III Simpósio Nacional de História das Religiões A expulsão dos Jesuítas no contexto do Padroado português Fabricio Lyrio Santos Mestrado em História / UFBA [email protected] A EXPULSÃO DOS JESUÍTAS NO CONTEXTO DO PADROADO PORTUGUÊS Em 3 de setembro de 1759 D. José I de Portugal decreta a lei que expulsa os jesuítas do seu reino e domínios coloniais. Esta lei coloca fim a uma crise iniciada em torno de 1750, quando Portugal e Espanha assinam o Tratado de Madri. Não é a primeira crise enfrentada pelos jesuítas nem a definitiva, conquanto leve à supressão da ordem pelo Papa em 1773. Conseguindo asilo político na Prússia e na Rússia durante mais de quatro décadas, os jesuítas conseguem reestabelecer a Companhia de Jesus em 1814. O Tratado de Madri não é fruto da político pombalina, tendo sido negociado no reinado de D. João V, por seu importante secretário de Estado, Alexandre de Gusmão. Pombal, inclusive, é contra o Tratado, por considerá-lo benéfico apenas para a Espanha, e consegue sua anulação em 1761. Neste ínterim, entretanto, centenas de indios guarani entregam sua vida para não abandonar as missões, e os Jesuítas são acusados de liderar uma guerra contra as coroas de Portugal e Espanha. As sete missões da margem oriental do Rio Uruguai deviam ser esvaziadas e entregues a Portugal, em troca da colônia do Sacramento, mas os índios se negam a deixar suas casas e plantações, não obstante tenham o direito de levar consigo seus bens e seu gado. Alguns missionários apoiam os índios, enquanto outros, provavelmente em maior número, procuram dissuadi-los da resistência armada, por ordem do provincial em Roma. Conforme Hemming, os superiores Jesuítas tentaram persuadir os índios a se mudarem das missões, mas havia um número “suspeitosamente grande” de padres nas missões quando estas foram conquistadas. O mesmo autor assinala que “The Society never contemplated allowing the Indians to remain in their lands, but with Portuguese Jesuits replacing Spaniards” [HEMMING: 1978, 473-4]. De qualquer modo, termina por vigorar a versão segundo a qual os missionários lideraram os índios contra os monarcas ibéricos. Pombal explora ao máximo o episódio e desencadeia a partir dele sua campanha contra os inacianos [Cf. LACOUTURE: 1994, 446]. Faz circular por toda a Europa um panfleto, a Relação abreviada da república que os religiosos das províncias de Portugal e Espanha estabeleceram nos domínios ultramarinos das duas monarquias e da guerra que neles tem movido e sustentado contra os exércitos espanhóis e portugueses. Publicado em quatro idiomas (embora não em latim), torna-se “uma grande arma” na batalha anti-jesuítica empreendida por Pombal em toda a Europa [MAXWELL: 2000, p. 20]. Na lei de expulsão, é dito que o progresso dos jesuítas na América em pouco tempo seria “insuperavel a todas as foças da Europa unidas”. Quase ao mesmo tempo, Voltaire se diverte fazendo Cândido se confrontar com um missionário no Paraguai de espada à cintura. Basílio da Gama, poeta brasileiro formado em Coimbra após as reformas pombalinas, dedica um poema épico a Pombal onde a guerra guaranítica é narrada como se os missionários tivessem arrastado seus índios para a morte. Por meio de uma guerra movida em função de um tratado que não duraria mais que onze anos, Pombal consegue mover a “opinião pública” européia (intelectuais, líderes e reformadores políticos e religiosos) contra a “ameaça” representada pelos padres inacianios. Mas permanece a questão sobre o que Pombal tinha, de fato, em mente. Não que não fosse real o medo de que os Jesuítas levantassem os índios contra os espanhóis e portugueses e conquistassem a autonomia de suas “repúblicas”, tanto na região platense quanto na amazônica. Mas, a expulsão dos Jesuítas não responde apenas a isto, estando envolvidas questões religiosas, políticas, econômicas e culturais. Pretendemos