo de tradução criaria a ilusão de estarmos lendo o texto original na língua
de chegada. Já a maneira de traduzir não etnocêntrica realizaria o contrário, ou
seja, não traduziria de forma a privilegiar a cultura de chegada, mas demonstraria
o “estrangeiro” na tradução.
Essa ocultação da figura do tradutor, entendida como uma invisibilidade de
sua posição na tradução, é discutida por Venuti27 em The translator’s invisibility –
a history of translation, uma referência no campo dos Estudos da Tradução. Nessa
obra, o autor aponta que essa é a posição mais comum na produção das traduções,
responsável
pela
invisibilidade
do
tradutor28
e
por
sua
consequente
marginalização. Venuti29 afirma que, uma vez que editores e leitores desejam uma
leitura fluente por parte do leitor, sem que o faça pensar ou mesmo perceber que
se trata de uma tradução, privilegia-se um “apagamento” do tradutor,
possibilitando que as traduções sejam lidas como se escritas no original,
27
VENUTI, Lawrence. The translator’s invisibility: a history of translation. Londres: Routledge,
1995.
28
FROTA, M. P. Lawrence Venuti e a teoria da (in)visibilidade do tradutor. In: A singularidade
na escrita tradutora. Campinas: São Paulo, 2000. Cap. II, p. 71-136.
29
VENUTI, Lawrence. Escândalos da tradução.Tradução Laureano Pelegrin. Bauru: Edusc, 2002.
63
eliminando-se, assim, as diferenças culturais. O teórico propõe uma posição de
visibilidade do tradutor que acarretaria a valorização de seu trabalho, tanto em
termos de regulamentação e de remuneração quanto de prestígio cultural. O norteamericano reconhece que alguma apropriação etnocêntrica é inevitável, mas
afirma que o tradutor deve se mostrar visível e revelar em seu texto o elemento
estrangeiro e seu modo de significar. Dessa forma, o texto traduzido não
apareceria como doméstico.
Venuti critica a visão tradicional de autoria, segundo a qual a tradução é
definida como uma representação inferior ao original, sendo este, sim,
considerado a expressão autêntica da personalidade e das intenções de seu autor.
Para Venuti, o tradutor não deveria aceitar sua condição demérita e lutar pela
legitimidade do produto de seu ofício. Essa estratégia se constituiria em um tipo
de ato tradutório no qual o texto traduzido parecesse realmente uma tradução, ao
não apagar traços da cultura do original. Desse modo, Venuti (1995) questiona o
tradicional conceito de autoria única do texto original, criticando o conceito de
sujeito cartesiano, e afirma, em relação à subjetividade, que esta é: “[...]
constituída por determinações culturais e sociais que são diversas e mesmo
conflitantes, que medeiam qualquer uso da linguagem e que variam segundo cada
formação social e cada momento histórico”.30
Ao conceber a subjetividade como uma dimensão necessariamente
constituída pelo social e pelo histórico, Venuti nega a possibilidade de autoria
como criatividade absolutamente individual. Nega, assim, a dicotomia entre a
tradução livre e a tradução fiel, ao mostrar que nem uma nem outra podem de fato
ocorrer, já que não é possível ao tradutor despojar-se de sua bagagem ideológica e
30
Ibid.; tradução nossa.
64
cultural que o constitui como sujeito. Assim, a suposta neutralidade do ato
tradutório é apresentada como um efeito ilusório, gerada por determinada posição
do tradutor.
Segundo Venuti (1995, p. 15), a tradução etnocêntrica forma a subjetividade
dos leitores dos textos traduzidos na língua de chegada, por propiciar um processo
de “espelhamento” e seu autorreconhecimento na obra traduzida. O teórico afirma
que o texto estrangeiro torna-se inteligível quando o leitor se reconhece na
tradução, identificando os valores domésticos que motivaram a seleção daquele
texto estrangeiro em particular e que nele são inscritos por meio de estratégia
específica. Assim, as traduções colocam os leitores em inteligibilidades
domésticas que também são posições ideológicas, conjuntos de valores, crenças e
representações que favorecem os interesses de certos grupos sociais em
detrimento de outros. Essa fluência das traduções atende a imposições
econômicas, uma vez que, quanto mais “legível”, isto é, quanto mais o seu leitor
nela reconhecer sua própria cultura, mais “consumível” e rentável a tradução será.
As ideias de Lawrence Venuti se coadunam com as de Antoine Berman,
quando este propõe uma resistência às tendências etnocêntricas da tradução, visto
que para ambos a tendência etnocêntrica da tradução seria responsável por essa
invisibilidade (e, consequentemente, por seu desmerecimento) do tradutor. Nesse
ponto, não nos deteremos na extensa teoria tradutória do autor francês. Entretanto,
esse aspecto de sua teoria é relevante, na medida em que nos conduz ao que
Berman denomina posição tradutiva. Esse aspecto nos interessa, uma vez que a
posição tradutiva, tal como nos é apresentada por Berman, constitui-se em uma
posição social do tradutor diante do texto original a ser traduzido. Afirma Berman
que não há tradutor sem posição tradutiva, embora ela não seja claramente
65
anunciada. Para ele, a fidelidade ao sentido é a infidelidade à letra, fidelidade
relacionada com o jogo de significantes. O tradutor deveria assumir uma posição
de visibilidade, com liberdade para buscar uma relação que não apenas
assimilasse o estrangeiro, mas que fizesse aparecer relações entre as culturas de
partida e de chegada. Sob esse ponto de vista, tanto para o teórico norteamericano quanto para o teórico francês o tradutor deve se posicionar diante do
texto que traduz, preservando características fundamentais para colocar o Outro
em evidência.
Nesse sentido, o teórico francês baseia seu conceito de tradução ética na
relação entre as culturas doméstica e estrangeira, incorporada pelo texto traduzido.
Para Berman, uma tradução de má qualidade seria a que apresenta uma atitude
doméstica, ou seja, a posição da tradução etnocêntrica, ao passo que uma boa
tradução visaria a pôr fim a essa negação, pois esta representa “uma abertura, um
diálogo, uma hibridação, uma descentralização” e, dessa maneira, força a língua e
a cultura domésticas a registrarem a “estrangeiridade” do texto traduzido.
Em A prova do estrangeiro, um estudo tradutológico no qual se instaura um
debate político e ético que aponta a relação entre a própria cultura na qual a
tradução é feita e a cultura do “Outro” (em maiúscula para designar o estrangeiro,
o que é de fora), Berman (1984) propõe uma visada ética da tradução com o
objetivo de defender a tradução como abertura ao Outro. Isso, segundo ele, tornase possível a partir do momento em que se identificam as deformações típicas que
redundam em uma tradução etnocêntrica – o que Berman chamará de “má
tradução”. No entanto, ele também admite a impossibilidade de que a relação
travada com o Outro seja isenta de traços etnocêntricos. Assim, uma analítica da
tradução, que auxilia na identificação dos elementos deformadores, oferece a
66
possibilidade de que as interferências deformadoras sejam, ao menos,
minimizadas durante o fazer tradutório. Nesse sentido, uma “boa tradução”, na
análise de Berman, seria aquela em que as características etnocêntricas são
amenizadas, apresentando, assim, uma nova maneira de concepção de valor.31
A prova do estrangeiro discute conceitos relativos à tradução na Alemanha
do século XVIII. Dos conceitos bermanianos, três serão destacados e
apresentados, a fim de que possamos discutir questões importantes à prática da
tradução etnocêntrica e não etnocêntrica: a Weltliteratur (literatura mundial), a
Bildung, processo no qual a relação de si mesmo se afirma em relação ao
estrangeiro, produzindo uma relação de interação, e a Translation, como teoria
que mostra a passagem de uma língua-cultura a outra. Nessa obra, Berman mostra
como Madame de Staël, com a tradução de Goethe, introduz na consciência
europeia a ideia de um mercado literário mundial, a Weltliteratur, como um vasto
espaço de diálogo e de troca que oferece a cada literatura nacional o modo de se
renovar. Berman nos apresenta, assim, uma necessidade maior da tradução que a
comumente reconhecida. A partir da prática dos poetas românticos alemães,
mostra que uma cultura não pode permanecer voltada para si mesma, que ela
necessita de outras culturas para se constituir.
Desse modo, o teórico francês demonstra o complexo diálogo instaurado
pela tradução ao mostrar que esta não é simplesmente um espelho em que a obra
literária admira seu reflexo, mas, antes, a relação da obra consigo mesma. O texto
traduzido permite, dessa maneira, um novo olhar sobre o texto de partida. A
tradução intervém, então, não somente na relação entre si e o outro, mas na
relação consigo mesmo. A partir do conceito de Weltliteratur, muda-se a relação
31
PETRY, Simone Christina. A noção bermaniana de relação sob o viés derridiano da
hospitalidade. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Letras, UFPR, 2011.
67
com o estrangeiro. Essa relação, que antes era de troca e de recusa, tende, então à
interação, à troca, como reitera Berman: “Com a chegada da literatura mundial, a
relação torna-se mais complexa, na medida em que as diversas culturas buscam, a
partir de então, contemplar-se no espelho das outras, a buscar nelas o que não
podem encontrar em si mesmas.”32
Outro conceito, o de Translation, dá conta da interação entre a tradução e o
meio literário. A Translation pode ser definida, de maneira simplificada, como
uma teoria geral de passagem de uma “língua-cultura a outra”. Segundo Berman,
cada ato de tradução se dá em uma mediação que compreende ao mesmo tempo
determinantes conceituais, estéticos e políticos. Assim, a Translation é essencial à
questão da consciência histórica, aparecendo como interação e revelação.
Ao mostrar a Weltliteratur, discutindo e ampliando essa ideia, Berman
levanta questões importantes à tradução, mas destacamos aqui aquela que sempre
foi fulcral: a fidelidade. Para discutir a ideia de original, partimos da citação do
poeta Octávio Paz,33 estando diametralmente oposta à que se encontra
tradicionalmente no campo: “Todo texto é único e é, ao mesmo tempo, a tradução
de outro texto. Nenhum texto é completamente original porque a própria língua
em sua essência já é uma tradução.”
A partir dessa afirmativa, questiona-se o conceito de originalidade, ligado
diretamente ao de fidelidade, uma vez que, tradicionalmente, acredita-se que há
um texto original, concebido por um autor que ali deposita conscientemente suas
ideias, cabendo à tradução a tarefa de transportá-las. Assim, Berman, ao discutir a
Weltliteratur, questiona a identidade da cultura nacional, reconduzindo a crítica
32
BERMAN, Antoine. A prova do estrangeiro. Tradução Maria Emília Pereira Chanut. Santa
Catarina: Edusc, 2002. p. 117.
33
Apud ARROJO, Rosemary. Oficina de tradução. São Paulo: Ática, 2003.
68
em relação à tradução na direção da impossibilidade do “original” e da
“fidelidade”.
Já discutimos a Weltliteratur e a Translation, verificando como a tradução
revela questões das relações culturais a partir da relação com o Outro. Passaremos
agora a outro conceito trabalhado pelo autor francês, o da Bildung, relacionando-o
com a questão da tradução etnocêntrica, analisando, também, a tradição das Belles
Infidèles na França. A palavra alemã Bildung significa, genericamente, cultura.
Observa-se a natureza circular e alternante da Bildung, a de ser ao mesmo tempo
progressão e retorno. Vejamos como isso se dá em relação à tradução. Na cultura
alemã do século XVIII, a tradução tem um papel essencial. Assim, à medida que a
Bildung se define como certa provação (ou prova) do estrangeiro, a tradução se
manifesta como um dos principais agentes da formação de um povo. Entretanto, a
história da tradução tem mostrado que essa prova do estrangeiro é geralmente
recusada. Berman observa, como prova disso, que o povo francês é
essencialmente etnocêntrico, dando como exemplo o gênero de tradução intitulado
Belles Infidèles.
Referindo-se às Belles Infidèles, Berman (1985) afirma que esse gênero, que
dominou as traduções na França nos séculos XVII e XVIII, pode parecer
ultrapassado, mas continua muito vivo. As Belles Infidèles, conforme observamos
no capítulo anterior, constituíam-se, em linhas gerais, em um afrancesamento das
obras traduzidas, procurando-se produzir textos traduzidos como se tivessem sido
escritos originalmente em francês. As Belles Infidèles podem ser definidas como
“traduções que para agradar e se adaptar ao gosto e ao costumes da época seriam
versões revistas e corrigidas por tradutores conscientes da superioridade da língua
69
para a qual traduz”.34 Assim, palavras consideradas imorais, cenas que pudessem
chocar o público francês eram cortadas ou adaptadas. Esse procedimento nas
traduções provocou fortes críticas. O próprio nome, Belles Infidèles, vem de uma
expressão utilizada por Ménage (1613-1691), que, ao criticar as traduções de
Nicolas Perrot, compara: “Elas me lembram uma mulher que amei muito em
Tours, que era linda, mas infiel.” Assim, os críticos franceses da época
identificavam a fidelidade como uma qualidade à tradução; entretanto, apesar de à
época terem surgido algumas traduções que se propunham mais “fiéis”, estas não
caíram no gosto do público, que preferiram as “belas infiéis”, que eliminavam
elementos estranhos à cultura receptora da tradução. Para Berman, a realização da
proposta das Belles Infidèles deixou traços de uma tradição etnocêntrica de
tradução. Observa Berman,que há uma tendência mundial à tradução etnocêntrica,
em maior ou menor grau, mas sempre com traços de etnocentrismo.
Entretanto, para o autor, uma boa tradução, uma tradução ética é justamente
aquela que realiza o inverso das Belles Infidèles, ou seja, uma tradução que não
apaga a língua e a cultura estrangeiras. Dessa maneira, a boa tradução seria a
“tradução da letra”, a que se abre, “no plano da escrita, a uma relação com o
Outro” e “fecunda o Próprio pela mediação do estrangeiro”. Berman propõe uma
tradução ética, poética e pensante que se vale tanto da reflexão sobre o próprio
processo tradutório e de composição do texto original (tradução como crítica)
como da experiência da obra e da língua, ou, em última análise, do Outro. Como
afirma:
Fazer uma experiência com o que quer que seja [...] isso quer dizer: deixá-lo vir
sobre nós, que nos atinja, que nos caia em cima, nos deite ao chão e nos transforme
noutro. Nesta expressão “fazer” não significa precisamente que somos os
34
HORGUELIN, Paul. Anthologie de la manière de traduire: domaine français. Montréal:
Linguatech, 1981. p. 76, 230 p.; Les instruments de la docilité. Palimpsestes, Paris: Presses de la
Sorbonne Nouvelle, n. 8; tradução nossa.
70
operadores da experiência, “fazer” quer dizer aqui, tal como na locução “faire une
maladie”, passar por, sofrer de uma ponta à outra, aguentar, acolher aquilo que nos
atinge submetendo-nos a ele. 35
Outra consequência da tradução etnocêntrica seria a invisibilidade do
tradutor, uma vez que, ao traduzir de tal forma que não se perceba que se trata de
uma tradução, ao eliminar o que é estrangeiro, o tradutor se apaga, tornando-se
invisível, pois, conforme observamos, na visão bermaniana, a tradução
etnocêntrica priva o leitor do caráter estrangeiro do texto traduzido, negando, de
certa forma, o processo de tradução. A consequência é a produção de textos
traduzidos sem deixar marcas da tradução, que passam como originais. Assim, na
perspectiva da tradução etnocêntrica, a invisibilidade é o maior mérito do tradutor.
Quanto à posição tradutiva, é improvável ao tradutor alcançar, na prática,
uma visada pura da tradução, ou ainda, escolher apenas não fazer uma tradução
etnocêntrica. Isso porque não é possível se desvincular totalmente de pressupostos
ideológicos – constitutivos de uma opção etnocêntrica –, já que estes estão
enraizados nas inúmeras culturas, e o tradutor está ligado à sua cultura e a
determinadas práticas sociais.
Devemos nos interrogar se, em relação ao público leitor, esse tipo de
tradução não etnocêntrica não correria o risco de se tornar ininteligível. Tanto
Berman quanto Venuti defendem que a tradução preocupada em reduzir o próprio
etnocentrismo não se arrisca necessariamente a ser ininteligível e, logo,
culturalmente marginal. Um projeto tradutório pode se distanciar das normas
domésticas a fim de evidenciar a “estrangeiridade” do texto traduzido e criar um
público leitor mais aberto a diferenças linguísticas e culturais. Entretanto, o
tradutor pode evitar recorrer a experiências estilísticas tão alienadoras que possam
35
BERMAN, Antoine. A tradução e a letra, ou o albergue do longínquo. Op. cit., p. 18.
71
recusar a inteligibilidade do texto traduzido e, assim, causar o próprio fracasso.
Berman, assim como Venuti, afirma que uma ética tradutória não deve se
restringir a uma noção de fidelidade.
Notamos pontos comuns entre os dois teóricos. Ambos manifestam-se a
favor da visibilidade do Outro nas traduções, ao afirmarem que o tradutor deve
tornar-se visível ao revelar o Outro e seu modo de significar. Observamos,
também, que a questão do tipo de tradução, se etnocêntrica ou não, apresenta o
tradutor confrontado com uma escolha: ser fiel à fonte ou levar em consideração a
cultura de chegada. Ora, não podemos acreditar na “livre” escolha do tradutor. O
tradutor está inserido dentro de um tempo, de um lugar, ou seja, mais do que
determinar, ele é determinado pelo contexto social, econômico e político do qual
faz parte.
Pudemos observar, com as concepções de Berman e de Venuti, que a
maneira de conceber a tradução muda de polo; assim, ao invés de concebê-la
dentro da perspectiva do texto, elementos sociais são considerados, sobretudo na
questão da recepção das obras. Vimos, também, que, para os dois teóricos, a
concepção de uma boa tradução seria aquela que não priva o público do gosto
estrangeiro, ou seja, uma tradução não etnocêntrica. Dessa maneira, anuncia-se a
relação da tradução com a cultura; entretanto, há uma limitação em reconhecer o
papel ideológico do tradutor nessa relação entre as culturas. Como deveria
ocorrer, pois, para esses teóricos essa relação do tradutor com as culturas? Como
o tradutor deve deixar transparecer o Outro, sendo parte da cultura de chegada?
Seria qualquer tradutor que tomaria determinada posição tradutiva? Ou deveria ele
dispor de determinado capital cultural para efetivar essa relação? Parece-nos que
há uma idealização desse tradutor.
72
Em relação à posição tradutiva do tradutor, algumas reflexões devem ser
feitas. Para que serve (politicamente) essa invisibilidade do tradutor? Já dissemos
que a noção corrente é a de que “o tradutor nunca pode fazer o que o original fez”;
assim, a tradução é vista como cópia de um original, este, sim, tido como produto
raro, produzido por um criador único, o autor. Acreditamos que esse apagamento
da figura do tradutor se constitua em uma produção simbólica do campo, que
mostra quem é valorizado dentro dele. A invisibilidade ou a visibilidade do
tradutor consistem em estratégias efetivadas pelo tradutor para se posicionar de
maneira social diante da obra a ser traduzida. Esse posicionamento se reflete no
resultado da tradução, visto que, ao assumir qualquer das posições, o tradutor
oferece ao público leitor uma tradução mais ou menos acessível. Na posição
tradutiva relacionada com a invisibilidade do tradutor, a intenção é de que o texto
traduzido não pareça uma tradução do texto original proveniente de outra cultura.
Acreditamos que tais estratégias já se constituem em uma forma de consagração.
Destarte, qualquer das estratégias assumidas pelo tradutor, seja a da invisibilidade
ou a da não invisibilidade, reverte-se em consagração para ele e sua tradução, uma
vez que a invisibilidade ou a visibilidade do tradutor trata-se de um
posicionamento no campo que constitui uma prática que demonstra uma posição
mais ou menos consagrada dentro do campo, ou seja, são formas sociais de
construção da prática da tradução. Retomaremos a questão da visibilidade ou da
invisibilidade do tradutor no próximo capítulo, ao observarmos a posição visível
do tradutor Mário Quintana.
73
2.3
TEORIAS SOBRE A TRADUÇÃO LITERÁRIA:
A TEORIA DOS POLISSISTEMAS
Observamos que as teorias de Berman e de Venuti apresentam uma
perspectiva diferente da concepção tradicional de tradução, ao deslocarem a
questão para o universo da recepção das obras, ou seja, ao observá-las para além
do texto. Foi a partir dessa contextualização que teóricos como Lieven d’Hulst,
Raymond van den Broeck e Theo Hermans, juntamente com André Lefevere, o
israelense Gideon Toury e a britânica Susan Bassnett, propuseram uma
abordagem para estudar as traduções literárias que tomava como base a visão da
literatura como sistema, inicialmente desenvolvida pelos formalistas russos e
retomada na década de 1970 por Itamar Even-Zohar, teórico da tradução
israelense que formulou a teoria dos polissistemas. 36
O modelo inicial proposto por Itamar Even-Zohar (2007) visava a elaborar
uma base teórica capaz de explicar as particularidades da história da literatura
israelense e das traduções literárias realizadas nessa cultura, utilizando as ideias
dos formalistas russos envolvidos com a historiografia literária, tomando o
conceito de sistema para designar uma estrutura formada por várias camadas de
elementos que se relacionam. Baseada na noção sistêmica proposta por Tinianov,
a teoria dos polissistemas concebe determinada cultura como um grande sistema
que é internamente composto por subsistemas que se relacionam com outros
sistemas paralelos. Assim, dentro do polissistema de uma cultura, figura, por
exemplo, o sistema literário, que, por sua vez, abriga o sistema da literatura
traduzida. É importante ressaltar que os elementos do polissistema se encontram
em luta constante. Na disputa pela consagração, eles lutam pela centralização,
36
MARTINS, Marcia do Amaral Peixoto. As contribuições de André Lefevere e Lawrence Venuti
para a teoria da tradução. Cadernos de Letras, Rio de Janeiro: UFRJ, n. 27, dez. 2010.
