CARVALHO, Hernandes F.; RECCO-PIMENTEL, Shirlei M. Mitocôndria, In, A Célula. 2ª edição. 2007, p.211-225. Página 211 15 MITOCÔNDRIA Edson Rosa Pimentel As mitocôndrias começaram a ser observadas em 1840, em células de rim e de fígado, coradas pelo método de Régaud. As estruturas observadas tinham formas alongadas e arredondadas, respectivamente. Daí o nome de mitocôndria, junção do termo grego mitos, que quer dizer alongado, e chondrion, que significa pequeno grânulo, em alusão aos aspectos morfológicos que as mitocôndrias podem assumir na célula. As mitocôndrias podem ser facilmente distinguidas de outras organelas, mesmo com a célula viva, usando-se um corante chamado verde janus. Esse corante, por ser uma substância redox, capaz de assumir características de um composto reduzido ou oxidado, em contato com a mitocôndria, pode ser oxidado para uma forma corada pelo citocromo c oxidase, um dos componentes da cadeia respiratória. No geral, as mitocôndrias exibem formas alongadas, como ocorre em tubos de Malpighi, glândulas salivares de insetos e pâncreas de mamíferos (Figura 15.1a), mas mitocôndrias esféricas também são encontradas em intestino e fígado (Figura 15.1b). Além disso, técnicas de microcinematografia têm evidenciado que as mitocôndrias podem assumir várias conformações em diferentes momentos da vida da célula. O tamanho das mitocôndrias também é variável, podendo medir de 0,2 a 1,0 µm de diâmetro e de 2 a 8 µm de comprimento. A quantidade de mitocôndrias também varia para células de diferentes origens, estando diretamente relacionada à demanda energética da célula. Assim, temos em alguns ovócitos uma quantidade de 300.000 mitocôndrias por célula. Em ameba gigante, pode chegar a 10.000, em hepatócitos, de 500 a 1.600, em células renais, em torno de 300, em espermatozóides, cerca de 25 e algumas algas verdes chegam a ter apenas uma mitocôndria. As células vegetais, em geral, apresentam uma quantidade bem menor de mitocôndrias em relação às células animais. A distribuição de mitocôndrias no interior da maioria das células ocorre totalmente ao acaso, mas há casos em que se concentram em regiões em que a demanda energética é maior. Em células musculares, por exemplo, as mitocôndrias estão associadas aos filamentos contráteis que requerem ATP (Figura 15.2); em espermatozóides, elas se localizam na peça intermediária, justamente para facilitar o provimento de ATP para a movimentação da cauda. Muitas vezes, as mitocôndrias estão associadas com glóbulos de gordura, de forma a expor a maior área possível de sua superfície, em contato com os lipídios (Figura 15.3) e, conseqüentemente, aproveitar melhor os ácidos graxos resultantes da ação das lipases. Página 212 A análise de imagens obtidas ao microscópio eletrônico e estudos bioquímicos têm sido de grande valor para melhor conhecer a ultraestrutura e fisiologia mitocondriais. Uma das técnicas de microscopia eletrônica bem conhecida é a contrastação positiva, que consiste em embeber o material já fixado em urna solução de metal pesado, como acetato de uranila, que se acumula em algumas partes da organela, tornando-as eletrodensas. Uma outra técnica é a contrastação negativa, que consiste em deixar o material embebido em uma solução aquosa de um sal eletrodenso, como fosfotungstato de sódio. Neste caso, as estruturas vão aparecer como regiões claras, em decorrência da não-penetração do sal, contra um fundo eletrodenso. Os estudos bioquímicos da mitocôndria só foram possíveis após a obtenção da organela isolada, em um procedimento que se inicia com a homogeneização seguida de centrifugação fracionada (ver Capítulo 4). A partir das mitocôndrias isoladas, após tratamento de ultra-som, foram obtidas as partículas submitocondriais, ou seja, vesículas mitocondriais obtidas com a selagem dos fragmentos da membrana interna das mitocôndrias de modo que, neste caso, os complexos ATP sintase ficaram voltados para o meio externo. Ultra-estrutura As mitocôndrias podem ser detectadas com microscopia