Disciplina: História da Igreja III – Código: TG.07.03 Professora: Virgínia Buarque 1ª. Aula – 13 de março de 2017 Abordagens investigativas para história da Igreja na pós-modernidade Bibliografia de referência: BUARQUE, Virgínia. A especificidade do religioso: um diálogo entre historiografia e teologia. Projeto História, São Paulo, n. 37, p. 53-64, dez. 2008. I- História das igrejas cristãs: uma abordagem teórica interdisciplinar Dupla repercussão da modernidade (a partir de meados do século XVIII) refutação tanto da especificidade do objeto quanto da metodologia da história das igrejas cristãs. a) Quanto ao objeto a experiência religiosa é compreendida como um produto histórico, vinculado às relações político-sociais vigentes em cada temporalidade. b) Quanto à abordagem a história das igrejas cristãs, que passou a ser promovida em termos científicos e não mais exclusivamente teológicos. Novas alterações na pós-modernidade: a) A relevância (e, por conseguinte, a especificidade) do religioso são reafirmadas; b) Busca-se uma nova abordagem recurso à interdisciplinaridade. Hipótese considera-se que o diálogo com a teologia, nesta postura interdisciplinar, possa proceder a uma ressignificação acadêmico-cientifíca da “história das igrejas cristãs/história religiosa”. CERTEAU, Michel de. Um indício: o tratamento da ideologia religiosa em história. In: A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. “A relação entre história e teologia, inicialmente, é um problema interno da história. Qual é o significado histórico de uma doutrina no conjunto de um tempo? Segundo quais critérios compreendê-la? Como explicá-la em função dos termos propostos pelo período estudado? Questões particularmente difíceis e controvertidas, quando não nos contentamos com uma pura análise literária dos conteúdos ou da sua organização e quando, por outro lado, recusamos a facilidade de considerar a ideologia apenas como um epifenômeno social, suprimindo-se a especificidade da afirmação doutrinária. [...]”. Idem. A inversão do pensável. A história religiosa no século XVII. Op. Cit. “Pode-se perguntar também: tratar-se-ia do mesmo tipo de “religião”, a da Idade Média, a do século XVII ou do século XIX? O conceito e a experiência da religião não se referem à mesma coisa. Trata-se de sistemas entre os quais o termo comum de “religião” seria equívoco. Desta perspectiva, a história social desmistifica a história religiosa no singular (e, portanto, a univocidade dos seus instrumentos conceituais), mas não suprime a necessidade de histórias religiosas. Pelo menos, as que teriam como papel impedir que um tipo de interpretação se proponha como único. Deste ponto e de vista, elas se tornariam críticas com relação a modelos explicativos (contemporâneos) e assegurariam a resistência de outros passados: defenderiam a própria história [...]” 1. A constituição de uma história científica das igrejas cristãs No interior do campo teológico: a) Johann Lorenz von Mosheim (1755) Ainda que a atuação de Deus possa ser reconhecida na fundação e na permanência temporal da confissão luterana, esta instituição era concebida como uma sociedade análoga ao Estado, e sua história deveria ser narrada, portanto, como uma história política. b) Ferdinand Christian Baur (1860), luterano, e J. Adam Möhler (1838), católico, autores que buscaram reconstituir as transformações na historicidade das igrejas a que pertenciam com ajuda do idealismo alemão. Nas recém-surgidas ciências sociais: Durkheim (1917) e Weber (1930) a experiência religiosa foi entendida não mais como manifestação de um projeto religioso salvífico, e sim como uma elaboração representação social das vivências e relações coletivas. 1.1. Dualismo metodológico, com hipóteses divergentes quanto ao religioso: As interpretações científicas acerca da história das igrejas cristãs assumiram, sobretudo no século XX, um perfil dualista: a) Vertente sociológico-antropológica (voltada para as práticas) hipótese de dessacralização da sociedade ocidental, com perda do referencial sagrado na trajetória das igrejas cristãs (substituído por liames políticos, culturais etc.). Gabriel Le Bras (1970), sacerdote católico, buscou compreender o fenômeno da “descristianização” na França através de uma enquete estatística retrospectiva, pautada na frequência à comunhão, no fluxo de vocações religiosas etc. A partir daí, ele interpretava as motivações das oscilações dos índices de pertença eclesial. O trabalho de Le Bras foi desdobrado em em centros de pesquisa e periódicos especializados da Igreja Católica, como a Revue de l’Histoire de l’Église en France. Em paralelo, os estudos das práticas religiosas também adotaram enfoques antropológicos, como os de Maurice Agulhon (2014), debruçando-se sobre a alteridade cultural-religiosa comumente denominada como “popular”. b) Vertente literário-cultural (voltada para os sistemas de pensamento) realçava a resistência cultural do religioso na vida eclesial e social História literária da espiritualidade, promovida por Henri Brémond (1933) e