74
pela hegemonia, a fim de se tornar um cânone. Nessa disputa, segundo o autor,
ocorreria uma tensão entre os princípios literários primários (inovadores) e os
secundários (conservadores). Dessa maneira, uma obra primária passaria a ser
considerada consagrada ao chegar ao centro e manter-se por algum tempo nessa
posição. Ao alcançarem a consagração, os adeptos que antes adotavam uma
estrutura inovadora passam a adotar uma postura conservadora, pois lutam para
manter-se no centro e passam a rejeitar o que é novo.
Para os Estudos da Tradução, Even-Zohar abriu espaço para uma discussão
sobre o papel e a importância da literatura traduzida em um dado polissistema.
Salienta o autor que nem sempre as obras traduzidas ocuparão uma posição
periférica em determinado polissistema literário, apresentando três situações em
que essas obras podem assumir uma posição central e exercer um papel mais
influente
nesse
polissistema:
(i)
quando
uma
literatura
em
fase
de
desenvolvimento utiliza modelos antigos, encontrados na literatura traduzida,
como critério de referência; (ii) quando a literatura nacional de um país ou região
se revela fraca e acaba obscurecida por outra maior; (iii) quando a literatura
nacional enfrenta uma crise ou momento decisivo, e os modelos antigos deixam
de ter apelo e geram um vácuo no sistema literário, possibilitando a introdução de
novos modelos por via da tradução.
A teoria dos polissistemas proposta por Even-Zohar contribui, então, para
ampliar a noção de tradução. Anteriormente baseada em fórmulas, textos que não
seguiam essas determinações eram comumente tidos como “imitações”,
“adaptações” ou “versões”. Even-Zohar, ao invés de restringir as discussões a
uma noção tradicional sobre a equivalência existente entre o texto-fonte e o textoalvo, passou a concentrar seus estudos no texto traduzido, por considerá-lo parte
75
integrante do polissistema-alvo. A abordagem voltou-se, então, para o polo
receptor, resultando em um grande volume de trabalho descritivo sobre a natureza
do texto-alvo, ou seja, o produto da tradução, passando os textos traduzidos a ser
vistos como resultado de procedimentos gerais, determinados pelo polissistemaalvo. Essas reflexões mostram a importância da tradução no contexto maior dos
estudos literários. Se, anteriormente, em uma visão tradicional, acreditava-se na
capacidade do tradutor – tal como um produtor neutro – de obter um texto
equivalente, a teoria dos polissistemas, ao contrário, acredita que as normas
sociais e as convenções literárias da cultura de chegada influenciam as decisões
tradutórias.
A partir da concepção de Even-Zohar da literatura como um polissistema
inserido em outro maior, o da cultura, temos em André Lefevere e no conceito de
patronagem por ele desenvolvido alguns aspectos relevantes em relação à
tradução. Lefevere define, em linhas gerais, a patronagem como o poder exercido
por pessoas, instituições, partidos políticos, classes sociais, editores e mídia sobre
o sistema literário. Assim, o patrocinador, mesmo do lado de fora do sistema
literário, não interfere diretamente no seu funcionamento, mas delega autoridade
aos profissionais para fazê-lo em seu nome. Segundo o autor, há, no sistema de
patronagem, três elementos centrais: o ideológico, que determina a forma e o
conteúdo do que será publicado; o econômico, que define a remuneração dos
(re)escritores; e o status, que confere aos (re)escritores reconhecimento e
prestígio. O sistema literário, segundo Lefevere, pode ser controlado por
patronagens diferenciadas ou não diferenciadas. A patronagem diferenciada
centraliza seu interesse no sucesso econômico, e isso necessariamente não fornece
status. Já a patronagem não diferenciada envolve os três elementos – o ideológico,
76
o econômico e o status. Nesse sentido, o patrocinador – que é sempre o mesmo –
tenta regular a relação entre o sistema literário e os outros sistemas de uma
cultura. Ele controla o (re)escritor, o produto de seu esforço intelectual e sua
distribuição.
Ao relacionar a tradução com a cultura e suas estruturas de poder, Lefevere
mostra o papel das editoras e das instituições, que, por meio de incentivo e de
patrocínio, interferem nas decisões editoriais e na implementação de políticas
culturais. Dessa maneira, a tradução é vista, também, sob a perspectiva de
elementos políticos e ideológicos. Quanto ao tradutor, Lefevere salienta seu papel
de “reescrever”, deslocando o conceito de fidelidade para além da exatidão,
salientando que a posição tradutiva depende de uma série de fatores:
Na maior parte dos casos, os tradutores [...] reescrevem, tanto no nível do conteúdo
quanto no estilo [...]. Pode-se mostrar, portanto, que a “fidelidade” em tradução não
é exatidão, nem primeiramente uma questão de ajustes no nível linguístico.
Envolve, mais precisamente, uma complexa rede de decisões tomadas pelos
tradutores nos níveis da ideologia, da poética e do universo do discurso.37
Nessa perspectiva, a teoria dos polissistemas apresenta, conforme
observaremos, muitos traços em comum com a teoria dos campos simbólicos de
Pierre Bourdieu, na medida em que se reconhece a existência de uma instituição
literária, autônoma, bem como sua relação com outros sistemas. Assim, a teoria
dos polissistemas e todos os conceitos que lhe são inerentes (nuclear, periférico,
tensional, primário, secundário etc.) explicam a diferença fundamental entre
tradução literária e literatura traduzida. Entretanto, a teoria dos polissistemas
descreve a luta por um posicionamento central dentro do sistema literário, baseado
em uma lógica interna. Dessa maneira, não concebe que dessa luta por
posicionamento legítimo participam pessoas com sua origem familiar e social, ou
37
LEFEVERE, André apud RODRIGUES, Cristina Carneiro. Tradução e diferença. São Paulo:
Unesp, 2000. p. 129.
77
seja, não leva em conta que uma hierarquia social, cultural, determina uma
maneira mais ou menos ousada de se posicionar dentro de um espaço social.
Acreditamos que, ao lutar pelo posicionamento central e pela manutenção como
cânone, não está em jogo apenas a luta pelo posicionamento legítimo, mas a
angariação de capital simbólico a priori, com vistas a arrecadar lucros financeiros
mais adiante.
Essa questão é tratada por Rainier Grutman, em seu artigo Le virage social
dans les études sur la traduction – une rupture sur fond de continuité38, no qual
aponta não somente a contribuição que trabalhos associados à teoria de Pierre
Bourdieu trouxeram à tradutologia, como levanta pontos em comum entre a
teoria dos polissistemas de Even-Zohar e a teoria dos campos simbólicos de Pierre
Bourdieu. Dentre as distinções feitas pelo autor, destacamos o conceito de
‘sistema’ (Zohar) e ‘campo’ (Bourdieu). Nas duas teorias, tanto o campo, quanto
o sistema se caracterizam pela luta. Para Grutman, no conjunto semiótico que é o
sistema de Even-Zohar, os elementos, sejam eles concretos ou abstratos (como os
gêneros literários, por exemplo), vistos individualmente ou reagrupados em
repertórios, ocupam diversas posições que se tornariam ultrapassadas e assim
migrariam do centro para a periferia do sistema ou, inversamente, na medida em
que a inovação por eles apresentada passasse a ser reconhecida pelo centro e se
tornasse uma referência. Essas migrações, motores da mudança no sistema
literário, são acompanhadas de transformações graças às quais são atribuídas
38
GRUTMAN, Rainier. Le virage social dans les études sur la traduction – une rupture sur fond
de continuité. Publicado em Carrefour de la Sociocritique- números 45 e 46. P.136-152. Toronto,
2009. Disponível em:
<http://uottawa.academia.edu/RainierGrutman/Papers/682824/LE_VIRAGE_SOCIAL_DANS_LE
S_ETUDES_SUR_LA_TRADUCTION_UNE_RUPTURE_SUR_FOND_DE_CONTINUITE>
Acesso em 13/06/2012.
78
novas funções aos elementos formais constitutivos do repertório. Para Grutman, a
ausência de reflexão explícita sobre os agentes de mudança literária mostra a
pertinência de suprir essa lacuna pelos aportes da teoria dos campos simbólicos.
Em Bourdieu, no espaço social denominado campo, os agentes lutam por
consagração ao tomar posições em função de suas disposições socialmente
adquiridas denominadas habitus, permitindo a determinado autor (ou grupo,
revistas, etc.) perceber os impasses, ou ao contrário, as possibilidades de
inovação.
Assim,
graças
não
somente ao
seu
talento,
mas também
consideravelmente favorecidos por seu habitus, os agentes ocuparão uma série de
posições, como dominantes ou pretendentes.
2.4
A TRADUÇÃO LITERÁRIA COMO OBJETO SOCIOLÓGICO
Conforme já dissemos, o campo de pesquisa denominado Translation
Studies (Estudos da Tradução), constituído a partir dos anos 1970, fez emergir
trabalhos com concepção diferente da tradicional. Assim, ao invés de estudar as
traduções unicamente por meio da relação original versus tradução, os Translation
Studies se interessam cada vez mais pelas questões concernentes ao
funcionamento das traduções dentro de diferentes contextos de produção e de
recepção, ou seja, ao invés de se fechar em problemáticas puramente intertextuais,
por meio da relação do original com sua tradução, questões propriamente
sociológicas são suscitadas, como as que levam em consideração as funções das
traduções, as editoras, os editores e os tradutores no espaço no qual se situam.39
39
HEILBRON, Johan ; SAPIRO Gisèle. La traduction littéraire – un objet sociologique. Paris:
Actes de la Recherche en Sciences Sociales, 2002. v. 144, p. 3-5.
79
Assim, acreditamos que a tradução constitua um objeto sociológico e que suas
práticas são determinadas socialmente.
Segundo Johan Heilbron e Gisele Sapiro (2002), autores que trabalham sob
a perspectiva sociológica de Pierre Bourdieu, em vez de se tomar como base a
problemática intertextual na relação original/tradução, questões propriamente
sociológicas surgem, principalmente no que tange às funções da tradução e a seus
agentes no espaço em que se encontram. Para esses autores, a tradução das
literaturas estrangeiras depende da estrutura do espaço de recepção, uma vez que
este também é regido pela lógica do mercado ou por uma lógica política; assim, a
recepção será em parte determinada pelas representações da cultura de origem e
do status da língua. Afirmam, ainda, os autores que a tradução apresenta múltiplas
funções, tais como instrumento de mediação e troca, mas constitui, também, um
modo de legitimação, dos quais autores e mediadores podem se beneficiar. Assim,
a tradução nas línguas centrais constituiria uma consagração que modificaria a
posição de um autor no campo de origem, ao passo que, para as literaturas
nacionais em vias de construção, a tradução constituiria um modo de acumulação
de capital literário. Dessa forma, no nível das instâncias, se os editores detiverem
importante capital literário, terão o poder de consagrar os autores que são
traduzidos. Em relação aos mediadores, pode haver a consagração desses autores,
bem como a consagração do tradutor.
Pierre Bourdieu (1998) põe em xeque a mística do autor como criador
único, pois, para o teórico francês, o autor faz a obra e é ao mesmo tempo
construído socialmente pelo campo literário. Essa noção é claramente apontada
por Fernanda Maria Abreu Coutinho:
[...] o conceito de campo literário é uma possibilidade versátil de entendimento da
engrenagem que envolve a produção, a circulação e o consumo do material
80
artístico, por ser estreitamente vinculado à noção de valor, bem como pressupõe
tomadas de posição que definem a boa ou má acolhida das obras em seu interior e
sua duradoura ou efêmera permanência na memória do sistema literário. Propõe
Bourdieu que se esqueça o papel que cada um destes elementos, escritores, leitores,
editores, livreiros, críticos, escola etc. exerce por si mesmo, reenquadrando-os
através de uma lógica interativa.40
No âmbito do nosso objeto de estudo, observaremos, no próximo capítulo,
por meio de diversos exemplos, como as instâncias do campo de produção
literária cooperam para consagrar traduções que passam a ser consideradas como
boas traduções. A tradução de Em busca do tempo perdido, de Proust, elaborada
pelo reconhecido escritor Mário Quintana, passa, nessa perspectiva, a ser
considerada como “imortal” ou “definitiva”. Embora Mário Quintana ainda não
fosse efetivamente consagrado no momento em que traduziu Proust, já era
reconhecido no meio dos intelectuais e escritores, o que possibilitou a Érico
Veríssimo lhe confiar traduções de importantes obras de língua francesa. Nesse
sentido, as traduções elaboradas por Quintana alcançaram devidamente sua
consagração a partir da circularidade de valores operados dentro do campo de
produção literária. Assim, quando se apresenta como tradutor de obras de autores
“imortais”, tais como Voltaire, Balzac e Proust, Mário Quintana amealha
gradativamente a consagração dentro do campo.
40
COUTINHO, Fernanda Maria Abreu. Pierre Bourdieu e a gênese do campo literário. Revista de
Letras, UFC, v. 1-2, n. 25, –jan./dez. 2003.
81
3
A CONSAGRAÇÃO DA TRADUÇÃO DE EM BUSCA DO
TEMPO PERDIDO
Vimos no capítulo anterior que não há uma concepção única do que seria
uma boa tradução de uma obra literária. Assim, verificamos que, na visão dita
tradicional, a fidelidade ao texto e às ideias do original é condição para uma “boa
tradução”. Constatamos, por meio das teorias de Antoine Berman e de Lawrence
Venuti, que a discussão sobre o etnocentrismo e o não etnocentrismo na tradução
conduz a outra concepção do que seria uma boa tradução, sendo, segundo esses
autores, aquela que não privilegia a cultura de chegada, ou seja, que não priva o
público do gosto estrangeiro. Na teoria dos polissistemas, constatamos que as
relações entre os agentes são levadas em conta, e a tradução é vista dentro da
perspectiva das relações entre eles. Anuncia-se, também, a relação da tradução
com a cultura; entretanto, o papel do tradutor nessa relação entre as culturas é
visto sem demonstrar todo um jogo de forças que se trava no espaço social da
tradução. A fim de esclarecer as relações sociais produzidas entre os diversos
atores posicionados no espaço social da produção literária (editores, tradutores,
autores-tradutores, críticos e recepção), fundamentamo-nos nos preceitos teóricos
de Pierre Bourdieu, que, por meio de sua teoria dos campos simbólicos, indica
como é possível entendermos como determinada obra, no nosso caso uma
tradução, alcança um valor único ou venha a ser considerada a tradução
“definitiva”.
Neste capítulo, veremos, por meio de diversas evidências, como as
instâncias do campo de produção literária cooperam para consagrar traduções que
passam a ser consideradas como boas traduções, ou, como no caso aqui abordado,
uma tradução imortal ou definitiva. Primeiramente, discorreremos sobre a teoria
82
dos campos simbólicos, de Pierre Bourdieu, e apresentaremos as instâncias de
produção, legitimação e recepção de uma obra dentro de um campo de produção
de bens simbólicos. Depois, observaremos a circularidade de valores dentro do
campo de produção literária, que acabam por produzir a crença em um objeto
“raro” e “insubstituível”. Nesse sentido, mostraremos as evidências da
consagração da tradução de Em busca do tempo perdido, elaborada por Mário
Quintana, a partir do funcionamento do campo de produção.
3.1
A TRADUÇÃO E A TEORIA DOS CAMPOS SIMBÓLICOS, DE PIERRE
BOURDIEU
Segundo Pierre Bourdieu (2007), o campo de produção de bens simbólicos
artísticos e intelectuais definiu-se como um campo autônomo, em oposição às
esferas que até então dominavam a produção desses bens – as esferas religiosas e
aristocráticas, por volta do século XV na Europa:
Embora a vida intelectual e artística estivesse sob a tutela, durante toda a Idade
Média, em grande parte do Renascimento e, na França, com a vida na corte,
durante todo o período clássico, de instâncias de legitimidade externas, libertou-se
progressivamente, tanto econômica como socialmente, do comando da aristocracia
e da Igreja, bem como de suas demandas éticas e estéticas.41
Em relação ao campo de produção literária, essa transformação se deu com
a invenção da imprensa, que possibilitou ao público em geral o acesso a obras
literárias. A função artística, antes sob o jugo das autoridades religiosas e do
poder aristocrático, se modifica. Assim, produtores de obras literárias passam a
41
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Tradução Sergio Miceli, Silvia de
Almeida Prado, Sonia Miceli e Wilson Campos Vieira. São Paulo: Perspectiva, 2007. p. 100.
83
criar dentro de um espaço autônomo, ditando suas próprias regras e padrões.
Dessa maneira, afirma Bourdieu, ocorre o processo de autonomização do campo:
Destarte, o processo de autonomização da produção intelectual e artística é
correlato à constituição de uma categoria socialmente distinta de artistas ou de
intelectuais profissionais, cada vez mais inclinados a levar em conta
exclusivamente as regras firmadas pela tradição propriamente intelectual ou
artística herdada de seus predecessores, e que lhes fornece um ponto de partida ou
um ponto de ruptura, e cada vez mais propensos a liberar sua produção e seus
produtos de toda e qualquer dependência social.42
Cabe ressaltar que, nesse momento, surge uma nova categoria do artista em
oposição ao não artista (artesão). Na medida em que se constitui o campo de
produção simbólica, instaura-se uma oposição entre o campo da indústria cultural
e o campo de produção erudita, por meio da “dissociação entre a arte como
simples mercadoria e a arte como pura significação, cisão produzida por uma
intenção meramente simbólica e destinada à apropriação simbólica”.43 Segundo o
sociólogo francês,44 o campo de produção autônomo se define de forma variada
nas diferentes áreas artísticas e intelectuais, e a oposição existente entre esses
campos se define da seguinte maneira: o campo de produção erudita detém
normas próprias de condução, avaliação e legitimação de suas próprias obras,
enquanto o campo da indústria cultural produz obras destinadas ao “grande
público” e às frações não intelectuais das classes dominantes. Assim, enquanto as
obras produzidas pelo primeiro campo encontram seu reconhecimento no próprio
campo, já que os produtos são direcionados aos próprios produtores de bens
simbólicos, seus pares artísticos e frações intelectuais das classes dominantes, as
obras da indústria cultural esforçam-se por atingir na concorrência do mercado o
seu reconhecimento e avaliação.
42
Ibid., p. 100.
Ibid., p. 100.
44
Ibid., p. 100.
43
84
Nessa perspectiva, houve um aumento da produção de obras literárias, tais
como romances e folhetins, originadas de escritores que passaram a estabelecer as
próprias regras do campo, constituindo-se em representantes e juízes de uma
tradição artística a partir da constituição de uma economia de bens simbólicos,
propiciada pelo aumento do público leitor. A ampla difusão dessas obras foi,
então, possibilitada pela produção em larga escala no âmbito da Revolução
Industrial.
Para Bourdieu, o campo consiste no espaço em que ocorrem relações entre
os agentes e as instituições, espaço esse sempre dinâmico e que obedece a leis
próprias, cujo motor são as disputas ocorridas em seu interior, no qual o objetivo
de seus componentes é a legitimidade para exercer o domínio sobre a produção de
bens literários. A consequência principal é a arrecadação de um capital simbólico
que se exprime na forma de lucros financeiros. Na dinâmica desse campo, há uma
luta em que o escritor se empenha para se afirmar como artista legítimo, disposto
a produzir “autêntica” literatura. É importante ainda ressaltar que o campo de
produção simbólica, ao qual se refere Pierre Bourdieu, não se reduz meramente a
um campo de atuação profissional, mas se estrutura em um espaço de relações
sociais.
Conforme verificaremos pela teoria de Bourdieu, nesse campo de produção
autônomo efetiva-se o valor de um bem simbólico, tal como uma obra literária
traduzida, na medida em que há a circulação de valores e qualidades acerca dessas
obras entre as instâncias do campo. É importante ainda ressaltar que houve a
necessidade de efetuarmos uma transposição da análise de Bourdieu para o nosso
objeto de estudo, uma vez que o autor examina, em sua teoria, o campo da
produção artística na Europa.
85
Primeiramente, uma questão a ser definida é que o espaço da atividade da
tradução não se constitui em um campo autônomo, uma vez que a produção de um
texto traduzido já não é a criação de um texto original e a autoria da obra
traduzida permanece, conforme observamos nas capas das traduções. Na verdade,
a tradução é uma atividade pertencente ao campo de produção literária – este, sim,
legítimo como uma produção “cultural” –, do qual extrai a sua legitimidade.
Michaela Wolf afirma que não há campo da tradução; entretanto, sua explicação
reside no fato de que os tradutores não lutariam por posicionamento, uma vez que
trabalham subordinados a regimes de trabalhos independentes, sujeitos a prazos.
Ora, sob essa perspectiva, Wolf não leva em consideração que, a despeito desse
modo de trabalho, o tradutor luta por um posicionamento em outro nível, além do
profissional – o posicionamento simbólico. É a partir dessa posição que ele
arrecada os ganhos financeiros de sua prática profissional. Ou seja, Wolf ignora
que os tradutores alcancem um posicionamento simbólico no campo literário, que
lhes confere trabalhos mais ou menos notáveis e de remuneração diferenciada.
Entretanto, embora haja luta por legitimidade entre os tradutores, eles não formam
um campo autônomo, mas participam do campo de produção simbólica da
atividade literária, na medida em que sua atividade tende a se demarcar em
relação à atividade literária propriamente dita. Desse modo, escritores e tradutores
lutam por legitimidade dentro do campo de produção de literatura, embora os
tradutores em geral detenham um posicionamento legítimo inferior ao dos
escritores. Daí podermos afirmar que maior valor é conferido a determinada
tradução quando o tradutor é um escritor, e que esse autor-tradutor, por sua vez,
angaria prestígio ao traduzir obras de autores consagrados.
86
Assim, examinaremos as relações entre escritores e tradutores dentro do
funcionamento do campo de produção literária – estruturado sobre regras próprias
–, pois a partir daí poderemos compreender o valor alcançado por determinadas
traduções, elaboradas de escritores dotados de legitimidade no campo de produção
literária, bem como os reflexos e a consagração para o próprio trabalho de
escritor.
