reformas pombalinas e a poesia dos inconfidentes

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REFORMAS POMBALINAS E A POESIA DOS
INCONFIDENTES
Dra. Silvina Rosa
Universidade Estadual de Maringá
No século XVIII desencadeia-se a produção sistemática
da literatura brasileira Isto não quer dizer que nos períodos
anteriores não tivesse havido literatura, mas, como diz Cândido
(1964:23), é necessário distinguir “manifestações literárias de
literatura propriamente dita, considerada aqui um sistema de
obras ligadas por denominadores comuns, que permitem
reconhecer as notas dominantes duma fase”.
Neste sentido, esse século é, no Brasil, o momento
histórico que dá origem a um sistema simbólico, no qual “um
conjunto de produtores literários”, mais ou menos conscientes
de si enquanto conjunto, mas que, de forma subjetiva, sentem o
mundo, constroem ideais filosóficos, econômicos e políticos,
interpretam as diferentes esferas da realidade e criam
mecanismos de contacto, “de modo geral, uma linguagem,
traduzida em estilos”. (Cândido, 1964:24)
Focalizando
o
ano
1750
como
marco
inicial
convencional, o referido autor identifica como ponto de partida
desse processo coletivo as Academias dos Seletos e dos
Renascidos e os primeiros trabalhos de Cláudio Manuel da
Costa.
Sem desconhecer grupos ou linhas temáticas anteriores,
(...) é com os chamados árcades mineiros, as últimas academias
e certos intelectuais ilustrados, que surgem homens de letras
formando conjuntos orgânicos e manifestando em graus
variáveis, a vontade de fazer literatura brasileira. (Cândido,
1964:25)
Não é possível desvincular a formação desses grupos da
fermentação
intelectual
da
Revolução
Francesa
e
da
1
Independência dos Estados Unidos, dos primórdios da
Revolução
Industrial,
das
Reformas
Pombalinas,
da
Inconfidência Mineira, para mencionar apenas alguns dos
episódios históricos ocorridos nesse século. O fato de esses
homens terem sido produzidos no século XVIII lhes dá uma
importância que talvez não tenha sido atribuída a nenhum outro
período literário. Se antes nós não tínhamos literatura brasileira,
também não tínhamos produção filosófica e, nesse sentido,
pode-se dizer que esses poetas são os representantes do
Iluminismo no Brasil.
O Brasil, enquanto uma nação que se construía, ainda
que na forma de um braço da metrópole portuguesa, não podia
ficar imune aos ares que se disseminavam no mundo europeu.
Isto se explica, nos termos de Marx e Engels, para quem a
consciência é um produto social, pela história da indústria e das
trocas. Para eles, após a criação do mercado mundial: “quanto
mais o isolamento primitivo das diferentes nacionalidades é
destruído
pelo
modo
de
produção
desenvolvido,
pelo
intercâmbio e pela divisão do trabalho que surge de maneira
natural entre as diferentes nações, tanto mais a história se torna
uma história mundial”.
A leitura e análise dos poemas dos árcades da
inconfidência revelam sua adesão aos temas e técnicas mentais e
artísticas do Ocidente europeu e confirmam a existência de um
ambiente brasileiro receptivo às idéias e medidas de
modernidade político-econômica e cultural das Reformas de
Pombal, das revoluções norte-americana e francesa, das
instituições inglesas e do nascente liberalismo político e
econômico.
Segundo Luz (1975:19) incentivos da política pombalina
destinados à recuperação econômica dos domínios ultramarinos
foram de grande importância para o despertar da consciência
nativista e da tendência industrialista no Brasil. Ela cita, como
2
exemplo, os planos dos inconfidentes Mineiros, em cuja
República as manufaturas constituiriam peças capitais da ordem
econômica a ser implantada.
Dado este contexto, o objetivo deste trabalho é ressaltar
o sentido do engajamento pombalino da épica de Basílio da
Gama, fazendo referências também às odes de Alvarenga
Peixoto, ao poema herói-cômico de Silva Alvarenga e à sátira
política velada das Cartas Chilenas, de Gonzaga e que, para
nós, para além da imediaticidade dos fatos políticos e das
complexas relações coloniais, faz parte da luta desses homens
por uma nova ordem no mundo e no Brasil.1
Entendendo o século XVIII como um século ainda de
transição, cuja complexidade se manifesta nos avanços e recuos
das ações políticas, na coexistência hostil de classes e setores
sociais ligados às duas formas sociais em questão e cuja
correlação de forças indicam caminhos que se bifurcam,
entrecruzam, emaranham, pretendemos identificar, mas sem
nenhum julgamento de valor, as bases filosóficas, políticas e
educacionais desse engajamento.
