143 “NUDEZ” – UMA BREVE ANÁLISE. (DE: CARLOS

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Revista Filosofia Capital
ISSN 1982 6613
Vol. 3, Edição 6, Ano 2008.
“NUDEZ” – UMA BREVE ANÁLISE.
(DE: CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)
Simone Villas Ferreira
[email protected]
Brasília-DF
2008
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Revista Filosofia Capital
ISSN 1982 6613
Vol. 3, Edição 6, Ano 2008.
“NUDEZ” – UMA BREVE ANÁLISE.
(DE: CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)
Simone Villas Ferreira1
[email protected]
Resumo
Em Nudez vemos a recusa do poeta de tudo e de todos. Sua primeira palavra é o não, que vem
negar o que tradicionalmente se espera de um poeta: o cantar. O poeta percebe-se um ser para
a morte. E sua nudez torna-se para além do corpo: é de alma. Alma que se dissolve, alma que
também morre.
Palavras-Chave: nudez – negar – cantar – morte
“Nudez” – Uma Breve Análise
(De: Carlos Drummond de Andrade)
Drummond, no entanto não cantará. Em “não cantarei” mostra-se, de início, que não
há motivos neste passar a limpo, que é o poema, para a celebração, não há razão para a
exaltação ou orgulho do que será cantado [“(...) não tenho... quando tive, nunca celebrei”];
todo canto inebria e ilude com alegrias vãs a verdade por que procura o poeta. Não há especo,
pois, para o vangloriar-se, mas sim para a verdade desnuda; por isso, nudez.
“(...) Jamais ousei cantar algo de vida”, temos a negação à vida comum e
costumeiramente cantada, querida, vista. Não há o olhar para o todo da vida, mas “o canto
que sai da boca ensimesmada”, da boca íntima, da boca que canta seu canto de fora para
dentro. A brisa, neste poema, aparece como refrescância momentânea do viver
1
Mestra em Filosofia, subárea Estética, pela UFRJ; Professora de Filosofia, Educação e Humanidades nos cursos
de Pós-Graduação Lato Sensu do Sistema Integrado de Educação – SIEL, em parceria com as Faculdades
Integradas da Terra – FTB, de Brasília – DF.
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incomodamente abafado; neste momento de frescor, de alivio do peso de viver é que dá a
possibilidade do cant(ar)o.
Destarte, pelo próprio não cantar, pela não exaltação da vida, de si é a razão pela qual
se faz a tênue integração verbal entre os homens. Ela se faz sim, mas de modo disperso e
vago; não há, para o poeta, possibilidade de compartilhar essências, não é possível a coeducação: o que a mim pertence, a mim retorna; o que sai (circula) não é o mais valioso (“o
ouro é apenas suposto”), é apenas estanho e cobre. O poeta se compara aos metais menos
nobres, os quais são maleáveis apenas pelo poder do fogo, e se diz na mesma dureza dos
‘metais menores’, isto é, não está adaptado ao canto hipócrita e inebriante do externo; o fogo
que provoca a maleabilidade do poeta é a própria incômoda necessidade de ver-se.
Da dor, o poeta, vislumbrando-se desnudado, descobre que doía. E mais: descobre-se
anestesiado (“Que dor se sabe dor e não se extingue?”). O poeta se pergunta qual é a dor que,
sabendo que é dor, não acaba: é a dor dos anestesiados, dos inebriados da vida-de-fora. Por
isso, não há motivos para que se cante o mar, ou seja, Drummond recusa o que é tão grande
(e, portanto, já cantado!), mas lembra da vingança do pequeno, do mínimo levado a cabo por
uma concha.
