Régis Bonvicino 1 Régis Bonvicino nasceu na cidade de São Paulo, em 25 de fevereiro de 1955. Formou-se em Direito pela USP, em 1978. Trabalhou como articulista do jornal Folha de S. Paulo e de outros veículos até ingressar na magistratura, em 1990. Seus três primeiros livros, Bicho papel (1975), Régis Hotel (1978) e Sósia da cópia (1983) foram por ele mesmo editados. Hoje, estão reunidos no volume Primeiro tempo (Perspectiva, 1995). Entre suas participações em leituras de poesia destacam-se as atuações em Buenos Aires (1990); Miami (Miami Book Fair, 1992); Copenhague (1993); na III Bienal Internacional de Poetas em Val-de-Marne (1995), fazendo leituras em Paris (Maison de La Amerique Latine) e Marselha (Centro Internacional de Poesia); Berkeley (1996), com Michael Palmer, e na San Francisco State Universty. Em 1998, apresentou-se com Charles Bernstein no Segue Performance Foundation, de Nova York; no ano de 1999 esteve em Santiago de Compostela, na Universidade de Santiago. Fez leituras em Iowa City (2000), com Michael Palmer, e em Chicago; participou do IV Encontro Internacional de Poetas de Coimbra (2001). Destaca-se ainda sua participação na Feira do Livro da Cidade do México (2004). Seu trabalho está traduzido para o inglês, espanhol, francês, chinês, catalão, finlandês e dinamarquês. Entre 1975 e 1983, dirigiu as revistas de poesia Qorpo Estranho – com três números –, Poesia em Greve e Muda. Fundou, em 2001, e co-dirige, ao lado de Charles Bernstein, a revista Sibila publicada atualmente pela Martins Editora. Do diálogo com a poesia concreta para o diálogo consigo mesmo. Assim pode ser definida a trajetória de Régis Bonvicino. Inicialmente, ele parece ter compartilhado com Paulo Leminski (1944-89) a idéia de injetar no rigor vanguardista o anarquismo contracultural dos anos 70 — conforme escreveria no poema que dá título ao livro Más Companhias (1987): "mamãe dizia/ meu filho/ não ande/ em más companhias// a anarquia a maconha/ o ácido/ eram más companhias// & aquele mar da bahia/ (onde o mar maresia)// andar com joyce/ debaixo do braço// & fazer poesiaemgreveqorpoestranhomuda/ alegria/ dor/ & fantasia". Em suas primeiras obras, portanto, há esse cruzamento de experimentalismo lingüístico e hedonismo libertário que, grosso modo, o aproxima dos tropicalistas e da chamada geração marginal. Mas a poesia de Bonvicino logo se singulariza. Da matriz concreta, ele preserva uma economia formal em que os signos surgem de maneira descontínua, como ilhas de significação em atrito dentro de frases elípticas; de seu percurso inicial, ele preserva um sentido crítico que transforma a descontinuidade sintática em expressão da consciência cindida, alienada, que caracteriza o sujeito moderno: "Não nada ainda do outro/ semelhante ainda ao mesmo/ mínimo ainda o outro/ ele mesmo não ainda outro/ de um mesmo morto outro/ insulado em seu corpo", escreve ele em Outros Poemas (1993). Mas é sobretudo a partir de Ossos de Borboleta (1996) e Céu-Eclipse (1999) que a antipoesia concreta vai se plasmando nas mãos de Bonvicino até adquirir o sentido ético e político de uma negatividade pura, de uma crise da representação: de livro a livro, seus poemas encadeiam visões e sensações que se assemelham a estilhaços de realidade; quanto mais o poeta contempla os objetos, mais opacos eles ficam. Podemos reconhecer na poesia de Bonvicino referentes da exclusão social, da violência, de temas contemporâneos como o movimento antiglobalização e a guerra ao narcotráfico. Mas, em geral, seus poemas se enfileiram numa "muda sequência de quinas", como se fossem fotogramas de um filme que dispõe fragmentos da vida urbana, tornada inapreensível pelas experiências de choque