Febre catarral maligna em uma vaca Martins, T.B., Rosa, F.B., Kommers, G.D., Barros, C.S.L. Autor correspondente: [email protected] (Martins, T.B.). Laboratório de Patologia Veterinária, Hospital Veterinário Universitário, prédio 97B, UFSM - Av. Roraima, 1.000, Camobi, Santa Maria/RS, CEP:97105-900. PALAVRAS-CHAVE: doenças infecciosas, doenças a vírus, doenças de bovinos. INTRODUÇÃO: A febre catarral maligna (FCM) é uma doença infecciosa, viral, pansistêmica e altamente fatal, que acomete bovinos e outros ungulados. É causada pelas cepas Alcelaphine Herpesvírus-1 (AlHV-1) e herpesvírus ovino-2 (OvHV-2) (1). Estes vírus causam infecção inaparente nos hospedeiros reservatórios (gnu para AlHV-1 e ovino para OvHV-2), e uma doença linfoproliferativa fatal quando infectam hospedeiros susceptíveis à FCM, incluindo bovinos, veados, bisões, búfalos e suínos. A FCM é uma doença importante onde quer que os reservatórios e espécies susceptíveis convivam, e é um problema particularmente grave em bovinos da Indonésia e do leste e sul da África, e em bisões dos Estados Unidos (6). No Brasil, a doença é comprovadamente transmitida por ovinos, daí denominada FCM ovino-associada (FCM-AO) (2), e já foi descrita em todas as regiões do país (4). O objetivo deste trabalho foi relatar um caso de FCM em um bovino e compartilhar algumas das lesões clássicas da doença através de lâminas histológicas. MATERIAIS E MÉTODOS: Foi recebido para exame histopatológico no Laboratório de Patologia Veterinária da Universidade Federal de Santa Maria (LPV-UFSM) material referente à necropsia de uma vaca, SRD, de 5 anos de idade, proveniente de São Francisco de Assis, no sudoeste do Rio Grande do Sul. O caso ocorreu no mês de janeiro. Os sinais clínicos evoluíram por 10 dias e consistiam de prostração, afastamento do lote, diarreia com estrias de sangue, desidratação, corrimento nasal purulento bilateral, opacidade de córnea e hiperemia conjuntival. Os sinais oculares eram incialmente restritos ao olho direito, mas dentro de alguns dias a opacidade de córnea tornou-se bilateral, impedindo completamente a visão do animal, que passou a se chocar contra obstáculos e parou de comer. Eutanásia e necropsia foram então realizadas. RESULTADOS: Os achados de necropsia incluíam hiperemia leve das leptomeninges, petéquias na superfície cortical dos rins, nódulos claros coalescentes na superfície dos linfonodos, congestão hepática centrolobular e broncopneumonia bilateral. Segundo o remetente, o intestino estava normal. Descrição histológica: tecidos remetidos ao fórum de lâminas: Rete mirabile carotídea – multifocalmente, a parede das artérias está marcadamente espessada por linfócitos, plasmócitos e macrófagos. O infiltrado inflamatório é mais acentuado na túnica adventícia, mas está presente também na túnica média. Acúmulos subintimais de infiltrado inflamatório e tumefação do endotélio arterial são ocasionalmente observados. Em algumas artérias, a túnica média está hipereosinofílica e fragmentada, com perda dos detalhes celulares (necrose fibrinoide). Hipófise – nas porções nervosa e glandular (neuro e adeno-hipófise), infiltrado inflamatório semelhante ao descrito na rete é observado ao redor de vasos sanguíneos de pequeno calibre e formando agregados aleatórios. Dura-máter – artérias de pequeno calibre exibem alteração semelhante às da hipófise, com hemorragia perivascular leve associada. Não são observadas alterações no gânglio do nervo trigêmeo. Encéfalo (mesencéfalo) – os vasos do neurópilo estão espessados por pequena a moderada quantidade de linfócitos, plasmócitos e macrófagos. O infiltrado inflamatório expande o espaço de Virchow-Robin e a parede dos vasos. Agregados