A realidade psíquica do grupo e no grupo 2 Os modelos pós-freudianos As pesquisas psicanalíticas feitas sobre grupos, depois de Freud, se orga nizam sob a hipótese de que o grupo, enquanto conjunto intersubjetivo, é o lugar de uma realidade psíquica própria. Essa hipótese iniciada por Freud, desenvol vida e fortalecida pelos trabalhos de Bion e Foulkes, fez-se mais precisa com as pesquisas da Escola francesa de psicanálise grupal. Implica dois debates fundamentais: o primeiro sobre a noção de realidade psíquica, o segundo sobre sua extensão nas entidades pluripsíquicas organizadas, como, por exemplo, num grupo. Os modelos pós-freudianos: o grupo como entidade psíquica o emprego de um dispositivo de grupo capaz de corresponder às exigênci as do método psicanalítico permitiu pôr à prova a validade dos primeiros mode los e de confirmar seu interesse clínico e teórico. As construções que se desen volveram sobre essas bases se organizaram principalmente ao redor dos modelos propostos por W.-R. Bion e por S.-H. Foulkes na Inglaterra, depois na França por D. Anzieu e por mim próprio. Depois da primeira invenção psicanalítica do grupo (Viena 1902, cf. capo 1), a segunda e a terceira invenção se caracterizam, antes de tudo, pelo emprego de uma situação clínica adequada a prover a pesqui sa e a prática terapêutica com um dispositivo de trabalho fundado sobre os prin cípios metodológicos da psicanálise. Londres, 1940 Subsiste certo grau de incerteza e dificuldade de decisão quando procura mos, através de uma data, fixar a origem de um movimento. Antes de 1940 fo ram feitas tentativas em Londres e fora de Londres para pensar o grupo como lugar dos fenômenos específicos: Slavson, Schilder e outros esboçam proposi ções fecundas e dispositivos que servirão de modelo a pesquisas posteriores. É, entretanto, justo considerar que a verdadeira invenção psicanalítica do grupo, 62 o Grupo e o Sujeito do Grupo como entidade pensada com alguns conceitos da psicanálise e experimentados numa situação apropriada, deu-se em Londres, em 1940. As circunstâncias merecem ser lembradas: algumas semanas após a morte de Freud, poucos meses depois do início da Segunda Guerra Mundial, no mesmo hospital de Northfield situado nos arredores de Londres, dois psicanalistas que se evitavam empregaram um dispositivo metodológico de grupo, instituído por eles usando o modelo do tratamento, com isso fundando as bases de uma teoria dos grupos a partir dessa nova situação psicanalítica I. Aspectos do modelo Pressupostos básicos W.- R. Bion elaborou em 1961 um poderoso modelo teórico para explicar as formações e os processos da vida psíquica nos grupos. Os conceitos que forjou levam em consideração o grupo como entidade específica e permitem qualificar como grupais os fenômenos que se produzem em seu seio. As pesquisas psicanalíticas de W.- R. Bion permitem distinguir e articular duas modalidades do funcionamento psíquico em grupos pequenos, quaisquer que sejam. A primeira define o grupo de trabalho: nele prevalecem processos e exigências da lógica secundária na representação do objeto e do objetivo do grupo, na organização da tarefa e dos sistemas de comunicação que permitem sua realização. Essa modalidade de funcionamento que visa a congruência no plano da lógica secundária entre a representação da tarefa, a malha de comunicações e o objetivo do grupo foi muito bem estudada pelos psicossociólogos cognitivistas 2. bioniano: cultura ementalidade de grupo. I De W.- R. Bion é preciso ler Recherches sur /espelils limupes (1961) mas também os desenvolvimentos de Callenlion el /'inleljlrélalion (1970) e os dois tomos (1977 e 1979) de Une ménwire du fulur. Sobre Bion e sua concepção do grupo. os trabalhos de referência são os de (ou editados por eles) L. Grinberg (1973), M. Pines (1985). C. Neri. A. Correale e P Fadda (1987). F Corrao (1984), l.- C. Rouchy (1986). Um nÚmero da Revue de psycholhérapie psrchallll/ytique de limupe foi consagrado a Bion (1986. 5-6) De S.- H. Foulkes deve-se ler principalmente Psycholhérllpie el ana/rse de limupe (1964) e. em colaboração com Fl.Anthony, Psrcholhérllpie llppmche psrchllna/rrique (1957). Um artigo de D. Brown (1986) compara os postulados de base de Foulkes e de Bion, enquanto um estudo de M. Laxenaire (1983) tenta fazer o paralelo entre o estruturalismo de Foulkes e o de Lacan. Uma excelente edição dos trabalhos que se inscrevem na corrente da Gmup Ana/rsis foi realizada sob a direção de M. Pines (1983). A corrente muito ativa ela psicanálise e ela psicoterapia de grupo na Argentina foi constituída a partir elo impulso que lhe eleram as pesquisas de E. Pichon-Riviere, l. Bleger, L. Grinberg, M. Langer, E. Roelrigué. I. Berenstein. l. Puget. A. Cuissard, A. ele Quiroga. M. Bernard, R. laitin (cf. bibliografia). Uma obra recente de A.- M. Fernandez (1989) propões uma visão crítica elessas diversas correntes. Entre os trabalhos e pesquisas levados a cabo na Itália destacam-se por seu vigor os trabalhos de F. Corrao. C. Neri. A. Correale. os ele D. Napolitani. F. Napolitani, S. ele Risio, L. Ancona, F. Vanni. G.- M. Pauletta eI' Anna (1990) elirigiu uma obra coletiva em que faz um balanço elas pesquisas atuais ela corrente foulkesiana. ao passo que a obra coletiva elirigiela por C.Neri, A. Correale e P Fadela (1987) elestaca as orientações da corrente bioniana. 2 Atestam-no. na França. principalmente os trabalhos de S. Moscovici. C. Flame,nt. l.- C.Abric. l.