a que somos submetidos diariamente. A poética de Bonvicino tem influência considerável sobre as novas gerações. Sua presença é perceptível num escritor como Tarso de Melo, mas é Manoel Ricardo de Lima quem mantém com ele uma inter-locução mais explícita, seja no livro de poemas Embrulho (2000), em que as palavras parecem se esgueirar entre silêncios), seja na prosa poética de As Mãos (2003), 2 em que o tema da separação amorosa gera o confinamento do narrador e do seu mundo numa sintaxe espasmódica. POESIA • Bicho Papel. São Paulo, Edições Greve, 1975. • Régis Hotel. São Paulo, Edições Groove, 1978. • Sósia da Cópia. São Paulo, Max Limonad, 1983. • Más Companhias. São Paulo, Olavobrás, 1987. • 33 Poemas. São Paulo, Iluminuras, 1990. • Outros Poemas. São Paulo, Iluminuras, 1993. • Ossos de Borboleta. São Paulo, Editora 34, 1996. • Céu-eclipse. São Paulo, Editora 34, 1999. • Remorso do Cosmos (de ter vindo ao sol). São Paulo, Ateliê Editorial, 2003. • Página Órfã. São Paulo, Martins Editora, 2007. ANTOLOGIAS • Primeiro Tempo. São Paulo, Perspectiva, 1995 (reunião dos livros Bicho Papel, Régis Hotel e Sósia da Cópia). • Sky-Eclipse selected poems. Los Angeles, Green Integer, 2000. • Lindero Nuevo Vedado. Porto, Edições Quasi, 2002 (com poemas de 33 Poemas, Outros Poemas, Ossos de Borboleta e Céu-eclipse). • Poemas (1999-2003), Ciudad de Mexico, Alforja Conaculta-Fonca, 2006. POEMA COLETIVO • Together – um poema, vozes. São Paulo, Ateliê Editorial, 1996. Protegido pela Lei do Direito Autoral LEI Nº 9.610, DE 19 DE FEVEREIRO DE 1998 Permitido o uso apenas para fins educacionais. Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, modificado e que as informações sejam mantidas. 3 Sexto Poema Régis Bonvicino Sob a ira das víboras na agonia das cortinas onde atiravam pedras no aterro de mim mesmo meses a fio o veneno de acônitos no atear-se fogo no açular o nervo do açúcar querer algo além dos cômoros Setimo Poema Régis Bonvicino Silêncio é forma contar é ato livre, imprevisto traço de luz ele se aquieta contraste & vulto que rompe súbito em outra véspera voz das camândulas no livre curso lis de petúnias, fisionomia, muda, da sombra, & os avelórios cortando os dedos, a cada conta para Claude Aniversário Régis Bonvicino O que fiz do tempo êxito? De acácias paralelas agora em fevereiro talvez o da... mirra a anunciar a sina — tigres famintos em busca da presa; a estátua, de kanisha cessaram os sapatos com a vida I have been overkilled by my peers o que digo 4 enigma? (da janela, os automóveis, fluindo kanisha é Ganesha, um deus da Índia, estátua, carniça!) o nada transmigra o bodisatva mija o buda mijava quando não era argila A Nuvem Régis Bonvicino A nuvem é um espaço abrupto. Um céu brusco É um espaço muito pouco firme e úmido quando chove é um espaço acústico Espaço que se funde (um abutre atravessa uma nuvem) o raio rompe, ignívomo, vômito de fogo, o céu nublado da janela do edifício no crepúsculo fulvo um céu de rosas adunco o vento traga as nuvens êxtase É um espaço vizinho pó de meteoros e abismo não está ao alcance do úmero ou das mãos É um espaço aflito apátrida para a chuva, as cifras e o cacto lua ao meio-dia É um espaço inútil do ponto de vista de um número É o espaço último quando um míssil noctilucente triste lúgubre para a Vera Barro 5 Canção Régis Bonvicino Carinho na Bebel e no Pingo carinho na barriga da filha-cadela e do filhote-menino carinho no menino lindo spitz, pêlo espesso, altivo psiu! a Maltesa quer dormir carinho na menina linda que leva a Bruna para a escola com a mamãe Darly e que adora visitar a casa da vovó Marlene e do vovô Daury festa para o Marcelo alvoroço, a Darlene chegou! carinho na Bebel e no