educação por imagens na idade média

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EDUCAÇÃO POR IMAGENS NA IDADE MÉDIA
Cláudio Reichert do Nascimento1
Noeli Dutra Rossatto2
Pretende-se remontar a Figura do Mundo baseada na doutrina de Joaquim de Fiore,
segundo a sua teoria hermenêutica. Tenta-se elucidar como a interpretação da Sagrada
Escritura e conseqüentemente da história está relacionada com esta imagem do mundo. Para
tanto, explicita-se a teoria medieval dos quatro sentidos da escritura: histórico, moral,
tropológica e anagógico. Na Baixa Idade Média, essa hermenêutica serviu como forma de
ascensão ao mundo inteligível por intermédio de imagens. Então, correlaciona-se a doutrina
do abade com figuras do Beato de Liébena, datada do séc. XII, bem como o Arcano XXI do
Tarô de Marselha, confeccionado no renascimento. Como resultado, tem-se o seguinte: essas
imagens são portadoras de um cifrado conteúdo teórico que pode ser ensinado desde que se
descubra a chave certa de sua interpretação, porém, as mesmas não podem simplesmente ser
tomadas pelo seu exterior aspecto sensível, tampouco como mero recurso didático.
Palavras-chave: figura do mundo, hermenêutica medieval, formação por imagens.
Introdução
Pode-se dizer que na Idade Média há um uso pedagógico das imagens, pois elas são
vistas como a mediação estética entre o mundo sensível e o inteligível. Não obstante, na Baixa
Idade Média houve um processo de depreciação das imagens em função do conceito
(Escolástica). Isso determinou o tratamento das imagens ora como um mero recurso didático,
ora como um elemento sensível, empírico. Aqui trataremos as imagens como canal de acesso
ao conhecimento e só secundariamente como recurso didático. As imagens estão assim
carregadas de significantes e significados formais, que indicam simbolicamente algo que deve
incitar o pensamento.
1
Autor - Aluno do Curso de Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria-RS / UFSM.
([email protected])
2
Orientador – Graduado em Filosofia, Especialista em História, Mestre em Filosofia e Doutor em História da
Filosofia Medieval pela Universidade de Barcelona (UB). Professor Adjunto do Departamento de Filosofia e do
Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria / UFSM.
([email protected])
2
A Figura do Mundo
A filosofia de Joaquim de Fiore (séc. XII) está intimamente ligada à mística monástica
do período medieval. Aqui analisaremos uma das figuras-de-síntese utilizadas por esse abade
calabrês, procedente das visões apocalípticas do livro de Ezequiel e do Apocalipse de João,
em que aparece o tradicional arquétipo dos quatro animais: o Touro, o Homem, o Leão e a
Águia. O qual apresenta-se na figura XV, do ‘Líber Figurarum’; também chamada Figura do
Mundo, a qual possui resquícios não só da iconografia egípcia, mas sobretudo da mística
judaica. Por isso, tenta-se correlacionar com a doutrina esotérica, oriunda dos fariseus,
referida à criação do mundo. O que ficará mais claro quando estiver elucidado algumas
correspondências da obra do Beato de Liébena, datada do Séc. XII, com a de Fiore, bem como
com o Pantocrator (Cristo entronizado) que provém do mito judaico da criação, Ma’ asé
merkabá. Passa-se então a elucidação da imagem joaquimita com base na comparação com a
do beato já citado e o Arcano XXI do Tarô, que possuem semelhante composição.
A Figura do Mundo consta de duas esferas, referentes a duas divisões da história,
denominadas histórias gerais (generalis historia). A primeira, de menor tamanho, diz respeito
ao Novo Testamento, e é cingida por outra maior que faz alusão ao Antigo Testamento. A
estas inserem-se outras quatro de menor diâmetro que as anteriores, designadas de histórias
especiais (especiales historia). São êmulas entre si, e fazem referência aos quatro animais das
visões proféticas.
O fato de as esferas mencionadas a ambos os testamentos da Escritura serem
assimétricas
Se deve a que a faixa histórica por ela demarcada ainda não havia
sido cumprido plenamente quando o abade escrevia seus textos. Por
isso, quando a faixa de tempo que falta estiver realizada, qual seja, o
período corresponde ao final do segundo estado, essa segunda roda
deverá ser alargada até alcançar o mesmo diâmetro daquela de maior
tamanho – primeiro estado. Tal constatação decorre do fato de que as
duas rodas se repetem e que, por isso, ao fim e ao cabo, as duas rodas
não poderão ter diferente representação gráfica (Rossatto, p. 3).