esparsos de células da micróglia (nódulos gliais) são observados no neurópilo. Rim – em meio ao parênquima, as artérias de pequeno calibre têm a parede espessada por infiltrado mononuclear semelhante ao descrito na rete mirabile carotídea. O infiltrado expande as túnicas adventícia e média de e o tecido renal perivascular. tecidos não remetidos ao fórum de lâminas: Linfonodo – há hiperplasia linfoide difusa e acentuada, caracterizada por folículos grandes e com centro germinativo e espessamento dos cordões medulares por linfócitos. Observa-se vasculite semelhante à descrita para os outros órgãos, com necrose do tecido perivascular associada. Pulmão – o lúmen dos brônquios, bronquíolos e alvéolos contém grande quantidade de neutrófilos íntegros e degenerados e fibrina e menor quantidade de linfócitos e macrófagos. Em meio ao infiltrado inflamatório, são observados agregados bacterianos multifocais. Há ruptura de alguns bronquíolos e edema alveolar. Os septos interlobulares estão distendidos por edema, fibrina e poucos neutrófilos. Fígado – os espaços-porta estão circundados por linfócitos, plasmócitos e macrófagos. Diagnóstico histológico: tecidos remetidos ao fórum de lâminas: 1) Rete mirabile carotídea, arterite linfoplasmo-histiocítica transmural, multifocal, acentuada, com necrose fibrinoide, bovino. 2) Hipófise, duramáter e rim, vasculite e perivasculite linfoplasmo-histiocítica, multifocal, moderada, bovino. 3) Encéfalo (mesencéfalo), vasculite linfoplasmo-histiocítica, multifocal, moderada, bovino. Diagnóstico etiológico: Arterite, vasculite e perivasculite virais. Etiologia: Herpesvírus ovino-2 (OvHV-2). DISCUSSÃO E CONCLUSÃO: O diagnóstico de FCM é baseado na epidemiologia, sinais clínicos, achados de necropsia e histopatologia (1). Neste caso, o relato detalhado do clínico veterinário sobre a epidemiologia, os sinais clínicos e sobre as lesões macroscópicas observadas, o que não é prática corrente, foi muito importante para que se suspeitasse de FCM. Os surtos de FCM-OA ocorrem em bovinos preferencialmente na primavera e verão, com período de incubação longo que pode se estender de 3 a 10 semanas. A duração média do curso clínico é de 3 a 7 dias nos casos espontâneos da doença e de 15-27 dias em casos experimentais (2). No Rio Grande do Sul, a FCM é responsável por 0,9% de todas as doenças de bovinos da região central do Estado (3). A doença ocorre mais frequentemente de forma esporádica (60%), afetando de 1-3 bovinos em um rebanho, ou em forma de surtos epizoóticos (40%), afetando vários bovinos num rebanho. A morbidade varia de 2,5% a 20%, e as taxas de letalidade vão de 83% a 100% (5). Neste caso, a doença ocorreu no verão e a evolução do quadro clínico foi de 10 dias. Há que se considerar que o animal foi submetido à eutanásia, e, portanto, o curso poderia ter se desenvolvido por alguns dias a mais. Também é possível, embora improvável, que o animal se recuperasse da doença. Não foi possível calcular a morbidade da doença, mas é sabido que este animal foi o único a apresentar sinais clínicos, o que configura um caso esporádico de FCM. Foram observadas nesta vaca algumas das alterações clínicas clássicas da FCM, como opacidade de córnea e conjuntivite, além de depressão e corrimento nasal. Outros sinais frequentes da doença, que não foram observados aqui, incluem febre, salivação profusa, dispneia, hematúria, fotofobia e, ocasionalmente, hipópion. Distúrbios neurológicos ocorrem em cerca de 60% dos casos, e incluem incoordenação, letargia ou agressividade, ataxia e, nas fases finais, movimentos de pedalagem, convulsões e opistótono. Lesões macroscópicas características de FCM também foram observadas nesta