3.1.1
O FUNCIONAMENTO DO CAMPO DE PRODUÇÃO LITERÁRIA
Examinamos anteriormente a estruturação do campo de produção literária e
a posição da atividade da tradução nesse campo de produção cultural. Observamos
como escritores consagrados no campo de produção foram capazes de promover
suas traduções junto ao público, uma vez que esses autores não eram somente
tradutores que comumente denominamos profissionais, contratados para a tarefa
de tradução de uma obra qualquer. Desse modo, torna-se fácil entender como se
deu a consagração da tradução de importantes obras francesas, em particular a que
constitui nosso objeto de estudo – Em busca do tempo perdido –, traduzida pelo
escritor e poeta Mário Quintana em 1948.
Podemos verificar que a consagração dessas obras traduzidas se deveu
muito ao papel daquilo que é denominado autores-tradutores – escritores e
intelectuais que exerceram a atividade da tradução. Interessa-nos sobremaneira
essa relação autor–tradutor, pois é a partir do reconhecimento de um autor
literário que se manifesta o valor da tradução por ele produzida. Ao autor literário
que exerce a função de tradutor, por sua vez, não interessa associar seu nome a
87
traduções destituídas de valor simbólico, mas, sim, a traduções de autores
consagrados. Assim, ao irmos em busca do escritor, analisando sua posição
consagrada como autor literário, concebemos o valor da tradução como um bem
simbólico.
Em relação à consagração, afirma Bourdieu que: “[...] é a raridade do
produtor (isto é, a raridade da posição que ele ocupa em seu campo) que faz a
raridade do produto”.45
Em outra afirmação, esse autor também define que: “[...] o poder mágico do
criador [...] não poderá agir se não for mobilizado por uma pessoa autorizada, ou,
melhor ainda, se não for identificado com uma pessoa e seu carisma, além de ser
garantido por sua assinatura”.46
Dessa maneira, podemos afirmar que não há como mensurarmos
objetivamente o valor da tradução, mas, sim, observar que tal valor ocorre a partir
da assinatura de quem a executou – escritor consagrado sobre o qual se produz a
crença de um autor único e insubstituível. Assim, não é possível apontar,
analisando apenas os elementos textuais da obra traduzida, a qualidade da
tradução. Isso não quer dizer que não haja qualidades intrínsecas às traduções;
entretanto, não é apenas a qualidade do texto traduzido que determina a
consagração de uma tradução. Dessa maneira, o que nos interessa é observar a
circularidade dos valores do campo de produção que produzem sua consagração.47
Essa consagração é por vezes tão poderosa que não se consegue distinguir entre a
45
BOURDIEU, Pierre. A produção da crença – contribuição para uma economia dos bens
simbólicos. Tradução Guilherme João de Freitas Teixeira e Maria da Graça Jacintho Setton. Porto
Alegre: Zouk, 2001.
46
Id.
47
ALMEIDA, Marcelo Vianna Lacerda de Almeida. A eficiência do signo gráfico empresarial:
forma consagrada pelo campo do design nas instâncias da cultura visual moderna. Tese
(Doutorado em Design) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio,
Departamento de Artes & Design, Rio de Janeiro, 2010.
88
reconhecida qualidade da tradução e aquilo que constitui o “arbitrário
dissimulado”48 pelo efeito da legitimação; ou seja, a tradução de Mário Quintana
se apresenta com uma inegável qualidade, afastando a possibilidade de haver
outra que “revele” o texto original. Observamos que essa qualidade é atribuída a
partir de um julgamento operado dentro do campo de produção.
Segundo Bourdieu, a principal função do campo de produção simbólica é a
consagração dos autores e das obras que fazem com que o público as reconheça
como autênticas obras da literatura. No espaço da atividade da tradução, sempre
demarcado em relação à atividade literária no âmbito do campo de produção,
verificamos que a tradução de Mário Quintana para Em busca do tempo perdido,
de Marcel Proust, constitui-se em indubitável exemplo desse funcionamento do
campo. Afirma Bourdieu que qualquer bem simbólico produzido nesses campos
autônomos de produção somente alcança valor a partir da circularidade de valores
das instâncias desse campo. Para entendermos como é operada a consagração da
tradução elaborada por Mário Quintana, faz-se necessário observarmos a
circularidade de valores entre essas instâncias do campo, capaz de alçar a tradução
a uma espécie de “modelo” único e singular para acesso à obra original.
Bourdieu (2007) aponta a cooperação entre as três instâncias do campo de
produção simbólica como o elemento gerador do produto consagrado e
reconhecido. A primeira é a instância de produção e refere-se àqueles que estão
envolvidos na produção dos bens simbólicos, que, nesse caso, se compõe dos
autores, dos editores e dos tradutores, no âmbito das editoras. A segunda é a
instância de legitimação e consagração das obras do campo, constituída de
instituições tais como: (i) as escolas e as universidades dotadas dos cursos de
48
BOURDIEU, Pierre. Op. cit., 2007.
89
Letras, capacitadas a reproduzir o conhecimento do que seria a “verdadeira”
literatura e a classificar os autores-produtores, distinguindo-os entre clássicos e
vanguardistas, além de formar agentes dispostos a manter a autonomia do campo;
(ii) as academias, as bienais, os eventos nacionais e internacionais de literatura –
antigos salões –, dotados de autoridade para apresentar e premiar autores
consagrados; (iii) as instituições de conservação de obras literárias – bibliotecas e
centros culturais privados capazes tanto de conservar quanto de expor obras
consagradas de autores legítimos; e, por último, (iv) os meios de difusão –
suplementos literários de jornais e periódicos especializados, providos de críticos
e articulistas autorizados a escrever artigos e resenhas, discernindo para o público
leitor o que há de excelente em literatura e tradução, e ainda as peças de
propaganda sobre obras literárias. A terceira instância consiste na instância de
recepção – o público leitor das obras literárias lançadas pelas editoras, que se
divide em diversos grupos de interesse por variadas “classes” de literatura,
determinadas pela instância de consagração. Segundo o autor, nem todas as
instâncias de consagração têm o mesmo poder para consagrar. Na concorrência
pela legitimidade, é possível observar que é a autoridade para consagrar que faz
com que a legitimação proposta por ela se torne duradoura.
Ao analisar a constituição do campo literário no qual se articulam todos os
processos de consagração de uma obra literária, Bourdieu (1998) reafirma que a
produção, a editoração, as expectativas de mercado e a presença em revistas
literárias, na mídia e nas instituições educacionais seriam algumas das
engrenagens do mecanismo consagrador das obras, as quais somente podem ser
avaliadas na perspectiva desse valor literário a elas atribuído.
90
A seguir, examinaremos o funcionamento das instâncias do campo de
produção literária que, por meio da circularidade de valores em seu interior,
conferem raridade ao bem simbólico, tal como a tradução de uma obra literária.
Assim, poderemos observar com nitidez esse funcionamento do campo simbólico
por meio de diversas evidências que demonstram como a obra de Proust pode ser
apreciada pelo público brasileiro por meio da tradução do reconhecido escritor
Mário Quintana.
3.2
EVIDÊNCIAS DE FUNCIONAMENTO DO CAMPO – AS INSTÂNCIAS
DE CONSAGRAÇÃO DA TRADUÇÃO DE EM BUSCA DO TEMPO
PERDIDO
Conforme observamos, três são as instâncias de produção simbólica do
campo a que se refere Bourdieu. Em relação a nosso objeto de estudo, a tradução
de Proust elaborada em 1948, notamos que a instância de produção do campo se
estruturou sobre a Editora Globo, que dispunha dos autores-tradutores – escritores
em vias de consagração –, tais como Mário Quintana, Carlos Drummond de
Andrade e Manuel Bandeira; do revisor Paulo Rónai; e do editor e escritor
consagrado Érico Veríssimo. O papel das instâncias de consagração na época
dessa tradução ficou reservado à crítica em jornais a respeito dessa tradução, que
fez com que a obra fosse amplamente aceita pelo público letrado pertencente à
instância de recepção.
A Editora Globo, localizada em Porto Alegre, tinha como editor, à época, o
escritor Érico Veríssimo, que veio a se tornar peça-chave da editora, já na
condição de escritor consagrado. Em 1931, Veríssimo – reconhecido pelo
91
empresário Henrique Bertaso – foi convidado para realizar o trabalho de editor na
recém-criada Seção Editora e veio a se tornar conselheiro literário da Globo, com
autoridade para selecionar as obras a serem traduzidas. É importante notar, na
perspectiva do funcionamento do campo com vistas à legitimação, que, além de
selecionar as obras a serem lançadas, Veríssimo também atuava como tradutor,
assinando traduções de obras originais providas de distinção e utilizando um
pseudônimo quando as obras eram consideradas menores ou “comerciais”.
Segundo Sônia Amorim (2000), algumas das traduções de Veríssimo,
principalmente na Coleção Amarela, voltada para o gênero policial, com grande
tiragem na época, eram assinadas por Gilberto Miranda, pseudônimo do escritor.
Comenta Veríssimo:
[...] trata-se duma “personalidade de conveniência” que inventei, uma espécie de
factótum literário [...] Gilberto Miranda não tem idade [...] Miranda continua
jovem: tem sempre trinta anos, a mesma cara, a mesma disposição para o trabalho e
continua a ser suficientemente cínico (ou prático) para emprestar seu nome a
qualquer empreendimento literário, por mais medíocre que seja.49
A partir de 1931, a editora passou a ser comandada por Henrique Bertaso e
Érico Veríssimo, tornando a Globo destaque no mercado editorial brasileiro,
principalmente graças às traduções de clássicos estrangeiros. Nesse período, a
tradução alcançou números nunca antes vistos nesse mercado. A posição do
tradutor no campo se modificou. Temos, então, os autores-tradutores e o
intelectual, que também passa a exercer o papel de tradutor, como é o caso de
Paulo Rónai. A tradução desses clássicos deu à Editora Globo o prestígio
necessário para obter uma posição de destaque no campo das editoras, e os
autores-tradutores, por sua vez, tiveram papel importante na legitimação das
traduções. O próprio termo (autores-tradutores) cunhado na primeira metade do
49
VERÍSSIMO, Érico. Um certo Henrique Bertaso. Porto Alegre: Globo, 1972.
92
século XX, 50 denota que se trata de uma produção simbólica do campo, que
mostra uma distinção em relação ao tradutor comum, ou seja, trata-se de uma
categoria específica, que o coloca no mesmo grau de comparação com o autor.
Ao traçarmos uma pequena historiografia da tradução no Brasil, observamos
que as críticas em relação às traduções aumentaram na Era Vargas, e concluímos,
então, que esse aumento se deveu, também, à presença dos autores das traduções.
Assim, o crescimento da crítica em relação às traduções demonstra o valor que
elas passaram a ter naquele período histórico. É importante notar que a crítica não
é feita a qualquer tradução. Uma tradução, para ser objeto de crítica, geralmente
tem seu original já consagrado. Assim, como textos canônicos foram traduzidos
na Era Vargas por tradutores de “renome”, os autores-tradutores, a crítica passou a
demonstrar interesse por essas traduções.
Mas, por que a crítica não se interessava pela tradução até o momento dos
autores-tradutores? Bourdieu, ao falar da estrutura e do funcionamento do campo
de produção erudita, demonstra que o sistema de produção de bens simbólicos se
estrutura a partir de várias relações que acontecem entre as instâncias de
produção, de reprodução e de difusão desses bens. Desse modo, o campo de
produção se define de forma variada nas diferentes áreas artísticas e intelectuais,
como uma oposição entre um campo de produção erudita, que tem suas próprias
normas de condução, de avaliação e de legitimação de suas próprias obras, e o
campo da indústria cultural, que produz obras destinadas ao “grande público” e às
frações não intelectuais das classes dominantes. Como já assinalado, enquanto as
obras produzidas pelo primeiro campo encontram seu reconhecimento no próprio
campo, já que os produtos são direcionados aos próprios produtores de bens
50
ROLIM, Lia. Práticas de tradução no Ocidente: uma retrospectiva histórica. Dissertação
(Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio, Rio de Janeiro, 2006.
93
simbólicos, ou seja, seus pares artísticos e frações intelectuais das classes
dominantes, as obras da indústria cultural esforçam-se por atingir na concorrência
do mercado o seu reconhecimento e avaliação.
Conforme Bourdieu, à medida que o campo de arte se autonomiza, dá-se o
desenvolvimento de uma indústria cultural que coincide com o aumento do
número de potenciais consumidores das obras produzidas, graças também ao
acesso de maior parcela da população ao ensino elementar, organizando-se um
mercado de bens intelectuais. Notamos, entretanto, a representação dos autores
como “criadores únicos e insubstituíveis”, ao passo que o tradutor não tem o
mesmo status, uma vez que a tradução é vista como cópia, e não como criação.
Assim, a existência desse artista autônomo, criador de obras únicas e
insubstituíveis, não encontra correspondência na tradução, exceto quando o
tradutor é legitimado no campo literário.
Acreditamos que seja possível, a partir dessa oposição entre o campo da
produção erudita e o campo da indústria cultural, entender principalmente a
estruturação e o funcionamento do campo, bem como as relações internas entre os
produtores, a representação que eles produzem entre si e entre eles e o campo, e a
lógica de execução, concepção e estruturação dos bens produzidos. Sob essa ótica,
no espaço social da tradução, há de se fazer uma distinção entre traduções
produzidas para atender à
indústria cultural,
dependente do mercado, e as
traduções de obras consagradas, como Em busca do tempo perdido. Assim o
tradutor, de obras pertencentes ao campo da indústria cultural tenderia a ser
menos valorizado que o tradutor de obras ligadas ao campo da produção erudita.
Para os críticos, é mais interessante comentar traduções de obras consagradas,
principalmente as elaboradas por autores-tradutores, como Mario Quintana, por
94
exemplo, do que as traduções de um tradutor qualquer, uma vez que a valorização
do produto, ou seja, dessas traduções, agregaria valor também a esses produtores
das instâncias de legitimação, ou seja, aos críticos.
Dentre as críticas publicadas à época da tradução de Mario Quintana,
destaca-se uma seção de crítica de tradução de 1944 a 1946 no jornal carioca
Diário de Notícias, intitulada “À margem das traduções”, a qual, com as iniciais
C.T. (supostamente Crítico de Traduções), era assinada por Agenor Soares de
Moura. O anonimato serviria para protegê-lo de uma tarefa nada fácil, ou seja,
criticar as traduções desses consagrados escritores da literatura brasileira. Outro
crítico que se destaca é Paulo Rónai. Também escritores como João Cabral de
Melo Neto e Manuel Bandeira se dedicaram às críticas de traduções. Assim, a
crítica corrobora a circularidade dos valores de determinadas traduções.
Em relação à instância de recepção, observamos, no Capítulo 1, como uma
série de transformações permitiram a formação de um público leitor que viria a se
tornar consumidor dessas traduções. Assim, na Era Vargas, o aumento da
escolaridade e o crescimento econômico do País proporcionaram o fortalecimento
de um público leitor fortemente incrementado pelo surgimento de editoras de
porte, tais como Globo e José Olympio, com suas coleções hierarquizadas do mais
“popular” ao mais “erudito”. O público leitor aceita e reconhece o valor das
traduções por meio da circularidade dos valores a elas atribuídos.
As instâncias do campo de produção literária cooperam para consagrar
traduções que passam a ser consideradas como boas traduções, ou, como no caso
aqui abordado, como tradução “imortal” ou “definitiva”. Pascale Casanova (2002)
afirma que o tradutor é uma das instâncias a situar no espaço literário mundial. De
sua posição dependerá a operação da tradução efetuada, a posição do texto (ou do
95
autor) traduzido, ou seja, seu grau de legitimidade. Ressalta, ainda, ser a tradução
uma das formas de transferência de capital literário e que, assim sendo, o valor da
tradução e seu grau de legitimidade dependerão do capital linguístico-literário do
tradutor e do capital linguístico-literário da língua de chegada, além do grau de
legitimação do editor, do prestígio da coleção ou da revista em que o texto
traduzido aparece. Pode-se afirmar, então, que da posição do mediador no campo
nacional, da posição da língua-alvo e, secundariamente, da posição do editor
dependerá o grau de legitimidade do livro traduzido: “Quanto maior o prestígio do
mediador, mais nobre é a tradução, mais ela consagra.”51 Assim, compreender o
papel do tradutor supõe inseri-lo em um conjunto. O tradutor não é um
consagrador único, ele se encontra em uma cadeia complexa de mediadores, que
compreende agentes literários, editores, críticos etc.
A respeito dos tradutores, Pascale Casanova (2002) observa que alguns
podem ser nomeados de “consagradores consagrados”, que ela denomina,
também, “consagradores carismáticos”, cujo poder de consagração depende do
grau de sua própria consagração. São os que consagram de uma maneira pessoal,
em oposição aos “consagradores institucionais”, que seriam os pertencentes a
instituições acadêmicas ou escolares. Segundo a autora, no caso dos tradutores
“consagradores carismáticos”, que podem ser escritores, intelectuais respeitados,
por exemplo, a tradução já seria por si mesma uma consagração e não precisaria
ser legitimada nem por comentários nem por análises ou prêmios; ao passo que,
sendo o tradutor pouco dotado ou desprovido de capital específico, ou seja, com
pouca consagração, a operação de troca de capital seria, então, transferida a outros
mediadores mais dotados, como os prefacistas, analistas e críticos prestigiados.
51
CASANOVA, Pascale. Consécration et accumulation de capital littéraire: la traduction comme
échange inégal. Paris: Actes de la Recherche en Sciences Sociales, 2002. v. 144, p. 17.
96
Como o tradutor não apresenta, nesse caso, um capital necessário à consagração
da tradução, a legitimação dessa tradução é embasada por outros protagonistas do
espaço literário. A cadeia depende, de um lado, da posição do tradutor, do grau de
legitimidade inicial conferido pela própria tradução, e, de outro, de seu lugar de
publicação.
Nessa perspectiva, conforme observamos, alguns tradutores, segundo
Pascale Casanova, podem ser nomeados de “consagradores consagrados” ou
“consagradores carismáticos” e seu poder de consagração depende do grau de sua
própria consagração, ou seja, os tradutores que consagram de uma maneira
pessoal – como é o caso do escritor Mário Quintana. No campo, dentre outros
fatores, a consagração de uma tradução depende da posição que o tradutor ocupa,
isto é, de seu posicionamento como agente no campo de produção. Isso é
importante, porque tal posição determina o significado do trabalho do tradutor e
das práticas, dos esquemas e dos princípios técnicos envolvidos na produção,
capazes de, pela circularidade e pela reciprocidade de reconhecimento no campo,
explicitar a posição desse tradutor, tanto nesse campo quanto na hierarquia
cultural da sociedade. Sob essa ótica, a consagração de uma tradução depende da
posição desse tradutor pertencente ao campo e de suas relações com as instâncias
de legitimação e de consagração. Isso explica por que uma posição mais ou menos
consagrada ou legítima de um tradutor reveste a tradução de um reconhecimento
maior ou não. Assim, uma tradução assinada por Mário Quintana, tradutor
consagrado
no
campo
da tradução,
apresenta
mais possibilidades de
reconhecimento do que uma tradução elaborada por outro tradutor em busca de
reconhecimento.
97
Entretanto, como afirma Bourdieu, nunca podemos expor a posição de um
agente no campo sem admitir os vetores de força que partem de outros integrantes
em diversas instâncias. Observaremos, assim, que as instâncias de legitimação
apontam a relevância que determinado tradutor tem ou não no campo,
estabelecendo uma aceitação por todos. Nessa relação, os mecanismos sociais – a
origem social, a formação familiar e cultural – podem orientar os produtores para
certa posição no campo.
Notaremos, também, uma reduplicação da consagração do autor do original
em relação ao tradutor. Assim, ao traduzir Proust, autor consagrado, Mário
Quintana também busca sua própria consagração, ocorrendo, assim, uma espécie
de transferência de prestígio do autor para o tradutor, uma vez que Proust constitui
esse artista autônomo, criador de obras únicas e insubstituíveis.
Segundo Bourdieu (2001), pode-se mostrar uma “espécie de harmonia
estabelecida entre o habitus do criador e a posição que ele ocupa no campo, isto é,
a função que lhe foi atribuída, embora ele a tenha, aparentemente, produzido”. Por
isso, entrevistas de Mário Quintana serão utilizadas neste recorte, em cujos
enunciados verificaremos seu domínio da língua francesa, aspectos biográficos
que demonstram como se deu sua relação com a língua e a cultura francesas, o
que ele pensa sobre o ofício da tradução, o que fala sobre os autores que traduziu,
em especial Proust, bem como sua relação com seus pares consagrados ou não
consagrados.
Agora, nos debruçaremos sobre as evidências da consagração pelo ponto de
vista da instância de produção, especificamente enfocando o autor-tradutor Mário
Quintana. Esse conjunto de evidências abrange: (i) entrevistas com Mário
Quintana; (ii) críticas e resenhas em suplementos culturais que tecem
98
considerações sobre essa tradução; (iii) opiniões e considerações em blogs
dedicados à atividade literária; e (iv) capas de livros em que é exposto o nome
(assinatura) de Quintana. Embora também se constituam em evidências da
consagração da tradução de Quintana, as traduções mais recentes dessa obra de
Proust serão apresentadas no próximo capítulo, visto que necessitam de melhor
análise no que se refere à luta constante por legitimidade diante de uma tradução
já consagrada tal como a de Quintana. * Veremos que essas novas traduções
somente reforçam a consagração de Quintana, uma vez que elas, em busca de
legitimidade, se demarcam em relação à tradução “definitiva” da Editora Globo.
3.2.1
O FRANCÊS E A ORIGEM FAMILIAR DE QUINTANA
Podemos observar que a origem familiar e social de Quintana lhe confere
distinção como autor-tradutor que conhece e manuseia a língua francesa desde o
âmbito familiar. Assim, nesse recorte, observaremos que Mário Quintana valoriza
em seu discurso a importância da língua francesa no mundo, que, embora
estivesse perdendo a condição de língua hegemônica mundial para a língua
inglesa, manteve seu status de língua relacionada com a produção cultural –
artística e intelectual. Ao fazê-lo, Quintana denota o valor de distinção da língua
que ele mesmo domina. Além disso, ressalta a importância do francês como
língua de tradução, uma vez que importantes obras da literatura mundial puderam
ser lidas graças às traduções francesas, citando principalmente a tradução do russo
para o francês.