Num dos textos do abade, intitulado Introdução ao Apocalipse, os quatro animais
também estão associados a quatro ordens de homens que atuam na história: a ordem dos
apóstolos, caracterizada pelo Leão; a ordem dos mártires, pelo Touro; a do Homem,
representando a ordem dos doutores; e a Águia a dos contemplativos. Também estão
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associados aos quatro elementos formadores do Mundo: Terra, Água, Fogo e Ar. Por isso, tal
figura representa tanto o Mundo (ou História) quanto à própria interpretação do mesmo.
A partir desse arquétipo joaquimita tenta-se estabelecer o vínculo hermenêutico com
as Escrituras Sagradas, mais precisamente com livro de Apocalipse de João, dotado de caráter
profético. Esse vínculo é mostrado através da verificação de um paralelo entre o Antigo e o
Novo Testamento, em que as passagens bíblicas são vistas como repetidas em ambos os
textos; e há uma equivalência ou concórdia entre duas significações, as quais encontram por
fim uma única explicação espiritual. Apesar de que:
A figura dos círculos trinitários parece não estar assinalada de
maneira expressa numa passagem do Antigo ou do Novo Testamento;
tampouco pode-se dizer simplesmente que é um ícone apropriado do
substrato cultural do cristianismo. Em parte devido a ele, alguns
estudiosos do tema vão buscar possíveis pontos de contato e de
explicação na mística judaica. (Rossatto, 2000: 250).
O Pantocrator românico evidencia-se na obra do Beato de Liébena, na qual dar-se-á
numa composição circular, atrelada à rígida simetria. Nesse caso sustentado por quatro anjos e
comporta tanto os quatro animais, como as rodas que determinam a horizontalidade na
história. Também apresenta os doze anciãos em uma das figuras. Em outra, figuram apenas
nove anciãos. A majestade divina, por sua vez, está situada na parte superior do círculo no
primeiro caso; no segundo, diferentemente, vem situado em meio aos dois círculos.
A outra figura que carrega similitude com a doutrina monástica do abade é o Arcano XXI
do Tarô: o Mundo. Essa figura exibe os quatro animais providos de uma auréola. Exceto o
Touro ou Boi, considerado um elemento inferior desprovido de luz espiritual. Aqui a
diferença mais evidente está na posição do Cristo entronizado que antes ocupava o centro do
diagrama e, aos poucos, vai sendo substituída por uma figura humana.
O ensino dos Sentidos da Escritura
Na tentativa de clarificar o sentido da escritura, Fiore remonta à antiga doutrina dos
quatro sentidos. Para ele, no entanto, os sentidos da escritura medieval, estão vinculados à
existência de duas leituras básicas, a alegórica e a tipológica.
1) A leitura alegórica, se subdivide em cinco variantes, a saber: a histórica, a qual
estabelece a similitude ‘persona pro persona’, a moral, que trata das virtudes e vícios, a
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tropológica, referente aos níveis de expressão e do discernimento das palavras divinas no
texto bíblico; a contemplativa, que indica passagem da vida ativa para a plena liberdade da
vida contemplativa e a total liberdade no espírito; e finalmente, a anagógica, que permite a
distinção dos elementos bíblicos relativos à vida terrena daqueles que são afins à vida
celestial.
Os modos alegóricos da leitura da história compõe o arcabouço metodológico que
permite compreender tanto um personagem, como uma passagem individual como um texto
da Escritura. Tal tipo de interpretação, como expressa o próprio abade permite revolver a
carapaça dura e exterior que envolve a noz, a fim de que possamos por fim chegar a saborear
a doçura do fruto descascado.
Joaquim de Fiore lança mão do modo alegórico para poder interpretar de forma
diferenciada a letra textual. Há um princípio já seguido por Santo Agostinho (Séc. IV) em
suas Confissões, Livro VI, que o abade recorre e segue ao longo de sua obra: “A letra mata, e
o espírito vivifica” (II Cor. 3, 6). Desse modo, a inteligência alegórica, em suma, procurará
des-cobrir e des-velar as várias capas de sentido carregadas pelas palavras divinas e pelos
feitos históricos, frente à perspectiva da diversidade-na-unidade e segundo o protótipo das
cinco relações da trindade” (cf. Rossatto, 2000, f. 363).