- P Coliol. A Realidade Psíquica do Grupo e no Grupo 63 A segunda modalidade do funcionamento psíquico é a do grupo de base que define o conceito de mentalidade de grupo. Todos os grupos, inclusive os grupos de pesquisa, funcionam conforme um arranjo de pressupostos básicos e de suas tensões com o grupo de trabalho. A cultura de grupo é constituída pela estrutura adquirida pelo grupo em um dado momento, pelas tarefas empreendidas e pela organização adotada para sua realização. A mentalidade de grupo é definida como a atividade mental que se forma num grupo a partir da opinião, da vontade e dos desejos inconscientes unânimes e anônimos de seus membros. As contribuições destes à mentalidade de grupo, que constitui seu continente, permitem certas satisfações de seus impulsos e desejos; devem, contudo, estar conformes com as outras contribuições do fundo comum e serem sustentadas por ele. A mentalidade de grupo apresenta assim uma uniformidade em contraste ou em oposição com a diversidade das opiniões, dos pensamentos e dos desejos próprios dos indivíduos que contribuem para formá-Ia. A mentalidade de grupo garante a concordância da vida de grupo com os pressupostos básicos (Basic assumption) que organizam seu curso. O conceito de pressuposto básico foi formado por Bion para qualificar os diversos conteúdos possíveis da mentalidade de grupo. Os pressupostos básicos são constituídos de emoções intensas, de origem primitiva, desempenhando pa pel determinante na organização de um grupo, na realização de sua tarefa e na satisfação das necessidades e desejos de seus membros. Eles são e permanecem inconscientes, submetidos ao processo primário. Expressam fantasias inconscientes. São utilizados pelos membros do grupo como técnicas mágicas destinadas a tratar as dificuldades que encontram e principalmente para evitar a frustração inerente ao aprendizado por meio da experiência. Bion colocou em evidência a semelhança de seus traços com os fenômenos descritos por M. Klein em suas teorias sobre os objetos parciais, as angústias psicóticas e as defesas primárias. Desse ponto de vista, os pressupostos básicos são reações grupais defensivas contra as angústias psicóticas reativadas pela regressão imposta ao indivíduo na situação de grupo. Segundo Bion, três pressupostos básicos são os representantes de três esta dos emocionais específicos, mas, se é verdade que organizam o curso dos fenô menos psíquicos próprios do grupo e satisfazem os desejos de seus membros, não são ativados simultaneamente no grupo: eles se alternam e se mantêm prevalentes nele durante algum tempo. Quando o grupo se organiza de acordo com o pressuposto básico Depen dência forma-se e persiste no grupo a convicção de que ele está reunido para re ceber de alguém (guia, professor, terapeuta) ou de qualquer coisa (idéia, ideal, 64 o Grupo e o Sujeito do Grupo organização) de que depende de forma absoluta a segurança e a satisfação de todas as necessidades e de todos os desejos de seus membros. O grupo é representado como um "organismo imaturo", e uma "fantasia coletiva" sustenta a repre sentação de uma dependência para a "alimentação psíquica e física" do grupo. A cultura de grupo correspondendo a esse pressuposto organiza-se em torno da busca de um líder mais ou menos divinizado; ela se manifesta pela passividade e pela perda do juízo crítico. O pressuposto básico Luta e Fuga repousa sobre a fantasia coletiva de atacar ou de ser atacado. O grupo está convicto de que existe um mau objeto interno externo encarnado por um inimigo. Esse inimigo pode ser um membro do grupo ou uma má idéia, uma idéia adversa ou uma idéia errada. Nos grupos terapêuticas a doença pode representar esse objeto que é preciso atacar e destruir ou evitar e dele fugir. Nos grupos de pesquisa o erro não é, com freqüência, o único a ocupar esse lugar: a idéia nova muitas vezes tem esse papel. O grupo que funciona com essa hipótese encontra seu dirigente entre as personalidades paranóides aptas para alimentar essa idéia, organizando ele sua cultura sobre essas bases. A fantasia coletiva de que um ser ou um fato vindouro resolverá todos os problemas do grupo sustenta o pressuposto básico de Acasalamento: uma esperança messiânica é, via de regra, colocada num casal, cujo filho, ainda não concebido, salvará esse grupo de seus sentimentos de ódio, de destruição ou de desespero. A cultura do grupo se organiza em torno do casal líder e sobre a idéia de que o futuro é o único portador das soluções esperadas; por isso, para o advento do futuro, a esperança messiânica não deve jamais se realizar. A pertinência das afirmações de Bion foi confirmada na análise dos grupos primários naturais e aI1ificiais, bem como na análise dos grupos institucionais. Todos os grupos, inclusive os grupos de pesquisa, funcionam segundo os arranjos desses pressupostos básicos e de suas tensões com o grupo de trabalho. O aparelho teórico desenvolvido pelo psicanalista inglês em suas pesquisas posteriores sobre o pensamento e as estruturas dos vínculos internos e intersubjetivos veio aumentar a precisão e a amplitude de suas hipóteses. Algumas contribuições de Foulkes e Ezriel: o grupo como matriz psíquica, a ressonância fantasmática A contribuição fundamental de Bion não se integrou à corrente da Groupanalysis, constituído principalmente por S.- H. Foulkes, J. Rickman e H. Ezriel, em bases teóricas e metodológicas sensivelmente diferentes. A Realidade Psíquica do Grupo e 110 Grupo 65 Em sentido amplo, a grupo-análise é um método de investigação das formações e dos processos psíquicos que se desenvolvem num grupo; baseia seus conceitos e sua técnica em certos dados fundamentais da teoria e do método psicanalítico e sobre elaborações psicanalíticas originais, requeridas para levar em consideração o grupo como entidade específica. Num sentido mais restrito, a grupo-análise é uma técnica de psicoterapia de grupo e um dispositivo de experiência psicanalítica do inconsciente em situação de grupo. Cinco idéias principais estão na base da grupo-análise foulkesiana: o partido de escutar, compreender e interpretar o grupo enquanto totalidade no "aqui-agora"; a tomada em consideração somente da transferência "do grupo" para com o analista e não das transferências intragrupais ou laterais; a noção de ressonância inconsciente (Ezriel precisa: fantasmática) entre os membros de um grupo; a tensão comum e o denominador comum das fantasias inconscientes do grupo; a noção de grupo como matriz psíquica e quadro de referência de todas as interações. O postulado principal de Foulkes é que "a natureza social do homem é um fato fundamental e irredutível. O grupo não é o resultado de interação entre indivíduos. Consideramos que qualquer doença se produz no interior de uma malha complexa de relações interpessoais. A psicoterapia de grupo é uma tentativa de tratar a malha inteira dos distúrbios, seja no ponto de origem do grupo original primitivo - seja colocando o indivíduo perturbado em condições de transferência num grupo estranho" (5.