*
A primeira tradução é de Fernando Py. PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido. Rio de
Janeiro: Ediouro, 2004. A segunda tradução terá a assinatura de Mario Sergio Conti, e seu
primeiro volume será lançado ainda neste ano 2012 pela Editora Companhia das Letras.
99
A seguir, em suas entrevistas, notaremos como a origem familiar e social de
Quintana lhe permite se distinguir como um autor-tradutor que conhece
profundamente a língua da qual traduz. Mário Quintana revela sua estreita ligação
com a língua francesa, idioma que aprendeu desde muito cedo, em casa.
Minha mãe lecionava francês. Aprendi com meus pais, naquele tempo todo mundo
falava francês, fazia parte da educação das moças: estudar piano, estudar pintura e
falar francês. Acho uma coisa muito engraçada. Eu me lembro que, quando houve
uma revolução lá em Alegrete, foi feita quase toda em francês – as senhoras iam
visitar as madames e se comunicavam em francês para os criados não saberem o
que é que se estava tramando.52 (grifos nossos)
[...] o francês era moda e a minha mãe era professora de francês. Então, quando a
gente, por exemplo, não queria que os empregados soubessem o que a gente estava
dizendo, aí se falava em francês. Grande parte da revolução de 23, por exemplo, foi
preparada em francês, porque se reuniam as senhoras dos oficiais para tomarem
chá e comunicavam as coisas todas em francês. Imagine que na minha terra, em
Alegrete, se fez revolução em francês. 53 (grifos nossos)
[...] Meu pai foi conspirador da revolução de 23. Então, para os criados não
entenderem as conspirações e também as coisas íntimas, falava-se em francês. 54
(grifo nosso)
A culpa foi também de meu pai, que adorava La Fontaine e me fez decorar
algumas de suas fábulas antes que eu as pudesse ler. Assim as névoas e perigos do
Cabo Tormentório eram varados pelo riso claro e simples do bonhomme fabulista.
Não admira, pois, que, mais tarde, eu adorasse Racine, a par de Shakespeare.55
(grifos nossos)
É interessante notar que Quintana demonstra como aprendeu francês dentro
de casa com a família, algo que não era acessível a qualquer família. Toda família
ocupa uma posição no espaço social. Ao receber uma educação ligada a uma
posição de determinada classe, Mário Quintana reproduz de maneira espontânea,
em seus pensamentos e palavras, as relações sociais existentes no momento da
aprendizagem. Observamos que Quintana relaciona a aprendizagem da língua
52
PENA AZUL DE LITERATURA E ARTE. Entrevista a Hermes Rodrigues Nery. Disponível
em: <http://medei.sites.uol.com.br/penazul/geral/entrevis/quin.htm>. Acesso em: 17 ago. 2010.
53
REVISTA
TERRA.
Entrevista
com
Mario
Quintana.
Disponível
em:
<http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI1090046-EI6595,00.html>. Acesso em: 9 maio
2010.
54
PENA AZUL DE LITERATURA E ARTE. Entrevista a Hermes Rodrigues Nery. Op. cit.
55
Entrevista concedida a Edla van Steen e publicada no livro Viver & escrever. Porto Alegre:
L&PM, 2008. v. 1.
100
francesa com a de outras artes. Assim, o francês constitui um elemento de
distinção ligado às artes, tais como a pintura e a música. O francês é citado como
uma língua não acessível aos empregados, logo, como elemento de distinção de
determinada classe social. Em várias entrevistas compiladas, Quintana repete essa
mesma história, ressaltando sempre que sua relação com a língua francesa se deu
desde a infância, que sua mãe era professora de francês e que o francês era falado
em sua casa, o que pode ser confirmado nos exemplos a seguir, nos quais a
palavra “francês” se repete inúmeras vezes. Assim, ao ressaltar todo o tempo a
importância da língua francesa e de como foi influenciado por ela, Quintana se
demarca como legítimo conhecedor da língua e da cultura francesas.
A França era a capital literária do mundo. Eu, quando estava na farmácia do
velho, tinha conta numa livraria francesa. Eles mandavam os boletins e eu
encomendava. Tudo vinha direto de Paris para Alegrete. 56(grifos nossos)
[...] francês era o veículo literário do mundo naquele tempo, e até há pouco tempo.
E nós devemos muito ao conde de Belchior de Vogué, que traduziu os russos. Se os
russos não tivessem sido traduzidos para o francês nós desconheceríamos
Dostoiévski até hoje. O que é desconhecer uma terça parte da alma humana.
Porque a alma humana está dividida em três partes, uma em Shakespeare, outra na
Bíblia, outra em Dostoiévski. Pelo menos para mim. 57 (grifo nosso)
O que devemos à França não é a cultura francesa, é a cultura universal. Toda obra,
para universalizar-se, teria de passar pelos tradutores franceses. (grifo nosso)58
Em outra entrevista, percebe-se a própria valorização a partir do domínio de
uma língua hegemônica como o francês. Quintana se demarca como leitor de
autores franceses, por quem demonstra profunda admiração, mostrando a estreita
ligação com a literatura francesa, identificando-se com Appollinaire e Verlaine, o
que lhe traz capital simbólico como autor e tradutor. Assim, Quintana, ao se
demarcar como conhecedor da língua e da cultura francesas, angaria prestígio.
56
REVISTA TERRA. Entrevista com Mario Quintana. Op. cit.
PENA AZUL DE LITERATURA E ARTE. Entrevista a Hermes Rodrigues Nery. Op. cit.
58
Id.
57
101
Fala de um lugar próprio, uma vez que seu capital cultural lhe dá o direito de falar
desse lugar.
A gente sempre admira o que mais se parece com a gente, não é? O que mais se
parece comigo ou com quem mais eu me pareço foi Guilhaume Appollinaire, e
outro que a gente não pode deixar de admirar é o mestre dos simbolistas, o
Verlaine. Os outros são discípulos, seguidores, continuadores.
Uma estratégia acionada por Mário Quintana para valorizar seu
conhecimento da língua francesa consistiu em desmerecer a língua inglesa, bem
como a literatura norte-americana. O objetivo de tal estratégia estava em valorizar
o conhecimento que tinha, o que está evidenciado no exemplo a seguir, quando,
ao ser interpelado pelo entrevistador, defende invariavelmente a língua francesa:
Não posso esquecer que minha infância se passou na belle époque, quando até os
americanos sabiam falar francês. Tenho uma amiga que foi para a Alemanha
apenas sabendo francês [...]. Aproveito a ocasião para lançar o meu protesto contra
essa ideia de tirarem a língua francesa do currículo escolar. (grifo nosso)
Quintana reivindicava que o francês voltasse ao currículo escolar, por isso,
podemos apreender que o francês fazia essencialmente parte desse currículo no
Brasil. Exemplos da estratégia de “desmerecimento” da língua inglesa e da cultura
norte-americana estão evidenciados a seguir:
[...] Mas a minha queixa é contra os americanos. Já disse e repito que, se há males
que vêm para bem, há bens que vêm para mal. Exemplo: os Estados Unidos
ganharam a guerra. Resultado: o povo, em geral, só lê os best-sellers americanos
que eles nos impingem. São tão ruins que chego a acreditar que sejam apenas
literatura de exportação [...]59
Ao ser indagado se gosta da literatura norte-americana, Quintana responde:
[...] gosto de Scott Fitzgerald, o que não é de admirar porque ele pertence à minha
geração: o mesmo caldo de cultura, a mesma sensibilidade. Gosto de Edgar Poe, e
eu não compreendo como é que ele foi aparecer por lá. Deve ter havido um engano
de país ou de planeta.
59
Entrevista concedida a Edla van Steen e publicada no livro Viver & escrever. Op. cit.
102
Ao desmerecer a língua inglesa, que passava a prevalecer, Quintana revela
que se distinguia como conhecedor da língua francesa, o que acabou lhe rendendo
o cargo de tradutor da Editora Globo, a convite de Érico Veríssimo, valorizando,
assim, seu capital cultural:
Como há males que vêm para bem, os Estados Unidos ganharam a guerra, e eu
com ela. Todo mundo começou a estudar inglês – como ainda hoje –, mas o Érico
(Veríssimo) lembrou que eu era o único conhecido que falava francês e me
chamou para a Editora Globo.60 (grifo nosso)
3.2.2
A POSIÇÃO TRADUTIVA “VISÍVEL” DE QUINTANA
A posição que um tradutor ocupa no campo da tradução, isto é, seu papel de
agente na produção, interessa-nos, uma vez que determina o significado do
trabalho do tradutor e das práticas – esquemas e princípios técnicos – envolvidas
na produção, capazes de, pela circularidade e reciprocidade de reconhecimento no
campo, explicitar a posição de determinado agente tanto nesse campo quanto na
hierarquia cultural da sociedade. Observemos, portanto, na prática, o
funcionamento nesse campo de produção, juntamente com os outros integrantes
do espaço da tradução.
No capítulo anterior, discutimos as tendências ao etnocentrismo nas
traduções e a invisibilidade do tradutor. Observamos que a noção corrente é de
que “o tradutor nunca pode fazer o que o original fez”, e que, dessa maneira, a
tradução é vista como cópia de um original, este, sim, tido como produto raro,
produzido por um criador único, o autor. Segundo Venuti, ao realizar uma
tradução etnocêntrica, o tradutor, ao tentar apagar os traços da tradução, acabaria
60
QUINTANA, Mario. Instituto Estadual do Livro. Mario Quintana. Autores Gaúchos, Porto
Alegre: IEL/ULBRA/AGE, 1996.
103
ele mesmo por apagar-se. Venuti afirma que o tradutor deve utilizar como
estratégia de tradução o não apagamento dos traços da cultura de partida, a fim de
que sua figura não seja também apagada, o que é defendido, também, por Lenita
Esteves:
A partir do momento em que se aceitar de forma geral a ideia de que o tradutor
interfere no texto que traduz; que, em resumo, ele não é invisível, ele assumirá
também responsabilidades mais sérias em relação a esse texto. O que aconteceu
tempos atrás com a noção de autoria pode ser aplicado para a tradução. Se o
tradutor interfere no texto que produz, o que considero inevitável, ele também é um
pouco responsável por ele. É preciso que se tenha um rigor, um cuidado ao traduzir
que muitas vezes não se tem. Assim como a tradução não pode ser qualquer coisa,
o tradutor não pode ser qualquer tradutor.61
Seria possível ao tradutor fazê-lo de forma consciente? Poderia qualquer
tradutor fazer evidenciar a cultura da língua de partida e não se apagar?
Acreditamos que esse apagamento da figura do tradutor constitua uma produção
simbólica do campo, que mostra quem é valorizado ou não dentro dele. Assim,
não depende unicamente da vontade do tradutor que ele seja visível; essa
visibilidade dependerá do seu nível de consagração, determinado pelo campo.
Na evidência a seguir, Quintana concebe uma boa tradução, aquela que
segue o estilo do autor, definindo, desse modo, o que seria sua concepção de uma
boa tradução:
Aquela que segue o estilo do autor, e não o do tradutor. Os períodos de quadra e
meia de Proust (sim, o período dele dava volta na quadra) não poderiam ser
divididos em pedacinhos, por amor da clareza ou coisa que o valha, como
acontece às vezes na tradução castelhana.62 (grifos nossos)
Desse modo, Quintana não somente se demarca como um tradutor não
etnocêntrico, como também critica quem faz uma tradução nos moldes
etnocêntricos, ao afirmar que os períodos de Proust “não podem ser divididos em
61
ESTEVES, Lenita M. R. Tradução fiel: a quem? A quê? Por quê?. p. 12. Disponível em:
<http://www.lenitaesteves.pro.br/MicrosoftWord-fielaquem.DOC.pdf>. Acesso em: 24 ago. 2011.
62
Entrevista concedida a Edla van Steen e publicada no livro Viver & escrever. Op. cit.
104
pedacinhos por amor à clareza ou coisa que o valha”. Na estratégia de Quintana,
não há preocupação em facilitar a vida do leitor, que se evidencia na maneira
“literária”, e não “literal”, de sua tradução, conforme afirma:
Há sempre uma diferença entre tradução literal e tradução literária. Creio que a
tradução de um autor é, nada mais, nada menos, a estreia desse autor na literatura
da língua para a qual ele foi traduzido. Daí, a responsabilidade enorme de traduzir
um Proust, um Voltaire, gente assim.
Os críticos parecem corroborar essa ideia:
Ao longo deste trabalho recorreremos à tradução de Em busca do tempo perdido
publicada pela Editora Globo; tradução que recebe, nos quatro primeiros volumes
dos 7 que compõem a edição brasileira, a assinatura do poeta Mário Quintana. A
recorrência, nesta comunicação, ao texto traduzido, em lugar daquele em francês,
justifica-se, inicialmente, pela alta qualidade da tradução de Quintana e dos demais
responsáveis pelos três volumes finais. Quintana traduziu Proust à maneira de
Proust, respeitando aqueles períodos do romancista que dão volta e meia na
página.63 (grifos nossos)
Em suas entrevistas, Mário Quintana se posiciona como tradutor,
demonstrando sua relação com a tradução e com o ofício de escrever: “Mas, como
eu ia dizendo, traduzia porque gostava daqueles livros. E quanto mais difícil o
livro, mais eu gostava”64 (grifos nossos).
Em outro trecho, afirma que começara a traduzir desde muito cedo, sem
compromisso profissional. Essa relação com a tradução está ligada a um
constructo social mais valorizado, pois remete a uma forma “natural”, portanto,
“genuína”, do ofício de traduzir, especificamente obras do francês: “Cheguei a
começar por conta e risco uma tradução da Ifigênia, de Racine, e do Sonho de
63
ANAIS do V Congresso de Ciências Humanas, Letras e Artes da Ufop. Disponível em:
<http://www.ichs.ufop.br/conifes/anais/LCA/lca2602.htm>. Acesso em: 20 abr. 2010.
64
CASA
DE
CULTURA
MARIO
QUINTANA.
Disponível
em:
<http://www.estado.rs.gov.br/marioquintana>. Acesso em: 10 ago. 2009.
105
uma noite de verão, as quais infelizmente se perderam. Ou felizmente, nunca se
sabe.”65
Mário Quintana valoriza a tradução e o ofício do tradutor; contudo, não
menciona a tradução de escritores menos renomados, mas as traduções de
escritores consagrados, e especialmente da língua francesa, e, ao fazê-lo, valoriza
a si mesmo, como observamos no exemplo a seguir, já citado anteriormente:
Há sempre uma diferença entre tradução literal e tradução literária. Creio que a
tradução de um autor é, nada mais, nada menos, a estreia desse autor na literatura
da língua para a qual ele foi traduzido. Daí, a responsabilidade enorme de traduzir
um Proust, um Voltaire, gente assim. (grifos nossos)
No enunciado seguinte, o entrevistador qualifica Quintana de um tradutor de
“obras clássicas”. Já na indagação do entrevistador se abre a possibilidade de
Quintana responder a essa pergunta valorizando a mística de Proust como autor de
difícil tradução:
– E como foi traduzir Proust? (pergunta do entrevistador)
– Foi uma coisa horrível. Mas eu gostei, exatamente por causa da dificuldade. A
dificuldade é uma coisa que pode cansar, mas é o mesmo que a ginástica, faz bem.
[...] Uma barbaridade traduzir aqueles períodos que dão volta na esquina e não se
sabe onde vão parar. (resposta de Quintana)66 (grifos nossos)
Percebe-se que Mário Quintana cita os autores “imortais” por ele traduzidos,
tais como Merimée, Voltaire e Proust, o que lhe rende capital simbólico.
Observamos, também, a maneira como Quintana se utiliza da mística de Proust,
como “gente assim”, “que não é brinquedo”, “difícil”, para valorizar seu próprio
trabalho – uma empreitada de “dificuldade” que, segundo ele, pela qual há de se
ter amor, de grandes proporções, e que não há dinheiro que pague. Amealha,
assim, consagração ao se colocar como tradutor de obras tidas como difíceis: “[...]
65
Entrevista concedida a Edla van Steen e publicada no livro Viver & escrever. Op. cit.
QUINTANA, Mario. Instituto Estadual do Livro. Mario Quintana. Autores Gaúchos, Porto
Alegre: IEL/ULBRA/AGE, 1996.
66
106
De maneira que é uma enorme responsabilidade. Olha que eu traduzi Proust, o
que não é brinquedo. E traduzi Voltaire, traduzi Merimée, traduzi esta gente
assim”67 (grifos nossos).
3.2.3
AFIRMAÇÕES DE AMOR À TRADUÇÃO E DE ABNEGAÇÃO
DOS LUCROS FINANCEIROS
A seguir, podemos verificar que, em algumas entrevistas, Mário Quintana se
mostra como tradutor abnegado, tal como um autor que trabalha por “amor à
arte”, na medida em que não busca lucros financeiros: “Traduzi Proust por amor à
dificuldade da tradução. Quando soube que Proust estava incluso no programa
editorial da Globo, pedi para traduzi-lo, por medo que caísse em outras mãos”
(grifos nossos).
Ao afirmar ter traduzido por “amor”, Quintana demarca-se em relação a um
“tradutor comum” que tira da tradução seu sustento. Antes, coloca-se na posição
de artista “abnegado”, interessado na “arte pela arte”. Como se a associação entre
arte e dinheiro não pudesse ser feita. Assim, lança mão do que Bourdieu chama de
denegação, ou seja, negar um lucro material, a fim de colher capital simbólico.
Afirma, também, ter traduzido Proust por “medo que caísse em outras mãos”.
Desse modo, coloca-se como um tradutor interessado pela arte, sem interesse
material, o que podemos comprovar ainda no exemplo a seguir, no qual afirma
que até “pagaria” para traduzir Proust:
Antes de tudo, Proust foi para mim um trabalho e um prazer ao mesmo tempo,
porque olha que traduzir Proust... Ele tem períodos enormes que dão volta na
página e eu devia traduzir preservando a mesma clareza do original. Tanto que
67
PENA AZUL DE LITERATURA E ARTE. Entrevista a Hermes Rodrigues Nery. Op. cit.
107
comentei com o Érico Veríssimo, que dirigia o setor de traduções da Editora
Globo: “Estou gostando tanto de traduzir o Proust que, se eu tivesse dinheiro, eu é
que pagava para vocês”. [...]68 (grifos nossos)
Quintana não fala da tradução de uma obra qualquer, mas de uma obra de
Proust, autor consagrado e tido como difícil de ser traduzido. Ao afirmar que
traduzira Proust “por amor”, ele se coloca como artista abnegado, sem interesse
material, associando a tradução a um trabalho artístico. Quintana se contradiz,
uma vez que, na mesma entrevista, afirma ter pedido demissão da Editora Globo
por não ter sido contemplado com aumento salarial:
Retirei-me do quadro de funcionários da Globo quando, por ocasião de um
aumento de salário, eu não fui contemplado, sob a alegação de que me demorava
muito na tradução de Proust. Traduzi da primeira até a quarta parte (Sodoma e
Gomorra).69 (grifos nossos)
O que é corroborado em outra entrevista, na qual Quintana demonstra sua
insatisfação por não ter recebido aumento. Como fora informado de que tal fato se
devera à demora em fazer a tradução de Proust, demonstra indignação, afirmando
que deveria levar tanto tempo para traduzir quanto Proust levou para escrever.
Assim, Quintana se demarca como um tradutor diferenciado, não um tradutor
qualquer, colocando-se na posição de autor. Notamos que suas afirmações acerca
do seu “amor” à tradução em oposição ao tradutor comum o direciona para uma
posição mais ousada e consagrada dentro do campo da tradução.
Quando houve o primeiro aumento geral, fui o único a não ser aumentado.
Naturalmente, tomei satisfações. A resposta que me deram foi que eu levava muito
tempo na tradução. “Você, afinal, levou quatro meses para traduzir um volume.”
Ora, eles não compreendiam que eu tinha que demorar tanto tempo quanto Proust
levara para escrever o original, para fazer uma tradução digna. Queriam que eu
traduzisse com a mesma velocidade com que traduzia romances sem civilização
nenhuma, ditados para uma estenógrafa em uma semana. Por causa disso,
68
CASA
DE
CULTURA
MARIO
QUINTANA.
<http://www.estado.rs.gov.br/marioquintana>. Acesso em: 10 ago. 2009.
69
Id.
Disponível
em:
108
abandonei minhas funções de tradutor na Globo e fui trabalhar no Correio do
Povo.”70 (grifos nossos)
Podemos observar que há uma reduplicação da consagração do autor do
original em relação ao tradutor. Assim, ao traduzir Proust, autor consagrado,
Mário Quintana também se consagra, ocorrendo, assim, uma espécie de
transferência de prestígio do autor para o tradutor. Proust se constitui nesse artista
autônomo, criador de obras únicas e insubstituíveis, que valida no campo de bens
artísticos a constituição de um campo de produção erudita, caracterizado por uma
autonomia em conduzir as operações de produção, avaliação e legitimação dentro
do próprio campo.
Na entrevista que segue, Quintana afirma que não se dá valor ao trabalho do
tradutor. É interessante notar que elogia apenas os pares consagrados, por meio
dos quais possa alcançar mais prestígio: Bandeira e Drummond, não citando Lúcia
Miguel Pereira, que traduziu O tempo redescoberto em 1956:
Não se dá valor ao trabalho do tradutor. Isso sempre me deixou indignado. A
tradução é uma coisa muito séria. [...] Eu traduzi quatro volumes do Proust. Os
outros foram traduzidos por Manuel Bandeira e por Carlos Drummond de Andrade.
Fiquei em ótima companhia e acho que Proust não pode se queixar da gente, pelo
menos da parte do Bandeira e do Drummond.71 (grifos nossos)
O fato de citar apenas Drummond e Bandeira nos leva a algumas reflexões.