aqui abordar aquelas pertinentes ao projeto de gestação de um novo modelo de Estado implementado no período pombalino, que significava uma grande ruptura na história politica portuguesa, e em particular no tocante ao padroado régio. A reforma apostólica da Companhia Em 1758, 1º de abril, o Papa Benedicto XIV estabelece o Cardeal Saldanha, patriarca de Lisboa, reformador geral da Companhia de Jesus no reino português e seus domínios, por carta apostólica na qual ressalta seu “paternal affecto” pelos Jesuítas. Com sua idade já avançada e saúde combalida, Benedito considera de suprema importância atender à representação de D. José I, a respeito das “grandes desordens” e “abusos” cometidos pela Companhia de Jesus em seu reino, e domínios. Ressalta a importância em manter as províncias religiosas “na tranqüilidade da paz, e do socego, e na observância da vida regular, e da disciplina ecclesiastica”. Mas não esconde a preocupação em atender a solicitação de um filho “fidelíssimo”, o qual temia que tais desordens e abusos “crescessem mais pelo tempo futuro”. Afinal, estaria agindo em nome da religião ou do estado? A constituição do visitador, atendendo ao “louvável instituto e costume dos Pontífices Romanos”, comete ao Cardeal de Lisboa todas as províncias existentes nos Reinos, domínios e regiões sujeitas ao rei de Portugal; todas as casas professas, noviciados, igrejas, colégios, missões e quaisquer outros lugares sujeitos à Companhia de Jesus; todos os superiores, reitores, administradores, religiosos e mais pessoas de qualquer dignidade. O Cardeal devia inquiri-los “sobre o estado das mesmas pessoas, e da sua vida, costumes, ritos, disciplina, e modo de viver e sobre a observância das doutrinas evangélicas, e dos Santos Padres, Concilios Geraes, Decretos dos sagrados canones, instituto regular da dita Companhia e determinação das Constituições apostólicas”. Devia mudar, corrigir, emendar, renovar ou revogar tudo o que se mostrasse necessário, “sem dilação ou appellação”, removendo as pessoas dos seus respectivos ofícios, mudando-os de uns para outros conventos ou colégios, “constrangendo e impellindo os desobedientes e rebeldes com censuras e penas ecclesiasticas”, participando os casos mais graves breve e diligentemente ao papa. Tinha, ainda, permissão para subdelegar em qualquer pessoa eclesiástica os mesmos poderes em todo ou em parte, para que em seu lugar fizessem “a dita visita e reforma, assim nas províncias do Reino como nas do ultramar”. Por fim, o breve manda que todos os jesuítas humildemente recebam e procurem executar “as saudáveis admoestações, e mandados que lhes forem expedidos por vós e pelos sobreditos vossos subdelegados” [v. ACCIOLI & AMARAL: 1919, 538-547]. O Cardeal conclui em menos de sessenta dias que os Jesuítas estão corrompidos, uma vez que envolvidos em negociações seculares e comerciais. Por seu mandamento do dia 15 de maio de 1758, argumenta que a proibição aos religiosos de se envolverem em negociações mercantis está estabelecida desde a fundação do Cristianismo, reportando-se ao episódio em que Jesus expulsa do pátio do Templo de Jerusalém os mercadores. Cita, em seguida, três ocasiões apostólicas em que esta proibição é reforçada. 1. A bula Eu debito pastoralis officii, de 22 de fevereiro de 1633, de Urbano VIII; 2. Solicito pastoralis officii, de 17 de junho de 1669, de Clemente IX; 3. Do próprio Benedito XIV, uma sua bula de 25 de fevereiro de 1741, que menciona especificamente os Jesuítas. O Cardeal afirma que os Jesuítas excediam estas proibições, envolvendo-se não apenas nas “negociações seculares”, como a adminstrtação civil das aldeias, mas também nas negociações mercantis, comprando e vendendo gêneros nos sertões da América. Manda, em função disto, que o comércio seja prontamente suspenso, e os Jesuítas dêem conta dos lucros ilicitamente conseguidos [v. ACCIOLI & AMARAL: 1919, 540-546]. Fica claro que o Cardeal está sintonizado com a política pombalina, no que respeita à sua estratégia para derrubar os Jesuítas. Suas acusações contra os inacianos constituem a condenação apostólica da Ordem; um golpe desferido pelo próprio “braço eclesiástico”, conquanto não bastasse o secular. Pombal não despreza este apoio, o qual não vai buscar em vão. A condenação religiosa, enquanto não se interpõe nem sobressai à civil, é um elemento complementar imprescindível. Novas vilas e vigararias Logo em seguida ao mandamento do Cardeal condenando os Jesuítas, o Rei estabelece um Tribunal especial do Conselho Ultramarino, por cartas de 8 e 19 de maio de 1758. Os desembargadores José Mascarenhas Pacheco Pereira Coelho de Mello e Manoel Estevão de Almeida de Vasconcellos Barberino são enviados à Bahia para compor este Tribunal junto com o doutor Antonio de Azevedo Coutinho e o vice-rei Conde dos Arcos, D. Marcos de Noronha. O conjunto de decretos assinados pelo Rei em 8 de maio, referentes às atribuições do Conselho, incluem a ordem de erigir em vilas as aldeias missionárias e confiscar os bens mantidos pela Companhia de Jesus sem licença régia. Estas informações chegam ao conhecimento do vice-rei por carta régia de 19 de maio, trazida pelos desembargadores advindos de Lisboa. D. José ressalta que em vista à “brevidade do tempo”, não foi possível passar as cartas dos referidos lugares no Conselho: “Houve por bem outrossim haver-lhes dada desde logo a pose delles, como se realmente a houvessem tomado” [v. ACCIOLI & AMARAL: 1919, 596]. Determina-se que as novas vilas tenham casa de câmara e prisão, vereadores e juízes ordinários, tudo segundo o estilo português, em cumprimento às leis de 6 e 7 de junho de 1755. Não se dá logo notícia na Bahia a respeito do Diretório do Maranhão, organizado em 1757 pelo irmão de Pombal, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, sendo que o estabelecimento das novas vilas não obedece diretamente a nenhum de seus 95 parágrafos. Ao contrário, ao tomar conhecimento do Diretório, o Conselho Ultramarino dá um parecer no mínimo curioso [v. PROJETO RESGATE: Doc. 4256, “Parecer do Conselho Ultramarino...”]. Não que tenha chegado a refutá-lo, mas afirma ser impraticável estabelecer diretores para as aldeias, por faltarem pessoas com as qualidades necessárias, anulando, assim, a própria “razão de ser” do Diretório. O Conselho recomenda que os ministros incumbidos de erigir as vilas servissem de escrivães da câmara e dos juízes, e assumissem interinamente a direção dos aldeamentos, fazendo cumprir as determinações do Diretório do Maranhão naquilo em que se aplicasse à Bahia. Nesta função, tanto quanto os diretores, os escrivães ficam obrigados a ensinar os meninos e meninas da aldeia, estas até a idade de dez anos, devendo aprender as “artes” próprias de seu gênero. Na Bahia, incluindo as capitanias de Ilhéus, Porto Seguro e Sergipe, apenas os aldeamentos jesuítas tornam-se vilas, segundo a informação de Vilhena [cf. VILHENA: 1969, Livro II, Carta XII, 460-461]. Os jesuítas administravam quatro, das sete aldeias existentes em Ilhéus, as duas únicas de Porto Seguro e apenas uma, das cinco de Sergipe. Na Capitania da Bahia, eram apenas quatro, de um total de vinte, estando a maioria das restantes sob administração ou de Clérigos ou de Franciscanos. Entre a composição do Tribunal do Conselho e o fim de 1758, várias providências são tomadas para o estabelecimento das vilas, sendo que a ereção da vila de Abrantes, na antiga aldeia do Espírito Santo, nas proximidades de Salvador, torna-se um processo paradigmático para as demais, como se vê no relatório escrito a 22 de dezembro e enviado a Lisboa [v. AAPEB: XXVI (1938), 5-45]. A legislação indica que as aldeias (aldeamentos) deviam-se estabelecer não apenas em vilas, como também em