Étinne Gilson (1978). (11 volumes, 1916-1934) História das mentalidades, já preconizada por Marc Bloch (1944) e Lucien Febvre (1956). Mesmo estudos de contornos marxistas dedicados à análise do cultural destacavam a relevância dos sentidos religiosos na constituição das identidades sociais, como o trabalho de Lucien Goldmann (1970). VOVELLE, Michel. Rins e corações: pode-se escrever uma história religiosa a partir de traços? Ideologias e mentalidades. São Paulo: Brasiliense, 1985. “O debate que pretendi abrir aqui, apesar das aparências, nada tem de acadêmico. Tem por fim conduzir a uma reflexão, ou mais exatamente, ao estado atual de uma questão hoje singularmente fluida: a dos métodos de abordagem das atitudes e das práticas religiosas. Domínio em total renovação nos últimos decênios: obviamente, já não se escreve hoje a história religiosa como antigamente. Porém, e é verdade que se multiplicam os temas nesse campo, nos encontramos longe de um consenso metodológico, o que também se poderia argumentar não ser indispensável. Porém, nessa abundância de aberturas em todas as direções, somos obrigados a perguntar: desaparecerá a história religiosa [...]? Isto é: se fundirá ela com a história das mentalidades ou mesmo com uma etnografia histórica, cujo expansionismo é evidente? [...] A descoberta do quantitativo na história religiosa Sem remontar ao dilúvio, é evidente que quando o abade Brémond, há mais de cinquenta anos, investigava, como desbravador ousado, os domínio de uma Historie littéraire du sentimento religieux (História literária do sentimento religioso), o problema se colocava em termos inteiramente diversos. [...] Brémond havia descoberto um caminho, e esse caminho não caiu inteiramente em desuso, conduzindo às produções mais recentes da história da espiritualidade, atenta ás aventuras individuais de um pequeno número de eleitos. Para introduzir nosso tema convém, porém, partir de uma outra revolução metodológica, prontos a apreciá-la, ela mesma, historicamente: a da sociologia religiosa, cujas trilhas e técnicas foram iniciadas por Bras e Boulard. Em 1980, François Isambert, auxiliado, por Jean-Paul Terrenoire, publicou o Atlas de la pratique religieuse des catholiques en France (Atlas da prática religiosa dos católicos na França), a partir de escritos e documentos do cônego Boulard. Um monumento, sem dúvida, que não deixou de ser útil nem de provocar interrogações através de suas série de mapas de páscoa, missas e eucaristia, a respeito de homens e mulheres, distribuídos entre cidade e campo, e entre status sociais hierarquizados [...] Coloca-se essa hipótese de trabalho, ou essa fértil imprudência metodológica, que consiste em afirmar que entre os gestos da prática e a fidelidade religiosa, há uma correlação, grosseria é certo, mas positiva e indiscutível”. A história literária das ideias e, posteriormente, a história das mentalidades, por conferir um maior destaque à especificidade do religioso, viabilizou a promoção de um diálogo, ainda que indireto, do conhecimento histórico com o saber teológico. A teologia, por sua vez, dedicava-se a uma interpretação histórica dos dogmas, como na obra do jesuíta Henri de Lubac (1991). Porém, parcela expressiva dos autores dedicados à reconstituição histórica das igrejas cristãs ainda preservava os postulados teológicos desta escrita, mesmo que procurando articulá-los com algumas inovações da historiografia científica, entre os quais Hubert Jedin (1981), Jean Daniélou (1974) e Roger Aubert (2009). 2. A desconstrução da história teológica? A formulação de uma historiografia religiosa de cunho científico também procedeu, em paralelo, a uma desconstrução teórico-metodológica da história teológica das igrejas cristãs. Dupla refutação: à premissa transcendental ou metafísica da história teológica, bem como um questionamento do viés ético-político de sua eclesiologia implícita, expressa sobretudo pela categoria “cristandade”: a) designação genérica de uma vinculação da Igreja católica a lugares de poder social e ideológico próximos do Estado (quando não inseridos nele), os quais garantiam a presença, as atividades e mesmo os privilégios das denominações confessionais. b) associada a uma concepção de igreja como societas perfecta, hierarquizada e autorreferente, mesmo quando transposta para distintas culturas, como as da América Latina. c) Pressuposição de uma concepção de igreja limitada ao clero, com destaque para o episcopado, fortalecida por um discurso triunfalista, o qual apresenta as denominações eclesiais como vitoriosas contra distintas formas de heterodoxia. Em suma, a história teológica das igrejas cristãs foi considerada eminentemente conservadora. A história teológica das igrejas cristãs era ainda criticada por suas operações narrativas, consideradas ultrapassadas: a) O primado da permanência da instituição eclesiástica na longa duração, ao invés do realce às descontinuidades ou até a algumas rupturas, numa perspectiva que pode ser remontada à obra de Eusébio de Cesareia, no século IV. Para