O que resta? Qual sentimento que vive então? Pelas imagens contidas em terra,
sepultar, morte, morto vemos o convite ao fixarmo-nos na realidade, convite ao ‘descer’ das
luzes fantásticas e perceber a finitude e a beleza concretas da vida real presente. Não há
motivos fantasiosos para o canto do poeta, pois o que o interessa é o próprio ato de cantar, do
verdadeiro cantar. Cantar este que, a cada sílaba reunida, traz em si, num destino de essência,
o negativo e o positivo do próprio ato (“serpes irritadas”); e o poeta dês-iludido vê as duas
faces. “(...) amador de serpentes”, “... sobre a relva, debruçado”, “... além da pobre área de
luz de nossa geometria” evocam o sentimento do poeta de rasteiro, de menor e, assim,
durante a vida passou a fugir e a negar o que o pertencera, o que era.
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Porém, o poeta descobriu-se, não pelo canto exaltado, mas pelo silêncio ensimesmado.
Descobriu-se e despiu-se. Percebeu-se um ser para a morte... O canto deste que é para a
morte é o canto que pode dizer de nós: os que dormem os que estão num sonho informe. Na
imaleabilidade do dizer do poeta (dureza do estanho), isto é, ela opção de não-doçura do ato
de cantar, pela não-ilusão do que quer ser cantado. Nudez objetiva lembrarmo-nos das raízes,
despertarmo-nos do canto sereno (condição apática) que anula o tempo presente, inebria e
desconscientiza-nos.
O poeta está nu. Mas sua nudez é para além do corpo: é de alma. Alma que se
dissolve, alma que também morre. Abaixo segue o poema:
Nudez
Não cantarei amores que não tenho,
e, quando tive, nunca celebrei.
Não cantarei o riso que não rira
e que, se risse, ofertaria a pobres.
Minha matéria é o nada.
Jamais ousei cantar algo de vida:
se o canto sai da boca ensimesmada,
é porque a brisa o trouxe, e o leva a brisa,
nem sabe a planta o vento que a visita.
Ou sabe? Algo de nós acaso se transmite,
mas tão disperso, e vago, tão estranho,
que, se regressa a mim que o apascentava,
o ouro suposto é nele cobre e estanho,
estanho e cobre,
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e o que não é maleável deixa de ser nobre,
nem era amor aquilo que se amava.
Nem era dor aquilo que doía:
ou dói, agora, quando já se foi?
Que dor se sabe dor, e não se extingue?
(Não cantarei o mar: que ele se vingue
de meu silêncio, nesta concha.)
Que sentimento vive, e já prospera
cavando em nós a terra necessária
para se sepultar à moda austera
de quem vive sua morte?
Não cantarei o morto: é o próprio canto.
E já não sei do espanto,
da úmida assombração que vem do norte
e vai do sul, e, quatro, aos quatro ventos,
ajusta em mim seu terno de lamentos.
Não canto, pois não sei, e toda sílaba
acaso reunida
a sua irmã, em serpes irritadas vejo as duas.
Amador de serpentes, minha vida
passarei, sobre a relva debruçado,
a ver a linha curva que se estende,
ou se contrai e atrai, além da pobre
área de luz de nossa geometria.
Estanho, estanho e cobre,
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tais meus pecados, quanto mais fugi
do que enfim capturei, não mais visando
aos alvos imortais.
Ó descobrimento retardado
pela força de ver.
Ó encontro de mim, no meu silêncio,
configurado, repleto, numa casta
expressão de temor que se despede.
O golfo mais dourado me circunda
com apenas cerrar-se uma janela.
E já não brinco a luz. E dou notícia
estrita do que dorme,
sob placa de estanho, sonho informe,
um lembrar de raízes, ainda menos
um calar de serenos
desidratados, sublimes ossuários
sem ossos;
a morte sem os mortos; a perfeita
anulação do tempo em tempos vários,
essa nudez, enfim, além dos corpos,
a modelar campinas no vazio
da alma, que é apenas alma, e se dissolve.
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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
ANDRADE, C. Drummond de. Obras Completas. In: Nudez. São Paulo: Abril Cultural, s.d.
HEIDEGGER, M. Conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
OLIVEIRA, Clenir B. de. Arte Literária Brasileira. São Paulo: Nova Aguiar S. A., 1998.
TUFANO, Douglas. Estudos de língua e literatura. São Paulo: Moderna, 1998.
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