A assimetria no atendimento à saúde: quem é o "necessitado"?

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A assimetria no atendimento à saúde: quem é o “necessitado”?
Cynthia A. Sarti (UNIFESP/EPM)
Texto a ser apresentado no GT “Pessoa, corpo e saúde”
XXII Encontro Anual da ANPOCS
Caxambu (MG)
27 a 31 de outubro de 1998

Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo. Professora em Saúde Coletiva na
Universidade Federal de São Paulo/Escola Paulista de Medicina (UNIFESP/EPM).
2
A assimetria no atendimento à saúde: quem é o “necessitado”?
Cynthia A. Sarti (UNIFESP/EPM)
“Querer o bem com demais força, de incerto jeito,
pode já estar sendo se querendo o mal, por
principiar. Esses homens! Todos puxavam o
mundo para si, para o concertar consertado, mas
cada um só vê e entende as coisas dum seu
modo.”
Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas
Este texto apresenta questões levantadas por uma pesquisa que pretende
avaliar políticas sociais dirigidas a crianças e adolescentes. 1 Tomamos como
ponto de partida para a reflexão a assistência à saude, através do estudo de
serviços prestados no ambulatório de um Centro de Saúde conveniado na
cidade de São Paulo.
A perspectiva em que se situa esta pesquisa sobre políticas sociais diz
respeito, acima de tudo, ao significado cultural das políticas sociais, a partir
dos pressupostos implícitos na implantação destas políticas. Nosso objeto de
reflexão é o que constitui o elo de sociabilidade nas relações sociais que se
estabelecem no atendimento à população usuária dos serviços. Isto implica
focalizar o lugar social dos atores em jogo nos serviços de atendimento e o
significado que atribuem a suas ações. Abordamos, assim, a dimensão
simbólica das políticas sociais, o significado que subjaz às intenções das
ações.
Partimos da necessidade de se pensar e atuar sobre as noções arraigadas
no imaginário social a respeito dos fundamentos da desigualdade social, que
se estruturaram na particularidade da formação histórica da sociedade
brasileira, e que se manifestam e se expressam no cotidiano do trabalho de
atendimento aos “carentes” e às crianças e adolescentes, estes tidos também
1
Trata-se de um projeto interdisciplinar que envolve profissionais de Ciências Sociais (Sociologia e
Antropologia), de Psicanálise e de Ciências da Saúde (Enfermagem e Medicina), como parte de um Projeto
Integrado UNICAMP/UNIFESP, financiado pelo CNPq, com o título de “Infância e cidadania: avaliação de
políticas sociais dirigidas à criança”.
3
como portadores de uma falta, alguém que, sendo objeto de cuidados, não
pode ser visto como sujeito de direitos.
O tema das políticas sociais remete-nos à forma como a sociedade lida
com seus conflitos, como forma de controle de antagonismos. Mas, neste
caso, o conflito não aparece como tal, em face da naturalização da
desigualdade social. Nesse sentido, nossa atenção volta-se para a
sociabilidade que se cria nos serviços de atendimento, contexto de necessária
assimetria, e o que esta sociabilidade representa como forma de controle de
antagonismos ou de reconhecimento da condição de sujeitos nas relações em
jogo. 2
É, portanto, este prisma, o do significado das relações sociais que se
criam na implantação de políticas sociais, expresso na sociabilidade que se
constrói nos serviços de atendimento, um dos eixos fundamentais que
norteiam a pesquisa que desenvolvemos sobre políticas sociais e a
infância/adolescência, buscando contribuir para o que se denomina avaliação
auto-reflexiva deste atendimento, possibilitada pela equipe interdisciplinar.
Ao longo da pesquisa, duas questões apareceram reiteradamente como
fundamentais na avaliação dos serviços de saúde: a particularidade do marco
institucional onde se dá o atendimento e a relação que se estabelece entre
quem atende - profissionais ou voluntários - e quem é atendido - o “usuário”
-, a partir das expectativas recíprocas.3
O trabalho de campo, feito numa instituição conveniada, 4
correspondendo a uma situação de “parceria”, em que uma entidade
filantrópica é a sede da prestação de serviços públicos, com atendimento
profissional qualificado, prestado pelos professores da UNIFESP, além de
constituir campo de estágio dos alunos de graduação desta e de outras
universidades.
