Algumas questões de método em sociologia Pode-se dizer que a sociologia surgiu como ciência autônoma a partir de Comte e Saint Simon. Mas não ainda como disciplina constituída com um corpo sistemático de conhecimentos e de métodos específicos. O processo de autonomização da sociologia, em especial sua separação da filosofia, percorre todo o século XIX e, de certo modo, persiste ainda em nossos dias. Em Comte surge, pelo menos, a preocupação de estudar a sociedade com critérios "científicos". Na Idade Média, com o rígido controle da Igreja, os espíritos mais indagadores e sábios eram ameaçados com o fogo do inferno e ardiam, de fato, nas fogueiras da inquisição. A ciência não podia discutir as causas últimas da natureza e dos fenômenos sociais, pois tais problemas só poderiam ter uma solução justa por meio da "revelação". No Renascimento, começa o conflito entre as concepções teológicas, sustentadas pela escolástica (que era um método de filosofar que tentava demonstrar a verdade da religião), e a ciência experimental que estava surgindo. A ciência experimental, por seu turno, paralelamente ao desenvolvimento da técnica, reforçava a idéia da burguesia nascente de que a "razão" era onipotente e não deveria estar limitada por quaisquer entraves ou preconceitos. Quem primeiro formulou as regras mais gerais do que deveria ser o método científico foi Descartes, que negava a existência de noções apriorísticas legítimas e condenava a especulação, favorecendo, desse modo, a ciência experimental e a observação. No século XVIII, com Newton, começa propriamente a "revolução científica" no terreno das ciências naturais, que a partir desse momento conquistam sua "carta de alforria" em relação à religião. Nessa época, o movimento que foi chamado de Iluminismo, defende o poder absoluto da "razão" humana. Trata-se de uma concepção burguesa que se inspira, fundamentalmente, na idéia de uma conjunção necessária entre o progresso material e o aperfeiçoamento moral da sociedade. O Iluminismo implica, também, na idéia de que a "razão" pode oferecer os critérios e princípios para reformular e organizar a sociedade, pois concebe a "natureza humana" como algo factível, dado de uma vez para sempre e passível de ser perfeitamente compreendida de modo "racional e científico". Um exemplo clássico, no campo da filosofia, é Feuerbach, que, segundo Marx, entendia a essência humana apenas "como gênero", como generalidade interna, muda, que liga apenas de modo natural os múltiplos indivíduos". Porém, o jovem Marx (e segundo alguns, também em sua maturidade) tampouco escapou das influências do Iluminismo, manifestando irrestrita confiança nos poderes da "razão" e da "ciência" para libertar os homens de toda a opressão. Se o Marx da maturidade é ou não um produto do Iluminismo, é uma questão que certamente tem muitos nuances e não pode ser respondida com monossílabos. Há nele, sem dúvida, uma crença nas possibilidades da humanidade e na grandeza da "razão" (desde que saiba perscrutar o homem como ser histórico), o que talvez seja, precisamente, o legado irrenunciável do Iluminismo. No entanto, o fato, é que foi Durkheim quem aceitou plenamente o desafio posto por Comte, no sentido de enquadrar, em termos de métodos e procedimentos epistemológicos, as ciências sociais nos padrões das ciências naturais. Durkheim, em certos aspectos, discordava de Comte: a idéia da existência de "conexões causais", por exemplo, era aceita por ele, embora fosse alheia aos 1 princípios do positivismo. A finalidade da ciência, conforme Durkheim, seria descobrir as conexões causais, a causalidade dos fenômenos observados na sociedade. O modelo da ciência social proposta por Comte era a física. Tratava-se, assim, de fundar uma "física social". Durkheim, à semelhança de Spencer tem como modelo da ciência social a biologia. Mas reconhece como diferença fundamental entre uma e outra, o fato de o corpo humano ter uma única consciência, enquanto a sociedade possui uma infinidade de consciências. O método que Durkheim aplicou a sociologia pode ser sintetizado pelas palavras de Guiddens: "Os fatos sociais”, afirmou ele com destemor, “precisam ser tratados como "coisas" - talvez o mais controvertido dos preceitos expostos em “As Regras do Método Sociológico”. Essa brusca afirmação de que os fenômenos sociais pertencem ao reino da natureza é apresentada no livro no contexto de uma interpretação vigorosamente comteana do progresso da ciência. A ciência empírica tem de vencer os preconceitos e ilusões das idéias do homem acerca da natureza antes que a própria conduta social possa ser examinada cientificamente: eis aí uma proeza particularmente difícil de executar, pois o preconceito e a ilusão, na verdade, fazem parte da nossa vida social. Encarar