Pierre Bourdieu (1998), ao tentar definir as regras próprias à criação artística,
analisa a configuração do campo intelectual francês no final do século XIX,
período no qual, segundo o autor, esse campo atinge o seu maior grau de
autonomização. Nesse período, as transformações sociais decorrentes do
desenvolvimento das forças produtivas desestabilizavam a posição do artista, que
70
REVISTA TERRA. Entrevista com Mario Quintana. Op. cit.
GOVERNO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Disponível em:
<http://www.estado.rs.gov.br/marioquintana/entrevistas/Entrevista%20com%20Patricia%20Bins>.
Acesso em: 17 abr. 2010.
71
109
era, então, obrigado a optar entre servir ao mercado e aos salões da burguesia e
engajar-se nas causas políticas. Bourdieu cita como exemplo o poeta francês
Charles Baudelaire, que teria percebido como nenhum outro a nova configuração
do campo intelectual, ou seja, a de que o “verdadeiro” valor do escritor não seria
garantido por seu empenho na esfera política ou pelo mercado, nem estaria
associado à volta a um mecenato aristocrático nos moldes do século XVIII, mas,
sim, pelo reconhecimento de seus pares. Esse reconhecimento não seria imediato,
mas a longo prazo, e, dentro desse processo, o papel da crítica seria
importantíssimo.
3.2.4
MÍSTICA DO “ACASO” NO OFÍCIO DA TRADUÇÃO – HISTÓRIAS
FOLCLÓRICAS SOBRE A TRADUÇÃO DE PROUST – AS CAPAS
A consagração da tradução de Mário Quintana se evidencia pela
circularidade de valores no campo. Ao analisarmos os relatos em relação à
maneira como Quintana traduzia, constatamos uma idealização do ato da
tradução, feita com “despojamento”, sem “pompa ou solenidade”. O que é
corroborado no exemplo a seguir:
Examinando mais de perto o trabalho que Quintana executava e constatando a
excelência da tradução, Broca exclamou algo como: “É incrível, como você
consegue fazer?”, ao que Quintana respondeu sorrindo, ao mesmo tempo em que
acendia um novo cigarro: “Com o primeiro da série Em busca do tempo perdido,
tive alguma dificuldade. Agora, as coisas estão bem mais fáceis.”72
Algumas histórias são contadas a respeito da famosa tradução de Proust.
Essas histórias sobre a tradução de Quintana para a obra de Proust não são
72
Artigo de Elias Pinto. Jornal Diário do Pará. 25 fev. 2007. Disponível em:
<http://www.achanoticias.com.br/noticia.kmf?noticia=5830965>. Acesso em: 19 mar. 2010.
110
gratuitas e, além de denotarem a consagração do tradutor, constituem uma
reduplicação dessa consagração, uma vez que, pela circularidade do campo, ao
falar da relação de Quintana com a tradução, o crítico ou o jornalista também se
consagram. Ora, o que poderiam ser apenas histórias pitorescas sobre a tradução,
na verdade, são evidências da consagração de Quintana como tradutor. Somente
um tradutor consagrado teria histórias comentadas a respeito da tradução de
Proust, que chegam a soar como folclóricas, como as que passamos a relatar.
No começo da década de 1950, em visita à editora, o crítico Brito Broca,
autor de A vida literária no Brasil de 1900, observara Mário Quintana traduzir
Proust “como se estivesse copiando um texto numa folha de papel almaço. Ficou
impressionadíssimo”, conta José Otávio Bertaso no livro A Globo da Rua da
Praia. “Os longos períodos proustianos eram traduzidos por Quintana sem a
menor hesitação. Decerto, para os padrões do eixo Rio–São Paulo, uma tradução
de Marcel Proust deveria revestir-se de toda pompa e solenidade, e não do
despojamento e da facilidade aparente com que Mário Quintana procedia.”73
Alguns fatos que cercam a tradução de Em busca do tempo perdido chegam
a ser citados como atípicos, como veremos no exemplo a seguir, relatado por um
crítico e que foi tratado por ele como “Proust no galinheiro”:
Doutra vez, em seu quarto de pensão, traduzindo um dos volumes de Proust, o
poeta deixou sobre a mesa mais da metade de sua produção cuidadosamente
manuscrita e esqueceu a janela aberta. Voltando de madrugada de mais uma noite
de boemia, se deu conta de que uma súbita ventania, seguida de uma forte chuva,
havia espalhado pelos pátios de sua pensão e galinheiros circunvizinhos mais de
duzentas laudas de seu trabalho.
Outras evidências mostram que a consagração da tradução de Quintana de
Em busca do tempo perdido somente cresce com o tempo. As capas das traduções
da obra de Proust pela Editora Globo, por exemplo, constituem prova disso.
73
Ibid.
111
Fig. 2. Imagem da capa de No caminho de Swann, a primeira edição de 1948 do primeiro
volume de Em busca do tempo perdido.
Na primeira tradução, datada de 1948 (Fig. 2), observamos que o nome de
Mário Quintana não apareceu na capa, apenas na folha de rosto. Tal fato
demonstra que o autor-tradutor já apresentava certa consagração que permitia a
citação de seu nome como tradutor em um local de relativo destaque. Entretanto,
essa consagração ainda não era suficiente para figurar na capa da obra – local
destinado, em princípio, apenas ao nome do autor da obra original. Essa situação,
112
da ausência do nome de Quintana na capa das traduções, se repetiu nas décadas de
1950 (Fig. 3) e 1960, isto é, seu nome ficou reservado à folha de rosto.
Fig. 3. Imagem da capa de No caminho de Swann, edição de 1956.
Ao longo das sucessivas traduções, nos anos 1950, notamos que seu nome
ainda não consta da capa. Tal fato nos permite afirmar que nomes de tradutores
nas capas, mesmo autores-tradutores, somente ocorrem após um processo de
duradoura consagração.
A próxima capa data do ano 1981. Notamos que o nome de Quintana
aparece nela; entretanto, em letras menores, na parte inferior e longe do título e do
nome do autor (Fig. 4).
113
Fig. 4. Imagem da capa de No caminho de Swann, edição de 1981.
Percebemos uma significativa mudança na imagem da capa de 1988, na qual
o nome de Quintana não somente se destaca, como também fica mais próximo ao
título – o nome do tradutor aumenta de tamanho de acordo com seu
reconhecimento (Fig. 5).
114
Fig. 5. Imagem da capa de No caminho de Swann, edição de 1988.
Ao observarmos a capa de 2005, percebemos que a consagração se torna
gradativamente mais consolidada, na medida em que o nome do tradutor não
deixa mais de se apresentar na capa, e seu nome figura, de certa forma, próximo
ao do autor e ao título da obra (Fig. 6).
115
Fig. 6. Imagem da capa de No caminho de Swann, edição de 2005.
Outro fato interessante e que demonstra a consagração da tradução de
Quintana é que a editora, ao lançar as histórias em quadrinhos do clássico de
Proust, faz referência ao nome dos tradutores da primeira tradução de Em busca
do tempo perdido. Em 2003, a Jorge Zahar Editora lançou uma adaptação em
quadrinhos de Em busca do tempo perdido – no caminho de Swann. O site
“Universo em Quadrinhos”, a fim de referendar a obra de Proust e mostrar a
importância que ela tem, menciona que foi traduzida para o português por Carlos
Drummond de Andrade e Mário Quintana:
Uma novidade tão inesperada quanto agradável acaba de chegar às livrarias, pela
Jorge Zahar Editora. Trata-se de Em busca do tempo perdido – no caminho de
116
Swann: Combray. Adaptação de um clássico da literatura mundial, escrito por
Marcel Proust, para a linguagem dos quadrinhos.74
Para se ter noção da importância de Em busca do tempo perdido, um longo
romance em sete volumes, no Brasil a obra foi traduzida por escritores como
Carlos Drummond de Andrade. Para os conhecedores de Proust, no entanto, a
melhor tradução para o português é de Mário Quintana, escritor, crítico e poeta
gaúcho. 75 (grifos nossos)
Assim, a fim de ressaltar a importância da obra de Proust que acabara de ser
lançada em quadrinhos, cita a tradução da Editora Globo e, evidentemente, os
tradutores que a consagraram. Essas evidências demonstram como as instâncias
do campo de produção literária cooperam para consagrar a tradução à medida que
há uma circularidade de valores relativos à tradução de Quintana, contribuindo
para a crença em um objeto “raro” e “insubstituível”, como a tradução de Em
busca do tempo perdido, elaborada por ele.
No próximo capítulo, veremos como o espaço da atividade da tradução no
campo da atividade literária é eficaz em sua luta por legitimidade, na medida em
que podemos observar o lançamento de outras traduções de Em busca do tempo
perdido. Uma delas foi lançada pela Editora Ediouro nos anos 1990 e elaborada
por Fernando Py; outra, a ser lançada brevemente pela Editora Companhia das
Letras, está em fase de elaboração por Mario Sergio Conti. Desse modo,
verificaremos a luta incessante por legitimidade nesse espaço social da tradução,
uma vez que o lançamento de novas traduções e a ação das instâncias de
consagração evidenciam a disputa dessas traduções posteriores com a tradução
“definitiva” de Mário Quintana.
74
UNIVERSO EM QUADRINHOS. Disponível em:
<http://www.universohq.com/quadrinhos/2003/n01122003_02.cfm-01/12/2003>. Acesso em: 1
set. 2009.
75
Ibid.
117
4
A LUTA PELA LEGITIMIDADE NO CAMPO – AS NOVAS
TRADUÇÕES DE EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO
Neste capítulo, poderemos constatar como é vigoroso o funcionamento do campo
em sua busca de legitimação. Observaremos como duas novas traduções de Em busca
do tempo perdido, a de Fernando Py, lançada em 1993 pela Ediouro, e a de Mario
Sergio Conti, que deverá ter seu primeiro volume lançado em 2012 pela Companhia das
Letras, pretendem demonstrar a si próprias como legítimas diante daquela que se diz a
“definitiva”, como se intitula a edição da Editora Globo, relançada em 2006, que tem
como tradutores Mário Quintana, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e
Lúcia Miguel Pereira.
Como a tradução de Quintana inaugura a obra de Proust no Brasil, é inevitável
que se faça uma relação com as traduções posteriores. Antoine Berman (1985, p. 105),
ao refletir sobre a retradução, assinala que é necessário distinguir “dois espaços (e dois
tempos) de tradução: o das primeiras traduções e o das retraduções”. Nesse contexto,
entende Berman que as primeiras traduções não são nem podem ser as maiores. Para
esse autor, a retradução encontra-se em uma posição crítica privilegiada, que lhe
permite e, em certo sentido, obriga a constituir-se em função de um diálogo temporal e
retórico-formalmente marcado. Afirma o teórico francês que a retradução não tem
relação apenas com o original, mas com dois, ou seja, com a primeira tradução também.
Assim, quando afirma que a retradução há de se relacionar não somente com o
original, mas também com a primeira tradução, Berman demonstra como essas
traduções posteriores têm de se demarcar em relação às primeiras. No caso das
traduções posteriores à tradução de Quintana, notamos que a primeira tradução
encontra-se de tal modo consagrada no campo de produção literária que as traduções
posteriores se apresentam como pretendentes (BOURDIEU, 2001) à dominação do
118
campo, encetando uma verdadeira luta por legitimidade no interior do campo. Como
exemplo dessa luta, apresentaremos tanto a tradução de Em busca do tempo perdido
elaborada por Fernando Py – lançada pela Ediouro em 1993 – quanto uma nova
tradução a ser lançada em 2012 pela Companhia das Letras, cuja elaboração está a cargo
de Mario Sergio Conti.
Se há quase que um consenso de que as traduções, produzidas em determinado
momento, devem sofrer modificações que as tornem “atualizadas”, a pergunta que se
faz é: qual o sentido de elaborar uma nova tradução de uma obra clássica, tal como a de
Proust, uma vez que já se tem uma tradução reconhecida como “definitiva”? Podemos
observar que, na perspectiva de funcionamento do campo de produção simbólica, tais
retraduções têm por objetivo – que vai além de atender às demandas do público – lutar
por legitimidade própria diante daquela previamente reconhecida como única. Não nos
parece que o interesse de duas outras editoras, ao lançarem nos dias de hoje a tradução
de Em busca do tempo perdido, seja o de apresentar ao público a obra de Proust.
Cremos que o mais importante para elas seja recolher prestígio, ou seja, capital
simbólico, na medida em que contariam com uma obra clássica de porte em seu
catálogo. Esse prestígio cultural amealhado pela editora lhe traz os lucros financeiros
adquiridos por possuir uma obra clássica que lhe possibilita o reconhecimento para a
venda de tantas outras obras de seu catálogo, contidas nos segmentos considerados
culturais e comerciais.
119
4.1
A TRADUÇÃO DE FERNANDO PY
Em 1993, cerca de meio século depois do lançamento da tradução da Editora
Globo, a Ediouro lançou uma nova tradução de Em busca do tempo perdido, em sete
volumes, elaborada por Fernando Py. Em 2002, uma segunda edição, revista, foi
lançada de maneira condensada em apenas três volumes. Ora, o relançamento da
tradução de Py não foi por acaso. Nesse mesmo ano, a Ediouro adquiriu a Editora Agir,
uma das mais tradicionais do País, e assim agregou seus 3.500 títulos ao catálogo, dos
quais 600 considerados como clássicos. Dentre essas obras estão livros de reconhecidos
autores brasileiros. A Ediouro atingiu a marca de mais de 2 milhões de livros de ficção e
não ficção vendidos em 2001, posicionando-se entre as maiores editoras do País. O
ritmo dos lançamentos também foi dinâmico, com mais de 10 títulos novos lançados por
mês. No final do ano 2006, adquiriu 100% do controle acionário da Editora Nova
Fronteira. A luta dessa editora por reconhecimento se fez notar na medida em que se
propôs relançar a obra Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust. Para a tarefa da
tradução dessa obra, foi escolhido o escritor Fernando Py. A escolha desse autor
literário não foi aleatória, pois Fernando Py é poeta, colunista, crítico literário e
tradutor. Reconhecido articulista, colabora em diversos jornais, entre eles O Globo,
Jornal do Brasil, Jornal da Tarde, Estado de Minas e Correio do Povo. Sua biografia
mostra, de modo similar à de Quintana, um relacionamento com a língua francesa desde
a infância em um colégio fundado por professoras belgas. De sua origem familiar, além
da língua francesa, fazia parte a língua espanhola. Além disso, em seus estudos
primários também aprendeu a língua inglesa.
Sua atividade como tradutor inclui vários tipos de obras, tais como as
enciclopédias (Grande Enciclopédia Delta Larousse e a Enciclopédia Mirador
120
Internacional), obras de divulgação científica, romances, livros de contos, de poesia,
principalmente da língua francesa. De suas traduções, destacam-se, além de Em busca
do tempo perdido, as obras da autora francesa Marguerite Duras. Podemos observar que
esse autor-tradutor detém certa legitimidade no campo que lhe confere o
reconhecimento necessário à sua contratação pela editora para a tradução da obra de
Proust e para “fazer frente” à tradução consagrada de Mário Quintana, pertencente à
Editora Globo.
Observamos, então, que se instaura uma luta entre as duas traduções pela própria
legitimidade dentro do campo de produção literária. Essa disputa, conforme Bourdieu
aponta, consiste em uma luta entre dominantes – representados pela tradução de
Quintana – e pretendentes – representados pela tradução de Py. A fim de observarmos
as estratégias de Fernando Py para “enfrentar” a tradução de Quintana, recorreremos às
indicações de Bourdieu, para quem cada campo de produção simbólica se constitui em
palco de disputa entre dominantes e pretendentes, evidenciada pelos critérios de
classificação e de hierarquização dos bens simbólicos produzidos e, indiretamente, pelas
pessoas e instituições que a produzem. Assim, os indivíduos e as instituições que
representam as formas dominantes da cultura buscam manter sua posição privilegiada,
apresentando seus bens culturais como superiores àqueles que buscam legitimidade no
campo. É o que Bourdieu chamou de violência simbólica, quando o arbitrário, imposto
como natural, é dissimulado no processo de inculcação dos valores dominantes. Aos
pretendentes restaria reconhecer o status da dominação e se armar de estratégias para
reagir contra tal dominação.
A seguir, observaremos diversos enunciados que demonstram essa luta entre a
tradução de Fernando Py – com pretensões à consagração no campo da atividade da
tradução – e a de Mário Quintana, em posição consagrada. Nos enunciados a seguir, de
121
Fernando Py, há o reconhecimento do próprio tradutor de que o principal problema de
sua tradução foi superar a tradução de Mário Quintana (juntamente com Carlos
Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Lúcia Miguel Pereira). Fernando Py o faz
por meio do prefácio de sua tradução de Em busca do tempo perdido, em um
subcapítulo intitulado “Critérios desta tradução”: “O principal desafio foi enfrentar os
antigos tradutores.”76 “[...] não é tarefa tranquila traduzir uma obra de vulto como a de
Proust. Ainda mais quando já existem outras em português”.77
Nesses enunciados, o próprio tradutor Fernando Py reconhece que seu principal
desafio é “enfrentar” a tradução já consagrada e seus tradutores. Ao reconhecer esse
desafio, Py busca reconhecimento, já que a tarefa de “enfrentar” os antigos tradutores
não é dada a um tradutor qualquer; sendo assim, compara-se aos tradutores consagrados.
Nas afirmações a seguir, observamos novamente o uso do termo “enfrentar” (a
tradução de Mário Quintana) para definir a tarefa de Fernando Py:
Py enfrentou a tradução já consagrada entre nós, publicada no início dos anos 50 pela
Globo.78 (grifo nosso)
[...] o fato de um único tradutor ter enfrentado esse desafio. 79 (grifo nosso)
[...] não é o que pensa o poeta Fernando Py, que assina a segunda tradução da grande
catedral literária francesa Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust. Com o objetivo
“de tornar mais palatável” o texto do autor francês, Py enfrentou a tradução já consagrada
entre nós, publicada no início dos anos 50 pela Globo de Porto Alegre. 80 (grifo nosso)
Já nos dois enunciados a seguir, vemos que há questionamento da qualidade da
tradução de Fernando Py. Embora sejam expostos elogios à sua tradução, no primeiro
enunciado o crítico alerta o público da instância da recepção para uma “magnífica
76
MENDES, Taynèe. Os desafios da tradução dos clássicos da literatura universal . Jornal do Brasil. 10
abr. 2010. Disponível em: <http://www.jb.com.br/cultura/noticias/2010/04/10/os-desafios-da-traducaodos-classicos-da-literatura-universal>. Acesso em: 15 jun. 2010.
77
PROUST, Marcel. No caminho de Swann / À sombra das moças em flor. Tradução Fernando Py. Rio de
Janeiro: Ediouro, 2004. p. 12.
78
MENDES, Taynèe. Os desafios da tradução dos clássicos da literatura universal . Jornal do Brasil. Op.
cit..
79
Id.
80
Id.
122
tradução” desse mesmo volume, deixando entrever sua preferência. No segundo, um
leitor lamenta, no espaço dos comentários do público no próprio site da editora da
tradução de Py – a Ediouro –, que a tradução não seja a de Mário Quintana.
A tradução de Py é boa? Poderia ser, às vezes, menos prosaica. Entretanto, só a façanha
de traduzir sozinho um livro como esse já merece o louvor de quem gosta de ler. Mesmo
assim, não custa prevenir ao meu leitor de que há uma magnífica tradução desse mesmo
volume, feita por Lúcia Miguel Pereira (sucedendo Mário Quintana, Manuel Bandeira e
Carlos Drummond de Andrade, responsáveis pelos anteriores), com o título O tempo
redescoberto.81
Um ótimo livro, sem sombra de dúvida. Inesquecível para aqueles que conseguem
navegar nas reflexões que não cessam de ocorrer ao longo do livro. Pena haver somente o
primeiro da coleção (composta por 7 livros) e a tradução não ser a do Mário Quintana.
Tudo seria mais fácil se tivéssemos bons tradutores em todas as línguas. Confiáveis, ao
menos. Houve melhores quando, além de Quintana, mestres como Drummond, Bandeira
e Millôr traduziam. Há alguns que hoje merecem respeito. [...] esse cidadão chamado
Fernando Py, que fez nova tradução de Proust em edição bonita, elegante, que vem
dentro de uma caixa. A embalagem bonita esconde péssima versão em português, do que
se deduz que o senhor Py pode até saber francês, mas não sabe bom português.82 (grifos
nossos)
Podemos verificar nesses enunciados que a tradução de Fernando Py se demarca,
de maneira inequívoca, em relação à tradução de Mário Quintana. O reconhecimento de
Py, no primeiro enunciado apresentado, evidencia de maneira clara a consagração de
Quintana, na medida em que a sua atividade da tradução da obra de Proust deve
considerar a incontornável tradução anterior e se define como um enfrentamento.
Ora, o próprio tradutor Fernando Py usa a tradução de Mário Quintana como
referência, o que está evidenciado no prefácio de sua tradução, em um subcapítulo
intitulado “Critérios desta tradução”, no qual justifica a mudança dos títulos de Em
busca do tempo perdido, tendo sempre de citar a tradução da Editora Globo. Ao citá-la,
Py demonstra conhecimento do campo e do jogo. Sabe exatamente a posição dominante
81
MACHADO, Cassiano Elek. Principal obra de Marcel Proust é relançada no Brasil. Folha de S. Paulo.
30 mar. 2002. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u22602.shtml>. Acesso
em: 10 mar. 2010.
82
IDEIAS. Disponível em: <http://www.revistaideias.com.br/ideias/coluna/monoglota>. Acesso em: 9
ago. 2010.
123
de Quintana e se coloca em busca da consagração, lançando mão de estratégias. Essas
estratégias são acionadas no interior do campo de produção pelo pretendente Fernando
Py, com o propósito de assim enfrentar, disposto de argumentos “objetivos”, a tradução
“imortalizada” de Quintana:
[...] O “Tempo recuperado”, pois de modo algum se trata de uma redescoberta. De outra
parte, “Du côté de chez Swann” [...] preferimos manter o título já consagrado no país,
pois o termo “caminho” indica melhor em português a situação do “côté” em francês [...].
