A DANÇA DO PODER NAS INSTITUIÇÕES SOCIAIS: REFLETINDO

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A DANÇA DO PODER NAS INSTITUIÇÕES SOCIAIS: REFLETINDO
O ATENDIMENTO AOS MENINOS EM SITUAÇÃO DE RUA.
Carlos Alberto Batista Maciel*
RESUMO: Este trabalho resulta de uma discussão analítica que envolve poder e socialização nos
programas de atendimento aos meninos em situação de rua. Tem como objetivo refletir sobre o processo
de comunicação recíproca entre as organizações sociais e os grupos de meninos em situação de rua com
base na sociologia e na antropologia.
1 INTRODUÇÃO
Este texto constitui-se em um fragmento de nossa dissertação de mestrado em
antropologia social realizado na Universidade Federal do Pará. A reflexão que é
apresentada foi organizada em duas partes seqüenciais. A primeira parte é destinada à
discussão teórica sobre o poder com o auxílio da sociologia e da antropologia. A
segundo parte destina-se a uma problematização sobre a presença do poder na
sociabilidade existente nas organizações sociais de atendimento aos meninos em
situação de rua e nos próprios grupos sociais de meninos em situação de rua, assim
como na relação entre as organizações sociais e os grupos de meninos em situação de
rua.
2 PODER: UMA DISCUSSÃO TEÓRICA
O exercício de refletir sobre o poder nos obriga a buscar fundamentos teóricos
que possam dar pistas importantes para a construção de uma abordagem de cunho
acadêmico.
É assim que a compreensão de Max Weber sobre o poder, em reflexões teóricas,
oferece as primeiras pistas relevantes para a problematização que propomos fazer neste
capítulo.
Para Weber, o poder expressa “a possibilidade de um homem ou de um grupo de
homens realizar sua própria vontade.... mesmo contra a resistência de outros...” (Weber,
1991: 81)
Nessa linha de raciocínio o poder não é compreendido como uma substância que
alguém pode adquirir ou possuir a partir de determinantes subjetivos, mas a expressão
de uma dada realidade que apresenta as condições objetivas que implicam na
possibilidade de uma ação de sobrepujança da vontade de um, ou de uns, sobre a
vontade de um ou de outros.
Essa possibilidade de ação do poder, deve ser vista sob a ótica de uma categoria
estreitamente vinculada à realidade, haja vista que esta é a expressão de uma realidade
ainda não existente, assim como a realidade manifesta algo que existia anteriormente,
somente como algo possível (Cheptulin, 1982).
Nesse sentido, os dizeres de Max Weber procuram evidenciar que o poder não é
um ente abstrato, mas algo que se materializa nas ações humanas, ou seja, algo concreto
e objetivo que se expressa nas relações sociais entre os homens que produzem tais
condições em que o poder se manifesta.
*
Assistente Social, doutor em Sociologia e Professor da graduação e da pós-graduação em Serviço
Social da Universidade Federal do Pará, e-mail: [email protected]
Desta forma, o poder apresenta-se como algo que se manifesta, ou seja, que se
exerce objetivamente nas relações humanas. Corroborando assim, com Foucault em
“Vigiar e Punir”(1998), que aponta para que o poder:
“não seja concebido como uma propriedade1, mas como uma estratégia, que seus efeitos de
dominação não sejam atribuídos a uma ‘apropriação’, mas a disposições, a manobras, a táticas,
a técnicas, a funcionamentos; que se desvende nele antes uma rede de relações sempre tensas,
sempre em atividade, que um privilégio que se pudesse deter; que lhe seja dado como um
modelo antes a batalha perpétua que o contrato que faz uma cessão ou a conquista que se
apodera de um domínio. Temos em suma, que admitir que esse poder se exerce mais que se
possui, que não é o ‘privilégio’ adquirido ou conservado da classe dominante, mas o efeito de
conjunto de suas posições estratégicas – efeito manifestado e às vezes reconduzido pela
posição dos que são dominados.” (Foucault, 1998: p. 26)
Nessa ótica, podemos chamar a atenção para o fato de que os elementos
teorizados acerca do poder expressam uma discussão mais sobre sua ação em si, do que
propriamente sobre a conceituação de poder. No entanto, as reflexões apresentadas já
permitem o vislumbramento de caminhos bastante interessantes sobre o pensar a
respeito do poder.
Ora, se o poder é algo que se exerce, ou seja, que se manifesta nas relações
humanas, objetivas e concretas entre os homens, seja como uma ação em si ou como
uma possibilidade de fazer com que esse exercício possa ocorrer, acreditamos que deve
existir provavelmente um campo fertilíssimo de discussão sobre a composição dessas
relações. Relações estas, onde o poder tem a possibilidade de ser exercido.
Em uma reflexão que evidencie questões sobre a composição dessas relações em
que o poder pode se manifestar, tendemos a acreditar que a expressão do poder somente
pode ocorrer devido uma determinada conjunção de elementos nas relações em que são
operadas as manifestações do poder.
Ou seja, o poder se manifesta, ou se exerce numa relação de mutualidade entre
os atores que exercem ou são objetos desse exercício. Daí porque Martin (1978: p. 62)
destaca Bukley em seu trabalho, que considera o poder como “um tipo de fluxo de
informação, cujo significado depende das práticas de ‘codificação’ do recipiente.” Por
isso, “o poder é uma propriedade2 de uma relação, não dos indivíduos nessa relação: o
poder é um modo específico de comunicação, um sinal”.
Nesse sentido, temos um interesse particular em discutir um pouco mais sobre a
composição dessas relações, ou seja, devemos problematizar mais sobre os elementos
que formam e constituem essa relação, em que o poder pode ser visto como uma
propriedade específica da mesma relação.
Partindo então, de que o poder é uma propriedade de uma relação, obviamente
que esta relação se apresenta com uma dada configuração, com uma dada formatação,
se quisermos utilizar um termo mais moderno.