vigararias, entregando-se o espiritual a párocos do hábito de São Pedro. Em carta dirigida ao Arcebispo da Bahia, datada do mesmo 8 de maio de 1758, o Rei trata diretamente deste assunto [v. ACCIOLI & AMARAL: 1919, 561-562]. Orienta o Arcebispo para erigir vigararias nas antigas missões, e refere-se aos índios como paroquianos. Diz ainda que a assistência espiritual concedida pelos missionários aos índios havia sido permitida interinamente, enquanto o clero secular não pudesse prestá-la. Mas que estando informado de que o Arcebispado contava com suficiente número de párocos, havia por bem dar como terminado o período da interina irregularidade. Daí porque a legislação indigenista pombalina foi um duplo golpe nas ordens religiosas missionárias, atingindo de modo particular os Jesuítas. Como observou Costa e Silva, a carta ao Arcebispo refere-se explicitamente às aldeias administradas pelos inacianos [COSTA E SILVA: 2000, 57]. As igrejas, imóveis e plantações das aldeias não implicavam em qualquer direito aos Missionários, pois eram fruto do trabalho dos índios e pertencentes a eles. Caso reclamassem ressarcimento pela entrega destas benfeitorias, estariam incidindo no erro de arrogar-se a posse, que não lhes era autorizada. 3 de Setembro Em setembro de 1758 o Rei sofre um atentado enquanto voltava da casa de sua amante, a esposa do marquês Luís Bernardo de Távora. Em dezembro, uma grande operação de batidas policiais leva presos membros da família Távora, o duque de Aveiro e o conde de Autoquia. As residências jesuíticas são postas sob guarda. A condenação sai a 12 de janeiro do ano seguinte, e os inacianos são tidos entre os culpados. O atentado foi desferido no 3º dia daquele mês, e torna-se o mais forte argumento da coroa. A escolha do dia 3 de setembro para publicação da Lei de expulsão dos Jesuítas, exatamente no primeiro aniversário da tentativa de regicídio, é um elemento fundamental da estratégia discursiva e argumentativa da coroa, como já havia notado Serafim Leite [Cf. HCJB, t. VII, p. 343]. Ao associar a expulsão dos jesuítas à tentativa de regicídio, busca-se consensualizar a idéia de que a permanência dos jesuítas é uma ameaça ao reino, enquanto sua expulsão convém à paz pública e ao bem comum. Ao mesmo tempo, a coroa se coloca como agindo defensivamente, enquanto as ofensivas partem dos padres: liderar índios contra o tratado de Madri, levantar os súditos contra o rei, atentar contra sua fama na Europa. A lei de expulsão é precedida de uma ampla exposição de motivos na qual uma série de acusações é levantada. O tratado de Madri é indicado como momento fundamental, por meio do qual ficam patentes as grandes usurpações na América. Se o progresso da Companhia de Jesus não fosse “prontamente atalhado” concorreria com todos os poderes da Europa unidos. Para atender a isto, segundo o texto, são tomadas duas medidas, na união entre as jurisdições pontifícia e régia. A primeira é a reforma religiosa decretada pelo Papa, a pedido do Rei, na pessoa do Cardeal Saldanha, visando “reduzir” os religiosos à observância do seu “Santo Instituto” (as regras de constituição da ordem aprovadas no século XVI). A Segunda é a mudança no sistema administrativo das aldeias, “apartando” os jesuítas da “ingerência nos negócios seculares”, que eram a administração das pessoas, bens e comércio dos índios. Esta ingerência, segundo o texto, havia despertado a cobiça e ambição dos padres pelas riquezas mundanas, desviando-os de seus pios propósitos [v. ACCIOLI & AMARAL: 1919, 546-548]. Perceba-se como a Lei procura dar um sentido a todos os episódios transcorridos até então. A estas duas medidas, ainda segundo o documento, os jesuítas reagem em três ocasiões. Em primeiro lugar, a guerra guaranítica, pela qual levantam os índios dos sete povos contra o tratado estabelecido entre as coroas de Portugal e Espanha. Para