óptica comum, mas detalhes da sua estrutura só são observados com o uso de um microscópio eletrônico. Essas organelas são constituídas de duas membranas, estrutural e funcionalmente distintas. Elas definem dois compartimentos na mitocôndria, o espaço intermembrana, que separa as membranas interna e externa, e a matriz mitocondrial, que está circundada pela membrana interna (Figuras 15.4 e 15.5). Na matriz podem ser observados ribossomos e alguns glóbulos eletrodensos de fosfato de cálcio. A membrana interna se invagina para o interior da mitocôndria, constituindo as cristas mitocondriais. Essas projeções para o interior da organela permitem um considerável aumento da área da membrana interna, que, como veremos a seguir, é o local em que estão os componentes da cadeia respiratória e o complexo enzimático F1F0 responsável pela síntese de ATP. As membranas interna e externa são estrutural e funcionalmente diferentes. A utilização da técnica de freezeetching permitiu visualizar o aspecto bastante particulado da membrana interna, enquanto a membrana externa exibia um aspecto mais liso. Logicamente, as diferenças estruturais entre as duas membranas são conseqüências diretas de suas composições químicas e das interações entre alguns de seus componentes. A composição química das membranas, em geral, é de lipídios e proteínas, mas a quantidade relativa desses dois componentes pode variar. Assim, a membrana externa contém 50% de lipídios e 50% de proteínas, enquanto na interna encontramos apenas 20% de lipídios e 80% de proteínas. Entre essas proteínas estão os citocromos, que fazem parte da cadeia respiratória, a ATP sintase, que participa da síntese do ATP, NADH desidrogenase, que libera um par de elétrons para a cadeia respiratória, a succinato desidrogenase, que catalisa urna das reações do ciclo de Krebs, a carnitina aciltransferase, que participa da transferência de ácido graxo do espaço interPágina 213 membrana para a matriz mitocondrial, entre muitas outras proteínas, que têm função de transporte de vários metabólitos. A presença de proteínas na membrana interna com funções bem definidas, como mencionado anteriormente, já confere uma maior seletividade dessa membrana à entrada dos mais diversos componentes, até mesmo de dimensões submoleculares, como os íons. Já a membrana externa, além de apresentar uma maior fluidez, dada sua maior quantidade de lipídios em relação à membrana interna, também apresenta uma proteína conhecida como porina, que forma verdadeiros canais transmembrânicos, permitindo a passagem livre de íons e moléculas de até 10.000 daltons de peso molecular. Curiosamente, a porina encontrada na membrana externa de mitocôndrias é muito semelhante às proteínas que formam poros na membrana externa de bactérias do tipo Gram-negativa. Composição química Além dos componentes já mencionados no item anterior, essa organela contém ácidos nucléicos e várias enzimas, que participam do metabolismo de carboidratos, de ácidos graxos e de compostos aminados. É interessante observar que a molécula de DNA é circular, semelhante àquela encontrada em bactérias, e corresponde a apenas 1 % do DNA contido no núcleo. Embora poucas proteínas (apenas 13) sejam codificadas pelo DNA mitocondrial, a mitocôndria contém todo o mecanismo para replicação e transcrição do DNA e tradução de proteínas. Fisiologia Respiração celular A respiração, em um sentido mais amplo, pode ser definida como sendo o processo de oxidação de moléculas orgânicas acompanhado da liberação de energia, que é aproveitada na síntese de ATP. Entre os compostos que, após oxidação, resultam em alto rendimento de ATP estão os carboidratos e os lipídios, mas não se pode esquecer que os compostos aminados, como os aminoácidos, também podem ser oxidados e liberar energia para produzir ATP (Figura 15.6). Uma das vias metabólicas mais importantes e mais conhecidas é a glicólise aeróbica, que também faz parte da respiração. Contudo, há cerca de 3,5 bilhões de anos, a ausência de