Assim, essa relação faz parte de uma dada estrutura, e como tal, está integrada
por uma rede de componentes estruturais e conjunturais, que combinados, desenham a
própria relação. O poder para ser exercido em uma dada relação, deve partir de que
existe uma dada estrutura referencial compartilhada pelos atores que estão manifestando
a ação do poder, assim como por aqueles que se tornam os receptores da ação em si.
1
A propriedade aqui é concebida como objeto de posse privada.
Diferentemente de Foucault, a propriedade aqui deve ser compreendida como componente,
característica, qualidade
2
Podemos buscar os ensinamentos de Lévi–Strauss no seu livro “Antropologia
Estrutural” (1993), que ao discutir a noção e a definição de estrutura em etnologia alerta
para o fato de que “a noção de estrutura social não se refere à realidade empírica, mas
aos modelos construídos em conformidade com esta” (p. 315). Daí porque, acrescenta
que as “relações sociais são a matéria prima empregada para a construção dos modelos
que tornam manifesta a própria estrutura social” (p.316).
Podemos afirmar que as relações em que o poder é exercido, partem de uma
estrutura que se apresenta como a referência pela qual estas relações sociais são
construídas, desenhando um mosaico complexo, objetivo e real para os atores
envolvidos na ação do poder.
Desta forma, o poder não pode ser confundido com as relações em que pode se
manifestar, mas, certamente como uma parte integrante dessas relações. Para que sejam
compreendidas e entendidas, é necessário que desvendemos a estrutura à qual estão
relacionadas.
Nesse exercício investigativo, as relações sociais em que emergem as ações de
poder, apresentam-se como a matéria prima relevante para que seja mapeada a estrutura
social constituinte da natureza destas mesmas relações.
É nesse sentido, que queremos oferecer uma reflexão diferenciada para a
compreensão do atendimento social junto aos meninos em situação de rua. Queremos
assim, refletir questões sobre os componentes das relações de sociais em que é exercido
o poder no atendimento aos meninos em situação de rua.
Acreditamos que, nessa relação, os elementos culturais tem uma relevância
significativa no processo de exercício do poder, seja na ação realizada, seja na
possibilidade de ação como afirma Weber.
Por que queremos destacar os componentes culturais nesse exercício reflexivo?
Ora, ao partirmos de que o poder se manifesta em uma relação social entre atores,
cremos que existe um “caldo” cultural em que esses atores estão envolvidos e
mergulhados, e que, como tal, é importantíssimo para a exposição de pistas relevantes
para compreender como o poder se processa e qual o seu alcance entre esses atores.
Assim sendo, o poder ao ser exercido indica uma ação de dominação e
subordinação que ocorre entre atores da relação, evidenciando uma nítida relação entre
dominantes e dominados.
Não podemos acreditar que a relação de dominação ocorra mecanicamente, mas
sim como a síntese de uma rede complexa de determinações, que se combinam e
constroem o quadro em que o poeer se manifesta.
Nesse sentido, o poder como exercício ou possibilidade de exercício somente
tem sentido “quando inserido em um sistema de significação, no qual a ameaça que
comporta seja identificada e considerada” (Rodrigues, 1992: p. 37), daí porque deve
existir uma relação de mutualidade entre o que domina e o que é dominado na ação do
poder.
Podemos lembrar, como alerta Pierre Bourdieu (1998: p.86) para o fato de que,
ao acreditarmos que a dominação se atribui a:
“uma vontade única e central, ficamos impossibilitados de apreender a contribuição própria
que os agentes (incluindo os dominados) dão, quer queiram quer não, quer saibam quer não,
para o exercício da dominação, por meio da relação que se estabelece entre as suas atitudes,
ligadas às condições sociais de produção, e as expectativas e interesses inscritos nas suas
posições no seio desses campos de luta, designados de forma estenográfica por palavras como
Estado, Igreja ou Partido.”
É por isso que, tendemos a compreender que, tanto o que exerce o poder, quanto
aquele que sofre ação do poder, devem estar mergulhados e envolvidos pela mesma rede
de significados que tornam válido o poder, na medida em que este tem a possibilidade
de ser exercido para ambos.
Ou seja, é “necessário que os dominados ‘dominem’ os códigos de pensamento e
sentimento que lhes possibilitem desempenhar o papel social de subordinados. É isso
que lhes permite (ou obriga, tanto faz) comportar-se de modo ‘adequado’ como
submissos.” (Rodrigues, 1992: 38)
Isso quer dizer, claramente, que existe uma relação de reciprocidade entre o que
domina e o que é dominado, ou seja, que na relação social em que o poder é exercido,
existe uma relação de troca entre os atores, entre os agentes da ação.
Este caráter recíproco do poder, tende a nos empurrar para um caminho que
problematiza e complexifica ainda mais as relações sociais em que o poder é exercido,
assim como no desvendamento da rede de significados que podem explicar quais os
elementos que estarão em jogo no momento do exercício do poder.
Ora, ao crermos que existe uma mutualidade na relação não podemos ocultar que
os significados compartilhados pelos dominantes e dominados podem ter “pesos”
diferentes para ambos. Isto não faz com que percam essa condição de reciprocidade,
mas a torna mais complexa e instigante.
Foucault (1998), chama a atenção de que os homens, os grupos, as instituições e
as classes sociais são veículos de circulação do poder na sociedade. E como tal, o poder
se manifesta na teia de relações sociais constituídas e construídas nos grupos, nas
organizações, nas instituições sociais que formam a sociedade.