o governo pombalino, como colocado anteriormente, era indubitável que os jesuítas haviam liderado os índios contra a migração dos sete povos, determinada pelo Tratado de Madri. Em segundo lugar, os religiosos inacianos reagem com a sedição interna com que animaram os súditos contra o rei, até convencê-los a atentar contra a própria vida do monarca, coisa “nunca imaginada” entre os portugueses. E, por fim, passam a atentar contra a “real fama”, da qual depende o sustento da autoridade monárquica, por intermédio dos seus irmãos em Roma. Deste modo, os jesuítas são acusados de atentar contra a tranqüilidade e os interesses dos vassalos, contra a paz pública do reino, e contra a autoridade real. Este “arrazoado” vem reforçar a ofensividade atribuída aos Jesuítas. A carta régia ao Cardeal Simultaneamente à promulgação da lei de expulsão, é enviada uma carta régia ao Cardeal de Lisboa informando a seu respeito. A carta dirige-se ao Cardeal Saldanha tanto enquanto reformador geral da Companhia de Jesus, para que fique “na intelligencia da religiosissima observancia que tenho praticado com a santa séde apostolica em tudo o que podia dizer respeito á sua autoridade”, como enquanto prelado diocesano, para que possa “exhortar os vossos subditos do estado ecclesiastico afim de que como bons e leaes vassallos hajão de dar exemplos de fidelidade e de zelo aos seculares”. O Rei conta com a colaboração dos ministros sujeitos ao Cardeal, para a exata execução do que havia determinado “pelo que pertence a temporalidade ao socego publico dos meus reinos, e dominios, e ao repouso commum dos meus leaes vassallos” [v. ACCIOLI & AMARAL: 1919, 548-551]. Esta carta reproduz o corpo deliberativo da lei, mas introduz um outro arrazoado, que principia fazendo referência ao atentado de 1758. Em função da Junta da Inconfidência ter decretado a culpa dos jesuítas, o Rei precisava agir prontamente em defesa de sua autoridade, e então manda-os suspender, e fica à espera de que chegue ao conhecimento do Papa as necessárias atitudes a serem tomadas. No entanto, após enviar ao Papa as provas necessárias, e enquanto aguarda uma resposta, fica sabendo da campanha difamatória e caluniosa dos jesuítas romanos, o que agrava a urgência com que deve agir. E conclui dizendo que pela certeza de haver cumprido com aquella minha e reverente attenção na presença de Sua Santidade (...) se faz indispensavel, que eu não dilate por mais tempo a indefectivel defeza, com que devo sustentar o meu real decoro, a autoridade da minha corôa, e a segurança dos meus reinos e vassallos... Passa, então, a narrar as etapas pelas quais os jesuítas foram sucessivamente agredindo o rei, o reino e os vassalos. Diz que quando gozavam das maiores honras e benefícios do Estado português, “machinarão as clandestinas e violentas usurpações que tinhão feito no norte e no sul do Brasil, não só dos meus dominios, mas também da liberdade e da honra e fazenda dos habitantes d’elles”. Quando estas usurpações seriam descobertas pela execução do Tratado de Madri, “passarão logo a animar contra a minha real pessoa e governo alguns principes soberanos”. Quando os índios sublevados dos sete povos foram derrotados, “passarão a suscitar dentro do mesmo reino sedições intestinas”. Quando erraram o “abominavel golpe”, “passarão a attentar contra a minha alta reputação a cara descoberta”. A escolha dos episódios não difere muito daquela apresentada no arrazoado da Lei de Expulsão, embora haja uma mudança de ênfase: aqui, os jesuítas estão continuamente conspirando e atentando contra o Estado. A tentativa de regicídio e a campanha difamatória não refletem sua insatisfação quanto às tentativas de fazê-los seguir seus Institutos, conforme o texto da Lei, mas antes como etapas sucessivas de um processo contínuo de usurpações clandestinas e maquinações. Além disso, e não menos