oxigênio na atmosfera levava as bactérias a realizarem a glicólise anaeróbica, como parte de um processo chamado fermentação. Em determinada fase da glicólise (Figura 15.7), que consiste na degradação de glicose até ácido pirúvico, ocorre redução de duas moléculas de NAD, resultando em NADH+H+ (Figura 15.8). No entanto, essas moléculas de NADH+H+ são reoxidadas, transferindo seus elétrons a um outro aceptor, para que o estado de equilíbrio seja mantido. Também existe um consumo de duas moléculas de ATP e uma produção de 4 moléculas, possibilitando um rendimento líquido de 2 moléculas de ATP para cada molécula de glicose degradada até piruvato. Uma das formas empregadas por bactérias para reoxidar as moléculas de NADH+H+ é usar esses nucleotídeos para reduzir piruvato em lactato, constituindo a fermentação láctica: Outro tipo de fermentação envolve a decomposição do piruvato em acetaldeído e CO2, com o acetaldeído sendo reduzido a etanol, caracterizando a fermentação alcoólica: Página 214 No caso dos organismos aeróbios, o NADH+H+, produzido durante a glicólise, é reoxidado pelos componentes da cadeia respiratória presentes na membrana interna e cristas mitocondriais, como será visto mais adiante. Ciclo de Krebs Como pode ser observado na Figura 15.6, o acetil-CoA pode se originar da degradação de aminoácidos, lipídios e carboidratos. No caso deste último, o piruvato formado, ao entrar na mitocôndria, sofre descarboxilação e desidrogenação em um processo catalisado por um complexo enzimático, chamado piruvato desidrogenase (Figura 15.9). Nesta reação, uma molécula de NADH+H+ é formada e o radical acetil se liga à coenzima A, originando o acetil-CoA. A molécula de coenzima A, um carreador de grupos acil, é geralmente representada como CoA - SH, porque o grupo tiol -SH é a parte da molécula que reage e se liga ao grupo acil, que no caso da descarboxilação do piruvato, é o grupo acetil. Desse modo, a coenzima A se liga ao radical acetil formando o acetilCoA (Figura 15.9), que reage com o oxaloacetato, formando o ácido cítrico, um ácido tricarboxílico, dando início a uma seqüência de reações que regenera a moléPágina 215 cula de ácido oxaloacético. Esse conjunto de reações (Figura 15.10) é conhecido como ciclo do ácido tricarboxílico ou ciclo de Krebs, em homenagem ao bioquímico Hans Krebs (19001981). Neste ciclo, devido às reações de desidrogenação, 4 pares de átomos de hidrogênio são liberados, sendo que 3 serão utilizados para reduzir 3 moléculas de NAD, resultando em NADH+H+, e 1 irá reduzir 1 FAD a FADH2 (Figura 15.11). Um outro produto desse ciclo é uma molécula de ATP, produzida a partir de ADP e Pi, utilizando energia de hidrólise de GTP. Uma questão que normalmente surge quando se estuda o ciclo de Krebs é sobre a necessidade de tantas reações para decompor um radical tão pequeno como o acetil. A razão se deve ao fato do grupo acetil ser altamenPágina 216 te resistente à oxidação. Um caminho mais simples foi encontrado pela natureza quando o radical acetil reagiu com uma molécula de oxaloacetato, produzindo um composto mais suscetível à oxidação. Transdução de energia Embora a mitocôndria tenha sido detectada no século XIX, só em 1960 foram realizados estudos bioquímicos que permitiram conhecer como ocorre a respiração celular. Essa organela pode aproveitar a energia presente em ligações químicas covalentes, entre átomos de carbono (-C - C-), e transformá-la em energia elétrica, para novamente armazená-la em ligações químicas também covalentes, como ocorre entre ADP e fosfato, na formação da molécula de ATP. A molécula de ATP formada pode ser facilmente decomposta em ADP e Pi, liberando energia para o aproveitamento imediato pela célula. Na verdade, ocorrem duas transformações de energia, primeiramente química em elétrica, e depois elétrica em química novamente. A primeira está diretamente relacionada com a quebra de ligações C - C dos componentes do ciclo do ácido tricarboxílico, ou com a degradação dos ácidos graxos ou dos