- Foulkes, 1964; trad. franc., 1970, p. 108). Dos dois anos que Foulkes passou a trabalhar com K. Goldstein, no Instituto de Neurologia de Frankfurt, antes de iniciar a formação psicanalítica, ele conservou a idéia central da Gestalt - a mesma que inspirou K. Lewin - e a aplicou-a à sua concepção de indivíduo e do grupo: a totalidade precede às partes, é mais elementar que elas, não é a soma de seus elementos. O indivíduo e o grupo formam um conjunto de figura-fundo. O indivíduo num grupo é como um ponto nodal numa rede de neurônios. A noção de Knotenpunkt, que Freud já utilizara na malha das séries associativas em A interpretação dos sonhos, Foulkes descobre através da neurologia e da abordagem estrutural do comportamento de K. Goldstein. Dessa idéia fundamental deriva, para Foulkes, uma outra: a de que o grupo possui propriedades terapêuticas específicas: a prática da análise de grupo que ele elabora em Londres no início dos anos quarenta, no mesmo hospital de Northfield onde Bion, na mesma época, reúne as bases clínicas de sua teoria, se justifica assim: "A idéia do grupo como matriz psíquica, o terreno comum das relações de cooperações incluindo-se todas as interações dos membros participantes do grupo é primordial para a teoria e o processo da terapia. Todas as comunicações ocorrem no interior desse quadro de referência. Um fundo de com 66 o Grupo e o Sujeito do Grupo preensão inconsciente, no qual se produzem reações e comunicações complexíssimas, está sempre presente" (lbid., p.1 09). Os principais fatores terapêuticos do grupo são quatro: o primeiro é a estimulação da integração social e o conforto no isolamento; Foulkes insiste na "necessidade fundamental do indivíduo de ser compreendido pelo grupo e de estar preso a ele", a despeito de seu impulso de se retirar dele: "O fundamento social, escreve, sobrepuja-o imediatamente". O segundo fator é a reação do espelho que aparece "de modo característico quando um certo número de pessoas se encontram e agem umas sobre as outras. Um indivíduo vê-se a si próprio - muitas vezes a parte recaIcada dele retletida nas interações de outros membros do grupo. Ele os vê reagir do mesmo modo que ele próprio, ou em contraste com seu próprio comportamento. Aprende a conhecer-se - e aí está um processo fundamental no desenvolvimento do eu pela ação que ele exerce nos outros e pela imagem que fazem dele" (lbid.). Um terceiro fator é o processo de comunicação: todos os dados observáveis, conscientes ou inconscientes, verbais ou não verbais, são comunicações pertinentes, quer dos participantes, quer do grupo considerado como um todo. Foulkes considera mais importante que a informação fornecida o processo da comunicação: "O grupo terapêutico estabelece uma zona comum na qual os membros podem comunicar e aprender a se compreender uns aos outros. No interior desse processo, os membros do grupo começam a compreender a linguagem do sintoma, dos símbolos e dos sonhos tanto quanto as comunicações verbais. Devem aprendê-I o pela experiência para que isso seja significativo e, conseqüentemente, eficaz... Esse processo de comunicação tem muito em comum com o processo que vem a tornar consciente o inconsciente" (lbid., pp. 110-111). A necessidade de recorrer ao método da livre associação de idéias em situação de grupo, que Foulkes esboça rapidamente e que não será desenvolvida em seguida, repousa sobre os conceitos de malha e de processos de comunicação. O quarto fator é a interdependência das modificações que ocorrem no grupo e nos indivíduos que o compõem, "mesmo se não nos dirigimos a cada um deles em particular" (lhid., p. 156). Se o grupo é o campo de ação da análise de grupo, seu campo é, para Foulkes "o grau ótimo de liberação e de integração do indivíduo" (1948). O campo de ação é a malha das interações na matriz psíquica (mental) do grupo. Esses quatro fatores terapêuticos do grupo definem melhor que as afirmações teóricas de Foulkes a noção de que o grupo é uma totalidade produtiva de formações psíquicas específicas cuja homologação com as do aparelho psíquico deverá ser esc\arecida. O conceito de ressonância inconsciente introduzido por A Realidade Psíquica do Grupo e 110 Grupo 67 Foulkes e esclarecido por Ezriel como ressonância fantasmática merece uma atenção particular: ele recoloca a espinhosa questão da posição da fantasia nos grupos. A referência metafórica do conceito de ressonância é tomado de empréstimo à Física. Duas noções são importantes aqui: a de vibração fomentadora e a de amplitude dessa vibração quando se aproxima da freqüência própria do sistema ao qual pertence. Foulkes (1948) utilizou essa noção para descrever empiricamente um processo psíquico primário da intersubjetividade constituída na relação simbiótica da criança com a mãe: a ressonância inconsciente é definida como o conjunto de respostas emocionais e comportamentais inconscientes de um indivíduo à presença e à comunicação de outro indivíduo. A vibração fomentadora suscitaria o mesmo