os fatos sociais como coisas é realizar o ato de desapego necessário ao reconhecimento de que a sociedade tem existência objetiva independente de qualquer existência particular nossa; daí que possa ser estudada por métodos de observação objetiva. O traço mais importante de uma "coisa" é não ser plástica à vontade: uma cadeira se moverá se for empurrada, mas sua resistência demonstra que ela existe externamente a quem quer que a esteja empurrando. O mesmo se aplica aos fatos sociais, ainda que não sejam visíveis de modo como o é um objeto físico, como a cadeira." Não seria preciso dizer que, ao enquadrar a sociologia nos moldes das ciências da natureza, partindo do princípio que os fatos sociais devem devem ser tratados como "coisas", Durkeim reifica a sociedade humana. Quer dizer, toma as relações sociais que transcorrem na dimensão da historicidade como se constituíssem um objeto sujeito a certas leis rigorosas, absolutamente independentes da consciência humana. As relações sociais não são tomadas como inseridas num processo histórico. Assim, Durkheim afirma explicitamente nas Regras do Método Sociológico que os fatos sociais são fenômenos naturais submetidos à leis naturais. E além disso, que devemos considerar os fenômenos sociais desligados dos sujeitos conscientes que, eventualmente, possam ter determinadas representações. Em que pese o caráter teoricamente conservador de suas concepções, as quais, como se sabe, desembocaram no funcionalismo norte-americano (que se especializou em pesquisas de mercado e manipulações ideológicas), Durkheim teve o mérito de fazer um apelo à exterioridade. Ou seja, ao estudo das manifestações objetivas dos fenômenos sociais, abrindo possibilidades heurísticas bem superiores àquelas que ele mesmo colocou. Se o método de Durkheim, no sentido mais global, está irremediavelmente comprometido com a perspectiva apologética que caracteriza o positivismo, seus estudos desenvolveram e inspiraram "métodos especiais" (técnicas) de pesquisa que hoje são imprescindíveis às ciências sociais. A posição de Weber, outro clássico da sociologia, em certo sentido, é exatamente oposta a de Durkheim. É o que indica claramente Bourdieu: "Para Weber, não existe um "mundo objetivo" no sentido em que Marx se refere à sociedade global ou Marcel Mauss aos fenômenos sociais totais; a objetividade do social só pode ser apreendida através das ações individuais. A adequação dos tiposideais a uma "realidade objetiva" adquire, assim, para a sociologia weberiana, uma importância fundamental; todo o problema se resume em construir uma tipologia 2 da ação - o capitalista, o sacerdote, o profeta, o político, o cientista - para que se possa compreender as objetivações como capitalismo, religião, política e ciência." Portanto, se para Durkheim o método implica em descobrir toda a verdade na objetividade do social, inclusive os valores que nela estão inscritos independentemente das vontades e consciências, para Weber o método consiste em separar o objeto dos valores. Embora reconheça que, concretamente, na história os fatos e os valores estão unidos e implicados, para ele é possível (e necessário), do ponto de vista epistemológico, efetuar essa separação no processo mesmo de busca da verdade. Segundo Weber, não é a realidade em si mesma que é regida por leis naturais objetivas, mas é possível - dentro de certos limites - atingir a "objetividade" através do método. Para tanto, seriam necessárias algumas condições básicas: a) não recorrer a pressupostos que impliquem em juízos de valor; b) verificar as próprias constatações através do recurso à explicação causal; c) compreender que na seleção dos problemas está embutida uma "relação de valores" que é inevitável, mas que no resultado do conhecimento pode ser superada através do método adequado, já que não são propriamente "juízos de valor". Na concepção de Weber, que tem a racionalidade da realidade social como eixocentral - pois se a sociedade se constitui como uma inter-subjetividade racional, ela só pode ser apreendida racionalmente, - a construção dos "tipos ideais", que tem como função "explicar" a lógica dos fenômenos, é o ponto nodal do seu método de investigação. Não obstante ele próprio, dotado de uma cultura universal e de enorme talento, tenha produzido trabalhos científicos sumamente importantes na história da sociologia, e que continuam tendo grande valor heurístico, é interessante observar que o método weberiano não fez "escola". Weber talvez tenha sido o único grande weberiano que a história registra. Mesmo entre os intelectuais universitários de nossa época, que discorrem longamente sobre seus méritos, é raro encontrarmos uma adesão global às concepções de Weber. Acontece que, o subjetivismo das premissas weberianas, à