Buscamos, primeiramente, avaliar as implicações de se aliar serviço
público a entidades de caráter filantrópico, no que se refere ao atendimento
prestado. Esta questão torna-se relevante não só em face da tendência, cada
vez mais acentuada, de repassar para mãos privadas os serviços de assistência
2
Ver a este respeito o artigo de Ribeiro (1998) sobre os conselhos tutelares.
Neste texto, baseado numa pesquisa em um ambulatório de Pediatria, considera-se o usuário como o grupo
social no qual a criança se insere, tomando como referência o adulto que a acompanha e as relações que este
estabelece no serviço de atendimento.
4
A fase mais intensiva e sistemática de trabalho de campo foi feita entre o 1º semestre de 1995 e o 2º
semestre de 1996, posteriormente foram complementados os dados anteriores.
3
4
pública em geral no Brasil, mas pela histórica desvalorização do setor
público, pelo “privatismo” próprio de nossa formação histórica.5
A entidade filantrópica, segundo o depoimento de sua diretora,
funciona a partir de uma rede fundamentalmente pessoal, que provê recursos
financeiros - através de doações, feiras e bazares 6 - e trabalho voluntário,
aliado ao trabalho de profissionais especializados contratados. 7 Estes
profissionais, oriundos em sua maioria de experiências em serviço público,
valorizam positivamente as “parcerias”, em dois aspectos fundamentais: o
primeiro diz respeito ao fato de que, com a administração eficiente dos
serviços garantida pela entidade filantrópica, os profissionais desfazem-se
das obrigações relativas à organização dos serviços, podendo-se dedicar
integralmente à assistência; e o segundo refere-se à possibilidade de
continuidade do trabalho, independente das conjunturas políticas que, nos
serviços públicos, obrigam a interromper projetos em andamento - e
freqüentemente bem sucedidos -, pela mudança de gestão.
A descontinuidade e a desorganização, assim, são apontados como os
principais problemas que emperram, na prática cotidiana, o desenvolvimento
de um programa de atendimento de qualidade no serviço público. É
compreensível que, de fato, as condições de trabalho sejam favoráveis aos
profissionais nas parceiras, diante da histórica dificuldade neste país de se
identificar o público com o coletivo. O público é concebido como privado, no
sentido de ser identificado (e de identificar-se) com o grupo que está no poder
que, ao corporificar o público, torna-se “dono” do poder. As políticas sociais
são “do” político (ou de sua equipe) que as implementou, o que, por esta
mesma razão, faz com que sejam constantemente modificadas pela nova
gestão supostamente “pública”.
Voltar a atenção para as concepções do serviço voluntário, quando a
preocupação são as políticas sociais, foi se tornando uma questão importante
na pesquisa, não só porque os serviços públicos são levados a cabo
freqüentemente em parceria com instituições filantrópicas, sendo estas
parcerias um meio efetivo, eficaz e disponível de se conseguir recursos para
5
Sobre o caráter privado de nossa formação histórica, ver Holanda (1963), entre outros.
A instituição lançou mão de expedientes como uma campanha de “padrinhos” e “madrinhas”, pessoas que
dão uma contribuição mensal dirigida anonimamente a uma determinada criança. Como uma madrinha que
ajuda um estudo..., nas palavras da diretora. A analogia com as relações familiares implícita na assistência aos
pobres, pública ou filantrópica, aparece aqui de forma literal, revelando a matriz paternalista.
7
O ambulatório, onde se concentrou o trabalho de campo, funciona com profissionais contratados e oferece
serviços odontológicos, médicos e de enfermagem, estes dois últimos concentrados nas áreas de ginecologia e
pediatria, através de acompanhamento pré-natal e de puericultura, além do tratamento médico dirigido aos
casos de patologias, funcionando em convênio com o SUS (Sistema Único de Saúde).
6
5
se por em prática políticas sociais, como foi dito pelos profissionais, mas
sobretudo porque a concepção que subjaz à atuação das(os) voluntárias(os)
revela, com maior nitidez, pela sua explicitação sem disfarces, uma matriz
ideológica presente em todo atendimento público.
Trata-se da concepção que se tem do “usuário” como aquele que ocupa
o lugar da privação, “o pobre”, concepção que permeia toda a sociedade. Eles
(referindo-se à entidade) acham que estão fazendo um favor para a
população, como sintetizou a assistente social com relação à perspectiva
dominante entre os profissionais, funcionários e voluntários da instituição.