essa vertente, a conformidade com as origens é prova de fé. b) A leitura providencialista da história, expressa através do relato biográfico das principais lideranças religiosas das instituições eclesiais, numa perspectiva heroicizante, por vezes quase hagiográfica. c) O intuito pedagógico, com a consideração do cristianismo como um dos elementos propiciadores do processo civilizatório, inclusive das novas nações emergentes na América. Assim, o futuro pretendido deve dar continuidade a certos aspectos do passado, eliminando-se os erros cometidos e garantindo-se a perenidade histórica das igrejas cristãs. d) A exigência de registro documental, que assumia um caráter comprobatório. Mas o método histórico-crítico passava por limitações na historiografia eclesiástica, todas as vezes que parecia ameaçar a dimensão transcendente do cristianismo. e) Grande parte dos autores da história teológica das igrejas cristãs era composta por eclesiásticos, o que propiciava uma boa auto-imagem, em contraposição a leituras anticlericalistas promovidas por letrados laicos. 3. A retomada do teológico pela historiografia A partir de meados do século XX, formulou-se uma historiografia religiosa em interface com as igrejas cristãs: a) Logo antes do Vaticano II, grande parte das ordens e congregações dedicou-se a estudos históricos sobre sua criação e acerca da espiritualidade que lhes era própria. Houve produção de obras rigorosas, com documentação inédita, seriedade de método e sem intuito apologético. b) Uma historiografia confessional qualificada começou a ser produzida por leigos como Henri Irenée Marrou (1977), que em vez de endossar uma apologética “da prova” da antiguidade das doutrinas ou práticas católicas, buscava ressaltar o que havia de original nestes textos, fazendo reviver sua riqueza doutrinária e espiritual e, se possível, reconstituindo, através deles, as experiências religiosas das comunidades cristãs. c) Importante contribuição continuou a ser dada por pesquisadores leigos, como Jean Delumeau e Giuseppe Alberigo (2007), no campo católico, e C. Mönnich, na esfera evangélica. Pode o conhecimento histórico ressignificar a dimensão histórico-eclesial da fé? Algumas pistas: a) Os enunciados religiosos passam a ser entendidos como protocolos de leitura. Assim, considera-se o texto documental (seja ele uma autobiografia, uma correspondência, um tratado etc.) como o resquício de uma experiência de fé, configurada em padrão retórico particular. Assim, a enunciação (em que o que é dito mostra-se indissociável do como é dito) é priorizada aos sistemas teóricos e ideológicos. b) Parte-se então para reconstituição da apropriação promovida, por meio desses discursos, das diferentes matrizes teológicas do cristianismo (tais como as vertentes agostiniana, aristotélico-tomista, mística...). Visa-se, desta maneira, discernir o lugar assumido pelos sujeitos da escrita perante uma cultura religiosa, num processo indissociável do estabelecimento e realocações das relações de poder. c) A seguir, tais enunciados são ressignificados no interior das configurações socioculturais onde foram promovidos. A proposta, nesta etapa, é discernir o que tornou possível, em âmbito históricosocial, a produção de uma determinada expressão de fé. d) Por fim, busca-se interpretar o potencial performativo da experiência religiosa, no cruzamento entre as enunciações (ato de crer - sensibilidades), as práticas (relações sociais) e os poderes (transformações – resistências). CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1994 “Os “crentes” rurais desfazem assim a fatalidade da ordem estabelecida. E o fazem, utilizando um quadro de referência que, também ele, vem de um poder externo (a religião imposta pelos missionários). Reempregam um sistema que, muito longe de lhes ser próprio, foi construído e propagado por outros, e marcam esse reemprego por “superações”, excrescências do miraculoso que as autoridades civis e religiosas sempre olharam com suspeita, e com razão, de contestar às hierarquias do poder e do saber a sua “razão”. Um uso (“popular”) da religião modifica-lhe o funcionamento. Uma maneira de falar essa linguagem recebida a transforma em um canto de resistência, sem que essa metamorfose interna comprometa a sinceridade com a qual pode ser acreditada, nem a lucidez com a qual, aliás, se vêem as lutas e as desigualdades que se ocultam sob a ordem estabelecida’”. Idem. Um indício: o tratamento da ideologia religiosa em história. Opo. Cit. “Está claro que elas [as questões entre história e teologia] são relativas à resposta que cada autor dá a questões análogas no presente. Ainda que isto seja uma redundância, é necessário lembrar que uma leitura do passado, por mais controlada que seja pela análise dos documentos, é sempre dirigida por uma leitura do presente. Com efeito, tanto uma quanto a outra se organizam em função de problemáticas impostas por uma situação. Elas são conformadas por premissas, quer dizer, por “modelos” de interpretação ligados a uma situação presente do cristianismo”.