importante, o vocabulário incorpora expressões que alteram o tom apreciativo das acusações, tais como “calumnia”, “imposturas”, blasphemando”, “humildade”, enfim. O que fica claro da leitura desta carta é que o governo espiritual é tratado como pertencente a uma esfera separada do governo temporal, e que as autoridades espirituais devem se circunscrever a esta sua própria instância, sem ingerir nos negócios temporais. O Cardeal Saldanha é convidado a agir como soberano diante de seus súditos do “estado eclesiástico” (os padres e regulares), mas não diante dos súditos do estado secular, exceto pelo exemplo de fidelidade que aqueles devem dar a estes, e para tanto devem ser exortados. O Rei deixa claro que “no temporal não deve reconhecer, nem reconhece na terra superior”. Não obstante, deve agir “não só como monarcha duas vezes responsavel a Deus, pelo decoro da magestade, que de mim confiou, e pela conservação da paz publica, em que devo manter os meus reinos, mas tambem como pae e defectivel protector dos meus fieis vassallos”. Permanece, portanto, o ideal de sacralização do poder político que atravessa séculos em Portugal e em toda a Europa. A expulsão dos Jesuítas e o Padroado régio O regime do padroado, em Portugal, tal como o patronato espanhol, tem sido apontado por diversos historiadores como a completa fusão entre a Igreja católica e o Estado. Não obstante suas origens medievais, o Padroado que vigora na expansão ultramarina portuguesa é centralizador e monárquico. A rigor, o regime pode ser definido como a concessão de atribuições na esfera religiosa que não são da competência de quem as recebe. Portanto, o Padroado régio consiste no controle do monarca sobre a administração da Igreja, incluindo o recolhimento dos dízimos, a construção de igrejas, a apresentação dos bispos e o pagamento dos seus rendimentos, que passam a constar da “folha eclesiástica”. Sua instituição, por meio de uma série de bulas papais, está associada a alguns fenômenos históricos fundamentais. O primeiro deles é a expulsão dos mouros da península ibérica, em tudo semelhante às expedições que partiam para libertar Jerusalém. Tanto as cuzadas como a reconquista ibérica nutrem-se do ideal universalista cristão, associado a uma abertura inovadora no tocante ao recurso às armas para propagação da fé e da religião. Como nos mostra a prof. Elizete da Silva, o expansionismo islâmico, empreendido por meio da guerra santa, constituía uma “declarada afronta ao expansionismo cristão”, de modo que a resposta cristã se dá na mesma moeda [Cf. SILVA: 2000, 56]. A retomada de territórios conquistados pelos mouros é vista como uma obra pia, daí porque o papado reconhece sua legitimidade e concede ao rei a organização da igreja em tais territórios. O segundo fenômeno é a expansão ultramarina, que, num primeiro momento, prolonga a perseguição aos mouros por terras não européias. Num segundo momento, a expansão revela novos espaços e povos ignorantes da fé. Diante do conhecimento de novos mundos, o pagão passa a substituir o infiel, no imaginário expansionista cristão. O papado incumbe os monarcas lusitanos de instituírem a igreja nos novos domínios e propagarem a religião católica, concedendo-lhes o padroado e o mestrado da Ordem de Cristo, sob cuja bandeira se organizam as expedições e se estabelece a igreja nas terras recém descobertas [Cf. AZEVEDO: 1978, pp. 19 e 26]. O terceiro fenômeno que pode ser indicado é a reforma protestante. Seu reflexo em nações como Portugal e Espanha é o oposto da desagregação que provoca, por exemplo, na Alemanha. O movimento iniciado pelo frei Marinho Lutero quebra em definitivo a unidade religiosa da Europa, instaurando o conflito no próprio seio do Cristianismo. Como mostra Latourette, a resposta católica vem no sentido de uma maior afirmação de sua ortodoxia e o fechamento de qualquer porta para o