aminoácidos. Em todos os casos, ocorre perda de elétrons que são captados pelos nucleotídeos NAD e FAD, conhecidos em suas formas reduzidas como NADH + H+ e FADH2, respectivamente (Figuras 15.8 e 15.11). Esses equivalentes redutores vão ceder seus elétrons para os componentes da cad respiratória, presentes na membrana interna das mitocôndrias. À medida que esses elétrons vão sendo transferidos na cadeia respiratória até chegar ao oxigênio, aceptar final de elétrons, ocorre ejeção de prótons para o espaço intermembranas, e até mesmo para fora da mitocôndria, já que a membrana externa é permeável a prótons. Esse fato resulta em uma diferença de pH (pH) entre os meios externo e interno da mitocôndria. Também ocorre uma diferença de potencial () entre as faces interna e externa da membrana interna da mitocôndria (Figura 15.12). A diferença de pH e o potencial de membrana são importantes no processo da fosforilação oxidativa, como será visto mais adiante. Página 217 Cadeia respiratória É constituída de diversos componentes formados, em sua maioria, por complexos protéicos contendo grupos heme, que permitem a transferência de elétrons graças à possibilidade dos átomos de ferro se reduzirem (aceitando elétrons) e se oxidarem (doando elétrons), até ceder elétrons ao oxigênio com conseqüente formação de água. Esses compostos são os cito cromos (Figura 15.13), que estão dispostos na bicamada lipídica da membrana interna da mitocôndria (Figura 15.14). Além dos citocromos, os complexos protéicos também possuem estruturas polipeptídicas contendo Fe ou S e nucleotídeos como FMN ou FAD (Tabela 15.1). Os componentes da cadeia respiratória diferem em suas tendências de perder elétrons. Essas tendências podem ser expressas pelos seus potenciais padrão de oxidorredução, que são medidos em condições especiais, fora do meio celular. Essa medida é feita pela diferença de potencial gerada quando uma solução contendo 1M de agente oxidante e 1M de agente redutor, em 25°C e pH 7, estiver em equilíbrio com um eletrodo capaz de aceitar elétrons do agente redutor. O valor encontrado é o potencial de oxidorredução. Quanto maior esse valor, maior será a tendência de um determinado composto perder elétrons. Assim, considerando os valores mostrados na Tabela 15.2, temos o ubiquinol, a forma reduzida da ubiquinona, com uma maior tendência em ceder seu par de elétrons para o citocromo c1. Este tem uma maior tendência em ceder elétrons para o citocromo c, este para o citocromo a, em seqüência para o citocromo a3, e deste para o aceptor final da cadeia respiratória, o oxigênio. Página 218 Essa transferência de elétrons resulta em dois acontecimentos: (1) ejeção de prótons para fora da mitocôndria com conseqüente formação de um gradiente de H+. (2) Formação de um potencial de membrana entre as faces externa (espaço intermembranas) e interna (matriz) da membrana interna. Ambos os eventos são fundamentais para que ocorra a fosforilação oxidativa do ADP. Tabela 15.1 Características dos complexos protéicos presentes na cadeia respiratória. É preciso ficar bem claro que, ao contrário do que parece ocorrer especialmente quando se observa a Figura 15.14, os complexos de transferência de elétrons não se situam linearmente na membrana mitocondrial e os diferentes complexos não estão presentes em quantidades equimolares. Alguns estudos sobre componentes da cadeia respiratória, junto ao conhecimento que hoje se tem do caráter dinâmico do atual modelo de membrana, têm sugerido que o citocromo c pode se difundir rapidamente de um complexo para outro, não ficando, portanto, fixo em um complexo, e que as movi- Tabela 15.2 Valores de potenciais redoxi para componentes da cadeia respiratória e número de elétrons envolvidos. Página 219 mentações dos citocromo c, ubiquinona e dos próprios complexos como um todo ocorrem em velocidades diferentes, o que significa que não podem estar fincados todos juntos na bicamada lipídica. Essas informações nos ajudam a ter uma visão dinâmica da cadeia