Em “À l’ombre des jeunes filles en fleurs”, preferimos verter “jeunes filles” para
“moças”, vocábulo de uso corrente no Brasil.
Essa luta observada no campo entre dominantes e pretendentes, definida por
Bourdieu em A produção da crença, se estrutura sobre a “estratégia de
desmerecimento”, assim definida:
É a luta entre os detentores e os pretendentes, entre os detentores do título (de escritor, de
filósofo, de sábio etc.) e seus desafiantes, como se diz no boxe, que faz a história do
campo: o envelhecimento dos autores, das escolas e das obras é resultado da luta entre
aqueles que marcaram época (criando uma nova posição no campo) e que lutam para
persistir (tornar-se “clássicos”) e aqueles que, por seu turno, só podem marcar época
enviando para o passado aqueles que têm interesse em eternizar o estado presente e em
parar a história.83
A seguir, observaremos diversas estratégias de desmerecimento utilizadas por
Fernando Py e pelas instâncias de legitimação para confrontar a posição consagrada da
tradução de Quintana.
Bourdieu afirma que os pretendentes, ou seja, aqueles que estão em busca da
consagração no interior do campo de produção, tendem a desmerecer as obras de seus
antecessores dominantes julgando-as ultrapassadas, no intuito de superá-las e, assim,
obter a posição legítima. Uma primeira estratégia de desmerecimento consiste em se
colocar como um tradutor atualizado, moderno, apresentando em sua tradução um
Proust mais “palatável”, atualizado para os dias de hoje, e classificar a tradução de
Quintana de ultrapassada. Dessa maneira, a tradução de Fernando Py é apontada como
83
BOURDIEU, Pierre. Razões práticas. Campinas: Papirus, 1996. p. 69.
124
um Proust mais “palatável”, ou seja, uma tradução mais acessível ao público leitor, e a
pretensão de apresentá-lo como “preocupado em facilitar” o entendimento da obra pelo
público leitor lhe confere um valor, na medida em que a obra de Proust poderia, então,
ser lida por uma maior parcela de leitores. Ao observarmos a proposta da tradução de
Fernando Py de um Proust “palatável’, verifica-se um aspecto marcante nessa tradução
que se opõe à de Quintana: a tendência de preservar aspectos culturais franceses em sua
tradução. Nesse sentido, notamos que Quintana, em nenhum momento, em seus
enunciados, afirmou querer “facilitar” a leitura de Proust. A posição dessa tradução no
campo de produção é a de uma tradução não etnocêntrica, que se atém à cultura-fonte,
levando o leitor à atmosfera francesa. Essa característica de Quintana nos levou a
discutir questões levantadas por Berman e por Venuti no que tange às tendências
etnocêntricas da tradução e à invisibilidade do tradutor. É pertinente indagarmos se há
objetivamente tendências opostas nas duas traduções ou se são estratégias utilizadas
pelos dois tradutores para mostrar seu posicionamento no campo de produção literária.
Percebe-se que, nessa primeira estratégia de desmerecimento, Py mudou os títulos das
obras e usou, por exemplo, o termo “moças” em oposição ao termo “raparigas”, para
traduzir o termo em francês “jeunes filles”, então utilizado por Quintana. Tal tradução
foi produzida no intuito de apresentar um termo mais moderno, sem que possamos
julgar objetivamente qual seria o termo mais apropriado, uma vez que a tradução de
Quintana foi elaborada em outra época e representava a imagem de outra mulher. A
seguir temos dois enunciados que evidenciam tal estratégia:
Com o objetivo “de tornar mais palatável” o texto do autor francês, Py enfrentou a
tradução já consagrada entre nós, publicada no início dos anos 50 pela Globo de Porto
Alegre. O poeta Mário Quintana traduziu No caminho de Swann, À sombra das raparigas
em flor, O caminho de Guermantes e Sodoma e Gomorra, para só então passar a bola
para Manuel Bandeira, que ficou com A prisioneira, em parceria com Lourdes Sousa de
125
Alencar. Carlos Drummond de Andrade se encarregou de A fugitiva, e Lúcia Miguel
Pereira finalizou a tarefa com O tempo redescoberto.84 (grifo nosso)
Fernando Py mudou alguns títulos dos romances do ciclo já consagrados em português.
Em À sombra das raparigas em flor, esse jeunes filles foi vertido para moças. Ficou À
sombra das moças em flor. Em Le temps retrouvé, Py julgou mais acertado o título O
tempo recuperado em vez de O tempo redescoberto, na tradução anterior de Lúcia
Miguel Pereira, o último título.85
A busca de Fernando Py foi oferecer uma linguagem mais acessível que acarretaria,
consequentemente, maior número de leitores. De imediato pode-se notar a alteração do
título À sombra das raparigas em flor para À sombra das moças em flor, justificado pela
conotação pejorativa em algumas regiões do Brasil. O último livro, Le temps retrouvé, foi
traduzido como O tempo recuperado em vez de O tempo redescoberto, usado pela
Globo.86 (grifo nosso)
Uma segunda estratégia de desmerecimento acionada é afirmar que a tradução da
Editora Globo não fora feita por um único tradutor. Dessa maneira, na busca de
consagração, Py procura desmerecer a tradução de Quintana, ao afirmar a sua vantagem
em ser o tradutor único da obra completa no País, evidenciado no enunciado a seguir,
publicado no Jornal do Brasil: “Se por um lado rivalizar com grandes escritores era um
problema, por outro o fato de ser tradutor único deu-me a vantagem de uniformizar o
estilo, já que a tradução da Globo prejudicou a uniformidade da obra.”87
Essa mesma estratégia de desmerecimento também se apresenta na crítica
especializada sobre a tradução de Py. Elogia-se o fato de ser Py o único tradutor da
obra, o fato de ele ter lido a obra de Proust por 26 anos, e de terem sido necessários
quatro anos para concluir essa tradução:
Único até agora a fazer o trabalho completo e sozinho, Py começou a traduzir a obra a
pedido da Ediouro em maio de 1991, e fez apenas uma exigência: a ausência de prazos
para a entrega. A fim de reproduzir em português a fluência musical de cada frase, a
simetria e as comparações metafóricas – principais desafios em matéria de tradução
84
EDITAR & REESCREVER. Disponível em: <editarereescrever.blogspot.com/2011/02/o-desafio-datraducao-literaria.htlm>. Acesso em: 12 maio 2010.
85
DIÁRIO DO PARÁ. Coluna de Elias Pinto. 25 fev. 2007. Disponível em:
<http://www.achanoticias.com.br/noticia.kmf?noticia=5830965>. Acesso em: 10 abr. 2010.
86
EDITAR & REESCREVER. Disponível em: <editarereescrever.blogspot.com/2011/02/o-desafio-datraducao-literaria.htlm>. Acesso em: 12 maio 2010.
87
MENDES, Taynèe. Os desafios da tradução dos clássicos da literatura universal . Jornal do Brasil. Op.
cit.
126
literária – sem falar da extensão dos parágrafos de Proust, demorou quatro anos para
entregar o original completo. 88
[...] a Ediouro lançou uma tradução revista e ampliada de Em busca do tempo perdido,
assinada pelo poeta e advogado Fernando Py. Ele costuma dizer que sua tradução é
“definitiva por enquanto”. Contudo, tendo em vista a extraordinária dificuldade colocada
pela tradução da prosa de Proust, creio que o fato de um único tradutor ter enfrentado
esse desafio, saindo-se dele muito bem, é mais um sinal de que temos sim, no Brasil,
tradutores de grande envergadura. (grifos nossos)
Na verdade, Mário Quintana foi um dos tradutores de Em busca do tempo perdido; dos
sete volumes que compõem essa obra, há também uma (ou mais) traduções de Carlos
Drummond de Andrade. Para muitos, são traduções que, apesar de excelentes, pecam pela
desunião do conjunto, isto é: os volumes teriam perdido a unidade por terem sido
traduzidos por pessoas diferentes. Dizem as más línguas, inclusive, que os textos de
Quintana e Drummond foram publicados sem revisão.89 (grifos nossos)
A falta de padronização é reconhecida principalmente quando se compara a tradução dos
primeiros quatro volumes.90
A terceira estratégia de desmerecimento se apresenta no fato de Py criticar as
expressões consideradas por ele “lusas”, utilizadas por seu antecessor “como se
estivesse elaborando uma tradução para ser lida em Lisboa”.
Ele se deixou levar pelo linguajar tipicamente regional, preenchendo as traduções que lhe
couberam de gauchismos, além de vocábulos e expressões lusas, como se estivesse
elaborando uma tradução para ser lida em Lisboa – comenta [...].91
Além do estilo próprio de cada autor que transparece facilmente, Py – que já traduziu
mais de 30 livros, entre eles o inacabado romance póstumo de Proust, Jean Santeuil –
critica o excesso de expressões gaúchas e lusitanas presentes no texto de Quintana.92
A quarta estratégia para enfrentar a tradução anterior consiste nas afirmações da
crítica acerca do original usado como base por Fernando Py para sua tradução: a edição
francesa considerada como a “versão definitiva” da obra de Proust, inteiramente
concluída e editada pela Gallimard em 1954. O argumento utilizado pela instância de
legitimação atual é a proximidade da tradução de Py do original, que, embora não tenha
88
BALAIO DE NOTÍCIAS. Aracaju, ed. 38, 14-21 set. 2003. Disponível em:
<http://www.sergipe.com.br/balaiodenoticias/entrevistaj38.htm>. Acesso em: 10 maio 2010.
89
Id.
90
Site da empresa de traduções SPS, de Portugal. Disponível em: < http://sps-traducoes.com.pt/wp2 >.
Acesso em: 10 jul. 2010.
91
Id.
92
Id.
127
o mesmo prestígio da anterior consagrada – graças ao “estofo literário de seus
tradutores” –, lhe é conferido o valor de ter sido elaborada a partir de um original
concluído e definitivo.
[...] a primeira edição da Globo foi feita e lançada antes do aparecimento da edição crítica
francesa de Pierre Clarac e André Ferré pela Gallimard, de 1954, deixando a desejar
quanto à exatidão do texto.93
Se a primeira tradução ganha em prestígio (e no estofo literário dos tradutores, que vez
ou outra vem à tona), o trabalho do poeta carioca, que já traduziu mais de 30 livros –
incluindo o inacabado romance proustiano “Jean Santeuil” e a grande biografia do autor,
de Georges Painter – tem algumas vantagens. Proust morreu antes de concluir a
publicação da obra, e não chegou a fazer a revisão final nem dos livros que editou em
vida. A primeira edição crítica saiu na França em 1954. Py usou a que, na época em que
traduziu pela primeira vez a “Recherche”, era considerada a versão definitiva, a feita em
1987 pela Gallimard.94 (grifos nossos)
Observamos que, em meio à estratégia de desmerecimento, Py coloca sua
tradução como mais próxima do original, como mais “fiel” perante a tradução de
Quintana, por este ter utilizado um original considerado inacabado. Por não deter o
mesmo prestígio de Quintana, são propostos argumentos segundo os quais a tradução de
Quintana não foi tão fiel ao original. A fidelidade ao original é posta em questão e
Quintana é apontado como tradutor comum, passível de “infidelidades”. Alerta-se para
o fato de que existe um “original” a ser tomado como referência para uma tradução
“fiel” à obra de Proust e, portanto, essa tradução seria superior à tradução consagrada de
Quintana.
Em meio à luta pela legitimidade no campo de produção, torna-se difícil definir
com objetividade qual seria exatamente a melhor tradução da obra de Proust. A
pergunta incontornável, que se apresenta ao público leitor, ao ser lançada uma nova
tradução, é a seguinte: qual seria a melhor tradução de Em busca do tempo perdido?
93
MENDES, Taynèe. Os desafios da tradução dos clássicos da literatura universal . Jornal do Brasil. Op.
cit..
94
Id.
128
É interessante notar, no enunciado a seguir, como determinado agente da instância
de consagração do campo qualifica – de posse das duas traduções a que nos referimos –
a tradução de Quintana como a melhor. Entretanto, essa qualificação não se baseia em
quaisquer critérios técnicos, uma vez que o jornalista não aponta objetivamente qual é a
“longa e torneada frase de Proust” que “ainda se ajusta melhor entre nós no torno
moldado por Quintana”:
Pesada, medida e comparada, depois de uma breve hesitação (não sou nenhum
especialista; fiz minha Aliança Francesa mal e porcamente; baseio-me mesmo é no gosto,
no tato e audição, e no paladar olfativo, se é que isso existe, por se tratar de Proust),
confesso que ainda prefiro a primeira versão, que leva principalmente a assinatura do
poeta gaúcho Mário Quintana, responsável pela tradução dos quatro primeiros volumes
de Em busca do tempo perdido. Cheguei a ler No caminho de Swann simultaneamente,
com os livros espalmados sobre a mesa, a tradução de Quintana, a de Fernando Py e o
original. Doideiras. Mas acho que a longa e torneada frase de Proust ainda se ajusta
melhor entre nós no torno moldado por Quintana.95
A expressão no enunciado “a longa e torneada frase de Proust ainda se ajusta
melhor entre nós no torno moldado por Quintana” revela-nos o habitus que conduz o
tradutor em sua prática, tal como um agente pertencente ao campo de produção
simbólica. O “torno” a que se refere o jornalista são justamente os princípios e os
esquemas legítimos do campo operados pelo autor-tradutor para dar forma legítima à
tradução da obra original. Tais princípios e esquemas, longe de se constituírem em
normas objetivas para a elaboração da tradução, são uma construção cultural levada a
efeito pelo próprio campo de produção literária que conduz o tradutor em sua prática.
Em artigo intitulado “The pivotal status of the translator’s habitus”, Daniel Simeoni96
afirma, corroborando as afirmações de Bourdieu, que, embora existam normas e regras
que guiem os tradutores e intérpretes na prática profissional, o que é determinante na
maneira de traduzir é a influência do campo com suas regras, que acabam sendo
95
96
DIÁRIO DO PARÁ. Coluna de Elias Pinto. 25 fev. 2007. Op. cit.
SIMEONI, Daniel. The pivotal status of the translator’s habitus. Target, v. 10, n. 1, p. 1-39, 1998.
129
incorporadas, não de modo consciente pelo tradutor, na sua luta pela legitimidade no
interior do campo.
Em blogs dedicados à literatura, verificamos comentários que comparam as duas
traduções e observamos que não há critérios objetivos para analisar a tradução. Trata-se
de julgamentos sociais emitidos por agentes das instâncias de legitimação do campo,
por meio de adjetivos e qualificações que lhes conferem maior ou menor valor.
Traduzir o Proust não deve ser nada fácil, mas vamos lá, o Fernando Py mantém os
parágrafos e as frases no seu tamanho original, o que é um belíssimo e honesto
reconhecimento pela linguagem elaborada do autor. Mas o Quintana e seus companheiros
colocaram mais vida, tomaram mais opções deliberadas, fizeram escolhas mais
cuidadosas de certas palavras.97
Confesso que tenho lá uma queda por essa tradução, pois foi por ela que cheguei até
Marcel Proust, mas ainda assim creio que a melhor é mesmo a de Mário Quintana (e
outros), da Editora Globo. A tarefa de traduzir Proust e seus longos períodos não é nada
fácil, mas Quintana, em especial, conseguiu manter o espírito do original praticamente
intacto, na minha humilde opinião. 98
[...] claro, os tradutores da Globo são só gente grande, mas tem aquele problema de ter
sido feita a várias mãos, falta uma certa unidade de estilo e tem uns lusitanismos tipo
“raparigas em flor” difícil de engolir. E a nova tradução supera alguns desses problemas,
mas claro, nunca cotejei detalhadamente. 99
No primeiro dos três enunciados, notamos que a comparação entre as duas
traduções ocorre de maneira mais geral, na qual apenas são apontadas duas questões: o
honesto reconhecimento da escrita elaborada de Proust na manutenção do tamanho das
frases originais por Py e a vida colocada por Quintana, por meio de escolhas cuidadosas
de certas palavras. Tais questões envolvem qualificações das traduções, sem que
possam ser apontadas objetivamente a honestidade e a vida existentes as traduções.
No segundo enunciado, embora o leitor do blog afirme que foi por meio da
tradução de Py o seu primeiro contato com a obra de Proust, declara que a tradução de
97
ORKUT.
Comunidade
dedicada
à
literatura.
Disponível
em:
<http://www.orkut.com/CommMsgs?cmm=82607&tid=486935&na=3&nst=11&nid=82607-4869352433923162387649970. Acesso 29/09/2011>.
98
Id.
99
Id.
130
Quintana mantém “o espírito do original praticamente intacto”. Novamente verificamos
que se torna impossível indicar objetivamente no que consiste o “espírito do original”.
Já no terceiro enunciado, podemos observar como o leitor aponta uma questão
crucial relacionada com os princípios e esquemas do campo: a utilização de um termo
que deveria, em princípio, corresponder de maneira eficaz a seu correspondente
original, dada a tradução consagrada de Quintana. O leitor reconhece nos tradutores da
Editora Globo “só gente grande”, mas registra o “problema de ter sido feita a várias
mãos”, o que indicaria uma falta de “unidade de estilo”. Entretanto, a afirmação mais
relevante para a nossa análise é a que considera os lusitanismos do “tipo ‘raparigas em
flor’” como algo “difícil de engolir”, visto que aponta claramente um termo que parece
inadequado ao original justamente na tradução ocupante da posição consagrada e
dominante do campo, desconhecendo, inclusive, a pertinência dessa escolha à época de
sua publicação.
A seguir, poderemos constatar, ao compararmos trechos das traduções de Mário
Quintana e de Fernando Py, que não há uma forma melhor ou mais adequada para
retratar o sentido da obra original. Trata-se, conforme observamos, de um julgamento
social acerca da tradução, pois não há, exceto a necessidade da aplicação da
correspondência básica entre as palavras das diferentes línguas, valor intrínseco em
determinado termo expressivo utilizado para descrever o termo correspondente na
língua original – no caso aqui examinado, a língua francesa.
PROUST, Marcel. À l’ombre des jeunes filles en fleur. Paris: Gallimard, 1979. p. 3.
Autour de Mme Swann
Ma mère, quand il fut question d’avoir pour la première fois M. de Norpois à dîner, ayant
exprimé le regret que le professeur Cottard fût en voyage et qu’elle-même eût entièrement
cessé de fréquenter Swann, car l’un et l’autre eussent sans doute intéressé l’ancien
Ambassadeur, mon père répondit qu’un convive éminent, un savant illustre, comme
Cottard, ne pouvait jamais mal faire dans un dîner, mais que Swann, avec son
131
ostentation, avec sa manière de crier sur les toits ses moindres relations, était un vulgaire
esbroufeur que le marquis de Nortois eût sans doute trouvé, selon son expression, puant.
Tradução de Mário Quintana
PROUST, Marcel. À sombra das raparigas em flor. São Paulo: Globo, p. 18.
Em torno da Sra. Swann
Quando pela primeira vez se tratou de convidar o Sr. de Norpois para jantar em nossa
casa, como lamentasse minha mãe que o Professor Cottard estivesse em viagem e que ela
própria houvesse deixado completamente de frequentar Swann, pois tanto um como
outro certamente interessariam ao ex-Embaixador, respondeu-lhe meu pai que um
conviva eminente, um sábio ilustre como Cottard nunca faria má figura à mesa, mas
que Swann, com sua ostentação, com aquele jeito de proclamar aos quatro ventos as
mínimas relações, não passava de um vulgar parlapapão que o Marquês de Norpois sem
dúvida acharia, segundo sua expressão, “nauseabundo”.
Tradução de Fernando Py
PROUST, Marcel. À sombra das moças em flor. Rio de Janeiro: Ediouro. 2004, p. 336.
Em torno da Sra. Swann
Quando se cuidou de receber ao jantar, pela primeira vez, o Sr. de Norpois, tendo minha
mãe lamentado que o professor Cottard estivesse viajando e que ela própria tivesse
deixado completamente de frequentar Swann, pois ambos teriam sem dúvida interessado
o antigo embaixador, meu pai respondeu que um conviva eminente, um sábio ilustre,
como Cottard, jamais poderia fazer má figura num jantar, ao passo que Swann, com
sua ostentação, sua mania de alardear aos quatro ventos as suas relações, era um vulgar
fanfarrão que o marquês de Norpois sem dúvida teria achado, conforme sua própria
expressão, “nauseante”.
Em relação aos termos utilizados, a tradução de Quintana parece-nos mais
literária, mais ajustada a um tipo de princípio e esquema literário do campo de produção
literária, por se tratar de um autor-tradutor, bem como pelo distanciamento do tempo,
fazendo seu português soar como mais pomposo. Daí o emprego dos lusitanismos, tal
como “rapariga”, talvez mais próximo da época e do contexto da obra original. Py
parece ter a preocupação em atualizar os termos, mostrar-se mais atual e acessível ao
publico leitor. Essa análise, entretanto, baseia-se em critérios subjetivos. Ao
132
examinarmos as duas traduções, não temos como efetivamente colocar uma como
inequivocamente superior à outra:
– “pois tanto um como outro” × “pois ambos” – Observa-se uma síntese na
tradução de Py.
– Cottard nunca faria má figura à mesa × Cottard jamais poderia fazer má figura
num jantar
– nauseabundo × nauseante.
Assim, constatamos que a consagração ou não de uma primeira tradução pode ser
percebida pela luta empreendida pelas traduções que vêm depois dessa. No caso da
tradução de Em busca do tempo perdido, observa-se que as outras traduções se fazem à
sombra da tradução de Quintana e de seus pares, tida como referência. Percebemos que
ocorre uma demarcação entre elas, ou seja, uma relação entre o legítimo, representado
pela tradução de Quintana, pertencente à Editora Globo, e o não legítimo ou em busca
de legitimidade, figurado pela tradução de Fernando Py, lançada pela Ediouro.