A desqualificação do usuário aparece, de forma mais aberta em serviços
que a instituição oferece e que são prestados pelas voluntárias (atualmente,
com supervisão de estagiárias em Nutrição). Num destes serviços, distribui-se
uma quota mensal de leite às crianças, “em troca” do que qualificam como
“orientação nutricional” dada às mães. A linguagem utilizada nas “aulas” com
as mães é frequentemente o diminutivo: você lava as mãozinhas, pega as
verdurinhas, etc..., numa evidente infantilização do interlocutor.
Existe a suposição, fundada na igualmente suposta “ignorância” do
usuário e no não-reconhecimento dos usuários como sujeito de direitos, de
que é necessário “oferecer” algo, como um chamariz, para que os usuários se
disponham a receber alguma orientação técnica de saúde ou alimentação. Esta
concepção está por trás do espanto que causa, para alguns funcionários da
instituição, o fato de que as mães, sem receber nada “em troca”, possam
retornar espontaneamente a algumas consultas, como as de enfermagem, que,
neste caso, de fato, devem responder às suas necessidades, segundo o
depoimento de uma das enfermeiras/docentes. Um exemplo claro de como,
por trás das boas intenções de “dar orientação”, não só se ignoram as
necessidades dos usuários (que aparecem claramente, a partir do usuário,
quando o profissional/voluntário está de fato atento), como se atribuem
“necessidades” aos usuários/pobres sem qualquer correspondência com suas
demandas.
Assim, as atitudes dos voluntários não só nos dizem da sua visão do
usuário como alguém que nada tem, como também apontam para o fato de que
as supostas demandas de quem recebe correspondem antes às “necessidades
de dar” dos prestadores de serviços, numa relação dissociada, em que as
motivações de quem atende (seja profissional ou voluntário) não são postas
em questão.
6
A percepção da predominância da matriz ideológica do favor, em
contraposição à matriz da cidadania, ou seja, do reconhecimento do
atendimento à saúde como um direito universal, levou-nos a atentar para a
relação entre quem atende e quem é atendido. O problema passou a ser, então,
a relação com o outro na assistência à saúde prestada aos pobres.
Considera-se este problema do ponto de vista de quem presta esta assistência,
sejam voluntários, funcionários (nível médio ou baixa qualificação) ou
profissionais especializados, em suas diferentes perspectivas, buscando
analisar sua concepção do usuário como sujeito social e a forma como se
elabora a noção de “necessidades” da população assistida, assim como a
concepção que tem de si (como sujeito social) e de seu trabalho estes
prestadores de serviço. 8
O atendimento a necessidades (que se supõe serem dos outros) implica,
por definição, um desnível entre as partes: um dos lados presta (“dá”)
atendimento, é o “provedor”, enquanto o outro recebe este atendimento,
porque é o “necessitado”. Este texto procura levantar questões sobre as
ambigüidades e diversas facetas desta relação. Permanece a pergunta: quem
necessita, de fato, e do quê?
O espírito filantrópico “tradicional”
Entre os problemas desta parceria serviço público/entidade filantrópica
estão evidentemente os obstáculos de caráter ideológico da filantropia,
fortemente calcada numa concepção de mundo “particularista”, cuja ação
reitera permanentemente não só a posição social dos agentes voluntários que
tem uma sobra no seu haver, como expressou a Diretora, como a posição dos
que não têm nada. Entretanto, é fato conhecido que a negação do atendimento
à saúde como um direito universal e a conseqüente hierarquização dos
usuários, de acordo com sua condição de classe não é uma concepção própria
da filantropia, mas está impregnada no próprio serviço público, dirigido para
“os pobres”. O usuário do serviço público, conveniado ou não, é concebido
nesta perspectiva como alguém “que nada tem”,
para quem,
8
Tratando-se de um estudo sobre concepção e práticas de usuários e prestadores de serviços em relação ao
atendimento à saúde, optamos por uma metodologia essencialmente qualitativa, através de observação e de
entrevistas com a população atendida e com os funcionários, voluntários e profissionais especializados
envolvidos na prestação de serviços.
7
consequentemente, “qualquer coisa está bom”, ou “é melhor do que está”,
fazendo do serviço público “coisa pobre, porque para pobre”.
No caso da instituição estudada, o espírito filantrópico, baseado no que
se qualifica como um sentimento de solidariedade, resultou numa
preocupação maior com a qualidade dos serviços, o que permite o
desenvolvimento de programas de alta qualidade e, assim, resultados
positivos para a população assistida no sentido de melhorar seu estado de
saúde, conforme o depoimento dos usuários.9
Existe, nas ações filantrópicas, segundo a concepção dos trabalhadores
voluntários, um espírito que pode ser definido como um sentir-se bem em dar
alguma coisa, que se encontra não apenas no voluntariado, mas também no
perfil do profissional que trabalha na instituição, como mostra o depoimento
da diretora da instituição:
Eu acho que precisa ter uma certa afinidade (para trabalhar na
instituição), porque se não tiver uma afinidade, não funciona.