universo pulsional e representacional entre os sujeitos, mantendoos numa interação mútua. Essa ressonância foi especificada por H. Ezriel (1950) como ressonância fantasmática. O campo de aplicação da noção é tanto o do tratamento individual quanto o da grupo-análise. Nos grupos a ressonância fantasmática é um agente da tensão comum e do denominador comum do grupo: a fantasia de um participante suscita e mobiliza outras formações fantasmáticas nos outros membros do grupo em relação de ressonância com o pnmeIro. Essa noção deveria ser oposta a outra, complementar, de interferência; se permanecemos no mesmo referencial físico a interferência designa o encontro de duas ondas de mesma direção que podem se reforçar ou se destruir conforme suas cristas se superponham ou que a de uma se encontre com a cavidade da outra. A lógica da metáfora nos leva assim a tomar em consideração esses movimentos em que o suscitar de um impulso ou de uma representação mobilize ou um reforço ou um antagonismo e uma inversão: isso se traduz em termos de mecanismo de defesa, de recalque e de denegação para lutar contra o excesso de carga ou da representação intolerável. Esse ponto de vista complementar, que não parece ser adotado por Foulkes e Ezriel, é um processo fundamental daquilo que eu chamo de aparelhagem psíquica. o grupo como entidade psíquica, objeto da análise Todos esses modelos de funcionamento do grupo têm como fundamento a hipótese de que o grupo é uma organização e um lugar de produção da realidade psíquica, uma entidade relativamente independente da dos indivíduos que a constituem. Uma conseqüência prática dessa hipótese teórica, além da diferença de tratamento que recebe de Bion e de Foulkes, é fazer do grupo, enquanto entidade, objeto de investigação e do trabalho psicanalítico. Os conceitos de menta 68 o Grupo e o Sujeito do Grupo lidade de grupo, de cultura de grupo e de pressuposto básico, de malha de comunicações inconscientes, de matriz grupal e de ressonância fantasmática fazem do grupo uma entidade geradora de efeitos psíquicos próprios. Esses conceitos constituem o grupo como destinatário da interpretação. Se a interpretação se pensa e se dá em termos de grupo, seus efeitos são evidentemente desfrutados por cada pessoa, através dos vínculos que a ligam à matriz do grupo ou que a situam no seu campo de forças. Mas esse vínculo, e o que para cada um é nele posto em risco, não será interpretado diretamente. Foulkes, como Bion, supõe que o inconsciente produz efeitos específicos no grupo, mas ele o trata mais como uma qualidade relacionada com os produtos do que como uma instância ou um sistema constitutivo das formações e dos processos intersubjetivos. Destaquemos o seguinte: as primeiras teorias sobre o grupo, tenham elas sido propostas por Lewin (1947) ou por Moreno (1954), mas também por Foulkes ou por Bion, são teorias que recaem sobre o grupo como entidade específica, na qual as contribuições dos sujeitos, sua posição mesma de sujeito singular e de sujeito do grupo são tratadas como processos e conteúdos anônimos e dessubjetivados. Dito de outra forma e sob esse aspecto, as primeiras teorias do grupo que o constituem como objeto epistêmico e como espaço psíquico peculiar, são teorias de quais o sujeito desaparece naquilo que o singulariza: sua história, sua colocação na fantasia inconsciente, a idiossincrasia de suas pulsões, de suas representações, de seu recalcamento. Será preciso esperar que os trabalhos da Escola francesa restituam ao grupo o valor de objeto psíquico para seus sujeitos, antes que se iniciem as pesquisas sobre suas aparelhagens psíquicas e o que as organizam, antes que se aclarem as ilusões com que o vínculo grupal se estabelece, mas também as modalidades do trabalho psíquico nos grupos. A terceira invenção: Paris, 1960 A terceira invenção psicanalítica do grupo é contemporânea de vários movimentos cujas afinidades restariam estabelecer pelo menos para dois deles. Quero antes de mais nada falar das rupturas e das criações institucionais no seio do movimento psicanalítico francês: 1963, criação da Escola freudiana de Paris; 1964, criação da Associação psicanalítica da França. Essas criações foram geradas em grande parte nos conflitos que se estabelecem em tomo da posição de J. Lacan antes e depois da cisão que o conduz a formar sua própria Escola. O ato de sua fundação merece ser relembrado por interessar a nosso propósito. Lacan, herói solitário, proclama: "Eu fundo - sozinho como sempre estive na relação com a causa psicanalítica - a Escola francesa de psicanálise...". Mas será somente por A Realidade Psíquica do Grupo e no Grupo 69 intermédio dos grupos, e dos grupos a que dará o nome de cartéis, é que se fará a adesão à escola. O grupo e o poder do Plus-Un no cartel serão os instrumentos da realização dos objetivos da Escola, não os sujeitos psicanalistas, na sua singularidade. O que não impedirá Lacan, num artigo da revista Scillicet, o único a ter a assinatura de um nome, o seu, de denunciar os efeitos de grupo naquilo em que ele os "mede na obscenidade que acrescentam aos efeitos imaginários do discurso". Repete-se assim a influência do grupo e a proibição de pensar, a fortiori, de elaborar sua prática psicanalítica. A clivagem entre o lugar considerável designado ao grupo na fundação da instituição psicanalítica, e sua rejeição como objeto psicanalítico, subtraído à elaboração psicanalítica só pode produzir um desses efeitos de retomo ao real, sob a forma de violência e de destruição dos aparelhos de pensar! . O que é pois um efeito de grupo? Para dar um sentido psicanalítico aos "efeitos de grupo" Essa noção se forma primeiro nos trabalhos de etologia animal, que, por volta de 1920, se orientam para pesquisas de fisiologia social. Os trabalhos de Uvarov sobre o gafanhoto peregrino apanhado