respiratória na mitocôndria. Fosforilação oxidativa A transferência de um par de elétrons do NADH+H+ para o O2 envolve a liberação de grande quantidade de energia G0', que está diretamente relacionada com a variação de potencial redoxi E0'. Considerando os valores de E0, mostrados na Tabela 15.2, a variação de EO' (E0’), quando um par de elétrons caminha de NADH+H+ ao O2 é: Eo’ = Eo’(O2/H2O) - Eo’(NADH+H+/NAD) = 0,82 - (- 0,32) = 1,14 volts A variação de energia livre (Go’) pode ser obtida pela fórmula Go’ = -nFEo’, na qual n é o número de elétrons e F é a constante de Faraday = 23.060 cal-1mol-1. Assim, quando um par de elétrons é transferido, temos: Go’ = -2 x 23.060 x 1,14 = -52,6 Kcal/mol Esse valor negativo significa que, quando um par de elétrons passa do NADH+H+ para o O2, ocorre uma diminuição de quase 53 Kcal. Se comparado esse valor com a variação de energia livre na formação do ATP: ADP + Pi Kcal ATP + H2O Go’ = +7,3 verifica-se que a quantidade de energia liberada, durante a transferência de 2 elétrons do NADH+H+ para o O2, é bem maior do que a quantidade de energia necessária para a síntese de 1 molécula de ATP. Sabe-se, contudo, que apenas 3 moléculas de ATP são sintetizadas para cada 2 elétrons transferidos na cadeia respiratória. Portanto, apenas 42% da energia liberada na cadeia respiratória é aproveitada para a síntese de ATP, sendo o restante da energia parte utilizada para o transporte através da membrana mitocondrial, e parte perdida na forma de calor. A explicação físico-química para a síntese de ATP, acoplada à transferência de elétrons na cadeia respiratória, teve início na Inglaterra com os estudos de P. Mitchell em 1961, quando propôs a hipótese quimiosmótica, testada experimentalmente por vários pesquisadores durante as décadas de 1960 e 1970. Mitchell ganhou o Nobel de Química pelo seu trabalho nesta área, em 1978. A teoria quimiosmótica afirma que, com a passagem de elétrons na cadeia respiratória, ocorre uma ejeção de prótons da matriz para o espaço intermemPágina 220 brana e mesmo para fora da mitocôndria, gerando um gradiente de H+ (ou gradiente de pH) entre o meio externo e interno da mitocôndria. Este gradiente de H+ e o potencial de membrana () somados resultam em uma força chamada força próton-motiva (fpm): fpm = pH + . A fpm pressiona o H+ a retornar para a matriz mitocondrial. A membrana interna é impermeável a H+, contudo os prótons podem passar para o interior da mitocôndria via complexo ATP sintase (Figura 15.15). Esse complexo, também chamado de complexo F0F1, é constituído de um pedúnculo, F0 (complexo protéico sensível ao antibiótico oligomicina), embutido na bicamada lipídica, e de uma estrutura denominada F1, contendo o sítio catalítico, constituída de 5 subunidades diferentes, com a seguinte composição estequiométrica (Figura 15.16). A porção F0 é composta também de várias subunidades, cujo número pode variar de espécie para espécie. No caso mostrado da Figura 15.16, a F0 é composta de 3 subunidades diferentes representadas como ab2c11. Recentemente foi demonstrado que existe um acoplamento químicomecânico entre F1 e F0. Com a passagem de prótons através de F0, ocorre rotação de , e c11, que é traduzida em mudanças conformacionais nas subunidades catalíticas presentes em F1, que resultam na síntese de ATP. Provavelmente essas mudanças conformacionais são transmitidas com a participação dos componentes estacionários ab2, que não sofrem torção à medida que c11 estão em rotação. Vários trabalhos com o complexo F0F1 têm sugerido que a rotação ocorre em três etapas, com um pequena pausa entre elas, que corresponderiam a três estados conformacionais, respectivamente nas subunidades da F1 . Esses estados conformacionais poderiam representar: os sítios que acomodam ADP e Pi em uma das partículas , o ATP já formado em outra subunidade , e em uma terceira subunidade, a liberação do ATP formado (Figura 15.17). O gradiente de prótons não serve somente para a síntese de ATP em mitocôndrias, mas permite