Porque sem querer... não que a gente vai exigir que ele faça
alguma coisa a mais, mas tem que se sentir envolvido, porque a
remuneração que a gente dá não é muito competitiva.
(...) Tem que ter uma afinidade de pensamento, no sentido de
pensar que é importante fazer este trabalho.
Num certo sentido, então, é todo mundo meio voluntário?
Acho que sim, acho que tem que ter este espírito, de que é
importante você dar a sua contribuição, de uma forma ou de outra,
mas você dá a sua contribuição para a sociedade como um todo. É
um sentimento de solidariedade.
As pessoas que fizeram uma faculdade, uma especialização, muitas
não fizeram, cuidaram da família e tudo bem... depois chega num
ponto, que sempre sobra um tempo, seus filhos crescem, você vai
tendo cada vez mais tempo e esse tempo fica sendo usado no quê?
Você pode fazer curso disso, curso daquilo, mas não preenche sua
vida. É como um preenchimento.
9
De acordo com o texto de Bretas e Borba (1998), o ponto negativo do serviço, do ponto de vista do usuário,
está no tempo de espera a que são submetidos. No sentido do argumento desta pesquisa de que o atendimento
dá-se a partir da introjeção de lugares sociais diferenciados que não são postos em questão, o “fazer esperar”
aparece como afirmação de uma posição superior na hierarquia social. Da Matta (1993) desenvolve essa
questão em sua análise de um serviço público de saúde.
8
Você acha que este sentimento de preenchimento existe para essas
pessoas?
Ah, sim. Você sente que você está dando a sua parte, você está
tendo uma coisa interessante; as pessoas gostam de fazer.
(...) A pessoa se sente bem em ajudar.
(...) É um espírito comum. Você teve oportunidade, aprendeu,
estudou, comeu, fez o que tinha direito, então você tem uma sobra
no teu haver; os outros tem o que está faltando, nada mais natural
do que você dar o que sobra.
O fundamento moral do sentimento de solidariedade, tanto de
profissionais como de voluntários e funcionários que atuam na instituição,
marca, por definição, a “escolha” de sua atividade. Se existe como espírito
comum a mesma preocupação com o “outro”, há, por outro lado,
significativas e determinantes diferenças nesta suposta generosidade, quando
se trata de profissionais especializados, funcionários sem especialização e
voluntárias. A inserção social de cada um destes indivíduos atribui a um
princípio moral aparentemente comum significados muito diversos. Cada um
tem uma visão de si e do outro próprias, manipulando seus diferentes capitais
(econômico, no caso das voluntárias, simbólico, no caso dos profissionais
qualificados) e estabelecendo clivagens nesta moralidade que, no entanto, se
complementam dialeticamente numa visão de mundo hierarquizada.
Sendo a assistência à saúde pública dirigida a quem ocupa o lugar da
privação no imaginário social - o “pobre”-, essa moralidade configura uma
matriz ideológica que não é exclusiva da filantropia, mas que está impregnada
na concepção do serviço público, enfim, em todos os que lidam com a
“privação”, reafirmando a hierarquia social ao negar a universalidade da
assistência à saúde.
Há um significado subjetivo neste dar alguma coisa, implícito na
concepção tanto de voluntárias quanto de profissionais que, no caso das
mulheres, implica uma evidente relação com a condição não só de classe,
pois “sobra-lhes” o que dar, mas também de gênero, correspondendo a
atribuição feminina de “dar” e “servir”.
Há uma tensão entre a atuação dos profissionais e das voluntárias (são
todas mulheres), dadas as implicações do poder destas últimas de cujas
famílias vêm uma parte significativa dos recursos financeiros para a
9
instituição, o que resulta na desqualificação do profissional, considerado
hierarquicamente inferior na lógica da instituição. Neste particular, há uma
diferenciação nítida entre os profissionais contratados pela instituição e os
que prestam serviços através da universidade, como docentes. Neste caso, o
prestígio da universidade (particularmente da Escola Paulista de Medicina,
atualmente Universidade Federal de São Paulo), uma das moedas de alto valor
no universo simbólico da filantropia, faz os profissionais/docentes subirem na
respeitabilidade de que gozam na instituição, relativamente aos mesmos
profissionais, quando contratados pela instituição.