e desenvolvido em laboratório por Chauvin são suficientemente conhecidos, bastando uma exposição sobre eles, limitada ao essencial. Sabe-se que o gafanhoto peregrino existe sob duas formas, de características morfológicas diversas importantes: uma solitária e sedentária, a outra gregária e migratória. Quando as condições do meio são favoráveis, a espécie do tipo solitário começa a pulular, produzindo-se um efeito de grupo que modifica a morfologia e o comportamento dos gafanhotos: seu sistema nervoso e endócrino se transformam, acarretando um aumento de metabolismo, da atividade e o aumento do desenvolvimento ao longo de mudas sucessivas. Aparece uma afinidade social que aumenta os agrupamentos em massa cada vez mais volumosas e numerosas. Uma imitação reflexa provoca a revoada de todos quando um deles começa a voar. O efeito de grupo modifica o comportamento e causa a afinidade social que sensibiliza à influência recíproca estimulações sensoriais entre congêneres, influência que, por sua vez, acelera os fenômenos de grupo. R. Chauvin tornou evidente, em laboratório, a reversibilidade do processo: se o fato de agrupar-se é suficiente para transformá-Ios, o isolamento dos gregários os conduz à morfologia de solitário 2 . I A obra de F. Roustang pode ser ti da como uma referência (1976). As histórias da psicanálise não levam em conta essas de J. Chemouni (1991). pesquisas. Há uma exceção corajosa 110 livro 2 Podem-se consultar os trabalhos de R. Chauvin em suas obras sobre insetos (1956) e sobre o comportamento social dos os efeitos de grupo e os efeitos de massa. animais (1961), 110 qual ele expõe o que são 70 o Grupo e o Sujeito do Grupo Os trabalhos de fisiologia social colocaram em evidência os efeitos de grupo em outros animais, mostrando que o agrupamento pode constituir uma proteção eficaz contra a hostilidade do meio, sua influência na sexualidade e sobre a taxa de reprodução e o fato de modificar o crescimento. A imitação reflexa induzida por esses efeitos foi observada no peixe vermelho (ele se alinha à sua imagem num espelho), no carneiro e no homem (o bocejo "social"). Seguramente, as transposições desses resultados para o homem recolocam os problemas clássicos das diferenças entre o animal e o homem. Os efeitos da longa infância humana sobre o desenvolvimento da aprendizagem e da cultura, a importância decisiva da linguagem articulada, a instituição de leis, de regras e de símbolos sociais, a formação das identificações, distintas da imitação na sua gênese e funcionamento, conferem, entre outros traços, uma especificidade à sociabilidade humana. A parte das montagens inatas, instintuais e automáticas é ao mesmo tempo diminuída e inserida num organização diferente. A hipótese psicanalítica do inconsciente sustenta outras hipóteses sobre os efeitos de grupo e sobre os processos psíquicos por eles gerados e modificados. Entretanto, antes de explicarmos isso, confirmamos, através de um atalho pelas pesquisas da psicologia social, o interesse dessa noção, dando-lhe um primeiro conteúdo psíquico. Detenho-me aqui na experiência princeps de M. Shérif (1935) sobre as pressões conformistas e a criação das normas de grupo. Em laboratório, Shérif reúne uma série de indivíduos que ele coloca numa situação tal que são levados a emitir um julgamento sobre um fenômeno que pode ser avaliado quantitativamente de diferentes maneiras. Shérif utiliza como suporte técnico de sua experiência o efeito autocinético de um ponto luminoso projetado na parede de uma sala escura. Nessa situação, o quadro de referência perceptivo desparece e o ponto luminoso é percebido em movimento. Shérif estuda a avaliação ou amplitude do movimento percebido em duas situações diferentes: quando o indivíduo está isolado (i); quando está em situação de grupo (g). Duas situações de grupo constituem-se de fato no plano experimental: quer a avaliação seja primeiro feita individualmente depois em grupo (i g), seja o inverso (g i ). Em situação de grupo, cada indivíduo anuncia publica e oralmente sua avaliação. Os resultados obtidos são os seguintes: na avaliação em que o indivíduo está isolado (i, i g) as avaliações são muito dispersas no conjunto da população, mas as variações dos julgamentos de cada indivíduo tendem a estabilizar-se, depois de várias experiências em torno de uma norma perceptiva que lhe é própria. Em situação de grupo, a dispersão dos julgamentos individuais se reduz consideravelmente e as normas perceptivas individuais são substituídas por uma norma perceptiva de grupo. As avaliações individuais posteriores aos julgamentos emitidos em grupo (g i) são influenciadas pela norma de grupo que se conserva, as A Realidade Psíquica do Grupo e no Grupo sim, interiorizada pelos membros do grupo. A convergência entre avaliação individual e norma de grupo é, entretanto, menos marcada quando os indivíduos foram previamente colocados em situação individual (i g). O efeito de grupo que produz a norma perceptiva de grupo depende da influ~ ência recíproca que os indivíduos exercem uns sobre os outros quando, nas condi çõesda experiência, ficam reunidos. A experiência de Shérif faz supor que a incerteza quanto à avaliação do movimento autocinético é reduzida pelo efeito normativo do grupo. A conformidade com a norma toma-se então um critério da prova de realidade. Os fenômenos postos em evidência por Shérif manifestam-se nos grupos reunidos para tratar de um problema comum. São tanto mais ativos quanto o problema a resolver está ligado os alvos principais e à tarefa primordial do grupo. Observações posteriores mostraram que as normas são reforçadas ou restabelecidas quando a coesão do grupo fica ameaçada e quando elas se traduzem por enunciados de linguagem próprias ao grupo ou por provérbios. Encontram então nos efeitos de discurso uma força de