medida que negue qualquer possibilidade de totalização social (como faz Durkheim, embora de modo reificado ou de totalização histórica – como faz Marx), deixa margem a um arbítrio metodológico de difícil equacionamento. Nos estudos atuais, Weber normalmente é convocado para socorrer os ecléticos em questões teóricas ou metodológicas pontuais. Marx talvez seja, não o mais difícil, porém o mais complexo dos clássicos da ciência social. E, sem dúvida nenhuma, é o mais comprometedor entre todos eles, pelo simples fato de que foi o mais comprometido com a luta pela transformação social. Esse fenômeno, por si mesmo, já aponta uma das características fundamentais do método marxiano. "Os filósofos - afirmou - se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras; mas o que importa é transformá-lo." Outra característica essencial da metodologia de Marx é o pressuposto de uma totalização histórica que considera "a produção e reprodução das condições materiais de existência" como dimensão básica e angular da sociedade. Isso significa que, segundo Marx, não podemos compreender a sociedade como objetivação que possui determinadas leis, nem a conduta "racional" dos homens no interior desse processo, se não levarmos em conta (ao nível dos pressupostos epistemológicos prioritários) aquilo que é prioritário aos próprios homens que vamos analisar. "Mas, para viver, é preciso antes de tudo comer, beber, ter habitação, vestir-se e algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é, portanto, a produção dos meios que permitem a satisfação destas necessidades, a produção da própria vida material, e de fato este é um ato histórico, uma condição fundamental de toda a 3 história, que ainda hoje, como há milhares de anos, deve ser cumprido todos os dias e todas as horas, simplesmente para manter os homens vivos." (5) As críticas ao método sociológico fornecido pelo marxismo partem, estranhamente, de dois lados. Daqueles que, seguindo a tradição positivista, consideram que suas premissas não são "suficientemente científicas" em termos das ciências naturais (que são tomadas como parâmetro), pois partem de generalizações que não podem ser comprovadas por via puramente empírica, além de estarem tais premissas vinculadas à noção "terrificante" da dialética. Nesse campo, podemos citar, por exemplo, Mário Bunge, que condena o marxismo como mera "ideologia" e, portanto, incapaz de propor "tecnologias sociais" eficazes para solucionar problemas fragmentários. Mas as críticas partem, igualmente, daqueles que condenam o marxismo por suas pretensões "extremadas" em termos científicos. E a posição de Castoriadis: A filosofia da história marxista é, em primeiro lugar, e sobretudo, um racionalismo objetivista. Já vemos isso na teoria marxista da história aplicada a história passada. O objeto da teoria da história é um objeto natural e o modelo que lhe é aplicado é um modelo análogo ao das ciências da natureza. Forças que agem sobre os pontos de aplicação definidos produzem resultados predeterminados de acordo com um grande esquema causal que deve explicar tanto a estática como a dinâmica da história." Submetido a um "fogo cruzado", o marxismo, por certo, é mais vulnerável a essa última posição. O que há de equívoco no marxismo não é o seu "compromisso ideológico" com os explorados e oprimidos, nem o fato de adotar premissas de ordem histórica, mas, ao contrário, certas veleidades de "ciência estritamente objetiva" - tal como as ciências naturais - que se insinuam nos escritos dos clássicos (Marx, Engels, Lênin, etc.) e se derramam copiosamente na caligrafia de Stalin e seus epígonos. No entanto, embora Marx não tenha sido um "sociólogo" no sentido estrito e restrito do termo, pois suas contribuições são de caráter mais amplo, seu pensamento representa um eixo crucial das ciências sociais em geral e da sociologia em particular. A partir dele, o método da sociologia - no sentido de um sistema de categorias operantes como desvendamento do real - tentou assimilar numa grande síntese teórica os dois termos da problemática social: conhecimento e ação, indivíduo e sociedade, sujeito e objeto, agente e estrutura, consciência e leis históricas, enfim, "unidade e luta dos contrários" como autoprodução histórica dos homens reais e concretos. Que essa síntese não esteja pronta e acabada, que apresente limitações e ambigüidades, só fazem reafirmar seus pressupostos mais gerais de que a humanidade é um gesto que constantemente estamos fazendo, e que a verdade é um processo ininterrupto, portanto impossível de verificação definitiva "pela via puramente empírica". Fonte GENRO FILHO, Adelmo. Algumas questões de método em sociologia. Disponível em: <http://www.adelmo.com.br/bibt/t080.htm>. Acesso em: 14 fev. 2006. 4