Há ainda uma forma de desqualificação do trabalho profissional, em
face da prática do trabalho voluntário, que está implícita numa concepção
corrente do trabalho como caridade (sentir-se bem em dar alguma coisa).
Esta desqualificação do profissional alia-se à concepção socialmente
difundida do trabalhador de serviço público como um profissional que não
vingou na esfera privada (lucrativa), contribuindo para seu lugar inferior na
hierarquia da instituição.
A hierarquização e a desqualificação profissional em nome do “espírito
caridoso” aparece no depoimento de uma profissional, contratada pela
instituição, referindo-se ao que, segundo ela, é voz corrente no local: a
instituição é uma empresa na hora de trabalhar, e uma família na hora de
pagar.
Na última escala da hierarquia da instituição, espelho da hierarquia
social, está o usuário. Pelo lugar social da privação que ocupa, ele é
implicitamente atendido por um favor, ainda que neste ponto haja
ambigüidades. Há uma real preocupação com a qualidade dos serviços, o que
fica a meio termo entre a caridade - fazer o bem e ganhar os céus, fundamento
da filantropia, sem qualquer questionamento da hieraquia social – e a
prestação de serviços competente e universal, dentro de uma matriz liberal
que embora tampouco ponha em questão a desigualdade, atua no plano do
reconhecimento do direito do usuário, sobretudo pela ação dos profissionais.
Há, ainda, uma nítida preocupação com a “eficiência da empresa” e a
“eficácia do atendimento”, dentro de uma matriz igualmente moderna, própria
do gerenciamento da ação filantrópica.
A subjetividade na assistência
10
Como o outro lado da moeda, aparece a expectativa que tem os pobres
da assistência que lhes é prestada, a partir de seus valores morais. Esta relação
entre expectativas recíprocas apresenta-se como um campo permanente de
tensões pela evidência da assimetria nela implícita.
O componente narcísico envolvido no atendimento de boa qualidade na
entidade filantrópica – de que tem competência profissional, como capital
simbólico, ou uma sobra no seu haver, a evidência do capital econômico - faz
prevalecer uma concepção de “dar”, por parte dos serviços de assistência, que
pressupõe que o “outro”, o pobre, nada tem, fazendo tábula rasa de sua
experiência cultural.
A desqualificação do usuário, entretanto, não existe apenas nos
prestadores de serviços, voluntários ou profissionais, mas é internalizada
pelos próprios usuários como auto-desqualificação, num mecanismo circular e
reiterativo da posição social dos indivíduos assistidos.
A relação de alteridade que se estabelece entre quem atende e quem é
atendido mostrou ser um problema fundamental para que qualquer
atendimento signifique não apenas suprimento de carências freqüentemente
pré-concebidas, mas que corresponda a uma possibilidade de atender a
necessidades expressas pelos próprios atendidos, o que implica uma
redefinição de seu lugar social, na medida em que forem ouvidos.
É fundamental, portanto, que a avaliação das políticas sociais leve em
conta a subjetividade tanto de quem é atendido quanto de quem atende, no
sentido de analisar o significado da assistência em suas dimensões objetiva e
subjetiva; e, ainda, analisar seus pressupostos: parte-se dos recursos dos quais
dispõe a população assistida, ou da pré-concepção de que ela nada tem?
Para além das condições objetivas de carência que se busca suprir “com
as melhores intenções”, que tipo de necessidades subjetivas estão envolvidas
na assistência? Que lugar ocupa o outro, quando se fala em “dar”, “ajudar” ou
“prestar serviços”? Em que medida não se visa reafirmar o lugar unilateral do
provedor, negando, por definição, a possibilidade de troca?
Ser objeto de cuidados e, ao mesmo tempo, sujeito de direitos
mostrou-se uma difícil conjunção. A dificuldade de compatibilizar a noção de
“cuidado” ao outro com o reconhecimento deste outro enquanto sujeito
implica a negação da troca possível nesta relação. O atendimento à saúde é
exercido unilateralmente. Formular o cuidado à saúde como uma possível
relação de troca implica reconhecer que ambos, profissional e o paciente,
“atendem” a necessidades subjetivas nesta relação.