confirmação importante: o ponto de vista não é anódino desde que as pessoas se interessem pelos processos associativos nos grupos e pelos efeitos de discurso que se produzam aí; pressões conformistas e normas de grupo asseguram a permanência do grupo e desenvolvem o sentimento de pertencer ao grupo em seus membros. Entretanto, é preciso que em caso algum se perca de vista que essas experiências mostrem que o efeito de grupo, para produzir-se, deve, de um modo ou de outro, encontrar nos membros do grupo uma tendência ou uma predisposição favorável à sua constituição. É desse ponto de vista que a crítica de Lacan nos interessa aqui, tanto quanto seu questionamento. o efeito de grupo como acréscimo de obscenidade ao efeito imaginário do discurso '''Eu meço o efeito de grupo, escreve J.Lacan, pelo que ele acrescenta de obscenidade ao efeito imaginário do discurso." (1973, p.31.) Essa afirmação, entre as raras e decisivas que Lacan enunciou sobre o grupo I , aponta uma questão real. Mas houve como efeito de grupo o aferrolhamento da pesquisa para uma corrente inteira da psicanálise, ao denunciar os efeitos de grupo ao invés de propor sua análise. O interesse de Lacan pelos efeitos de grupo estudados pela etologia animal expressa-se em suas conferências na Escola Normal Superior da rua d"Ulm. Reproduzindo diante de seus ouvintes a observação de Uvarov e de I Sobre Lacan e a questÜo do grupo, além do artigo de 1971. poder-se-ia ler a "Lettre de dissolution de I' École Freudienne de Paris"( 1990) e o .. Acte de fondation de l' École française de psychanalise" (1964). 71 72 o Grupo e o Sujeito do Grupo Chauvin, ele traz a uma dessas conferências os gafanhotos peregrinos isolados em tubos de ensaio, mostrando as transformações produzidas por seu gregarismo. Se para Lacan o efeito de grupo se transpõe para o humano, é por estar associado por ele àquilo que é produzido pelo efeito imaginário do discurso que ele reforça. Mas o efeito de grupo é primeiro referido à sua concepção de Eu como lugar das identificações imaginárias do sujeito: o Eu é a distância que separa o sujeito de sua verdade, ele condensa todos os seus ideais, todas as imagens do que quer ou pensa ser; o Eu se objetiva em suas imagens e essas são o efeito daquilo que lhe é insuportável na prova realizada de sua falta de ser, na sua relação com a linguagem, no seu desejo e na sua verdade: "Épor parar nesse momento de falta que uma imagem chega à posição de suportar todo o preço do desejo: projeção, função do imaginário" (1966, p. 655). O acesso à linguagem, se se confronta com a impossível coincidência do sujeito da enunciação e do sujeito do enunciado, não está isento da recaída na captura imaginária do eu por seu reflexo especular: "O eu de que falamos, escreve Lacan na introdução ao comentário de Jean Hyppolite, é absolutamente impossível de distinguir das captações imaginárias que o constituem dos pés à cabeça, em sua gênese, como em sua posição, na sua função como na sua atualidade, por um outro e para um outro" (1966, p. 374). O efeito imaginário do discurso é a forma imaginária de seu eu imposto ao outro pelo sujeito, com o qual se identifica. Ele é somente o representante de um significado recalcado cuja referência é recoberta e perdida na obscenidade da imagem ou de uma palavra que o representaria inteiro. O efeito do grupo fixa, reforçando-a, a função essencial do desconhecimento atrelado às formações do imaginário, e o grupo se constitui, para ele e com seu concurso, por seus efeitos miméticos e alienantes, no mesmo registro. Entretanto nada em absoluto é dito por Lacan, a permitir supor que o imaginário possa ser aí simbolizado, que ele seja o lugar de coisa diferente de um acréscimo de alienação. De uma questão real se faz a passagem para uma petição de princípio rebelde a qualquer prova. Eppllr si muove... Herança e crítica da dinâmica lewiniana dos grupos O segundo movimento eficaz, do qual presumo ter vínculos com o primeiro, é constituído pela crítica dos psicanalistas anteriormente ligados a Lacan feita à Psicossociologia, especialmente à dinâmica de grupo e ao morenismo, em particular sobre seu imaginário da cura social por meio do psicodrama e da sociometria. Essas práticas formam na verdade as referências prevalentes no uso de uma utilização psicanalítica de grupo, uso que também transgride algu A Realidade Psíquica do Grupo e no Grupo 73 mas proibições promulgadas pelos ancestrais fundadores. Não é inútil lembrar os principais postulados de Lewin: eles serão objeto da crítica que J.- B. Pontalis (1958-59) e D. Anzieu (1964) vão dirigir à dinâmi ca de grupo, para fundar nessa ruptura epistemológica uma abordagem psicanalí tica da grupalidade. Para Lewin o grupo forma uma totalidade dinâmica e estru tural diferente e distinta da soma de seus elementos constitutivos. Essa visão gestaltista, próxima da concepção durkheimiana da sociedade, sustenta que os grupos são irredutíveis aos indivíduos que os compõem. Através de uma longa série de pesquisas apuradas, que transitam do laboratório para o terreno social, Lewin utilizará um dispositivo de tratamento da resistência à mudança, destacará os eixos teóricos e metodológicos da dinâmica de grupo, solidariedades, frontei ras, relações conflitivas e dispositivos de negociação entre as partes e o conjun to, entre os próprios conjuntos. Aos princípios dinâmicos evidenciados por Lewin acresce um efeito econô mico de grupo, efeito a ser captado pelos que utilizam dispositivos de mudança individual ou coletiva, com fins terapêuticos ou de formação. O fato de a modifi cação da estrutura do conjunto poder, em certas condições, mudar a economia dos elementos constitutivos e vice-versa, é uma característica não indiferente numa perspectiva mais ampla, na qual se inscreve na França a expansão das idéias