Assim, a estrutura da sociedade diz respeito a um sistema de significação desta,
mesmo que esta mesma, ao se especializar e complexificar, gere o aparecimento de
subuniversos de significação que “podem decorrer da acentuada especialização dos
papéis, ao ponto de tornarem-se sagrados, onde somente os membros deste subuniverso
podem ter acesso” (Berger, 1985)
Nesse sentido, o poder pode ser visto como “um fenômeno de comunicação e
significação inscrito e enquadrado em um contexto cultural, este mesmo embebido de
poder, comunicação e significação” (Rodrigues, 1992: p.42).
Como um fenômeno de comunicação e significação, o poder faz parte da
estrutura social, em que esta mesma funciona como o arquétipo de todo um grupo, de
toda uma sociedade. Isto porque, a estrutura de uma sociedade expressa uma dada
realidade, construída em uma amálgama produzida pelo homem e no homem, pois “os
homens em conjunto produzem um ambiente humano, portanto, o homem sozinho não é
um homem sozinho, ele não produz um ambiente humano sozinho” (Berger, 1985).
Ora, as organizações e instituições constituem-se de forma a parametrar os
limites e as fronteiras entre o aceito e o não aceito socialmente, criando mecanismos de
controle sobre as condutas dos próprios homens que constroem a própria sociedade.
No processo socializador existente em uma dada sociedade o homem vai
aprendendo a “verdade” objetivada através da linguagem, do comportamento, das
regras, da moral e de todo o conjunto de elementos responsáveis por esta rede de
socialização que os indivíduos vão passando, em que um corpo de conhecimento sobre a
sociedade é “objetivado como verdades válidas sobre a realidade” e que “qualquer
desvio da ordem institucional representa afastamento da ‘realidade’ aceita” (Berger,
1985) e legitimada pelos membros dessa sociedade.
Assim, toda estrutura social se organiza de forma particular e própria,
expressando sua objetividade através de uma complexa malha de componentes:
instituições, organizações sociais, tradições, leis, morais e outros.
Particularmente, a sociedade moderna é uma sociedade de organizações, como
afirma Motta (1996), em que o “homem organizacional vê as relações de dominação
serem reproduzidas diante dele, através dele e por meio dele”. Ou seja, o homem é o
produtor e o reprodutor das relações que o atingem, que o envolvem, que o controlam e
que o dominam.
Obviamente não estamos querendo afirmar que vivemos sob uma situação de
fatalidade absoluta em que os homens não podem escapar do controle social que as
instituições impõem em uma dada sociedade, mas que um sistema social para
sobreviver e existir estabelece formas de controle, de dominação e de alienação para o
conjunto de seus membros.
Por isso, é bom lembrar Berger (1985), quando este afirma que “é impossível
considerar uma sociedade que ocorra a institucionalização total das condutas, assim
como é impossível conceber uma sociedade que não haja nenhuma institucionalização
de conduta”.
Ou seja, podemos dizer que ninguém vive fora da sociedade, assim como
podemos afirmar que ninguém vive total e irrestritamente controlado por essa mesma
sociedade.
Desta forma, o poder existente e presente em uma dada sociedade faz parte da
organização desta, o que “permitiria a uma sociedade se constituir em um sistema
íntegro, protegendo-a em suas fronteiras interiores e exteriores de tudo o que fosse
capaz de decretar a ruína de sua sistematicidade” (Rodrigues, 1992: p. 42).
Assim, o poder, a maneira de um vírus “contaminaria todas as relações sociais”
(Idem, p.42). O poder, desta maneira, estaria presente, mesmo quando não convidado,
no conjunto das relações humanas, penetrando em todas as instituições sociais, em todas
as formas de organizações humanas, moldando e transformando os atores dessas
relações.
O poder estenderia suas influências visceralmente, constituindo-se objetiva e
subjetivamente num estilo, num modelo de manifestação e expressão, impregnando
assim o modus vivendi dos seres humanos. Este estaria presente, construindo-se “em
cada mínima ação e relação. Seria eficácia, ao mesmo tempo simbólica e material, que
se insinuaria sempre como necessidade visceral. Reproduzir-se-ia através da tecnologia,
mas também como tecnologia; através do saber, mas também como saber; através de
corpos, mas também como corpos; da vida, como vida; da morte, como morte”. (Idem,
p.43)
Desta maneira, o poder estaria presente no processo de composição do jogo das
relações que ele mesmo necessita para se manifestar, para que seja exercido. Presente
como processo e como produto do processo, como estruturante e como estruturado,
como instituinte e como instituído pelos atores e nos atores que o manifestam subjetiva
e objetivamente.
Aos moldes de uma confecção, o poder é tecido por todos aqueles que ficam
aprisionados na própria teia que ajudaram a construir. E que, depois de “pronta e
acabada”, via de regra, os atores responsáveis por sua construção fixam-se no produto
acabado, deixando de vislumbrar a contribuição individual e coletiva no processo de
elaboração e construção das relações de poder que estão envolvidos.
3 A DANÇA DO PODER NAS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS E NOS GRUPOS DE
MENINOS EM SITUAÇÃO DE RUA
As organizações sociais de atendimento aos grupos meninos em situação de rua,
sejam elas governamentais ou não governamentais, assim como os próprios grupos de
meninos em situação de rua apresentam uma característica em comum: são grupos
sociais, na medida em que um “grupo é constituído por um conjunto de pessoas em
relação uma com as outras e que se uniram por diversas razões” (Lapassade, 1983:
p,65).
Enquanto grupos sociais, se distinguem pela natureza da organização de cada
um, haja vista que sua origem, composição e formação estruturam-se a partir de um
processo institucionalizador particular, decorrente de fatores e componentes singulares
na constituição de cada grupo social.
Assim, a particularidade experienciada por cada grupo social manifesta “o
elemento vivido de uma ordem estruturante, institucional, que traduz, no grupo, a
organização da sociedade, e principalmente a sua organização política, a da produção”
(Idem, p.195).