A base estética é a concepção que esses próprios autores
tinham quanto à função da literatura, qual seja a de deleitar e
instruir ao mesmo tempo. Entretanto, da mesma forma como
eles pretendiam persuadir ou dissuadir seus contemporâneos
desta ou daquela verdade, eles também estarão sob um enfoque
1
Este destaque é explicado pelo fato de que, desde o início do
governo de D. José I, Pombal ocupou-se de questões que envolviam o Brasil.
Reformou a legislação da indústria de mineração, adotou o sistema de
avença, aumentando, com isso, tanto a produção como as rendas da coroa.
Quanto aos jesuítas, foi nas questões brasileiras que ele encontrou a maior
resistência: tanto quanto à demarcação dos limites entre as possessões
espanholas e portuguesas da América do Sul entre 1754 e 1756, em
cumprimento ao Tratado de Madri de 1750, como quanto à criação da
Companhia Geral do Comércio do Grão Pará e Maranhão, em 1755. Além
disso, evidentemente, sempre no sentido de fortalecer o Estado monárquico, e
procurando evitar que as Reformas escapassem ao controle do Estado, a
expulsão dos jesuítas e reforma educacional foram fundamentais.
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crítico, pois são inúmeras suas incoerências e ambigüidades.
Estas, de nosso ponto de vista, também são explicáveis pela
própria complexidade do processo histórico. Assim sendo,
procuraremos ressaltar, nos próprios versos e em seus
mecanismos estéticos de persuasão, sejam eles satíricos ou
laudatórios, os indicativos do movimento histórico responsável
pelas ambigüidades ou radicalidades dos autores quanto ao
sistema colonial, à política da metrópole em relação à colônia,
às questões religiosas.
No que diz respeito à importância dessas fontes literárias,
dois aspectos de ordem metodológica devem ser considerados.
Em primeiro lugar, se a arte é condicionada pelo contexto
histórico, ela também atua na formação de novas mentalidades,
contribuindo para o processo de mudanças. Em segundo lugar, o
texto literário é fundamental para uma investigação educacional
porque, não tendo a lógica do texto científico ou filosófico, trata,
ao mesmo tempo, do geral e do particular humano. Realizando
essa síntese orgânica através da representação figurativa, a
literatura traz para o mundo da reflexão a poesia da ação
concreta de homens de carne e osso, que, pensando,
expressando-se, agindo e se contradizendo, lutam pela
existência. Encontramos nessa fonte o homem de uma época,
representado como um só ser: o político, o econômico, o
religioso, o familiar, o apaixonado, o guerreiro, entre outros
aspectos humanos.
Basílio da Gama é um exemplo de como as
circunstâncias históricas interferem no ânimo e nas decisões dos
indivíduos. Ele não participou da Inconfidência, mas seus
escritos expressam o ambiente receptivo às transformações
pombalinas. Sua trajetória não foi linear. Aos 18 anos, ainda
noviço, assistiu no Rio ao fechamento do colégio dos jesuítas
por Gomes Freire, sendo um dos últimos a retirar a “roupeta”.
Entretanto, tendo aderido à causa pombalina, mesmo depois da
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queda em que o poderoso ministro conheceu o ostracismo e a
força dos inimigos, Basílio foi dos poucos a lhe permanecer
fiéis.
Em 1768, foi preso em Lisboa por jesuitismo e, após ter
escrito um Epitalâmio à filha de Pombal, onde louvava o
Ministro e atacava os jesuítas, pintando-os alegoricamente, com
uma verve semelhante à de Voltaire, como a Soberba, a
Ambição, a Inveja, a Ignorância e a Hipocrisia, livrou-se do
degredo para a África. Em 1769, rapidamente estrutura e publica
O Uruguai, dedicado a ao “Ilustríssimo e excelentíssimo senhor
Conde de Oeiras”, conforme se observa no soneto que antecede
o poema. Destaca nesse soneto o firme perfil do estadista, seus
feitos a favor da paz, da justiça, da abundância, a reconstrução
de Lisboa, a dinamização do comércio e a expulsão dos jesuítas:
Mostra no jaspe, artífice facundo,
Em muda história tanto ilustre feito,
Paz, Justiça, Abundância e firme peito,
Isto nos basta a nós e ao nosso mundo.
(...)
Mostra-lhe mais Lisboa rica e vasta,
E o Comércio, em lugar remoto e escuro,
Chorando a Hipocrisia. Isto lhe basta.