lewinianas. O esforço empreendido pela França do após-guerra para a reconstrução da organização econômica e social, tocadas pelo conflito de que saia, facilitou a entrada de práticas e teorias grupais nos meios "psiquistas". Essas práticas apresentavam duas vantagens insignes: a possibilidade de propor cuidados psí quicos a um maior número de sujeitos era sobremaneira congruente com os objetivos do Seguro Social recentemente criado; a participação das técnicas de grupo num projeto coletivo, ideológico, de ressocialização e de readaptação do Eu, conjuga-se com as correntes saídas da Ego psychology, na época em plena expansão: estimular a criatividade, melhorar as "relações humanas", reforçar a coesão social e os ideais do Eu eram os objetivos mais ou menos explícitos que as correntes grupalistas podiam pretender atingir. Velha utopia, que en contrava nos projetos grandiosos de um Moreno um eco e uma prática e que desenvolvia, à escala da sociedade, uma forma de ilusão grupal made in U.5.A. e cujos determinantes serão assinalados pelos críticos da influência americana na Europa. 74 o Grupo e o Sujeito do Grupo A ruptura epistemológica introduzida pela psicanálise na concepção do grupo Essa ruptura comporta ao menos esse traço comum com a estabelecida pela psicanálise na ruptura com o saber e a prática da medicina, da filosofia e da psicologia. O que se modifica é a posição do objeto: essencialmente observado e manipulado nos procedimentos da medicina e da psicologia, o objeto é considerado pela psicanálise sob o aspecto em que é investido pelo impulso e pela fantasia. Assim, o grupo não é mais preferencialmente concebido como a forma e a estrutura de um sistema estabilizado de relações interpessoais, nos quais operam forças de equilíbrio, representações produtoras de normas e de processos de influência, pressões conformistas, deslocamentos de posições e de papéis. No campo psicanalítico ele é preferencialmente um objeto de investimentos pulsionais e de representações inconscientes, um sistema de ligação e de desligamento intersubjetivos das relações de objeto e das cargas libidinais ou mortíferas que lhe estão associadas. Introduzir a hipótese do inconsciente muda o vertex, as perspectivas, os objetivos, mesmo se a possibilidade de explicar seus efeitos permanecer ainda vaga. Os critérios de validação das proposições feitas sobre os grupos não anulam os pertencentes à microssociologia, à morfologia social e à psicologia social: são regulados por campos epistêmicos diferentes. É incômodo caracterizar de maneira exaustiva, em alguns parágrafos, as mudanças operadas por ocasião dessa ruptura: de certa maneira estão ainda ocorrendo; no próprio interior da abordagem psicanalítica há acentuações que enfatizam aquilo que constitui a ruptura. Se me reportar à maneira com que tratamos a questão na França no começo dos anos 60, verei o essencial do que na época marcava a diferença na afirmações seguintes, formuladas por J.- B. Pontalis e por D. Anzieu. . A hipÓtese do inconsciente: processos inconscientes operam no seio dos grupos. São de diferentes níveis, regulados pela natureza das identificações, dos mecanismos de defesa, dos conflitos psicossexuais. De uma parte são edipianos e se organizam em torno da ambivalência em relação à figura do chefe; mas são também pré-edipianas e pré-genitais, mobilizam fantasias, identificações, mecanismos de defesas e relações de objetos parciais, especialmente os decorrentes da organização oral da libido. As tensões conflituais oscilam entre esses três pólos de organização estrutural do aparelho psíquico: neurótico, narcísico, psicótico. . O grupo pequeno como objeto: a ênfase deve ser posta nos investimentos e representações de que o grupo é objeto. Pontalis escreve em 1963 que "não basta revelar os processos inconscientes que atuam no seio de um grupo, seja qual for o engenho de que se saiba capaz de dar provas: enquanto A Realidade Psíquica do Grupo e 110 Grupo 75 se coloca fora do campo da análise a própria imagem do grupo, com suas fantasias e valores, estuda-se, em realidade todo o problema da função inconsciente do grupo". Ao destacar a importância dos investimentos instintivos e as representações de que o grupo é objeto Pontalis tornava a lançar a questão aberta por Freud, retomada por Slavson, de um impulso dito gregário ou social ou de grupo. Conhecemos a resposta de Freud: "[...] custa-nos conceder ao fator número uma tal importância que o tornaria capaz de, por si só, suscitar na vida psíquica do homem um impulso novo e ordinariamente não ativado. Nossos cômputos são, por isso, orientados em direção a duas outras possibilidades: que o impulso social possa ser não originário e não decomponível e que os inícios de sua formação possam ser encontrados num círculo mais estreito, como, por exemplo, o da família" (G.- w., XIII, 74; trad. franc., 1981, p.124). No fundo, a questão não é resolvida por Freud. Os traba1hos recentes sobre o apego sugerem que anterior a qualquer investimento do objeto o impulso originário de agarrar encontra primeiro um fundamento na necessidade vital de apegarse ao corpo da mãe, de manter com a superfície de seu corpo e com a atividade psíquica que acompanha as aproximações um contato prévio a todo o apoio do impulso em cima da experiência de satisfação das necessidades corporais indispensáveis à vida. As pesquisas efetuadas sobre os autistas reunidos em grupo permitem manter a hipótese de que o impulso de agarrar encontra-se especialmente vivo neles. Mas aqui, ainda, ela não nos conduz a concluir pela existência de um impulso social originário; no máximo o impulso de agarrar-se poderia constituir o início da formação de uma tendência secundária a acompanhar (social) e a se agrupar (grupal). . O grupo como realizaçÜo dos desejos inconscientes: a perspectiva aberta em 1963 por J.