Desta forma, os grupos de meninos em situação de rua, também estão sujeitos a
um conjunto de vetores e fatores presentes em todos os demais grupos sociais. Portanto,
os diferentes grupos sociais têm um ordenamento estruturante e fazem parte da
composição estruturada e estruturante da sociedade.
É por isso que existem modelos de conduta discrepantes perfeitamente
institucionalizados e “carimbados”, o que não significa necessariamente que esses
modelos sejam controlados irrestritamente pela sociedade. É assim que na própria
sociedade existem “regras para a ruptura de regras, poderosamente postas pelo poder à
disposição daqueles que o queiram contestar”, ora, não é assim que podemos encontrar
em nossas cidades ”sempre lugares e horários demarcados, destinados pelo poder para
que certas regras sejam regulamentarmente rompidas e o poder questionado ? Lugares e
horários para as transgressões sexuais, que ao mesmo tempo as classificam e a
enquadram (aqui prostitutas, ali travestis, lá michês, acolá sapatões...), para as
transgressões religiosas, para as contravenções, para a vagabundagem...” (Rodrigues,
1992: p.25)
Desta forma, para efeito desse trabalho, passaremos a distinguir diferentemente
os grupos sociais propostos nesse trabalho em: organização social e grupo social
propriamente dito. A organização social será considerada por nós como “uma
coletividade instituída com vistas a objetivos definidos tais como a produção, a
distribuição de bens, a formação de homens” (Laoassade, 1983: p.101). Ou seja, estará
ligada a um processo organizacional formalizado e burocrático, portanto estruturado e
instituído formalmente na sociedade.
Já o grupo social será denominado como a expressão de uma organização de um
coletivo (ou agregado) de pessoas caracterizado pela sua informalidade burocrática, o
que não o isenta de ser constituído em um processo institucionalizador estruturado e
estruturante também.
Desta maneira, as organizações sociais e os grupos sociais fazem parte da
construção, como também são construídos pela realidade social que estão submergidos,
a medida que estruturam e são estruturados por essa mesma realidade, num processo de
institucionalização permanente em que ocorrem a origem e a formação de
comportamentos institucionalizados, assim como a sedimentação de papéis sociais
inscritos e relacionados com o mesmo processo estruturador.
Por isso, o processo institucionalizador de uma organização ou de um grupo
social, implica em um conjunto de tipificações recíprocas de “ações construídas no
curso de uma história compartilhada” (Berger, 1985: p.79). Ou seja, a
institucionalização de condutas recíprocas compartilhadas expectam “padrões
previamente definidos de conduta, que a canalizam em uma direção por oposição às
muitas outras direções que seriam teoricamente possíveis” (Idem, p.80).
Daí porque, podemos afirmar que este processo expectante faz parte do caráter
controlador que “é inerente à institucionalização enquanto tal, anterior a quaisquer
mecanismos de sanções especificamente estabelecidos para apoiar uma instituição ou
independente desses mecanismos. Tais mecanismos (cuja soma constitui o que
geralmente se chama sistema de controle social) existem evidentemente em muitas
instituições que chamamos sociedades” (Idem, p.80)
Portanto, o processo institucionalizador que forma, constrói e mantém uma
organização ou um grupo social, enquanto processo estruturado e estruturante, tende a
ser absorvido pelos atores da institucionalização como fato objetivo e inegável. E como
tal, via de regra, como algo exterior aos atores de sua formação e manutenção.
Essa objetividade pela qual as organizações e grupos se manifestam, enquanto
instituições formadas, tendem a ser introjetadas como uma externalidade a-histórica ao
homem, como uma realidade construída e acabada. E, por conseguinte, “maior” que o
homem, a ponto dos atores históricos de sua formação se considerarem “pequenos”,
incapazes mesmo de modificarem o que é visto e sentido como o estabelecido, o
determinado, o acabado.
A maneira de um produto que reage sobre o seu produtor, a organização e/ou o
grupo social “exige” dos seus atores uma série de papéis sociais, uma série de condutas
e comportamentos. É por isso que “quanto mais a conduta é institucionalizada tanto
mais se torna predizível e controlada” (Idem, p.89).
Logo, cada organização ou grupo social somente poderá ser compreendido em
sua amplitude se for recuperada a sua historicidade, a fim de se evitar a armadilha da
pseudoconcreticidade presente na objetividade fenomênica.
Ora, como são realidades historicamente construídas e conseqüentemente
diferenciadas, portanto singulares, a relação recíproca entre as organizações sociais e os
grupos de meninos em situação de rua pressupõe a apreensão de um conjunto de
particularidades e especificidades sociais de cada um.
É na reflexão sobre a relação entre a organização social e o grupo de meninos
em situação de rua que surge a necessidade de discutirmos como se realiza essa relação,
esse diálogo entre ambas, ou seja, como se constitui esse processo de comunicação entre
os atores da organização social e os atores dos grupos de meninos em situação de rua.
Como ambos possuem suas respectivas organizações institucionais, é justo
afirmar que, possuem também suas representações e significações estruturadas e
estruturantes com particularidades próprias e características diferenciadas.
Podemos perguntar então: como manter o diálogo, a comunicação entre
subuniversos de significação institucionalizados tão particulares, tão distintos ?
Tanto a organização social, quanto o grupo de meninos em situação de rua,
decorrentes de seu processo institucionalizador, possuem seus objetivos e finalidades
particulares, como também um conjunto de papéis sociais, de significações, de capital
simbólico distinto (Bourdieu, 1998). Logo, possuem, cada um, uma trajetória histórica
própria, um caminho singular.
História marcada pelo conjunto de fatores que estiveram presentes em todo o
processo de formação e manutenção da organização social e do grupo social.
Devido a distinção básica que adotamos para diferenciar uma organização social
de um grupo social, podemos destacar que essa dessemelhança não implica dizer que
ambas são antagônicas ou dicotômicas, especialmente no que diz respeito a organização
do atendimento aos meninos em situação de rua.