2) A leitura tipológica apresentará, de melhor modo, as variantes tipológicas em suas
obras Líber Concórdia e Psalterium. Agora já desvencilhado do problema de não saber quais
personagens eleger como tipos e antitipos significantes e como proceder de igual modo com
os demais, o entendimento tipológico obedece a seguinte lógica: o que foi anunciado vem a se
revelar (anúncio/realização), o prometido faz-se cumprir (promessa/cumprimento) (Rossatto,
2000, f. 363).
Se, no modo alegórico, há a similitude entre o Antigo e Novo Testamento, em que, por
exemplo, Jesus é o novo Adão, no modo tipológico, isto já não mais ocorre procura-se agora a
dimensão espaço-temporal dentro de uma esfera histórica, que ultrapassa ambos os
testamentos da Sagrada Escritura em direção a um terceiro estado do mundo. Com base
amparada no sistema trinitário – Pai, Filho e Espírito3-, na qual desenvolve-se o seguinte
encadeamento argumentativo: o Pai lança as raízes, Filho germina e o Espírito frutifica. O
“Em linguagem trinitária, estas duas categorias - espaço e tempo - reproduzem a mesma imagem da Trindade: o
tempo se corresponde com as relações, é dizer, será igual ao movimento (aqui eterno) de uma pessoa para outra
na esfera intratrinitária. E o espaço se corresponderá com os modos próprios de cada pessoa, é dizer, está
pensado a partir da disposição das pessoas quando, correlacionadas simetricamente desde a dimensão do
repouso, está cada uma delas em solitário (Pai, Filho, Espírito); as três juntas ( Pai Filho Espírito); e cada uma
delas já relacionadas entre si ( Pai Filho, Filho Espírito, Pai Espírito)”. (Rossatto, 2000, f. 369-370).
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princípio de inteligência tipológico é o seguinte: dois significantes mostram um terceiro
significado. Esse terceiro significado diz respeito ao futuro estado do mundo, o qual se
estabelece na relação com os outros dois significantes, e que está por ser revelado na Era do
Espírito.
Após a leitura de textos de Joaquim de Fiore e dos intérpretes contemporâneos chegase à unidade do sentido da figura, bem como do texto, ao se estabelecer uma correspondência
entre os elementos textuais, antes chamados de concórdia, e obter como resultado o seguinte:
o Antigo e o Novo Testamento têm um único sentido espiritual. Ao contrário da exegese
patrística, em que o Novo Testamento se sobrepõe ao Antigo, agora tem-se um caminho que
leva para a ascensão e a mais viva contemplação do Espírito em um terceiro estágio da
hermenêutica e, conseqüentemente, da história.
Conclusão
Os animais da figura de Joaquim de Fiore não estão isolados. Eles estão dispostos em
um caminho ascendente que vai do elemento mais baixo (Terra) ao mais alto (Ar) passando
pelos intermediários (Água e Fogo). Isso demarca a via em que a alma ascende
espiritualmente na medida em que incorpora e, depois, se libera dos elementos do Mundo. Por
isso, a figura encontra similares na tradição medieval, antiga e moderna. Também pode-se
dizer que a hermenêutica e semiótica contemporâneas buscam não mais o conteúdo da
interpretação, mas sim entender seus elementos formais, isto é, como esta procede
estrategicamente na interpretação de textos.
Bibliografia
BÍBLIA SAGRADA. N. T. 42ª ed. São Paulo: Editora Paulinas, 1986.
FIORE, de Joaquim. Introdução ao Apocalipse. Trad. e notas de Noeli Dutra Rossatto. In:
VERITAS, Porto Alegre, v. 47, n. 3, p. 453-471, Setembro de 2002.
ROSSATTO, Noeli Dutra. El Círculo Trinitario: La Construción del Conocimento y la
Historia en Joaquín de Fiore. 2000. 555f (Doutorado em História da Filosofia Medieval) Facultat de Filosofia, Universitat de Barcelona, Barcelona, 2000.
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___________. Estética e Hermenêutica em Joaquim de Fiore – análise comparativa da
Figura XV do Líber Figurarum. Mimeografada.
___________. Filosofia e Leitura Medieval. In: REVISTA EDUCAÇÃO, Santa Maria, v.
27, n.02, p. 35-49, 2002.
TODOROV, Tzvetan.
Simbolismo
e
Interpretación.
(Tit. orig. Symbolisme et
interpretation). 2ª ed. Caracas: Monte Avila Editores, Trad. de Claudine Lemoine e Márgara
Russotto. 1992, p. 186.
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