Verificamos que a tradução de Quintana é a dominante no campo, a partir da
crença produzida pelo próprio campo. Fernando Py, por sua vez, não detém a mesma
consagração, daí sua posição de pretendente. Podemos constatar essa menor
consagração ao observamos que, ao contrário do que ocorre nas capas das traduções de
Quintana para a Editora Globo, o nome do tradutor Fernando Py – evidência de
reconhecimento do agente – não figura nas capas dos volumes de Em busca do tempo
perdido das obras traduzidas pela Ediouro:
133
Fig. 7. Capa da tradução de Em busca do tempo perdido. Ediouro, 2002. v. 1.
134
Fig. 8. Capa da tradução de Em busca do tempo perdido. Ediouro, 2002. v. 3.
4.2
A ESTRATÉGIA DE CONSERVAÇÃO DA EDITORA GLOBO: A TRADUÇÃO
“DEFINITIVA”
Observamos as estratégias de desmerecimento dos pretendentes. Agora,
observaremos estratégias de conservação da posição dominante, ou seja, daqueles
consagrados no interior do campo. Em 2006, quatro anos depois do lançamento pela
135
Ediouro da edição mais recente da tradução de Fernando Py, a Editora Globo relançou a
tradução reconhecida de Quintana. Como estratégia de conservação, imprimiu como
destaque nas capas a expressão “Proust Definitivo”, para determinar de maneira cabal
ser essa a tradução irrevogável da obra de Proust.
Nesse campo de produção, a posição dominante aparece na assinatura e na forma
como se classifica a obra de maior valor. Nesse caso, a Editora Globo, detentora da
tradução consagrada de Em busca do tempo perdido, se opõe aos pretendentes por meio
daquilo que Bourdieu denomina estratégias de conservação, que têm por objetivo a
manutenção do capital simbólico progressivamente acumulado ao longo do tempo.
É interessante notar que, de todas as reimpressões e reedições lançadas pela
Editora Globo * da obra traduzida de Proust, somente na edição de 2006 (Fig. 9) passou
a figurar a expressão “Proust Definitivo”. Tal fato demonstra que a Editora Globo
acionou uma estratégia de conservação para reafirmar sua posição consagrada, a partir
do momento em que a tradução de Py foi lançada para desafiar a posição estável e
definitiva de quem domina o campo de produção.
*
A primeira edição foi lançada em 1948 e teve inúmeras reimpressões. Houve a segunda edição, revista,
em 1988, com 15 reimpressões. A edição “definitiva” foi lançada, acrescida de prefácio, resumo, notas e
posfácio, em 2006, com uma nova reimpressão em 2008.
136
Fig. 9. Capa da tradução de Em busca do tempo perdido. Globo, 2006. v. 1.
137
Fig. 10. Capa da tradução de Em busca do tempo perdido. Globo, 2006. v. 2.
138
Fig. 11. Capa da tradução de Em busca do tempo perdido. Globo, 2006. v. 3.
Observaremos, a seguir, enunciados que evidenciam essa luta entre dominantes e
pretendentes pelo domínio do campo de produção literária. Os enunciados, selecionados
de jornais online dedicados à literatura e de sites de editoras, demonstram como a
tradução assinada por Quintana, que é intitulada “definitiva”, lançada em 2006 pela
Editora Globo, se constitui em um modelo para quaisquer outras que porventura
venham a se apresentar:
A Editora Globo está relançando a obra de Marcel Proust Em busca do tempo perdido,
cuja tradução é feita por um time respeitoso, no qual figuram nomes como os de Mário
Quintana, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira. Esta nova edição, além de
demonstrar a importância perpétua das obras de arte que são significativas, demonstra o
interesse dos brasileiros por Proust e vem brindar os seus leitores com uma revisão
(necessária, haja vista a idade da tradução) de Olgária Matos e posfácio da respeitada
139
filósofa Jeanne-Marie Gagnebin, estudiosa de Benjamin, que se refere ao francês em
vários momentos de sua obra. Traz ainda a nova edição um material com prefácio,
cronologia, notas e resumo do historiador, articulista e professor da USP Guilherme
Ignácio da Silva.101 (grifos nossos)
E é o tema por excelência de Em busca do tempo perdido, seu ciclo de romances em sete
volumes, que os brasileiros têm a sorte de poder ler na tradução de Mário Quintana,
Carlos Drummond de Andrade e outros. No final de 2006, a Editora Globo começou a
relançá-los, com maior aparato editorial (notas, resumos etc.) e projeto gráfico de Raul
Loureiro, muito feliz na escolha das cores de capa e da elegante fonte Walbaum.102 (grifos
nossos)
Esta reedição pela Editora Globo de Em busca do tempo perdido, obra capital de Marcel
Proust, um dos maiores escritores do século XX, é de grande importância para seus
velhos e novos amantes. À sombra das raparigas em flor saiu em 1951, magistralmente
traduzido por Quintana. Esta reedição ultrapassa as anteriores porque foi cuidadosamente
preparada. À sombra das raparigas em flor conta com revisão de Maria Lúcia Machado,
traz prefácio, notas e resumo de Guilherme Ignácio da Silva e posfácio de Rolf Renner,
professor da Universidade de Freiburg (Alemanha).103 (grifos nossos)
No terceiro enunciado, há a curiosa afirmação de que a edição “ultrapassa” as
anteriores – não somente a tradução posterior de Fernando Py, como as edições lançadas
pela própria editora. Podemos verificar o acionamento da estratégia de conservação do
capital simbólico, na medida em que essa edição foi “cuidadosamente preparada” para
reafirmar sua posição consagrada, ao apresentar diversificado material referente à
própria tradução – prefácio, cronologia, posfácio, entre outros. Entretanto, o texto
“magistralmente traduzido por Quintana” se mantém, tal como nas edições anteriores.
A Editora Globo começou a relançar uma das maiores obras de ficção do século XX, Em
busca do tempo perdido de Marcel Proust. Na capa dessa edição está estampada a
audaciosa frase “Proust Definitivo”. Audaciosa principalmente porque não se trata de
uma nova tradução, mas sim das traduções já clássicas de autores como Mário Quintana,
Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. Audaciosa também porque há pouco
tempo a Ediouro lançou uma caixa belíssima com todos os sete tomos, divididos em três
volumes, com uma excelente tradução de Fernando Py. Mas, apesar disso tudo, o termo
“definitivo” realmente se justifica.104 (grifos nossos)
101
JORNAL OPÇÃO. Periódico sobre literatura. 21-27 jan. 2007. Disponível em:
<http://www.jornalopcao.com.br/posts/opcao-cultural>. Acesso em: 10 maio 2010.
102
EDITORA PERSPECTIVA. Disponível em:
<http://www.digestivocultural.com/ensaios/ensaio.asp?codigo=192.>. Acesso em: 20 out. 2011.
103
EDITORA GLOBO. Disponível em:
<http://globolivros.globo.com/busca_detalhesprodutos.asp?pgTipo=COLECOES&idProduto>. Acesso
em: 10 maio 2010.
104
ODISSÉIA 2005. Disponível em: <http://odisseia2005.blogspot.com/2006/12/proust-para-comearbem-o-ano.html>. Acesso em: 17 maio 2010.
140
Podemos observar no enunciado anterior, de um blog dedicado à literatura,
evidências da luta entre a tradução daquele que domina o campo e a tradução proposta
pelo pretendente à dominação. Essa nova tradução é vista como “audaciosa”, visto que
se confronta com uma “excelente tradução de Fernando Py”, mesmo tendo relançado as
“traduções clássicas de autores como Mário Quintana, Manuel Bandeira e Carlos
Drummond de Andrade”. Tais qualificações são atribuídas às duas traduções, sem que
possamos observar uma análise objetiva dos termos empregados nos textos traduzidos.
No enunciado a seguir um leitor expõe sua dúvida em relação ao que seria a
edição “definitiva”:
Comprei o primeiro volume de “Em Busca do Tempo Perdido” de Marcel Proust,
tradução de Mário Quintana, a edição definitiva. Mas agora “tá” difícil achar o segundo
volume na edição definitiva, há alguma diferença relevante entre a definitiva e a não
definitiva?105 (grifos nossos)
É interessante notar como o leitor que adquiriu o primeiro volume da edição
“definitiva”, na tentativa de adquirir o próximo volume dessa obra traduzida, enuncia
sua dificuldade para entender objetivamente o que distingue uma tradução definitiva de
uma tradução não definitiva, uma vez que a qualificação não é intrínseca à obra, ou seja,
não está localizada nos elementos textuais constituintes da tradução, mas em uma
crença.
105
YAHOO.
Lista
de
discussão
sobre
diversos
assuntos.
Disponível
em:
<http://br.answers.yahoo.com/question/index?qid=20101008164716AAtR7Y>. Acesso em: 20 ago. 2010.
141
4.3
A LUTA PERMANENTE POR LEGITIMIDADE NO CAMPO: ANUNCIADA
NOVA TRADUÇÃO DE PROUST PARA 2012
A Companhia das Letras anunciou, para este ano 2012, o lançamento de uma nova
tradução de Em busca do tempo perdido, por meio da marca criada em parceria com a
editora britânica Penguin, dedicada aos clássicos – a marca Penguin-Companhia. A
obra ganhará edição com a extensão de sete volumes. O primeiro volume deverá ser
lançado ainda no segundo semestre de 2012. É interessante notar que há um selo
diferenciado da editora dedicado aos clássicos, nesse caso, o Penguin-Companhia, fruto
da associação da Companhia das Letras com a Editora Penguin:
O selo Penguin-Companhia das Letras editará em português obras do riquíssimo catálogo
da Penguin [...]. Grandes títulos do atual catálogo da Companhia e algumas obras-primas
da língua portuguesa serão publicados nas duas séries. O cuidado com os livros começa
na escolha do tradutor, e passa pela seleção do rico material de apoio que acompanha
cada edição: são cronologias, prefácios escritos por especialistas, notas que
contextualizam e enriquecem as obras.106 (grifo nossso)
Selo criado em parceria com a britânica Penguin e dedicado aos clássicos, o PenguinCompanhia prepara o lançamento de outro gigante da literatura: a série Em busca do
tempo perdido, de Marcel Proust, que inspirou a escrita de, entre outros, Gilberto Freyre.
A obra ganhará edição em sete volumes. O primeiro deve sair no 2o semestre de 2012.107
Nesses enunciados, a notícia do lançamento dessa nova tradução foi divulgada
tanto em jornais, como a Folha de S. Paulo, quanto em revistas, como a Veja. Nota-se,
nessas peças de divulgação, que o nome do tradutor Mario Sergio Conti não é ainda
citado, embora no primeiro enunciado se faça uma menção ao “cuidado” relacionado
com a “escolha do tradutor”.
Em um artigo do blog Conteúdo Livre, denominado “Livro de Proust pode ganhar
novo título brasileiro”, o escritor Marco Rodrigo Almeida – colaborador do periódico
106
EDITORA
COMPANHIA
DAS
LETRAS.
Disponível
em:
<http://www.companhiadasletras.com.br/penguin/quemsomos.ph>. Acesso em: 15 out. 2010.
107
VEJA. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/blog/meus-livros/tag/em-busca-do-tempo-perdido/>.
Acesso em: 12 maio 2010.
142
Folha de S. Paulo – apresenta certos aspectos da futura tradução de Mario Sergio Conti
que nos interessam na análise do funcionamento do campo de produção literária:
[...] O jornalista Mario Sergio Conti apenas começa sua epopeia.
Conti, 56, vai traduzir nos próximos anos os sete volumes que compõem a obra “Em
Busca do Tempo Perdido”, de Marcel Proust. [...] com notas explicativas e textos
introdutórios.
O primeiro volume deve sair no segundo semestre do ano que vem.
A ideia é fazer uma versão barata, com introdução didática, atualizada para o público do
século 21.
Conti vem traduzindo aos poucos, nas folgas do horário de trabalho como editor da
revista “Piauí”.
Ele descobriu Proust aos 18 anos e desde então vem lendo o autor também em francês e
inglês. Além da intimidade com a obra, Conti tem a seu favor centenas de livros escritos
sobre o autor francês nas últimas décadas, que permitem um trabalho mais acurado.108
Assim, nos enunciados acima, podemos observar diferentes afirmações, nas quais
já se antecipa o valor da tradução a partir do seu produtor: o escritor e editor Mario
Sergio Conti. Além de o trabalho ser qualificado como uma “epopeia” – um grande
acontecimento, por isso dotado de “notas explicativas e textos introdutórios” –, o
tradutor é apresentado, a exemplo de Mário Quintana e de Fernando Py, como um
profundo conhecedor da obra de Proust e da língua francesa.
Sobre a tradução de Quintana, afirma Conti:
A primeira tradução brasileira do livro, feita por Mário Quintana na década de 40, foi um
ato heroico. Quase não havia bibliografia sobre Proust na época.
Os 60 e poucos anos que separam as traduções dão margem a novas abordagens –
inclusive no título da obra.109
108
CONTEÚDO LIVRE. Disponível em: <http://sergyovitro.blogspot.com/2011/04/peitando-osclassicos-marco-rodrigo.html>. Acesso em: 10 maio 2010.
109
Idem.
143
Podemos verificar, nos enunciados acima que a citação da tradução de Quintana
evidencia uma forma de Conti colocar “louros em si mesmo”, na medida em que elogia
o ato “heroico” de Quintana por ter traduzido Proust na década de 1940, época em que
havia pouca bibliografia crítica sobre Proust. Embora sua tradução nem tenha ainda sido
lançada, Conti traz o nome de Quintana à cena e demonstra seu conhecimento do
funcionamento do campo de produção simbólica, pois, ao reconhecer quem é
consagrado, se consagra pela implícita comparação ao tradutor Quintana. É interessante
notar que Conti em nenhum momento cita o tradutor Fernando Py e a tradução deste da
obra de Proust, pois ele entende que a luta por legitimidade se dá sobretudo com
Quintana, que detém a sólida consagração no campo de produção, com quem os outros
dois tradutores se interessam em medir forças.
O tradutor Mario Sergio Conti, a exemplo de Fernando Py, empreende
previamente a luta por legitimidade de sua tradução por meio da utilização de algumas
estratégias, tal como a do desmerecimento da tradução consagrada de Quintana.
Inicialmente, similar a Py, Conti propõe uma versão mais atualizada da obra e aponta a
tradução de Quintana como “antiga” e “ultrapassada”: “Os 60 e poucos anos que
separam as traduções dão margem a novas abordagens – inclusive no título da obra.”110
Nos enunciados a seguir, observamos que Conti se utiliza da estratégia de
desmerecimento em relação à tradução de Quintana, ao indicar o que seria para ele a
“solução mais apropriada”, “a que mais se aproxima” ou “a mais correta” para a
tradução da obra de Proust. Nessa estratégia, a pretensão de Conti é, na verdade,
destituir aspectos da tradução de Quintana; para isso, ele utiliza o argumento de que o
original deve ser “respeitado”, ou seja, propõe uma tradução mais “fiel” ao original de
Proust. A tradução de Fernando Py não é citada por Conti.
110
CONTEÚDO LIVRE. Disponível em: <http://sergyovitro.blogspot.com/2011/04/peitando-osclassicos-marco-rodrigo.html>. Acesso em: 10 maio 2010.
144
Ele defende que “Em Busca do Tempo Perdido” não é a solução mais apropriada para o
original “À la Recherche du Temps Perdu”. “A palavra ‘recherche’ pode ser tanto ‘busca’
como ‘procura’. Mas acho que ‘à la recherche’ se aproxima mais de ‘à procura’. ‘Busca’,
no sentido de ‘descoberta’, está mais no verbo ‘quêter’. Talvez eu faça essa mudança,
ainda não decidi.” Uma frase do início do primeiro livro da série, “No Caminho de
Swann”, também recebe nova interpretação.
O tradutor conta que “Longtemps, je me suis couché de bonne heure” foi traduzido por
Quintana como “Durante muito tempo, costumava deitar-me cedo”. O mais correto,
explica, seria “Durante muito tempo, deitei-me cedo”. “A escolha adoça e atenua a
aspereza da frase original de Proust. Por isso novas traduções são sempre úteis: para
atualizar a visão que temos sobre as obras.”
Observamos como é vigorosa a luta por legitimidade no campo de produção
simbólica. No campo de produção literária, observamos relações objetivas – estratégias,
por meio de objetos, enunciados, citações – entre indivíduos ou instituições que
competem por um mesmo objeto. Classificamos a tradução de Mário Quintana na
posição dos dominantes, ou seja, aqueles que detêm em maior grau o poder de constituir
objetos raros pelo procedimento da griffe; aqueles que possuem maior capital simbólico.
Assim, conforme afirma Bourdieu (1984) sobre o processo de consagração, o que
faz o valor é a conivência efetuada entre os agentes do sistema de produção de bens
consagrados. Os circuitos de consagração são mais poderosos quando são mais longos,
mais complexos e mais ocultos aos olhos de quem deles participa e se beneficia. Dessa
forma, um ciclo de consagração eficaz é um ciclo no qual A consagra B, que consagra
C, que consagra D, que consagra A. Quanto mais invisível é o ciclo de consagração,
quanto menos sua estrutura é reconhecida, maior é o efeito da crença.111
Uma tradução consagrada, a da Editora Globo, uma posterior, de Fernando Py
pela Ediouro, uma reação do dominante, “Proust Definitivo”, e uma segunda tradução
pretendente a ser lançada. Assim como Fernando Py, Mario Sergio Conti contesta o
“monopólio” da tradução de Quintana. Entretanto, como afirma Bourdieu, essa revolta
tem limites. O limite é o respeito constituído dentro do campo. Por isso, não se pode
111
BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983. p. 154-161.
145
desqualificar demais a tradução anterior, uma vez que, se “qualquer um” for capaz de
traduzir Proust, o campo é que é desprestigiado. “Esta é a lei geral dos campos”, afirma
Bourdieu, 112 os detentores da posição dominante, os que têm maior capital específico, se
opõem por uma série de meios aos recém-chegados, os pretendentes, que nesse caso são
representados pelas traduções de Proust feitas por Fernando Py e Mario Sergio Conti.
Os antigos possuem estratégias de conservação que têm por objetivo obter lucro do
capital progressivamente acumulado, como a Editora Globo, ao lançar “Proust
Definitivo”. Os recém-chegados possuem estratégias de subversão orientadas para uma
acumulação de capital específica, que supõe uma inversão mais ou menos radical do
quadro de valores, uma redefinição mais ou menos revolucionária dos princípios da
produção e da apreciação dos produtos e, ao mesmo tempo, uma desvalorização do
capital detido pelos dominantes. Ora, no espaço social da tradução, assim como
acontece no campo artístico, a cada surgimento de uma nova tradução em lugar de outra
já consagrada, um embate se trava entre os estreantes, em busca de reconhecimento, e
os consagrados, que buscam manter as prerrogativas que contribuíram para sua
aceitação e conservação contra as investidas dos recém-chegados. Após a inserção,
torna-se necessário lutar pela permanência e pela distinção, superando as “provas”
definidas pelos anteriormente legitimados na busca do reconhecimento das produções.
No campo de produção, é possível também observar, além das estratégias de
desmerecimento próprias da luta entre os agentes do campo, a estratégia de denegação
acionada pelas instâncias de produção do campo – as editoras. Denegação, definida por
Bourdieu (2001), como uma estratégia utilizada pelos agentes do campo para alcançar
os lucros financeiros, embora ajam como se tal preocupação não existisse, uma vez que
a lógica comercial é considerada brutal com a preocupação apenas centrada nos índices
112
Ibid.
146
de venda. Os editores, nesse caso, demonstram “desinteresse” por dinheiro, visto que
arte e dinheiro não devem se misturar. O objetivo dos agentes, nessa estratégia, é
recusar aquilo que é considerado comercial, para assim amealhar o capital simbólico,
que posteriormente se verterá de forma duradoura nos lucros econômicos, a partir do
prestígio simbólico adquirido pela rejeição dos lucros “fáceis” e “imediatos”.
Uma das evidências da denegação aparece no modo pelo qual as novas traduções
de Em busca do tempo perdido devem ser apresentadas ao público leitor: sua
apresentação em um selo catalogado como não comercial, mas cultural, por exemplo. A
outra evidência se verifica no fato em si de uma editora nos dias de hoje se propor
produzir uma nova tradução de uma obra clássica tal como Em busca do tempo perdido,
de Proust, quando já se observa a existência de uma tradução reconhecida como de
qualidade no País.
147
5
CONCLUSÕES
Nesta pesquisa, analisamos a questão da consagração da tradução de Em busca do
tempo perdido, levando em conta a consagração de seu principal tradutor, o escritor Mário
Quintana. Observamos que não somente a qualidade da tradução contribui para essa
consagração, mas todo um jogo de forças presente no campo de produção literário.
Para chegarmos a esse entendimento, no primeiro capítulo, traçamos um histórico da
tradução literária no Brasil, no qual destacamos a presença e a influência da literatura e da
cultura francesas em diferentes períodos. Observamos que os primeiros tradutores foram os
jesuítas, e que somente com a chegada da Família Real ao País e com a criação da
Impressão Régia passamos a ter a publicação e consumo de romances traduzidos. Nesse
período, entretanto, o nome do tradutor permanecia incógnito. Notamos que foi somente na
segunda metade do século XIX, graças ao aumento do público leitor, propiciado pela maior
oferta de ensino no País, que houve um incremento no número de traduções. Essas
traduções foram disseminadas no meio social pelos jornais, graças aos romances-folhetins.