diálogo, sendo mútua a hostilidade [LATOURETTE: s/d, 197]. A concorrência comercial pelos mares nunca dantes navegados e as colônias ultramarinas, opondo Portugal, França e Holanda, traduz-se enquanto uma disputa religiosa por áreas de influência, ao menos no imaginário português. Isto está claramente presente no conhecido poema épico Feitos de Men de Sá, cuja autoria é atribuída a Anchieta. Infiéis, pagãos e hereges são os grandes inimigos da nação portuguesa em formação e expansão, fazendo com que o destino de uma nação inteira esteja associado à afirmação de uma fé enquanto expressão da nacionalidade. O conflito religioso, em Portugal, torna-se uma questão de Estado. Ao mesmo tempo, é uma questão fundamental para o papado e estes seus maiores escudeiros, os Jesuítas. O Estado, torna-se um agente da Igreja. A Igreja, torna-se um departamento do Estado. Neste sentido, não se trata tanto de subordinação, como querem alguns autores críticos da atuação “compromissada” da Igreja Católica no período colonial [Cf., p. ex., AZZI: 1987]. Se o objetivo do padroado é colocar a Igreja a serviço do Estado, é porque este mesmo Estado, no tempo de um D. João III, por exemplo, está comprometido com a causa mais ampla da cristianização do mundo, o que igualmente o coloca o a serviço da Igreja. O rompimento de Pombal com a política lusitana precedente se dá no interior das ambíguas relações do padroado. Pombal não põe fim a tal regime, mas opera uma mudança fundamental que correponde ao “espírito da época”. Este mudança tem sido interpretada sob dois ângulos principais: o da secularização e o do regalismo. No tocante à secularização, podemos tomar como exemplo a análise de Francisco Falcon. Lembra-nos este historiador que se trata de um tema recorrente na literatura portuguesa de inspiração iluminista. Verney é seu maior expoente, e em grande parte inspirador das reformas pombalinas no tocante à religião e à educação. Dentro dos limites específicos da ilustração lusitana, secularização não significa o estabelecimento de um Estado dissociado da questão religiosa. Segundo Falcon, seu alvo não é a Igreja, enquanto instituição religiosa, mas a dominância do aparelho religioso sobre os demais “aparelhos ideológicos”. Os Jesuítas são a própria imagem disto, tanto por seu posicionamento terreno, quanto por sua hegemonia no domínio da cultura, com ramificações no político. A concentração de poder e riqueza em suas mãos é inconcebível do ponto de vista das novas idéias [Cf. FALCON: 1993, 424-425]. Sua expulsão, portanto, deriva de um projeto mais amplo, ainda que paradoxal, por evitar um rompimento completo com o passado e a tradição: Era em nome da própria religião, era em favor da Igreja que o discurso reformista e secularizador justificava a prática hostil aos Jesuítas. Era preciso fazer ver, repetir a todo instante, que foram eles os únicos responsáveis, fugindo aos seus deveres, traindo a confiança do príncipe [FALCON: 1993, 430]. O segundo prisma pelo qual se pode perceber o problema das relações entre Estado e Igreja na política pombalina é o do regalismo. Segundo o historiador Keneth Maxwell, o regalismo aparece quase simultaneamente na França (galicanismo), Alemanha (febronismo), Áustria (josefismo) e península ibérica, consistindo na política geral dos reis católicos do século XVIII, que visa a afirmação dos direitos do Estado sobre os da Igreja. Não se trata, pois, de uma política mais ampla de secularização, visando a separação entre Igreja e Estado, como proposto por muitos pensadores da época. Segundo Maxwell: Pombal e seus colaboradores eclesiásticos, na verdade, tomaram e adaptaram de outros o que servia para seus objetivos, que eram essencialmente regalistas e católicos. Ou seja, aceitavam a supremacia do Estado mas não queriam ver o catolicismo derrubado. Queriam a autoridade papal circunscrita e