Pingo o Pingo ganha um osso quando faz cocô certinho carinho na menina linda que rosna para a porta quando ouve um barulho sombra viva branca vida carinho no menino que acabou de chegar e já dorme sozinho para a Bruna, em seu 13º aniversário Canção da Luly* Régis Bonvicino Vento na persiana da sala a cadela late ao som do aproximar-se alguém na porta do apartamento para que a noite se desate do frio a cadela late quando a noite mais abate para que ela não se dilate rói a noite como um osso late à janela, diante do Vale que se abre, de fina neblina late para que a manhã se reate com a luz clara do dia poema escrito em 2001 * Luly, maltesa, nasceu em 2000 e morreu em 2002 6 de REMORSO DO COSMOS Portugues by Odile Cisneros: ETC Régis Bonvicino Tateava um morteiro & seu alcance, a lâmina do radar & sua rede flexível sondava o ânimo, clandestino, de um elmo seu afã mira & diâmetro sob o arco aceso da madrugada me sentia só ao som das teclas de um piano apontava para o céu, serena luz, longínqua, via, apenas, os seus braços na parede do quarto lâmpada repousava o espaço, horizonte & cápsulas sigdasys sugavam cabeças decepadas & a estrela extraordinária riscava-se, em cores opacas ETC (2) Régis Bonvicino Tentava apanhar a flor meia-parede braço entre as grades tentava alcançar a haste verde da cósmea consolo do sol ou azul do miosótis na ponta dos dedos 7 pétalas brancas do narciso, em si incólumes além do muro um caule ostentava folhas enormes golpeava uma constelação inútil, firetalk, com aparência de duna talvez fosse pantera & não apenas idéia que se transfigura & toca seu próprio núcleo sólido, estrelas pousavam em meu olho, como um aporte punhaladas no corpo, paleta, nódoa & salva de galopes ETC (3) Régis Bonvicino Tentava seguir, passos vozes, no mármore folha, vermelha, do ácer nesta parede, do The Art ... ou no jardim da casa de Frank Lloyd Wright em Oak Park, do verde, tênue, glauco captar a cor do céu, tentava entender o sol folhas amarelas esplêndidas ainda com seiva observando numa rua qualquer na verdade cor do ouro em contraste daqui a pouco secas concorrendo com o outono, vermelhas como um pôr-do-sol de bolso na moldura inox, antes de cair, uma garota de cabelos vermelhos talvez Nolde Chicago, outubro de 2000 8 ETC (4) Régis Bonvicino Tentava entender a figura do cavalo amarelo no Museu de Arte ... manhã, no Parque (bicos-de-papagaio avançando para além do muro, outra rua, folhas de sangue) tentava captar, o possível estrela, cascos-labareda, lobo & esquilo, únicos & mútuos, & um tipo quase de buda cavalo farejando nuvem, olhar atento, boiando, rajadas de vermelho, no céu, pétalas do flamboyant tentava entender a luz & seu cavalo alto a cor & seu cavalo mudo num quadro pintado de Nolde além da janela talvez chova talvez faça sol São Paulo, novembro de 2000 SEXTO POEMA Régis Bonvicino Sob a ira das víboras na agonia das cortinas onde atiravam pedras no aterro de mim mesmo meses a fio o veneno de acônitos no atear-se fogo no açular o nervo do açúcar querer algo além dos cômoros 9 SÉTIMO POEMA Régis Bonvicino Silêncio é forma contar é ato livre, imprevisto traço de luz ele se aquieta contraste & vulto que rompe súbito em outra véspera voz das camândulas no livre curso lis de petúnias, fisionomia, muda, da sombra, & os avelórios cortando os dedos, a cada conta para Claude SEM TÍTULO (1) Régis Bonvicino Minas, silenciadores, a dissolução prévia do corpo, nadis, flama, recôndito, Sundevil, Léxisnexis, arpa, sard, cisa, carmina, estrondos, satcoma, satélites, retratos na parede, capricórnio, gama, gorizont, ISSO, parasita, morgancanine mantis, ionosfera, reflexo, & o surto de outras figuras, batedores, white