(Gama, 1976:19)
Como prova da sinuosidade política de Basílio da
Gama encontra-se o fato de o mesmo Gomes Freire que fechara
o colégio ter sido transformado no herói do Uraguai juntamente
com os índios Cacambo e Sepé. Os jesuítas quase não aparecem
em ação e, quando isso acontece, são com demonstrações de
desumanidade e covardia.
Tais ambigüidades, entretanto, desaparecem quando se
observam os ideais filosóficos mais profundos subjacentes à
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construção da ação no poema. Tanto no que diz respeito à crítica
aos jesuítas como à exaltação do governador, o que se sobressai
são os ideais modernos, iluministas, do autor. Para além da
imediaticidade política, aparecem os ideais da sociedade nova
que surgia.
Por exemplo, apesar de estar escrevendo um poema
sobre a guerra, ele se manifesta veladamente contra a guerra:
“Fonte de crimes- militar tesouro,
Por quem deixa no rego o curvo arado
O lavrador, que não conhece a glória;
E vendendo a vil preço o sangue e a vida
Move, e nem sabe por que move, a guerra.
(Gama,1976:25)
Quanto à questão jesuítica, o primeiro aspecto por ele
considerado é a disputa pelo poder entre a instância religiosa e a
monarquia, a qual vai se firmando como porta voz do espírito
moderno. Nesta luta, o Estado português aparece sempre como
superior aos jesuítas. Em várias partes do poema, os jesuítas são
caracterizados como vassalos do rei:
Um segundo aspecto é a denúncia velada da exploração
do trabalho indígena por jesuítas, mediante a concessão da
palavra ao próprio índio, o que dá ensejo a uma defesa do
trabalho livre e a uma discussão sobre a propriedade da terra e a
riqueza enquanto resultado do trabalho, bem como uma breve
menção à prática do comércio por parte dos jesuítas.
As campinas que vês e a nossa terra
-Sem o nosso suor e os nossos braços –
De que serve ao teu rei? Aqui não temos
Nem altas minas, nem caudalosos
Rios de areias de ouro. Essa riqueza
Que cobre os templos dos benditos padres,
Fruto da sua indústria e do comércio
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Da folha e peles, é riqueza sua.
Com o arbítrio dos corpos e das almas
O céu lha deu em sorte. A nós somente
Nos toca arar e cultivar a terra,
Sem outra paga mais que o repartido
Por mãos escassas mísero sustento.
(Gama:1976, 41)
No diálogo entre o índio e o governador, construído com
base em um discurso racional e de igualdade política entre os
dois como chefes de estado, contra a tirania dos jesuítas, o
Governador defende a civilização contra a barbárie, contra o
nomadismo, contra a guerra do mais forte contra o mais fraco e,
contra a tirania dos jesuítas sobre os índios, ostenta a liberdade
oferecida pelo Rei português:
Por mim te fala o rei: ouve-me, atende,
E verás uma vez nua a verdade.
Fez-vos livres o céu, mas se o ser livres
Era viver errantes e dispersos,
Sem companheiros, nem amigos, sempre
Com as armas na mão em dura guerra,
Ter por justiça a força, e pelos bosques
Viver do acaso, eu julgo que inda fora
Melhor a escravidão que a liberdade.
Mas nem a escravidão, nem a miséria
Quer o benigno rei que o fruto seja
Da sua proteção. Esse absoluto
Império ilimitado, que exercitam
Em vós os padres – como vós, vassalos –
É império tirânico, que usurpam.
Nem são senhores, nem vós sois escravos.
O rei é vosso pais: quer-vos felices.
Sois livres, como eu sou; e sereis livres,
Não sendo aqui, em outra qualquer parte.
Mas deveis entregar-nos estas terras.
Ao bem público cede o bem privado.
O sossego de Europa assim o pede.
Assim o manda o rei. Vós sois rebeldes,
Se não obedeceis; mas os rebeldes,
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Eu sei que não sois vós – são os bons padres,
Eles vos dizem a todos que sois livres
E se servem de vós como de escravos.
(Gama,1976:43)
Numa outra estratégia épica, de previsão do futuro, em
cuja cena atuam Lindóia e a “enrugada Tanajura”, “prudente e
exprimentada”, o poeta exalta Pombal, sua reforma e a expulsão
dos jesuítas.
Começa com a descrição da crise de estagnação
portuguesa e do terremoto de Lisboa, sua reconstrução, a
dinamização do comércio, a expulsão dos jesuítas e o
restabelecimento
do
poderio
econômico
de
Portugal,
caracterizando Pombal como o
Gênio de Alcides, que de negros monstros
Despeja o mundo e enxuga o pranto à pátria.