Nesse período, tivemos os primeiros autores que se dedicaram à atividade da tradução,
como Machado de Assis, por exemplo. Quanto à maneira de traduzir, observamos que os
moldes das Belles Infidèles eram os mais utilizados. Vimos, também, que a tradução no
século XX passou por profundas transformações no Brasil, não somente por conta da
Primeira Guerra Mundial, que provocou a interrupção da importação de livros da Europa,
propiciando a tradução de romances, mas também pela implantação no País de um projeto
educacional por Getúlio Vargas, nos anos 1930, possibilitando a ampliação do público
leitor. Nesse período, a Editora Globo teve importante participação no mercado editorial
brasileiro, com a tradução de inúmeras obras em diversas coleções. Destacamos o papel de
148
Érico Veríssimo como editor, bem como a contratação de autores-tradutores para a
elaboração dessas traduções, como Mário Quintana, Carlos Drummond de Andrade,
Manuel Bandeira, entre outros. Observamos, também, que, nesse período, foram traduzidas
importantes obras, como A comédia humana, de Honoré de Balzac, e Em busca do tempo
perdido, de Marcel Proust, e notamos um crescimento das críticas em relação às traduções,
graças, sobretudo, ao prestígio de quem as traduzia.
No segundo capítulo, observamos que a concepção do que seria uma boa tradução
varia nas diferentes teorias. Na visão tradicional, a fidelidade ao texto original é condição
primordial para uma “boa tradução”. Nas teorias de Antoine Berman e de Lawrence Venuti,
a tradução etnocêntrica ou a não etnocêntrica nos conduziram à discussão sobre a posição
do tradutor diante da tradução e nas teorias tradutórias, e que, para esses autores, a tradução
não etnocêntrica, aquela em que o tradutor não é invisível, seria a melhor tradução.
Constatamos que a invisibilidade ou a visibilidade do tradutor trata-se de um
posicionamento no campo, que se apresenta de modo prático, mas que, na verdade,
constitui uma prática que demonstra uma posição mais ou menos consagrada dentro do
campo, ou seja, são formas sociais de construção da prática da tradução. Notamos que em
algumas teorias a relação entre a tradução e a cultura é tomada como base, e, nessa
perspectiva, na teoria dos polissistemas, constatamos que as relações entre os agentes são
levadas em conta, entretanto sem demonstrar o jogo de forças que se trava no espaço social
da tradução. Assim, com o objetivo de esclarecer as relações sociais produzidas entre os
diversos atores posicionados no espaço da produção literária, ou seja, editores, tradutores,
autores-tradutores, críticos e recepção, empregamos o autor francês Pierre Bourdieu, a fim
de, com a teoria dos campos simbólicos, podermos compreender como determinada
tradução, no nosso caso, Em busca do tempo perdido, alcança um valor único.
149
No terceiro capítulo, pudemos observar esse funcionamento do campo simbólico por
meio de diversas evidências que demonstraram como a obra de Proust pôde ser apreciada
com a tradução de Mário Quintana pela Editora Globo, e como as instâncias de produção
simbólica do campo contribuíram para sua consagração. Constatamos, assim, que as
instâncias do campo de produção literária cooperam para consagrar traduções que passam a
ser consideradas como boas traduções, ou, como no caso aqui abordado, tradução imortal
ou definitiva. Para isso, além de discorrermos sobre a teoria dos campos simbólicos de
Pierre Bourdieu, na qual apresentamos as instâncias de produção, de legitimação e de
recepção de uma obra dentro de um campo de produção de bens simbólicos, também
observamos a circularidade de valores dentro do campo de produção literária que acabam
por produzir a crença em um objeto “raro” e “insubstituível”. Em relação a nosso objeto de
estudo, a tradução de Proust elaborada pela Editora Globo em 1948, notamos que a
instância de produção do campo se estruturou sobre a Editora Globo, que dispunha dos
autores-tradutores – escritores em vias de consagração –, tais como Mário Quintana, Carlos
Drummond de Andrade e Manuel Bandeira; do revisor Paulo Rónai; e do editor e escritor
consagrado Érico Veríssimo. Constatamos que o papel das instâncias de consagração na
época dessa tradução ficou reservado à crítica em jornais acerca dessa tradução, que fez
com que a obra fosse amplamente aceita pelo público letrado pertencente à instância de
recepção. Assim, observamos que tradução alcançou valor a partir da consagração no
campo de produção literária, e tomamos como base as evidências da consagração pelo
ponto de vista da instância de produção e de legitimação. Entrevistas com Mário Quintana,
críticas e resenhas em suplementos culturais que teciam considerações sobre essa tradução,
opiniões e considerações em blogs dedicados à atividade literária, bem como capas de
150
livros nas quais é exposto o nome de Quintana, foram utilizadas a fim de demonstrar essa
consagração.
Como também se constituem evidências da consagração da tradução de Quintana, as
traduções mais recentes da obra de Proust foram apresentadas no Capítulo 4. Vimos que
essas novas traduções somente reforçam a consagração de Quintana, uma vez que, em
busca de sua própria legitimidade, se demarcam em relação a uma tradução “definitiva”.
Verificamos, também, como é vigoroso o funcionamento do campo em sua busca de
legitimação, ao observarmos como duas novas traduções de Em busca do tempo perdido, a
de Fernando Py, lançada em 1993 pela Ediouro, e a de Mario Sergio Conti, que deverá ter
seu primeiro volume lançado em 2012 pela Companhia das Letras, pretendem demonstrar a
si próprias como legítimas diante daquela que se diz a “definitiva”, como se intitula a
edição da Editora Globo, relançada em 2006. Constatamos, assim, que, no espaço social da
tradução, a cada surgimento de uma nova tradução em lugar de outra já consagrada, um
embate se trava entre os estreantes, em busca de reconhecimento, e os consagrados, que
buscam manter as prerrogativas que contribuíram para sua aceitação e conservação contra
as investidas dos recém-chegados. Notamos que, após a inserção, torna-se necessário lutar
pela permanência e pela distinção, superando as “provas” definidas pelos anteriormente
legitimados na busca do reconhecimento das produções. Ao examinarmos o campo de
produção, pudemos observar Uma tradução consagrada, a da Editora Globo, uma posterior,
de Fernando Py pela Ediouro, uma reação do dominante, “Proust Definitivo”, e uma
segunda tradução pretendente a ser lançada. Dessa maneira, foi possível observar, além das
estratégias de desmerecimento próprias da luta entre os agentes do campo, a estratégia de
denegação acionada pelas instâncias de produção do campo, ao traduzirem a obra de Proust
151
com o intuito de colherem capital simbólico que mais tarde será convertido em lucro
financeiro.
152
6
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Quintana. Porto Alegre: Globo, 1953, v. 3.
____. Sodoma e Gomorra - Em busca do tempo perdido, Tradução de Mário Quintana.
Porto Alegre: Globo, 1954, v. 4.
____. A Prisioneira - Em busca do tempo perdido, Tradução de Lourdes Souza de
Alencar e Manuel Bandeira. PortoAlegre: Globo, 1954, v. 5
____. A Fugitiva - Em busca do tempo perdido, Tradução de Carlos Drummond de
Andrade. Porto Alegre: Globo, 1956, v. 6.
PROUST, Marcel. O tempo redescoberto - Em busca do tempo perdido, Tradução de
Lúcia Miguel Pereira. Porto Alegre: Globo, 1956.
____. Em busca do tempo perdido. Trad. Fernando Py. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.
157
7.
ANEXOS
ENTREVISTAS DE MARIO QUINTANA:
ENTREVISTA 11
“- O senhor diz que gosta de fazer projetos a longo prazo, para “desafiar o diabo”.
Que último desafio o senhor lançou?
QUINTANA: - O último desafio foi uma viagem – gorada – a Paris. O próximo, já em
execução, é aprender a falar inglês. Eu era apenas tradutor de francês da Editora
Globo. Aprendi, sozinho, a língua inglesa numa gramática, para traduzir. Mas apenas
lia o que estava escrito, sem saber a pronúncia. Agora, estou lidando com um curso de
inglês da Inglaterra por meio de fitas cassete. O primeiro tradutor de Virginia Woolf no
Brasil fui eu. A tradução foi bem recebida pela crítica.”
PATRÍCIA BINS – Você sobreviveu a vida inteira de escrever: em jornais,
revistas, traduzindo excelentes livros e, claro, como poeta. Se viesse ao mundo de novo,
escolheria o mesmo modo de viver (e de sobreviver)?
QUINTANA – O mesmíssimo modo, sem tirar nem pôr. (entrevista disponível no site:
http://www.estado.rs.gov.br/marioquintana/entrevistas/Entrevista%20com%20Patricia%
1
:. ENTREVISTA a HERMES RODRIGUES NERY julho 1988 disponível no site:
http://medei.sites.uol.com.br/penazul/geral/entrevis/quin.htm.
1
Site Pen Azul de Literatura e Arte. Entrevista a Hermes Rodrigues Nery. Disponível em:
<http://medei.sites.uol.com.br/penazul/geral/entrevis/quin.htm>. Acesso em: 17 ago. 2010.
1
Revista
Terra.
Entrevista
com
Mario
Quintana.
Disponível
em<
http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI1090046-EI6595,00.html>. Acesso em 09 maio 2010.
158
20Bins.pdf.
“- O senhor traduziu Proust, Voltaire. Como foi seu contato inicial com a língua
francesa?
QUINTANA: - Minha mãe lecionava francês. Aprendi com meus pais, naquele tempo
todo mundo falava francês, fazia parte da educação das moças: estudar piano, estudar
pintura e falar francês. Acho uma coisa muito engraçada. Eu me lembro que, quando
houve uma revolução lá em Alegrete, foi feita quase toda em francês — as senhoras iam
visitar as madames e se comunicavam em francês para os criados não saberem o que é
que se estava tramando.” (ENTREVISTA A HERMES RODRIGUES NERY julho 1988
disponível no site: http://medei.sites.uol.com.br/penazul/geral/entrevis/quin.htm)
QUINTANA: - Meu pai foi conspirador da revolução de 23. Então, para os criados não
entenderem as conspirações e também as coisas íntimas, falava-se em francês.”
(ENTREVISTA in AUTORES GAÚCHOS. MARIO QUINTANA, Ed. Da ULBRA, 1996)
“ Dentre os poetas franceses quais os que mais admira?
QUINTANA: - A gente sempre admira o que mais se parece com a gente, não é? O que
mais se parece comigo ou com quem mais eu me pareço foi Guilhaume Appollinaire, e
outro que a gente não pode deixar de admirar é o mestre dos simbolistas, o Verlaine.
Os outros são discípulos, seguidores, continuadores.”
(ENTREVISTA a HERMES RODRIGUES NERY julho 1988 disponível no site:
http://medei.sites.uol.com.br/penazul/geral/entrevis/quin.htm)
“- Francês e Latim saíram do currículo das escolas. Isso empobrece culturalmente o
159
aluno de hoje?
QUINTANA: - O latim nunca fez parte do meu currículo -eu fui educado no Colégio
Militar de Porto Alegre, uma escola fundada pelos militares que eram positivistas e não
queriam saber de nada que cheirasse a padre... Mas retirar o francês foi a maior
injustiça, o francês era o veículo literário do mundo naquele tempo, e até há pouco
tempo. E nós devemos muito ao conde de Belchior de Vogué, que traduziu os russos. Se
os russos não tivessem sido traduzidos para o francês nós desconheceríamos
Dostoiévski até hoje. O que é desconhecer uma terça parte da alma humana. Porque a
alma humana está dividida em três partes, uma em Shakespeare, outra na Bíblia, outra
em Dostoiévski. Pelo menos para mim.”
ENTREVISTA (A HERMES RODRIGUES NERY julho 1988 disponível no site:
http://medei.sites.uol.com.br/penazul/geral/entrevis/quin.htm)
- Além de poeta, o senhor é tradutor de obras clássicas, como vários volumes de Marcel
Proust. Que semelhança pode existir entre o trabalho de tradução e o ofício da criação
poética?
QUINTANA: - Há sempre uma diferença entre tradução literal e tradução literária.
Creio que a tradução de um autor é, nada mais, nada menos, a estréia desse autor na
literatura da língua para a qual ele foi traduzido. Daí, a responsabilidade enorme de
traduzir um Proust, um Voltaire, gente assim.
-Como tradutor, como vê esta profissão?
160
QUINTANA: - Eu acho uma coisa de grande responsabilidade. Porque eu creio que a
tradução de um poeta para a nossa língua é nada mais, nada menos, que a estréia deste
poeta na literatura brasileira. De maneira que é uma enorme responsabilidade. Olha
que eu traduzi Proust o que não é brinquedo. E traduzi Voltaire, traduzi Merimée,
traduzi esta gente assim.
- E como foi traduzir Proust?
QUINTANA: - Foi uma coisa horrível. Mas eu gostei, exatamente por causa da
dificuldade. A dificuldade é uma coisa que pode cansar, mas é o mesmo que a
ginástica, faz bem.
ENTREVISTA
2
–
(publicada
em
1989
na
Crisis
–
disponível
em
http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI1090046-EI6595,00.html)
- Quantos livros você traduziu?
QUINTANA - Eu traduzi para a Livraria do Globo, cento e trinta e oito livros. No
tempo em que eu era criança, o francês era moda e a minha mãe era professora de
francês. Então, quando a gente, por exemplo, não queria que os empregados soubessem
o que a gente estava dizendo, aí se falava em francês. Grande parte da revolução de 23,
por exemplo, foi preparada em francês, porque se reuniam as senhoras dos oficiais
para tomarem chá e comunicavam as coisas todas em francês. Imagine que na minha
terra, em Alegrete, se fez revolução em francês. Que barbaridade! Naquele tempo as
161
comunicações com a Europa eram bem mais fáceis que hoje. A França era a capital
literária do mundo. Eu, quando estava na farmácia do velho, tinha conta numa livraria
francesa. Eles mandavam os boletins e eu encomendava. Tudo vinha direto de Paris
para Alegrete.
ENTREVISTA 3- concedida à Edla van Steen e publicada no livro: Viver & escrever. V.
1. Porto Alegre: L&PM, 2008.
- Entre outros autores você traduziu Proust e Virginia Woolf. Foi amor pelas obras ou
alguma necessidade financeira que o teriam levado à tradução?
QUINTANA: - Traduzi Proust por amor à dificuldade da tradução. Quando soube que
Proust estava incluso no programa editorial da Globo, pedi para traduzi-lo, por medo
que caísse em outras mãos. Retirei-me do quadro de funcionários da Globo quando,
por ocasião de um aumento de salário, eu não fui contemplado, sob a alegação de que
me demorava muito na tradução de Proust. Traduzi da primeira até a quarta parte
(Sodoma e Gomorra). Por felicidade, o restante foi cair em excelentes mãos (Manuel
Bandeira e Carlos Drummond de Andrade). E Virginia Woolf? Pois foi isso mesmo: eu
não tive medo de Virginia Woolf! Mrs. Dalloway é um denso, belo, misterioso poema.
Brito Broca julgou a minha tradução à altura do autor. Fiquei contente de ter sido o
outro livro de Virgínia (Orlando) traduzido por um poeta como Cecília Meireles. Em
tempo: quem me introduziu na vida literária foi Cecília Meireles. Lembro que ela
publicou a Canção do Meio do Mundo no suplemento do Diário de Noticias, com uma
bela ilustração de Correia Dias. Outro que sempre fez muito por mim foi Augusto
Meyer, o nosso último humanista. O que mais me admira em Augusto Meyer é a
162
admiração que eu tenho por ele. Embora apenas quatro anos mais velho do que eu,
sempre o considerei um mestre. A saudação que ele me fez de improviso na Academia
Brasileira de Letras em 1966, o Aurélio Buarque de Holanda me confessou que era
uma obra-prima, com o perdão da palavra. Não sei se foi gravada.
- No seu entender, o que é uma boa tradução?
QUINTANA: - Aquela que segue o estilo do autor, e não o do tradutor. Os períodos de
quadra e meia de Proust (sim, o período dele dava volta na quadra) não poderiam ser
divididos em pedacinhos, por amor da clareza ou coisa que o valha, como acontece às
vezes na tradução castelhana. Mas a maior alegria que tive como tradutor foi quando a
minha tradução dos Romans, Voltaire, um calhamaço enorme. Com jóias como
Cândido e A princesa da Babilônia, foi remetida à apreciação de Paulo Rónai,
especializado em literatura clássica francesa. Ele devolveu os meus originais com a
seguinte nota: “É preciso ortografar”. A tradução de Voltaire foi também a meu
pedido. Você há de espantar-se que eu, assombrado com Camões, envolto de Virginia
Woolf, tenha me comprazido na luz mediterrânea de Voltaire. A culpa foi também de
meu pai, que adorava La Fontaine e me fez decorar algumas de suas fábulas antes que
eu as pudesse ler. Assim as névoas e perigos do Cabo Tormentório eram varados pelo
riso claro e simples do bonhomme fabulista. Não admira, pois, que, mais tarde, eu
adorasse Racine, a par de Shakespeare. Cheguei a começar por conta e risco uma
tradução da Ifigênia, de Racine, e do Sonho de uma noite de verão, as quais
infelizmente se perderam. Ou felizmente, nunca se sabe. Bem, eu estava falando nas
minhas atuais leituras. Há uma época de ler e uma época de reler, como diria o
Eclesiastes. Agora, para descanso, estou na época de desler. E, como continuo insone
163
(uma vez escrevi que não tenho medo do sono eterno, mas da insônia eterna), agora
leio principalmente para adormecer. É uma leitura de fora para dentro, como quem
olha distraidamente a televisão. As outras leituras, as leituras de dentro para fora,
excitam o cérebro e não são recomendáveis no meu caso. Leio ficção científica, uma
espécie de volta a O tico-tico. A falar verdade, o que de melhor e pior se publica
atualmente nos Estados Unidos são as novelas de ficção científica. Entre elas, descobri
as de um grande poeta, Ray Bradbury. É dessas obras que a gente gostaria de ter
escrito.
- Você gosta da literatura norte-americana?
QUINTANA: - Gosto de Scott Fitzgerald, o que não é de admirar porque ele pertence à
minha geração: o mesmo caldo de cultura, a mesma sensibilidade. Gosto de Edgar Poe,
e eu não compreendo como é que ele foi aparecer por lá. Deve ter havido um engano de
país ou de planeta. Gosto de Gertrude Stein (Três Vidas eu já li outras tantas vezes).
- Só?
QUINTANA: - Só. Não posso esquecer que minha infância se passou na belle époque,
quando até os americanos sabiam falar francês. Tenho uma amiga que foi para a
Alemanha apenas sabendo francês. Como eu lhe observasse que era pouco, ela
respondeu: "Não vale a pena conhecer alemães que não saibam francês". Aproveito a
ocasião para lançar o meu protesto contra essa idéia de tirarem a língua francesa do
currículo escolar. O que devemos à França não é a cultura francesa, é a cultura
universal. Toda obra, para universalizar-se, teria de passar pelos tradutores franceses.
Se não fosse a França. o mundo ocidental teria perdido Dostoiévski. Imagine você o
que teríamos de conhecimento da alma humana se não conhecêssemos Dostoiévski.
164
Nada. Ou quase nada. Pois me lembrei agora de Shakespeare. Mas a minha queixa é
contra os americanos. Já disse e repito que, se há males que vêm para bem, há bens
que vêm para mal. Exemplo: os Estados Unidos ganharam a guerra. Resultado: o povo,
em geral, só lê os best-sellers americanos que eles nos impingem. São tão ruins que
chego a acreditar que sejam apenas literatura de exportação. Enquanto isto, os livros
brasileiros bons não são reeditados. Nem são reeditadas as traduções de bons livros
estrangeiros. Onde está, por exemplo, a minha tradução de Poeira, de Rosamond
Lehman, o meu Sparkenbrook, de Charles Morgan?
ENTREVISTA 4 in AUTORES GAÚCHOS. MARIO QUINTANA, Ed. Da ULBRA, 1996
QUINTANA: - Meu pai foi conspirador da revolução de 23. Então, para os criados não
entenderem as conspirações e também as coisas íntimas, falava-se em francês.”
Fala de sua entrada para a Ed. Globo, como tradutor, aos 28 anos:
QUINTANA: - Como há males que vêm para bem, os Estados Unidos ganharam a
Guerra, e eu com ela. Todo mundo começou a estudar Inglês-como ainda hoje, mas o
Érico (Veríssimo) lembrou que eu era o único conhecido que falava francês e me
chamou para a Editora Globo.
Lembra o quanto foi difícil traduzir Proust e sua obra Em busca do tempo perdido:
QUINTANA: - Uma barbaridade traduzir aqueles períodos que dão volta na esquina e
não se sabe onde vão parar.
165
ENTREVISTA
5:
(Casa
de
Cultura
Mário
Quintana.
http://www.estado.rs.gov.br/marioquintana/ averi, Cláudia Borges de ; Castelli,
Eleonora.
Em
busca
do
tradutor:
Proust
e
Mérimée
por
MárioQuintanaUFSC.http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/viewFil
e/6588/6066)
Mas, como eu ia dizendo, traduzia porque gostava daqueles livros. E quanto
mais difícil o livro, mais eu gostava. Por isso, entre todos os autores que traduzi, o que
me deu mais satisfação foi Virgínia Woolf. Mesmo porque o páreo era duro: antes de
mim, quem havia traduzido a Virgínia no Brasil era nada menos do que Cecília
Meireles. Eu tinha que ser digno da minha amizade e admiração pela Cecília.[...]
Antes de tudo, Proust foi para mim um trabalho e um prazer ao mesmo tempo,
porque olha que traduzir Proust... Ele tem períodos enormes que dão volta na página e
eu devia traduzir preservando a mesma clareza do original. Tanto que comentei com o
Érico Veríssimo, que dirigia o setor de traduções da Editora Globo: “Estou gostando
tanto de traduzir o Proust que, se eu tivesse dinheiro, eu é que pagava para vocês”. [...]
166
“Quando houve o primeiro aumento geral, fui o único a não ser aumentado.
Naturalmente, tomei satisfações. A resposta que me deram foi que eu levava muito
tempo na tradução. “Você,afinal, levou quatro meses para traduzir um volume”. Ora,
eles não compreendiam que eu tinha que demorar tanto tempo quanto Proust levara
para escrever o original, para fazer uma tradução digna. Queriam que eu traduzisse
com a mesma velocidade com que traduzia romances sem civilização nenhuma, ditados
para uma estenógrafa em uma semana. Por causa disso, abandonei minhas funções de
tradutor na Globo e fui trabalhar no Correio do Povo.”
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