o transporte ativo de Ca+2 e metabólitos e serve também para o transporte de carboidratos e aminoácidos em bactérias. Em cloroplastos, é fundamental para a fotofosforilação do ADP, em processo muito semelhante ao que ocorre em mitocôndria. Rendimento de ATP Para cada molécula de NADH+H+ que cede 2 elétrons na cadeia respiratória são produzidas 3 moléculas de ATP, enquanto cada molécula de FADH2 que cede 2 elétrons vai gerar 2 moléculas de ATP. Assim, temos que, dentro da mitocôndria, 2 moléculas de NADH+H+ são produzidas pela desidrogenação de 2 moléculas de piruvato, 3 NADH+H+ e 1 FADH2 são formadas, para Página 221 cada molécula de acetil-CoA que entra no ciclo de Krebs, e 1 GTP que imediatamente é transformado em ATP produzido metabolicamente, em uma das reações do ciclo de Krebs. Dessa forma, teremos uma produção de 15 moléculas de ATP para cada molécula de piruvato que entra na mitocôndria. É preciso considerar que fora da mitocôndria também são produzidas moléculas de NADH+H+ (ver etapas 5 e 6 da glicólise na Figura 15.7), que não conseguem atravessar a membrana interna da organela. Por outro lado, existem mecanismos que podem transferir elétrons do NADH+H+ citoplasmático para a cadeia respiratória. Um desses mecanismos envolve a ação da enzima glicerol-3-fosfato desidrogenase citoplasmática, que utilizando os H do NADH, catalisa a redução da dihidroxiacetona em gliceraldeído-3-fosfato (Figura 15.18), que alcança a membrana interna da mitocôndria. Nessa membrana interna, voltada para o espaço intermembrana, uma outra enzima, a glicerol-3-fosfato desidrogenase mitocondrial, que tem o FAD como grupo prostético, vai transferir elétrons do glicerol-3-fosfato, para a ubiquinona, na cadeia transportadora de elétrons. Uma outra forma de se aproveitar os H do NADH citoplasmático é pela ação da enzima malato desidrogenase, que transfere elétrons do NADH para o oxaloacetato, formando malato (Figura 15.19). Este atravessa a membrana interna mitocondrial com a ajuda de um transportador de membrana, e na matriz mitocondrial sofre desidrogenação pela ação da malato desidrogenase mitocondrial que tem NAD como coenzima, regenerando oxaloacetato e formando NADH+H+, que vai ceder elétrons no início da cadeia respiratória. O oxaloacetato formado não consegue atravessar a membrana interna da mitocôndria para retomar ao citoplasma, mas ao sofrer uma reação de transaminação, é convertido em aspartato, e para esse aminoácido existe um transportador que permite a sua passagem para o citosol. No citosol, também por uma reação de transaminação, o oxaloacetato é regenerado e assim está pronto para receber os H do NADH citoplasmático, completando-se o ciclo. O efeito final desse processo é como se o NADH produzido no cito sol passasse diretamente para o interior da mitocôndria e fosse ceder seus elétrons no início da cadeia respiratória, e levar à produção de três moléculas de ATP. Todo esse mecanismo é conhecido como o dispositivo malato-aspartato, pois malato é a molécula que "carrega" os H dos NADH citoplasmáticos e aspartato é o componente que retorna ao citoplasma e regenera o oxaloacetato (Figura 15.19). Outras atividades metabólicas Após a ação de lipases e fosfolipases, os ácidos graxos resultantes podem atravessar a membrana mitocondrial, graças à complexação com carnitina. Esse complexo se desfaz tão logo chegue no interior da mitocôndria, liberando novamente a longa molécula de ácido graxo. Dentro da organela, os ácidos graxos são degradados por uma seqüência de reações, chamada de -oxidação de ácidos graxos. Neste processo, os ácidos graxos vão perdendo seus carbonos na forma de acetil-CoA e também ocorre redução de NAD e FAD, que acabam cedendo seu par de elétrons na cadeia respiratória. O acetil-CoA liberado é, por sua vez, aproveitado no ciclo de Krebs. Outra participação importante das mitocôndrias é no ciclo da uréia. A formação desse composto ocorre no fígado de animais ureotélicos, isto é, animais como muitos moluscos e anfíbios