Cada uma delas, a organização social e os grupos de meninos em situação de
rua, possuem suas visões de mundo, que exprimem distintamente “conjuntos
estruturados de valores, representações, idéias e orientações cognitivas” (Lowy, 1998).
Portanto, sua forma própria de interpretar o mundo ao redor e também de agir sobre ele.
Assim como a reflexão sobre o pensamento científico e o pensamento mágico,
proposta por Lévi – Strauss, não implica em uma dicotomia entre ambos, mas o fato de
que são sistemas independentes, pois o “pensamento mágico forma um sistema bem
articulado, independente da ciência...., em vez de colocar a ciência e a magia em
oposição, seria melhor coloca-las em paralelo, como dois modos de conhecimento
desiguais quanto aos resultados teóricos e práticos” (Lévi-Strauss, 1989), podemos crer
também que, tanto a organização social, quanto o grupo de meninos em situação de rua
possuem seus modos de ver e experienciar a vida desiguais e próprios, mas não
necessariamente opostos.
Ora, se a história institucionalizada e institucionalizadora da organização social e
do grupo de meninos em situação de rua é uma história singular, distinta, podemos
admitir que a relação de diálogo, de poder entre ambos será uma relação bastante
complexa.
Complexa pois cada um se constitui em um subuniverso de significações,
decorrente da segmentação institucional mais geral na sociedade, em que estes
”subuniversos de significação podem ser socialmente estruturados de acordo com vários
critérios, sexo, idade, ocupação, tendência religiosa, gosto estético“ (Berger, 1985:
p.117), problemas sociais, e outros.
Nessa relação, os técnicos da organização social e os meninos em situação de
rua expressam os subuniversos de que fazem parte, na medida em que os manifestam, os
“levam” e “carregam” o conjunto de significados relativos a cada subuniverso, pois
cada ator organizacional ou grupal “produz continuamente os significados em questão”
(Idem, p.118) , ao mesmo tempo em que validam o espaço onde esses significados têm
objetividade real.
Assim, o técnico da organização social ao desenvolver um trabalho com grupos
de meninos em situação de rua se depara com um subuniverso distinto do seu, mas que
necessita, devido ao objetivo organizacional, desenvolver uma aproximação, um
relacionamento, um atendimento com os atores deste subuniverso.
Orientado pelo conjunto de significações do subuniverso que faz parte, o técnico
desenvolve sua ação através de um modus operandi estruturado e estruturante na e pela
metodologia operacional de seu trabalho organizacional.
Esse modus operandi é orientado, ou melhor, direcionado explicita e
implicitamente pelo capital simbólico da organização social que o técnico está
vinculado, traduzido pelos e nos planos, programas, projetos, normas organizacionais,
leis, valores, representações, ideologias e outros que a organização possui.
Assim, a organização social terá, obviamente, diretrizes que apontam o caminho
a ser trilhado pelos técnicos organizacionais no atendimento aos grupos de meninos em
situação de rua.
Esse caminho ou caminhos, tende(m) a ser construído(s) a partir de uma leitura e
interpretação que a organização terá acerca dos meninos em situação de rua, assim
como dos condicionantes que formam e moldam os mesmos, haja vista que estes são o
objeto e objetivo da ação organizacional.
A organização social pode construir essa leitura e interpretação basicamente de
duas maneiras: se apropriando do conjunto de significados comuns compartilhados
pelos membros de toda a sociedade (presentes no senso comum) e adotá-los como
referência para a ação a ser realizada; ou se apropriando de uma elaboração construída
sobre a realidade dos grupos sociais em questão (manifesta no conhecimento científico).
É óbvio que, “como nem tudo que reluz é ouro”, o dito conhecimento científico
adotado pela organização social pode ser construído de forma a expressar uma
pseudocientificidade sobre os grupos sociais de meninos em situação de rua, na medida
que a própria ciência possui dogmas que contribuem mais para o ocultamento do que
para o desvendamento dos fenômenos sociais.
Ou seja, se a organização social parte de um conhecimento sobre a realidade dos
grupos de meninos em situação de rua que não expressem o real desse fenômeno, é
provável que toda a sua proposta de trabalho caminhará para uma direção que
obstaculizará o atendimento em si, não surtindo os efeitos e objetivos que essas
organizações expectam.
Ao destacarmos que a organização social desenvolve seu modus operandi a
partir de todo o capital simbólico que possui, não podemos esquecer que os grupos de
meninos em situação de rua também possuem seu próprio subuniverso de significações.
Ora, a condição dos grupos de meninos em situação de rua possuírem o seu
próprio subuniverso de significações, precisa ser considerada em todo o processo de
atendimento, pois isto implica dizer que os grupos de meninos em situação de rua
possuem uma realidade histórica particular também.
Dessa maneira, a trajetória histórica da formação de um grupo social de meninos
em situação de rua deve indicar elementos importantes e relevantes que precisam ser
observados na construção da metodologia operativa da organização social que estará
direcionando sua ação junto ao grupo social
Todavia, no processo do atendimento elaborado e operacionalizado pela
organização social junto aos grupos de meninos em situação de rua, tende-se a acreditar
que esta relação seja constituída, digamos, de forma direta. Assim, acredita-se
comumente que a relação de comunicação entre ambos se estabelece diretamente da
organização com os grupos sociais, dos grupos sociais com a organização social.
Essa forma de compreensão tende a fazer com que acreditemos que o
subuniverso de significações da organização social se comunicará com o subuniverso de
significações dos grupos sociais de meninos em situação de rua numa relação de
mutualidade e troca entre ambos. Isto, através dos atores significantes de cada
subuniverso.
Ou seja, cada ator dessa relação expõe, indubitavelmente, uma visão de mundo
objetivada pelas suas ações e reações na relação que é desenhada, estruturando e sendo
estruturada em um jogo de forças entre os mesmos atores sociais na relação.