uma grande autonomia para as Igrejas nacionais, com as ordens fraternas e o clero regular purificados e em número limitado, e desejavam alcançar isso pela expansão do poder dos bispos [MAXWELL: 2000, 102]. A secularização e o regalismo constituem dois aspectos fundamentais do reformismo ilustrado de Pombal, associados diretamente à campanha anti-jesuítica, mas não abalam o Padroado régio. O regalismo vem no sentido de reforçar a precedência do monarca no tocante à administração eclesiástica e intervenção na esfera religiosa, como já estabelecido. Por outro lado, conquanto o projeto de secularização se manifeste na forma específica como Pombal trata em separado as esferas civil e religosa, não obstante fique claro que ambas fazem parte do Estado, nenhum encaminhamento é dado para que o religioso se torne autônomo do político, ou venha a ter menos importância na sociedade, salvo naquelas esferas que o Estado passa a reservar para si. A grande mudança que se processa é mais de conteúdo do que de forma, e responde às razões que levaram à expulsão dos jesuítas de Portugal. Os bens e edifícios eclesiásticos constantes do seqüesro feito na Bahia, por exemplo, não são levados a leilão, mas colocados sob administração do Cabido arquiepiscopal, na ausência do Arcebispo. O Rei permanece esperando pela determinação do Papa a respeito deles [v. ACCIOLI & AMARAL: 1919, pp. 601 e 609]. Por outro lado, a secularização dos aldeamentos missionários contribui para o aumento tanto do número de paróquias no sertão da Bahia quanto do poder de intervenção arquiepiscopal [COSTA E SILVA: 2000, 56-57]. O clero secular ganha novo impulso com a expulsão dos Jesuítas, como talvez não tenha imaginado D. José Botelho de Matos, que se opõe francamente à perseguição e é levado a renunciar ao Arcebispado da Bahia. O Rei mantém a religião como fundamento de sua autoridade, ao mesmo tempo que a contrapõe à autoridade apostólica. Neste sentido, o culto católico é preservado, mas uma nova função lhe é reservada. A nação se normaliza como uma sociedade de ordens em torno da casa real, que lhe fornece ao mesmo tempo seu centro, e, como um espelho, a possibilidade de se representar a ela mesma. Ocorre uma retomada das estrutura religiosas, mas em outro regime. As organizações cristãs são reempregadas em função de uma ordem que elas não mais determinam [DE CERTEAU: 2000, 161 – grifos nossos]. O Padroado passou. Não enquanto relação intitucional ou princípio jurídico, que como tal permanece até ser abolido por mudanças políticas de cunho mais liberal inspiradas na Revolução francesa. No Brasil, isto se dá com a proclamação do regime republicano, no final do século XIX. O império brasileiro, formalmente definido em torno da constituição promulgada por D. Pedro I em 1824, mantém católico o Estado e cerceia a liberdade de outros credos. Mas o padroado é mantido pelo próprio texto constitucional, e não por bula apostólica, revelando esta grande inversão promovida por Pombal e pelo iluminismo europeu do século XVIII, na qual os direitos religiosos do rei não são mais concedidos pelo papa, mas demandados pelos próprios monarcas como prerrogativa de sua soberania nacional. Aí, então, não há mais espaço para os Jesuítas, não aqueles do século XVI e da contra-reforma. O reestabelecimento da Ordem no século XIX não é propriamente sua restauração. Ao menos desta vez, ela ficou do lado errado da história. FONTES DE PESQUISA Documentação Impressa ANAIS do Arquivo Público do Estado da Bahia (AAPEB). Documentação Digitalizada (CD-ROM) PROJETO RESGATE de documentação histórica. Arquivo histórico ultramarino de Lisboa. Coleção Castro e Almeida. Referências Bibliográficas ACCIOLI & AMARAL. Memórias políticas da província da Bahia. Bahia: Imprensa Oficial do Estado, 1919. vol. V. AZEVEDO, Thales de. 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