noise, sexo, enseadas, Speakeasy, colmilho, miras estriadas, os ópios de emergência, e um vento, índigo, explosivo, mania, gases úteis para o exercício diário da vida, janela, Bubba, the Love Sponge, onde pousava, de madrugada, a brisa SEM TÍTULO (2) Régis Bonvicino Na virtude dos músculos, dias diamantinos, no frêmito de ser & quando efetivo, na força das vigas, no ânimo de paredes, erguidas, gerânios no canteiro, tijolo, um a um, firmes, fio avariado, pupilo de um suicídio, alento de silhueta, na derrocada da cor, estilhas de vidro, aranhas na cama, sol em surdina, persistindo, no tumulto de pancadas, cúpulas, ópio hipnótico, clemência dos meses, brio de ladrilhos, lâmpadas sob o teto, o alento em si do vento no flagelo da janela e demais utensílios, déspota de portas, escombros do cômodo, caliça, verdugo de seu próprio muro, maciço. 10 SEM TÍTULO (4) (Fanti-Axanti) Régis Bonvicino Caras-douradas, monos-carvoeiros, iguanas, tiês incandescentes, bromélias, orquídeas, saíras, do cimo das árvores, araras, precipitam-se: berloques, chircas, tônis, jias, néticos, Avi Shelter!, no Mar da Ligúria, Cúpula-cáfila, de réplicas - abatis, por mísseis e cifras - contra o plus, o sm@sh, o black - aqui, no Sul, o vento alastra o fogo, o fogo queimando a Mata - Gênova, disparos, balas na cabeça, o corpo esmagado pelo jipe, dos carabinieri - punk bestia!, Alimonda, estigma decapitado, agora, "alcoólotra, amigo das drogas" (Fa Lun Gong, calado! e os da Coca-Cola, na Colômbia, atraidos, assassinando) YA Basta! contro li alieni, lábaros e carros incendiados, vitrines destruídas - o corpo, respect!, vômito & os da tribo bux nígrous, livres, em algum lugar, recôndito, das florestas das Guianas reanimando, escombros 21.07.01 ANIVERSÁRIO Régis Bonvicino O que fiz do tempo êxito ? De acácias paralelas agora em fevereiro talvez o da ... mirra a anunciar a sina tigres famintos em busca da presa; a estátua, de kanisha cessaram os sapatos com a vida I have been overkilled by my peers o que digo enigma? (da janela, os automóveis, fluindo kanisha é Ganesha, um deus da Índia, estátua, carniça!) o nada transmigra o bodisatva mija o buda mijava quando não era argila 11 ACONTECIMENTO Régis Bonvicino 1 Timbre áspero. Ângulo vivo do vento. Sol para magnólia. Chuva para cacto. Crótalos para cobra e cauda de guizo. Rotação e traslação, desmedidas. "A" para coisa e estrela e para calar e para ex. Mera passagem em si, para seguir. As cinzas de um mapa queimado. Estacas para mônadas. Atalho para alado. Detargo, o vulto precipitado anula a asa do dragão 2 Lento para sol. Lento que expõe o azul. Cicio para silêncio Silvo para calado. Força para fluxo, magnético, onde a estrela atrai a noite. Noite para estrela. Estrela para sol. Mútuo para azul e cor, distantes. Ritmo para noite. Sol para luzes e nuvem. Nulo para azul. Azul nulo para espaço. Coisa e sombra mais adiante ACONTECIMENTO (2) (Little wing) Régis Bonvicino Entre nuvens halo que se dissipa rápido lilás raio de lua e contos de fadas borboletas e zebras - só - na sala, ouvindo música, asa, que se abre (torna-se visível) e me socorre ventura, êxtase movimenta-se no vento e passa ACONTECIMENTO (3) Régis Bonvicino Hoje é domingo ontem foi sábado, dia 1o de janeiro será feriado porque ouço música na sala e a lua não estará em um novo quarto, a semente é vermelha e dura, a madeira é escarlate, a semente é de madeira: vermelha e negra, de uma única fruta; a semente não cai da árvore, a semente tem asa, a semente tem pêlos, a semente é um pássaro de pena escarlate, a semente é madeira, que acorda nas grunhas, nos hortos e, uma vez, acordou na praia de 12 Trindade; (há outros poucos tipos de semente de tenteiro, um deles, casca, da