11
Num mecanismo relacional, os profissionais - cuja imagem e
auto-imagem é a de provedores - afirmam seu “saber” socialmente legitimado
e que goza de particular prestígio, na mesma medida em que desqualificam
o outro que “não sabe”, enquanto do lado dos usuários - que se vêem e são
vistos como os necessitados - observa-se uma auto-desqualificação
internalizada pela sua condição inferior na hierarquia social.
Finalmente, para os voluntários pensar o usuário que necessita de
cuidados como sujeito de direitos torna-se particularmente difícil pela
permamente reafirmação de seu lugar social (de classe dominante). O
voluntariado corporifica, como classe, a própria imagem do provedor de
recursos, aqueles a quem sobra o que dar. A afirmação da posição de classe
na filantropia acontece não só pela marcada diferenciação social em relação
aos usuários, mas também através da sutil (às vezes nem tanto)
desqualificação dos profissionais contratados, aqueles que, sob sua ótica, não
deixam de ser “necessitados”, porque “precisam trabalhar para viver”.
Neste jogo, os lugares podem se alternar, redefinindo aqueles que
ocupam dialeticamente as posições de provedor e de necessitado, mas estes
lugares são constantes, impossibilitando uma relação de troca na assistência
com base nos recursos simbólicos de cada parte e recriando, ao contrário,
relações desiguais, para além da necessária assimetria implícita nesta relação.
O atendimento à saúde reitera o círculo vicioso do provedor e do necessitado
como lugares assimétricos cristalizados.
O profissional dificilmente coloca-se na posição de quem tem o que
receber, condição fundamental para que o paciente, suposto usuário, possa
expressar o que tem e como tem para dar, dentro de seu mundo sócio-cultural,
por mais parcas que sejam suas condições econômicas de existência. O
usuário, por sua vez, dificilmente consegue sair do lugar de necessitado,
excluindo a possibilidade de ver em seu provedor alguma necessidade.
As voluntárias reafirmam sua posição social através de um sentimento
de solidariedade que as coloca permanentemente de fora da situação. Sua
ação pode trazer benefícios imediatos aos usuários, mas falam sempre de um
lugar exterior, reafirmando o lugar desqualificado do usuário. 10 O
10
A pesquisa neste ambulatório levantou problemas relativos aos valores morais associados às respostas que
a sociedade dá à questão da desigualdade social em suas ações sociais, o sentimento de solidariedade em seus
vários significados históricos. No aprofundamento desta problemática, fundamental para se pensar a relação
entre políticas sociais e filantropia, pretendo levar em conta as formulações de Arendt (1971), utilizadas por
Boltansky (1993) em sua análise da “moral humanitária” e a media, que transforma o sofrimento em
espetáculo.
12
ambulatório de atendimento à saúde configura, assim, um microcosmo da
hierarquia social.
O “novo” espírito filantrópico
O espírito filantrópico constitui uma marca dos serviços públicos
dirigidos aos pobres, configurando uma matriz ideológica tradicional que
caracteriza o atendimento aos pobres, tanto filantrópico quanto público, o que
contrasta nitidamente com a “nova" filantropia” como uma espécie de “novo
espírito do capitalismo”. Este corresponde a uma estratégia de mercado frente
a um consumidor exigente, o que pressupõe recursos sócio-culturais não
acessíveis a todos num país de “cidadania excludente”, dirigindo-se a
segmentos sociais que tem voz ativa ou que conseguiram se fazer ouvir, e
que, por esta razão, são ouvidos.
O Estado assumir como “sua” a responsabilidade pelas políticas sociais,
como aconteceu no Brasil, sobretudo a partir dos anos 70, 11 traria implícito o
reconhecimento de direitos sociais de cidadania. A bibliografia sobre políticas
sociais, no entanto, mostra inequivocamente o quanto a implantação dessas
políticas estão longe de consolidar esses direitos. Destaca-se o caráter
assistencialista (a população “carente” é “assistida”) e clientelista (à
população é feito um “favor”) das ações, reiterando o lugar social
“desfavorecido” da população dificilmente pensada como “usuária” de um
serviço a que tem direito. Muito menos como “consumidores” ou “gestores”,
como aponta Augusto (1989). Assim, destaca-se a ineficácia das políticas
sociais.
Diante deste quadro, as “parcerias” entre setor governamental e setor
privado surgem como alternativa ideologicamente formulada como saída
para o impasse das políticas sociais, sanando a histórica ineficácia do Estado
nessa área e propondo ações concretas com base na noção de direitos,
supostamente isentas dos vícios do clientelismo das ações governamentais.