vaca, como aumento de volume nos linfonodos e acentuação do padrão lobular hepático. Os achados histopatológicos são característicos e permitem o diagnóstico da doença. Incluem três alterações básicas: 1) vasculite caracterizada por acúmulo de células mononucleares na adventícia e necrose fibrinoide da parede; (2) proliferação e infiltração de células mononucleares em vários órgãos, incluindo linfonodos, encéfalo, fígado, rim, olhos, e sistemas alimentar e respiratório; (3) inflamação e necrose em virtualmente qualquer mucosa do organismo e na pele. A lesão vascular é importante para o diagnóstico da FCM, pois aparece em todos os casos. Nos linfonodos, há hiperplasia linfoide, principalmente nas áreas de população de linfócitos T. Áreas focais de necrose associadas à arterite podem também ocorrer (1). Neste caso, foram observadas lesão vascular em todos os órgãos, com intensidade variável, e hiperplasia linfoide acentuada no linfododo. Não foram relatadas úlceras nas mucosas nem na pele. Nos fragmentos remetidos, não foram observadas alterações nos epitélios. Apesar de o intestino ter sido reportado como normal, é provável que houvesse alguma erosão na mucosa intestinal, visto que foram observadas estrias de sangue em meio a fezes pastosas. A pneumonia bacteriana foi considerada uma lesão secundária, causada por organismos oportunistas. Embora descrita como encefalite, a lesão no encéfalo é, basicamente, uma arterite semelhante à encontrada em outros órgãos, com proliferação de células mononucleares na adventícia e passagem dessas células para o espaço perivascular de Virchow-Robin. Essa lesão característica permite diferenciar a FCM de outras encefalites não-supurativas virais de bovinos, como a raiva e meningoencefalite por herpesvírus. Além disso, as lesões inflamatórias com necrose fibrinoide nas artérias da rete mirabile carotídea são um aspecto distintivo da FCM (1). O mecanismo de formação das lesões na FCM está associado à disfunção e morte das células endoteliais e hiperplasia, disfunção e morte dos linfócitos nos tecidos linfoides. Basicamente, os linfócitos T CD8+ infectados se distribuem através do tráfego linfocitário, nos tecidos linfoides e na íntima, média e adventícia vasculares, criando lesões com padrão vascular e perivascular em órgãos de diferentes sistemas (7). O diagnóstico diferencial de FCM em bovinos inclui outras doenças neurológicas e doenças a vírus que produzem lesões erosivo-ulcerativas nas mucosas, como febre aftosa, estomatite vesicular, diarreia viral bovina-doença das mucosas, língua azul, peste bovina e intoxicações por arsênico, pelo cogumelo Ramaria flavo-brunnescens e por Amaranthus spp (5). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: 1. Barros, C.S.L. et al. Febre catarral maligna. In:___. Doenças do sistema nervoso de bovinos no Brasil. Montes Claros: Vallée, 2006. p.37-43. 2. Gamartz, S.L. et al. Febre catarral maligna em bovinos no Rio Grande do Sul: transmissão experimental para bovinos e caracterização do agente etiológico. Pesq.Vet.Bras. 24(2):93-103, 2004. 3. Lucena, R.B. et al. Doenças de bovinos no Sul do Brasil: 6.706 casos. Pesq.Vet.Bras. 30(5):428-434, 2010. 4. Macêdo, T.S.A. Febre catarral maligna em bovinos na Paraíba. Pesq.Vet.Bras. 27(7):277-281, 2007. 5. Rech, R.R. et al. Febre catarral maligna em bovinos no Rio Grande do Sul: epidemiologia, sinais clínicos e patologia. Pesq.Vet.Bras. 25(2):97-105, 2005. 6. Russell, G.C. et al. Malignant catarrhal fever: a review. Vet.J. 179(3):324–335, 2009. 7. Zachary, J.F. Mechanisms of microbial infections. In: Zachary, J.F., McGavin, M.D. Pathologic basis of veterinary diseases. 5.ed. St. Louis: Elsevier, 2012. p.147-241.