vagem, marrom, âmago, amarelo, vivo, e a semente é vermelha, rutilante, a vagem, sinuosa, vai secando), a semente só cai da árvore depois de no mínimo dois anos - a semente é lenha, a semente é fogo, a semente é vermelha, cinza, nas terras úmidas do Pará, é estrela, mucunas, buiuçu, ou, aqui, no sul, olho de cabra, tanto faz, a semente é colar, da árvore, flores só a intervalos de vários anos, (um vaso, no canto da sala, agora num silêncio sibilino, sinistro), pétalas negrovioláceas, algumas vezes mais claras fugazes dezembro, 30, 2001 QUARTO POEMA (Canalha densamente canina) Régis Bonvicino Flores exalam medo, cólera de cor, magnólias exalam silêncio tulipa intimidada, o idioma dos medos folhas caducas das calêndulas sem janeiro remorso do cosmos de ter vindo ao sol a rosa e seu perfume, seco sombra apavorada de begônia azul de hortênsia, visgo arredio, tenso crisântemo em pânico pétalas vermelhas do rododendro trêmulas não do vento NO BECO DO PROPÓSITO Régis Bonvicino a estrela desaproveita o sol queima lâmpadas à noite o flamboyant entrando no telhado da casa da esquina tem favas pretas, & semente, manhã azul pétalas vermelhas de vênus 13 no muro, o arbusto se ergue, esguio, da pedra como vulto um cão, de passagem, rói um osso os cravos cheiram muito para a Bruna Paraty, 12/7/2000 COM A BRUNA (ela aos 8 anos) Régis Bonvicino Ao atravessar o parque folhas sob os pés pisando, em mim, o outono CANÇÃO (6) Régis Bonvicino Mais um golpe impunha dobras na cova das olheiras ninguém que me guardasse a porta como um cão Cadáver de suicídio, naquela manhã suave de abril, do vômito em jorro, apagando qualquer vestígio de flor em meu corpo, Calúnia acéfala, folhas amarelas do jacarandá, cabeças ruivas das nipéias a casa em declive de lua, iluminada por um sol de hemisfério búgulas, de vacilantes chamas azuis verdade ou música? (trapo do tempo e de tanto desprezo, o roxo tombo, da verdade em peso) para Alva Flôr, in memoriam 14 ABSTRACT (2) Régis Bonvicino Gaivotas caindo na água em Niagara, verde. Esgotam-se os dólares. Um homem dormia num vão numa esquina da Lexington na calçada da Collaborative High School – School of the Future – entre a porta de vidro e as telas de arame, caixas de papelão, uma espécie de abrigo (cigarros pisoteados), “Visitors: no trespassing” Ele não obedeceu ao aviso Em Manhattan, só o rato é democrático 13/9/2002 VARIAÇÃO HORACIANA Régis Bonvicino O esqueleto do morcego é um dejeto Inóbvio Diante do espelho Avança Sob a pele Do meu próprio Esqueleto de morcego Dejeto inóbvio Diante do espelho Avanço Sob a pele Do meu próprio ANTIMUSEU Régis Bonvicino Ócio, verão exuberante, a poça, os dois canários bebendo água na poça, um abacaxi, a fruta coroada, apodrecendo na grama, o mangue, céu nublado, uma garça no mar, porque, daqui a pouco, terei as horas contadas, (os minutos contados), os dias contados 15 agora, da janela do quarto, magnólias, a exuberância do verão, que a chuva aflora, chuva da tarde, as doze pétalas da guzmania lingulata estrela, laranja e verde, o elã das plantas, rutilantes gladíolos, agapantos, vaganas, zebrinas, o que cai com a chuva, cavalo, parado, horizonte, primaveras se largam, para além dos muros, nuvem e o que se move por tais linhas entre a foz do rio e o mar, no mangue, há árvores perto do cavalo, moita de cães, terra firme?, o cavalo pastando sob a chuva, angélicas, rente ao chão, tritomas altivas para alívio de um raio, amarílis, curcumas, lírios, o sal da lua nas ruas ainda vazias, palmeiras, o vento nas palavras, pio, esparso, pássaros, e ela não mais jorra, pelos telhados, a água, o que não passa com a chuva Paraty, 22/1/2003 QUASE Régis Bonvicino Em mais uma troca oca de mim para mim mesmo