“Se as relações de força objetivas tendem a reproduzir-se nas visões de mundo social que
contribuem para a permanência dessas relações, é porque os princípios estruturantes da visão
do mundo radicam nas estruturas objetivas do mundo social e porque as relações de força estão
sempre presentes nas consciências em forma de categorias de percepção dessas relações.”
(Bourdieu, 1998: p.142)
Dessa maneira, o jogo de forças estabelecido pelos atores da organização social
e dos grupos sociais manifesta a estrutura objetiva do mundo social que estes atores
fazem parte. Mundo social construído nos atores e pelos atores significantes na relação
de forças entre a organização social e os grupos sociais de meninos em situação de rua.
Daí porque acreditamos que essa relação é mais complexa, e que não existe
somente um relacionamento direto entre a organização social e os grupos sociais de
meninos em situação de rua. Mas, que existe, pelo menos, dois caminhos pelos quais a
relação se estabelece entre ambos
O primeiro caminho, uma relação direta entre a organização social e os grupos
de meninos em situação de rua, a partir dos subuniversos específicos que cada um
representa.
O segundo caminho, o relacionamento entre os dois pode ser constituído seria a
partir de um conjunto de valores e representações que é comum a estes subuniversos de
significação: a estrutura referencial que radica a origem destes dois subuniversos de
significações.
Por isso, talvez o caminho para o desvendamento desta questão seja justamente
vislumbrar que, tanto a organização social que atende as crianças de rua, quanto os
grupos de meninos em situação de rua, surjam e vivam em uma estrutura maior que é a
própria sociedade.
Nessa linha de raciocínio, a sociedade se torna o palco das relações entre esses
atores, ao mesmo tempo em que é a “água” que dá a vida a cada subuniverso de
significação, com suas características e particularidades distintas.
Em suma, existe uma estrutura maior que se constitui como a referência básica
para as diferentes formas de organização social existentes na sociedade. Daí porque
existe um corpo de conhecimentos, de significações que é comum para toda a sociedade
(Berger, 1985). Ou seja, se é comum à toda a sociedade é comum aos atores da
organização social e aos meninos em situação de rua.
Então, a relação de diálogo, de comunicação, de troca entre ambos pode ser
efetivada também a partir desse campo comum de significações. Especialmente quando
os subuniversos de significações de cada um sejam desiguais e tenham obstáculos para
uma relação direta.
Ora, isso não quer dizer que as significações específicas de cada subuniverso não
estejam presentes na comunicação entre ambos. Acreditamos que estarão e serão
também utilizados como uma referência que cada ator utilizará para o estabelecimento
da relação e para a efetivação da mesma relação, assim como na troca que ocorrerá entre
os dois no espaço social que será o palco dessas relações.
“Na realidade, o espaço social é um espaço multidimensional, conjunto aberto de campos
relativamente autônomos, quer dizer, subordinados quanto ao seu funcionamento e às suas
transformações, de modo mais ou menos direto ao campo de produção econômica: no interior
de cada um dos subespaços, os ocupantes das posições dominadas estão ininterruptamente
envolvidos em lutas de diferentes formas (sem por isso se constituírem necessariamente
antagonistas).” (Bourdieu, 1998: p.153)
Assim, o espaço social em que são desenhadas as relações de forças entre os
atores da organização social e dos grupos de meninos em situação de rua, manifestar-seá como um cruzamento de campos simbólicos entre os dois.
Neste espaço, o ator da organização social estará representando um papel social
de técnico da instituição. E, mesmo que não dê conta disto, ele terá um conjunto de
tipificações de ações (Berger, 1985) próprias e correspondentes ao papel que
desenvolve.
A criança ou o adolescente de rua, a seu termo, também será um ator social, ou
seja, estará representando um papel social com tipificações próprias e correspondentes à
organização que faz parte: o grupo de meninos em situação de rua.
Todavia, tanto o técnico da organização social, quanto a criança ou o
adolescente de rua são muito mais que os papéis sociais específicos dos subuniversos de
significação que estão vinculados, pois se relacionam com outros subuniversos de
significações, contribuindo na estruturação dos mesmos, e sendo estruturados por estes
também.
Poderíamos perguntar: até que ponto esses atores têm consciência dos
significados que estão sendo, utilizados pelos mesmos no momento do estabelecimento
das relações de forças ? É nesse sentido que Rodrigues chama atenção que uma relação
de poder envolve “não apenas dois, mas vários pólos. Todos participando do jogo, de
maneira não necessariamente homogênea, mas também não obrigatoriamente
heterogênea.” (Rodrigues,1992: p.42)
Por isso, acreditamos que, quando se realiza uma relação de comunicação entre
os atores da organização social e dos grupos sociais de meninos em situação de rua, que
representam estruturas institucionais distintas, esta relação envolve um universo comum
de significações que espraia-se por toda a sociedade e também para e nos subuniversos
específicos de cada organização.
Ou seja, tanto os meninos em situação de rua, quanto os técnicos da organização
social se comunicam entre si, numa relação de mutualidade e de troca em que existem,
presentes nessa relação, pelo menos dois conjuntos de significações não homogêneos,
não idênticos, não semelhantes.
Assim, o técnico chega ao garoto através de um subuniverso próprio que é a
organização social que faz parte, como também com aquilo que faz parte da estrutura
referencial maior, que é a própria sociedade.
Dessa mesma forma, em direção oposta, os grupos de meninos em situação de
rua se relacionam com a organização social orientados e direcionados pelo conjunto
simbólico do grupos social que estão “enraizados”. Ou seja, os meninos em situação de
rua também se relacionam com o técnico a partir de seu próprio subuniverso, e também
a partir do universo de significações da estrutura maior: a sociedade.