terrestres e mamíferos em geral que vivem em ambiente em que a água é limitada e que tem a uréia como principal produto final nitrogePágina 222 nado. Nesse processo, dois grupos amino, derivados de aminoácidos, e uma molécula de CO2, dão origem a uma molécula de uréia, que é transportada pela corrente sangüínea até os rins e então, excretada. Um daqueles grupos amino se origina no interior da mitocôndria de célula hepática por desaminação de glutamato. O grupo amino vai fazer parte da molécula de citrulina que sai da mitocôndria (Figura 15.20) e, no citosol, resulta na formação de uréia, que transportará o NH3 formado na matriz mitocondrial. As mitocôndrias também participam da produção de hormônio esteróide. O colesterol produzido nas membranas do retículo endoplasmático é lançado no cito plasma, atravessa a mitocôndria e, na sua membrana interna, é transformado em pregnenolona, que então retorna ao retículo, onde é finalmente transformado em testosterona. Uma outra função das mitocôndrias ocorre em alguns tecidos adiposos de recém-nascidos e também de alguns animais durante a hibernação. Nestes casos, ocorre a expressão de uma proteína chamada termogenina, que torna a membrana externa permeável aos prótons, desacoplando o transporte de elétrons da síntese de ATP. A energia liberada durante o transporte de elétrons é então perdida na forma de calor, que nos casos citados é altamente benéfico, tanto para o recémnascido como para o animal que está hibernando. Biogênese As mitocôndrias são formadas a partir da divisão e crescimento de mitocôndrias preexistentes (Figura 15.17). Embora as mitocôndrias contenham DNA, este não Página 223 Figura 15.19 Dispositivo do Malato-Aspartato. O malato transporta os H do NADH citoplasmático para o interior da mitocôndria. Na matriz mitocondrial o malato se oxida, reduzindo o NAD que passa a ser NADH+H+. Observe que nesse processo estão envolvidas outras reações importantes. No meio extracelular o aspartato sofre transaminação, perdendo o seu grupamento -NH3+ para o cetoglutarato (KG), assim o aspartato é convertido em oxaloacetato, que então é reduzido pelo NADH e pela enzima Malato Desidrogenase, formando malato, que atravessa a membrana interna da mitocôndria por um sistema de transporte que simultaneamente coloca KG para fora da mitocôndria. O malato, já dentro da organela ao ser oxidado pela Malato Desidrogenase e pelo NAD, forma oxaloacetato que sofre transaminação, regenerando aspartato. Nessa reação de transaminação o -NH3+ é transferido do glutamato para o oxaloacetato, regenerando aspartato e formando KG. Note que glutamato tem que ser continuamente transportado para dentro da mitocôndria, e KG, continuamente transportado para fora da mitocôndria. Página 223 contém todas as informações necessárias para que a organela possa viver independentemente do resto da célula. Embora a organela tenha condições de realizar todos os processos de replicação, transcrição e tradução, apenas 13 proteínas são codificadas pelo DNA mitocondrial. Vários componentes necessários para a própria expressão gênica, como proteínas ribossomais, aminoácidos e a maioria das enzimas do ciclo de Krebs, são provenientes do citosol (Tabela 15.3). Para que as proteínas possam entrar na mitocôndria, primeiro é necessário que elas sejam reconhecidas pela organela, o que é possível devido à presença de seqüências sinais, que dirigem as proteínas para o compartimento adequado dentro da mitocôndria. Essas seqüências são geralmente removidas por proteases, impedindo, assim, que as proteínas portadoras daquelas seqüências possam retomar para o citosol. Um aspecto que também não pode ser ignorado na importação de proteínas pela mitocôndria é a presença de chaperones, ou moléculas companheiras, que, às custas de ATP, impedem que as proteínas assumam conformações inadequadas. Duas chaperones particularmente importantes são a hsp 70 e hsp 60. Um outro fato fundamental para a translocação de proteínas é a existência de um potencial de