entretanto oscilei e o silêncio revidou subi um degrau reverso visível como que num encanto sapos no estômago ratos nas entranhas pus na medula Duro como ferro e inexpresso cavei um espaço no mármore um bálsamo não me alçou emérito despedido o sol do dia finalmente me persuadiu à tarde, no Jardim Botânico Poesia Pura, Floribunda, haste com espinhos – vermelha, branca rosíssima, como flor 16 A NUVEM Régis Bonvicino A nuvem é um espaço abrupto. Um céu brusco É um espaço muito pouco firme e úmido quando chove é um espaço acústico Espaço que se funde (um abutre atravessa uma nuvem) o raio rompe, ignívomo, vômito de fogo, o céu nublado da janela do edifício no crepúsculo fulvo um céu de rosas adunco o vento traga as nuvens êxtase É um espaço vizinho pó de meteoros e abismo não está ao alcance do úmero ou das mãos É um espaço aflito apátrida para a chuva, as cifras e o cacto lua ao meio-dia É um espaço inútil do ponto de vista de um número É o espaço último quando um míssil noctilucente triste lúgubre para a Vera Barros AQUELOUTRO Régis Bonvicino Dizem que sou um dúbio mascarado Um falso atônito – que fala sem tom nem som – que nunca deu sequer um berro ao Ideal Um ingrato, arrotando disparates “avant-garde” Um irascível, mau-caráter Um filho da puta, desleal, asco de vômito 17 Um gelado, que passa ao largo de cadáveres atropelados * Me mato todos os dias de um modo homeopático Loquazes, gárrulos! AGONIA Régis Bonvicino Uma gaivota rente ao mar voa entre os barcos no pôr-do-sol toca asas na água sem o peixe voando em círculos perto da árvore em bando barcos parados a voz da gaivota, aguda, ecoa rumo ao mar fechado, mergulha imersa, agora como ostra destroça o peixe entre as patas gaivotas a lua? na água que apagou nuvens sobre a montanha onde já é quase noite acima um céu azul ainda horizonte uma gaivota voa luz acesa da ponte silêncio íntimo da baía cor no entanto a onda EXTINÇÃO V O lobo-guará é manso foge diante de qualquer ameaça é solitário avesso ao dia, tímido 18 detesta as cidades para fugir do ataque cada vez mais inevitável dos cachorros atravessa estradas onde quase sempre é atropelado onívoro, com mandíbulas fracas come pássaros, ratos, ovos, frutas às vezes, quando está perdido, vasculha latas de lixo nas ruas engasga ao mastigar garrafas de plástico ou isopores se corta e ou morre ao morder lâmpadas fluorescentes ou engolir fios elétricos morre ao lamber inseticidas ou restos de tinta ou ao engolir remédios vencidos ou seringas e agulhas descartáveis dócil, sem astúcia, é facilmente capturado e morto por traficantes de pele quando então uiva LETRA Régis Bonvicino Nine out of ten computers are infected Leminski morreu do uso contínuo de um coquetel de álcool, cigarro e drogas às vezes de álcool puro e Pervitin pupilas dilatadas para encarar o nada às vésperas da morte fétido camiseta cavada e chinelos trapos a pele verde como vômito arranhando o violão e traduzindo Beckett getting a tan without the sun que o futuro o disseque ( ... numa outra década, 19 guerrilha nas favelas, Kaetán morreu de uma overdose de dólares êxtase de cheques, abanando o leque um séquito de adeptos) nine out of ten computers ... are infected para Alcir Pécora O LIXO Régis Bonvicino Plásticos voando baixo cacos de uma garrafa pétalas sobre o asfalto aquilo que não mais se considera útil ou propício há um balde naquela lixeira está nos sacos jogados na esquina caixas de madeira está nos sacos ao lado da cabine telefônica o lixo está contido em outro saco restos de comida e cigarros no canteiro, sem a árvore, lixo consentido agora sob o viaduto onde se confunde com mendigos 20 O SONO Régis Bonvicino Durmo acordado acordo dormindo a manhã não é manhã