É por isso que os meninos em situação de rua podem representar diferentes
papéis sociais na relação com o técnico: o pivete, o revoltado, o coitadinho, o
injustiçado, e outros. Essa relação se realiza como um jogo complexo de um tabuleiro,
em que as peças vão sendo colocadas a partir de uma lógica do concreto (Lévi-Strauss,
1989).
Numa verdadeira bricolage, os meninos em situação de rua, através de erros e
acertos, vão desenhando e encontrando a melhor forma de abordagem, de se relacionar,
a melhor estratégia para chegar e (cor)responder ao estranho que se aproxima do espaço
social deles.
A palavra tio / tia, comumente utilizada, não seria uma tentativa de criar uma
proximidade simbólica de parentesco com o técnico, instigando-o a reagir dentro de
expectativas que os meninos em situação de rua teriam sobre a relação que passa a ser
constituída ?
“No próprio momento em que a família, este lócus privilegiado de afetividade, vai perdendo
sua idealizada integridade e em que nas escolas os professores não sabem mais que conceito de
‘família’ utilizar em suas relações com as crianças (pois cada uma passou a ter uma
composição familiar particular, em função sobretudo das separações e recasamentos dos pais),
se lhes ensina a chamar quase todos os adultos de “vovô” ou “tio” e a professora “tia”: um
esforço de apresentar-lhes um mundo de conotações afetivas, povoadas de “parentes” próximos
mas sem autoridade repressiva, onde por assim dizer, possam se sentir “em casa”. Mesmo que
tal expressão signifique coisa cada vez mais volátil.” (Rodrigues, 1992: p.126)
Obviamente que a relação entre os técnicos e os meninos em situação de rua é
recheada, de diferentes expectativas, tanto dos primeiros quanto dos segundos. Essas
expectativas relacionam-se com o subuniverso de significações que os atores se
vinculam, mas também a vários outros subuniversos que esses mesmos atores estão
relacionados.
Não seria por isso que a história individual dos indivíduos dão sustentação a
associação com certas ações profissionais existentes em determinadas organizações que
apresentam, em parte, um conjunto simbólico presente e existente (no senso comum ou
no conhecimento científico) próximo ou semelhante às expectativas individuais e
coletivas ?
Como exemplo, podemos citar o fato comum de encontrarmos muitos estudantes
de Serviço Social que, ao entrarem na faculdade, buscavam um habitus (Bourdieu,
1998) que possam prepará-los para fazerem uma caridade3 melhor. Ou seja,
impulsionados, via de regra, por uma biografia individual (Goffman, 1988) recheada de
experiências sociais objetivas que refletem em uma subjetividade marcada por
significados como filantropia, caridade, boa vontade, esses indivíduos, almejam, as
vezes ardorosamente, um ambiente em que possam materializar a sua subjetividade.
Talvez por isso, sejam comuns expressões populares como “essa pessoa foi
talhada para essa função”, ou ainda o seu contrário “essa pessoa não foi feita para
aquela função”. Ocorreria assim, um casamento entre uma história individual objetiva e
3
Comumente em nossa experiência docente temos encontrado alunos que entram na faculdade
acreditando que a profissão de Serviço Social irá prepará-los para fazerem caridade, confundindo a
profissão com a ações religiosas ou filantrópicas. Essas representações são reforçadas, especialmente pela
mídia (novelas, filmes, etc) que apresentam, via de regra, um profissional de Serviço Social bonzinho,
caridoso, cheio de boa vontade para com o próximo.
subjetiva, com uma outra história, não mais individual, mas coletiva de uma
organização social ou grupo social, esta também objetiva e subjetiva.
O que estamos querendo especular é que a organização social pode chegar a
desenvolver uma ação junto ao grupo social de meninos em situação de rua, de forma
que não estejam presentes no momento do atendimento somente o seu subuniverso de
significações. É provável que paralelamente manifestem-se diferentes subuniversos de
significações, convergindo para um jogo em que os jogadores tenham expectativas
diferenciadas.
Ou seja, o próprio técnico poderá estar “levando” para o atendimento o capital
simbólico da organização social que está vinculado, como também, outras significações
em paralelo, mas que convergem no momento do atendimento. Estas significações
podem, a seu turno, contribuir para a ação técnica, ou não, reforçando o atendimento
social, ou não, consolidando a ação profissional, ou não.
Os meninos em situação de rua, por sua vez, também possuem um subuniverso
de significações próprios, com todo o conjunto simbólico peculiar a eles (manifesto em
suas formas de falar, de se expressar, de se relacionar).
Associado a esse subuniverso, existem outros conjuntos simbólicos que fazem
parte também da história individual de cada menino ou menina de rua. Juntos esses
diferentes subuniversos de significações oferecem um mapa com uma gama de
caminhos para o suas experiências diárias.
Esse mapa apresenta trilhas que são testadas e avaliadas, como também
redirecionadas a cada momento nas experiências individuais e coletivas dos meninos em
situação de rua.
Isto fará com que os meninos em situação de rua, que possuem um subuniverso
de significações próprio que marca sua identidade real ou virtual (Goffman, 1988),
manifestem-se conforme o espaço social e o caminho que resolvem adotar na relação
com os diferentes atores que convivem com eles em seu habitat, como os policiais,
comerciantes, transeuntes, grupos religiosos, outros grupos de meninos, ladrões,
técnicos de organizações sociais, etc.
Assim, o espaço social em que se cruzam os técnicos e os meninos em situação
de rua, é sem dúvida um espaço de relações “tão real como um espaço geográfico, no
qual as mudanças de lugar se pagam em trabalho, em esforços e sobretudo em tempo (ir
de baixo para cima é guindar-se, trepar e trazer as marcas ou os estigmas desse esforço).
Também as distâncias se medem nele em tempo (de ascensão ou de reconversão, por
exemplo).” (Bourdieu, 1998: p.137)
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesse espaço social de relações em que cruzam os técnicos e os meninos em
situação de rua ocorre a intersecção de diferentes subuniversos de significações entre e
nos atores em interação. Relações objetivas que manifestam conjuntos de subjetividades
vivos nos atores e pelos atores em suas ações.