membrana (), como visto anteriormente. Defeitos mitocondriais Defeitos mitocondriais têm sido detectados em várias doenças, especialmente aquelas que envolvem tecidos que necessitam de uma alta demanda energética proveniente de respiração, como tecido muscular, onde a miopatia mitocondrial leva a uma fraqueza do músculo, ou como no tecido nervoso, onde uma neuropatia ou encefalopatia decorrentes de mutações em genes para síntese de proteína mitocondrial podem resultar Página 225 em epilepsia e/ou cegueira. Nestes últimos 10 anos, mais de 150 registros de mutações em DNA mitocondrial têm sido relacionados com uma variedade de doenças degenerativas. Outras doenças também foram relacionadas com mutações em genes nucleares, afetando especialmente a fosforilação oxidativa ou a biogênese mitocondrial. Os defeitos relacionados com a bioenergética da mitocôndria são acompanhados de um aumento na taxa de lactato na circulação, sendo por isso um importante dado para a diagnose. Além disso, outras evidências de natureza estrutural também têm sido identificadas, como mitocôndrias vacuolizadas com poucas cristas ou com cristas semelhantes a favos de mel ou a redemoinhos concêntricos. Os defeitos mitocondriais também podem ser rapidamente detectados por meio de ensaios enzimáticos para algumas enzimas específicas, como piruvato desidrogenase, citocromo oxidase e ATP sintase. O seqüenciamento de DNA mitocondrial também permite que se detecte precisamente o sítio do defeito genético. Origem Existem duas teorias para explicar a origem das mitocôndrias. Uma delas afirma que a mitocôndria surgiu de uma associação simbiótica entre um eucarioto anaeróbico e um procarioto aeróbio. A outra teoria, não simbiótica, defende a idéia de que a mitocôndria deve ter surgido de um processo que envolvia invaginação de membrana de um procarioto, contendo componentes da cadeia respiratória e complexo ATP sintase, seguido do desprendimento daquele segmento de membrana e subseqüente incorporação de fragmento de molécula de DNA. Hoje, há fortes indicações de que as mitocôndrias tenham origem simbiótica. Alguns aspectos que favorecem essa teoria são: (1) a dupla hélice de DNA encontrada em mitocôndrias é circular, como ocorre em bactérias; (2) os mitorribossomos têm um coeficiente de sedimentação em torno de 55S, sendo, portanto, mais próximo daquele encontrado em bactérias, que é de 70S, enquanto os ribossomos encontrados no citosol de eucariotos têm 80S; (3) a síntese de proteínas em mitocôndrias é inibida por cloranfenicol, o mesmo antibiótico que inibe a síntese de proteína em procarioto, porém, no citosol, a síntese é inibida por cicloheximida; (4) o aminoácido iniciador da síntese de proteínas em mitocôndria é o formil-metionina, da mesma forma que ocorre em bactérias. O genoma mitocondrial dos animais, em geral, carrega uma quantidade mínima de genes, juntamente com algumas seqüências não-codificadoras, mas que servem para regular a atividade gênica. O tamanho compacto do genoma das mitocôndrias de hoje provavelmente é resultado de uma gradual transferência de genes da mitocôndria para o genoma nuclear. Referências bibliográficas 1. Gray MW, Burger G, Lang BE. Mitochondrial evolution. Science 1999; 283: 1476-81. 2. Race HL, Herrman RG and Martin W. Why have organelles retained genomes? Trends in Genetics 1999; 15: 364-70. 3. Sarasate M. Oxidative phosphorilation at the fin de siècle. Science 1999; 283: 1488-93. 4. Wallace DC. Mitochondrial diseases in man and mouse. Science 1999; 283: 1482-8. 5. Yaffe MP. The machinery of mitochondrial inheritance and behavior. Science 1999; 283: 1493-7. 6. Yasuda R, Noji H, Yoshida M, Kinosita K, Itoh H. Resolution of distinct rotational substeps by submillisecond kinetic analysis of F1- ATPase. Nature 2001; 410: 898-904. 7. Kaim G, Prummer M, Sick B, Zumofen G, Renn A, Wild UP, Dimroth P. Coupled rotation within single F0P1 enzyme complexes during ATP synthesis or hydrolysis. 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