(Gama,1976:68)
Numa coincidência estilística feliz, o poeta representa o
transporte dos jesuítas sendo feito pela própria marinha
mercantil que,
Recebem no seu seio e a outros climas,
Longe dos doces ares de Lisboa,
Transportam a Ignorância e a magra Inveja,
E envolta em negros e compridos panos
A Discórdia, o Furor. A torpe e velha
Hipocrisia vagarosamente
Atrás dele caminha; e inda duvida
Que houvesse mão que se atrevesse a tanto.
(Gama,1976:71)
A velha Tanajura prevê também que a iniciativa de
Pombal seria seguida por toda a Europa:
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Vai, filha da ambição, onde te levam
O vento e os mares: possam teus alunos
Andar errando sobre as águas: possa
Negar-lhe a bela Europa abrigo e porto.
(Gama,1976:71)
Toda essa avaliação política da situação portuguesa é
incorporada no poema como expressão de uma vingança de
Lindóia, esposa de Cacambo, cujo assassinato foi atribuído ao
chefe dos jesuítas que a queria como esposa de seu filho,
Baldeta:
Embebida na mágica pintura
Goza as imagens vãs e não se atreve
Lindóia a perguntar. Vê destruída
A República infame, e bem vingada
A morte de Cacambo(...)
(Gama,1976:71)
No final do poema, outras passagens revelam a forma
negativa como esse ex-jesuíta via a Companhia de Jesus,
analisando-a, não pelo prisma religioso, mas pelo prisma da
ambição econômica e política, fornecendo assim elementos para
se entender que Pombal, com a expulsão, não pretendia apenas
quebrar o mais forte e o mais potente instrumento de educação.
Seu objetivo principal era fortalecer o poder da monarquia sobre
a condução da sociedade, no sentido de implementar uma
política moderna que alavancasse a produção de riquezas em
Portugal e no Brasil e, para tanto, era necessário destruir o poder
dos jesuítas sobre os homens.
A laicidade política e educacional era, nesse sentido,
tanto uma bandeira do Estado monárquico como expressava
também as necessidades de uma nova classe de homens, os
comerciantes e capitalistas manufatureiros, cuja ação aparecia
como a possibilidade de superação da crise de estagnação
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portuguesa. De fato, o que estava em questão nesse momento
era o domínio sobre a produção de riquezas, a possibilidade de
explorar produtivamente as terras, liberando-as do domínio
religioso sobre a propriedade e sobre a força de trabalho.
Este aspecto das Reformas Pombalinas no sentido de
dinamizar o comércio e a produção manufatureira e de, através
da ciência, transformar as relações do homem com a natureza,
dando uma nova configuração ao trabalho é exaltado por quase
todos os inconfidentes.
Evidentemente, não se tratava de uma reforma que
contava com a hegemonia da sociedade portuguesa, pois era a
correlação de forças secular existente em Portugal que impedia,
desde as descobertas marítimas, uma ampla reforma que
dinamizasse a produção manufatureira em Portugal. Foi essa
mesma correlação de forças que levou Pombal ao ostracismo,
que concedeu postos-chave no poder aos nobres afastados
durante o seu domínio. Nesse sentido, aquilo que parecia
contraditório na adesão dos Inconfidentes aos ideais pombalinos
revela-se fruto das circunstâncias políticas, principalmente se
pensarmos que a Inconfidência acontece no período de D. Maria
I. É interessante observar que, enquanto os governadores da
época de Pombal são cantados em odes, éclogas, sonetos
heróicos, o Governador atacado por Tomás Antonio Gonzaga
em Cartas Chilenas é já um nome da “viradeira” e não de D.
José I.
Essa correlação de forcas explica também o tom
educativo, exortativo dos poemas. Como vimos, a literatura
expressa, de forma sempre dialética, a relação complexa entre
indivíduo, nação e as tendências políticas, econômicas e sociais
inerentes ao processo de desenvolvimento da produção Tendo
em vista as dificuldades de consolidação da ordem burguesa em
Portugal, explica-se que, nesse século de lutas revolucionárias, a
literatura brasileira, conformando-se às funções estéticas
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atribuídas à arte pelo racionalismo iluminista, tenha adquirido o
aspecto de uma literatura empenhada.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GAMA, Basílio da. O Uraguai. Rio de Janeiro: Livraria Agir
Editora, 1976.
CÂNDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. São
Paulo: Martins Fontes, 1964.
PROENÇA FILHO, Domício (org.). A poesia dos
inconfidentes: poesia completa de Cláudio Manuel da Costa,
Tomás Antonio Gonzaga e Alvarenga Peixoto. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 1966.
LUZ, Nícea Vilela. A luta pela industrialização do Brasil:
1808-1930. São Paulo: Alfa Omega, 1975.
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