A manifestação dessas relações ocorre no cruzamento entre esses subuniversos,
em um processo de comunicação entre os diferentes atores, o que não significa que essa
mesma comunicação seja realizada sem uma correlação de forças entre os agentes das
ações. Isto porque “as relações de comunicação são, de modo inseparável, sempre,
relações de poder que dependem na forma e no conteúdo, do poder material ou
simbólico acumulado pelos agentes (ou pelas instituições) envolvidas nessas relações”
(Idem, p.11)
Nesse sentido, as relações de comunicação entre os técnicos e os meninos em
situação de rua estará recheada de poder, em um jogo de forças entre esses atores.
Ora, se é verdade que existirá um jogo de forças entre esses atores, portanto,
uma relação de poder existente entre os mesmos, é verdade também que, como uma
relação de poder, este poder necessita, para ser exercido, que os agentes envolvidos na
ação dominem os mesmos significados que permitem com que o poder possa ser
exercido em uma relação, necessariamente de troca, de reciprocidade, conforme
trabalhamos anteriormente.
Ora, se o nosso raciocínio está correto em afirmar que no espaço social em que
ocorre o cruzamento dos técnicos com os meninos em situação de rua, existirá também
o cruzamento e a comunicação entre diversos subuniversos de significações trazidos
pelos atores em questão, é crível também que os códigos compartilhados pelos mesmos
no jogos de forças em que o poder passa a ser desenhado pode ser de diferentes ordens
para ambos.
Obviamente que tanto os técnicos quanto os meninos em situação de rua usarão
de suas “armas” para poderem alcançar melhores posições na correlação de forças que
será construída.
O técnico, por sua vez, usará o seu saber técnico (científico) para impor sua
posição e pontos de vista acerca do que deve ser encaminhado e realizado no
atendimento. Este saber implica em um poder (Rios, 1996) por aquele que o possui.
Este saber e poder estarão mediando a relação com os meninos em situação de rua.
Todavia, como já exposto, outros códigos poderão estar presentes com o técnico,
mesmo que este não perceba e se dê conta da existência dos mesmos.
Provavelmente, se o técnico não tiver consciência acerca dos códigos trazidos
por ele e com ele na relação com os meninos em situação de rua, tenderá a passar por
certas situações em que não terá certeza absoluta sobre o que estará sendo comunicado
no jogo de forças do atendimento. Ou também, poderá ser enganado como num efeito
de miragem, pensando que estará alcançando uma determinado objetivo na
comunicação que se estabelecerá na relação de forças construída, mas outros códigos e
significados diferenciados poderão estar sendo comunicados fazendo com que o
resultado alcançado seja diferente do que se acreditava que estava sendo alcançado.
É emblemático situações como essa quando a criança joga com suas “armas”
utilizando-se de significações que podem corresponder e encaixarem, em parte, com
certas expectativas e significações dos técnicos. Isto no fato da criança poder “vestir-se”
com uma agilidade enorme de diferentes “roupagens”, para incorporar papéis distintos
em função das expectativas observadas e absorvidas nas experiências empíricas junto
aos atores da organização social e de diferentes atores que convivem em seu habitat.
Assim, o menino de rua pode assumir uma feição de coitadinho, “despertando”
ou querendo “despertar” pena e piedade nos técnicos que estão efetivando o
atendimento com o mesmo. E, logo após o afastamento dos técnicos, este menino ou
meninas de rua assumir uma postura impositiva, agressiva, ou desenvolta para atender
as “exigências” que a conjuntura (espacial e de significações) lhe impõe, para que não
passe por “babaca” ou “laranja” na relação com os seus semelhantes, ou na relação com
outros atores sociais que convivem no mesmo espaço social.
Não conseguindo perceber, captar e compreender o conjunto de subuniversos de
significações que podem estar presentes no cruzamento entre os atores sociais no espaço
social onde o atendimento ocorrerá, o técnico tenderá a ser ludibriado pela miragem que
será criada para ele e com a participação dele, na medida em que seus símbolos, valores
e representações farão parte do jogos que será desenhado e construído.
Por isso acreditamos que “não haveria jogo sem a crença no jogo e sem as
vontades, as intenções, as aspirações que dão vida aos agentes e que, sendo produzidas
pelo jogo, dependem da sua posição no jogo e, mais exatamente, do seu poder sobre os
títulos objetivados do capital científico – precisamente aquilo que o rei controla e
manipula jogando com a miragem que o jogo lhe deixa.” (Bourdieu, 1998: p.85)
Assim sendo, o técnico e os meninos em situação de rua participam de forma
ativa no jogos de forças que estão envolvidos. Participação ativa, pois acreditam nas
“regras” que regulam os movimentos e as disposições das peças desse tabuleiro.
Todavia, essa participação ativa não pode ser entendida como uma consciência
integral que esses atores tenham a respeito das regras, do jogo, dos códigos e dos
significados que estarão presentes na correlação de forças.
Jogam sim com seus corpos, corações e mentes, mas não significa que sejam
conscientes sobre o que realmente estão jogando, sobre qual é o prêmio que estão
querendo alcançar, como também do próprio prêmio que alcançaram na correlação de
forças supostamente vencida.
Esse paradoxo pode justificar o fato de muitos atendimentos serem realizados
com meninos em situação de rua acabarem criando uma ilusão de que o projeto está
dando certo, mas que, com o desenrolar da ação, a realidade prática põe em cheque a
imagem de um sucesso frágil e incerto.
ABSTRACT: This work is the result of the analizitic discusion that invloue power and socialization in
the programs of the attention to the children streets. Has as goal to reflect the process of the
communication between the social organization and groups children streets with basis in the sociology
and anthropology.
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