acordo súbito sempre é um sono entre dentes com vasos de férulas no criado-mudo durmo me matando acordo de ressaca engolindo o estômago não durmo o sono não se inicia a cabeça me soletra pesadelos ouço a música de um banjo feito de uma lata opaca durmo com medo de não dormir de acordar abrupto vivo em estado de vigília insônia ínsita a me fertilizar narciso a insônia é vício pulsos cortados gilete, comprimidos irrompe um suicídio qualquer coisa me invade o sono não existe preciso fumar mais um cigarro musgo viscoso da memória escolhido a dedo a memória me molesta desleal, pesada o sono é pisadeira durmo acordado acordo letargo e a noite pisa em mim para Nayra Ganhito 21 ROUPOEMA Régis Bonvicino Seus dentes poderiam fazer merchandising de maconha embora façam de Colgate dos lóbulos caem pingentes to sell ou vender seus pés não pisam em piso falso e andam descalços num clip ou num filme seus pés anunciam uma sandália de plástico imputrescível Vênus pu(t)ibunda bebe de tudo, nos bastidores, agora se parece às vezes com um travesti também agora Hollywood está a seus pés posa, cheia de si se exibe com peitos de silicone veste casacos, no inverno, de pele de lontra ou de alguma outra espécie sua cabeça está cheia de cocaína escondida declara ter hobbies e entre eles o predileto: fazer blow job é mais asséptico, sob controle, e poupa o clitóris preservando o cheiro dos cosméticos no corpo e nas roupas nos lábios, botox o nariz anuncia um perfume alegórico de seus cabelos longos e ondulados, caem letras cegas, se refletem flashes de vez em quando, usa uma gargantilha limpa sua própria língua principalmente o dorso posterior com um produto novo para segurar o hálito não vende roupa vende os lábios os lábios vendem a boca, cornucópia de si mesma ouve tecno e hip hop digita no papelote 22 Não sabe escrever nada Além do próprio nome SEM TÍTULO Régis Bonvicino para Arkadii Dragomoshenko Quase ninguém vê o que eu vejo nas palavras bizantino iconoclasmo o relógio marca meia-noite ou meio-dia? a Susi está em transe ouvindo música cha rá rá cha rô teatro da ralé o sol brilha através das árvores num dia de outono claro o Brasil é uma selva onde cobras devoram tortas na rua zmei ediat znanie onde putos andam nus sob a sombra de ocás e usam a madeira para fazer jangadas arcaicas um muro sujo é uma sala vip o sarcófago corroído de Chernobyl um mendigo poluindo a calçada pés sobre os sacos de lixo caem painas do céu da cidade um Infiniti FX passa, em alta velocidade AZULEJO Régis Bonvicino Meu pai e minha mãe mortos ninguém algum um duplo silêncio ininterrupto 23 cacos ásperos que, agora, num ato de acúmulo, rejunto TAMBOR DE MINA Régis Bonvicino Há cacos de vidro na comida todos os dias A ilha de Anjadiva está à deriva Carpe diem, carpe idem a rotina dos dias Sex is sx O esperma congelado dos mamutes O uivo trêmulo revela tristeza e queixa Há um movimento para liquidar os cães loucos na China O basenji não late nunca para também surpreender suas presas nos terrenos aduncos A parotia berlepschi ou ave do paraíso está quase extinta Um pássaro, atingido por uma bala perdida O picharro é cobiçado pelo tráfico No Jardim do Éden, há resíduos altamente enriquecidos de maçã Dói-me a flor A estrela resplandece pesadelos Um dionísio corcunda, full love, freqüenta o bazar das utopias Uma prisca Há um ranho estranho no nariz do executivo Doe – como Lucky – um kit de ossos de galinha, sopa de açorda e agasalhos usados para seus vassalos O acúmulo de lixo irrita meu fígado O reduto é – agora – pó e cinzas A chuva inunda as ruas A vodunce dança uma dança que afasta como faca o exu Ligue suas palavras com língua e agulha esmague a farpa do anzol e pesque à pluma 24