A articulação entre ação governamental e setor privado que
caracterizou historicamente a implantação de políticas sociais no Brasil
11
Conforme a análise de Augusto (1989), segundo a qual está na raiz do interesse do governo pela área social,
a partir dos anos 70, o aumento da tensão social em face do desenvolvimento excludente e da urbanização
acaelerada e desorganizada.
13
abriu-se espaço para o “novo espírito do capitalismo” que alimenta a idéia de
“responsabilidade social”. O discurso de um empresário ilustra esta idéia.
Falando dos diferentes sentidos atribuídos à filantropia, menciona o apoio
financeiro à cultura, à educação e a programas sociais e argumenta que:
“(...) esse apoio não é um favor, e sim uma obrigação social, que
ainda não foi reconhecida pelo setor privado com a necessária amplitude.
Com certo exagero, poder-se-ia dizer que a parceria do setor
privado com o Estado, no atendimento às necessidades dos três setores
que mencionei, ainda é excepcional, mas essa é uma situação que deve
mudar.
A responsabilidade pelo desenvolvimento cultural, por um bom
processo educacional e pelo bem-estar social, mesmo sendo realmente
um dever do Estado, não é só do Estado – na realidade, incumbe também
à sociedade como um todo. A parceria, portanto, é uma obrigação, não
um favor.
(...) Na realidade, a filantropia de que estou falando é também um
exercício de cidadania e, como tal, uma fonte de satisfação pessoal.”
(Mindlin, 1997)
No quadro das forças sociais envolvidas em políticas sociais – o
Estado, o empresariado e os trabalhadores/setores populares – o empresariado
vem assumindo uma atitude mais ativa na formulação do ideário da ação na
área social, conseqüência do reconhecimento das demandas formulados pelos
diversos movimentos sociais no Brasil, sobretudo na década de 70 e 80, e
instituídas
através da posterior atuação das organizações
não-governamentais que nascem da atuação desses movimentos.
Por outro lado, nestes tempos de globalização, o empresariado volta-se
para modelos externos de gerenciamento de suas empresas, fazendo
prevalecer o modelo americano não-intervencionista de atuação na área
social, com ênfase nas ações filantrópicas, em detrimento do modelo do
Estado de bem-estar social europeu. O chamado terceiro setor configura-se
como um agente social também na sociedade brasileira contemporânea. 12 A
reportagem de capa da revista Exame, - publicação que tem no setor
empresarial parte significativa de seu público leitor -, em sua edição de 22 de
abril de 1998, revela a significância que vem adquirindo a atuação das
empresas privadas na área social, fato que torna fundamental a discussão de
seus pressupostos e dos termos em que se definem suas relações com as
políticas sociais.
12
Ver o livro de Fernandes.
14
Aparentemente produto de uma iniciativa particular, essas ações
correspondem a um “novo espírito capitalista”. Se a dedicação intensa ao
trabalho, apregoada pela ética protestante, redimia o homem garantindo-lhe
um lugar no céu e, na terra, garantia o “espírito” necessário para alimentar a
acumulação capitalista em seus primórdios, como mostrou Max Weber (1994)
hoje a ética da “responsabilidade social” alimenta o mercado, garantindo-lhe
consumidores e um lugar ao sol num mundo em que não se pode mais ignorar
as demandas sociais de controle sobre os efeitos perversos da lógica do
mercado sobre a vida dos indivíduos e da coletividade. Essas demandas são
articuladas através dos movimentos sociais que exercem uma pressão social
efetiva, como reivindicação de direitos.13
A nova mentalidade empresarial fundamenta-se em várias estratégias,
transformando a filantropia “numa poderosa vantagem competitiva para as
corporações e seus executivos”. Fazer o bem, espírito que alimenta, por
definição, a filantropia, não é suficiente. Como diz a revista Exame,
“não basta fazer o bem. É preciso mostrar que ele é feito. A velha
máxima que determinava o silêncio na hora de fazer filantropia deixou de
fazer sentido.” (p. 24)
Trata-se da “filantropia corporativa”, uma estratégia de mercado que
deve levar em conta demandas do consumidor no plano dos direitos. Ser
socialmente responsável tornou-se uma condição para se ter bons lucros,
diante de um consumidor cada vez mais exigente. Neste jogo estratégico, a
reportagem descreve uma das regras desta forma de filantropia como sendo
“jamais vincular uma ação social ao departamento de marketing da
empresa. Por quê? Até por questões culturais, o bem-feito com segundas
intenções deixa de ser encarado como bem. Qualquer possível ganho de
imagem, perde-se por aí.” (p. 30).
Não se trata apenas da “satisfação pessoal de fazer o bem” e do objetivo
de atingir o consumidor com a imagem da “empresa socialmente correta”, mas
também de proporcionar “satisfação” aos trabalhadores, num padrão de
relação capital-trabalho em que a questão do direitos é, em alguma medida,
contemplada:
“‘Você acha que é possível uma empresa pregar o bem e tratar a
pontapé seus funcionários? O bem tem que ter um propósito verdadeiro’. (...)
diz o presidente do Instituto C&A de Desenvolvimento Social. ‘Mas temos
13
Sobre a questão dos direitos, ver a reflexão de Bobbio (1991) a respeito do reconhecimento de direitos
como um problema que marca e delimita o mundo contemporâneo.
15
certeza de que a imagem de nossa empresa sai fortalecida perante o
consumidor e a sociedade’”. (p. 25)
Assim, não há como eludir o fato de que a atuação governamental e
não-governamental na área social - que nunca estiveram separadas, uma vez
que política social e filantropia, em qualquer de seus matizes, sempre andaram
juntas - sofre o impacto das pressões sociais pelo reconhecimento dos
direitos sociais de cidadania e a elas deve responder.
A questão dos direitos
Na perspectiva em que se situa esta pesquisa sobre políticas sociais,
não basta dizer que a ação social coloca-se, hoje, no plano do reconhecimento
de direitos – em contraposição à ação assistencialista. A questão dos direitos
não é um princípio abstrato. Quando implementada concretamente como
prática em ações sociais, diz respeito ao reconhecimento do direito de
homens, mulheres e crianças numa tripla dimensão:
- na universalidade de sua condição de cidadãos;
- na particularidade de suas condições sociais específicas: de gênero e idade;
- na singularidade de sua existência subjetiva.
Se nosso objeto de pesquisa e reflexão é a sociabilidade que se
estabelece no atendimento à população usuária dos serviços, como
possibilidade de atualização de práticas fundadas no reconhecimento de
direitos, isto implica atentar para todos os envolvidos nas relações profissionais e usuários -, cada um em sua dimensão de universalidade,
particularidade e singularidade.
Foi mencionado que partimos da necessidade de se pensar e atuar sobre
as noções arraigadas no imaginário social a respeito dos fundamentos da
desigualdade social, que estruturaram a subjetividade dos atores em jogo no
atendimento público. Essas noções constituem elementos de ordem cultural e
que se manifestam e se expressam no cotidiano do trabalho de atendimento,
quando o atendido é pensado como “carente”, independente do conteúdo do
que lhe falta objetivamente. São formas “viciadas” de conviver, a partir da
desigualdade social internalizada, que se estabelecem por pressupostos tácitos
16
do que é o lugar social de cada um, independente do objetivo explícito de
prestar assistência.
As ações sociais, produto de políticas específicas, não levando em
conta os recursos próprios da população à qual se dirigem, atribuindo-lhe a
condição absoluta de desprovida, reiteram a noção de “carência” da qual
partem para combatê-la, tornando esta população permanentemente
dependente, ao invés de atuarem como propulsores de mudanças, numa
situação que deveria ser de transitoriedade.14
Trata-se de procurar na própria população atendida os meios através
dos quais se pode “ajudá-la a se ajudar”, modificando sua situação a partir de
seus próprios recursos, valorizando-os. Para isso, é preciso pressupor que
qualquer grupo humano, por mais desprovido materialmente que seja, atribui
à sua existência algum significado, a partir do qual homens e mulheres
pautam suas vidas.
A questão social não se reduz, então, a uma questão de ordem material
(de alimento, de habitação, de saúde...), mas refere-se a uma significação
social.15 Os pobres são aqueles que, para além da carência material, são vistos
como alguém permanentemente movido por necessidades. Não é apenas a
carência material (ou a distribuição desigual da riqueza social) que define a
permanência da pobreza e da desigualdade social, mas a violação da
possibilidade da liberdade, traduzida no mundo contemporâneo pela negação
do reconhecimento dos direitos sociais, em todas as dimensões em que se
manifesta esta reivindicação: na cidadania universal, nas condições sociais
particulares e na singularidade dos sujeitos.
14
15
Sobre a lógica perversa de perpetuar-se o que se pretende combater , ver o artigo de Neves (1995).
Esta questão foi desenvolvida em meu trabalho anterior (Sarti, 1996).
17
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18
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