- B. Pontalis sobre a posição de objeto que o grupo toma na psique de seus membros precedeu de alguns breves anos a tese decisiva de D. Anzieu: o grupo é como o sonho, o meio e o lugar da realização imaginária dos desejos inconscientes infantis. Conforme esse modelo que fornece um princípio de explicações tomada de empréstimo à interpretação do sonho, os fenômenos que se apresentam nos grupos aparentam-se a conteúdos manifestos. Derivam de um número limitado de conteúdos latentes. Se o grupo, como o sonho, é uma realização imaginária de um desejo, então os processos primários, disfarçados por uma fachada de processos secundários, são, no caso, determinantes. O grupo, tenha ele cumprido eficazmente a tarefa que se impôs, ou tenha se paralisado, é um debate com uma fantasia subjacente: "Os sujeitos humanos vão aos grupos da mesma maneira que em seu sono entram no sonho". Lugar privilegiado da realização do desejo 76 o Grupo e o Sujeito do Grupo inconsciente de seus membros, o grupo mobiliza neles mecanismos de defesa do eu. Como o sonho, como o sintoma, o grupo é a associação de um desejo que busca sua via de realização imaginária e de defesa contra a angústia suscitadas no eu por essas realizações. Essa derivação obedece a mecanismos precisos, alguns gerais e apropriados a qualquer produção inconsciente, outros específicos da situação de grupo: por exemplo, o que D. Anzieu chamará de ilusão grupal, ou o que eu assinalarei como a ideologia e as alianças inconscientes. Resulta disso que a facilidade ou a dificuldade de comunicação entre os membros dependem da ressonância das oposições entre suas vias imaginárias inconscientes respectivas: trata-se aí de fenômenos sobre os quais não agem a maior parte dos métodos de formação e de discussão que pretendem melhorar as comunicações. Essas poucas mudanças (não relacionadas exaustivamente aqui) que afetam a posição teórica do grupo acompanham-se de modificações conseqüentes na metodologia e nos princípios explicativos: a situação metodológica de grupo vai-se organizar sobre o enunciado da regra de livre associação ou de seus equivalentes no jogo psicodramático; a constituição de um campo de transferências, de resistências e de contratransferências será a condição de trabalho da interpretação cujos objetos e objetivos vão refletir o estado da teoria: "bloqueios da vida imaginária", "nós paradoxais", "função resistencial da liderança", "angústias arcaicas"; as interpretações estarão "centradas no grupo" ou, ao contrário, estritamente endereçadas aos sujeitos envolvidos na situação etc. A contribuição de Didier Anzieu Gostaria agora de tentar precisar o que se apresenta para mim como a contribuição especial de Didier Anzieu para a criação da psicanálise de grupo. Um primeiro inventário sobre a questão do grupo foi efetuado quando ele ensinou na Universidade de Estrasburgo; o Boletim da Faculdade de Letras publica um primeiro balanço crítico da corrente psicossociológica. Estamos em 1964. A etapa imediatamente seguinte nos encaminha para a afirmação de uma realidade psíquica específica do grupo e, desta vez, trata-se da realidade psíquica inconsciente. Essa afirmação se faz - é preciso notar - numa relativa independência das pesquisas inglesas. A consistência dessa realidade psíquica é qualificada nos trabalhos conduzidos e publicados por D.Anzieu sobre o imaginário, a ilusão, as fantasias. Nessa época foi levantado um primeiro inventário a partir do que se poderia chamar objetos necessariamente parciais do corpo grupal: o grupo como boca, como seio, como barriga, mas também, no registro da fantasmática persecutória, o grupo como máquina. Serão inventariadas igualmente as angústi A Realidade Psíquica do Grupo e 110 Grupo 77 as específicas e os meios de defesa correspondentes a essas fantasias e a essas angústias. Todos esses elementos vão atingir à realização do corte epistemológico introduzido pela psicanálise na concepção do grupo. Aqui o debate com Lewin - veremos daqui a pouco - é permanente. Esse trabalho, sem cessar refeito, é também um trabalho de onde são tiradas e enunciadas regras constitutivas do dispositivo de grupo relacionado com a metodologia psicanalítica. Didier Anzieu teve o cuidado de esclarecer e questionar as regras de estruturação da prática psicanalítica, e de pôr em evidência o valor heurístico da contratransferência na situação psicanalítica. Sem essa exigência, criativamente posta em prática, eu não poderia, sem dúvida, ter concebido a necessidade e as modalidades da análise intertransferencial: foi inicialmente o nosso debate, no seio do grupo do CEFFRAP J. A contribuição de D.Anzieu à colocação do dispositivo psicanalítico de grupo não teria podido se produzir sem que se levasse a cabo, paralelamente e interferindo com a prática do tratamento, a prática assídua do grupo, do grupo de liberdade de palavras e do psicodrama, com toda certeza, mas também do grupo cuja fundação, co-criação e desenvolvimento foram estabelecidos por ele. O princípio gerador do CEFFRAP é que somente um grupo que concede a si próprio um mínimo de regras de funcionamento próprios para pôr em evidência as formações e os processos do inconsciente, e eu sublinho, para produzir efeitos de análise, somente um tal grupo pode encontrar-se numa disposição favorável para fazer a experiência da realidade psíquica grupal e elaborar seu conhecimento psicanalítico. Há nesse princípio efetivamente utilizado, não sem crise, algumas rupturas e algumas superações, uma espécie de modelo metodológico para explorar as condições psicanalíticas de uma instituição psicanalítica e, como em todo modelo, há obviamente uma parte de utopia e de idealização. Mas trata-se aqui de uma utopia pontual, suficientemente sonhadora para que não seja imediatamente tomada pelos efeitos do Instituído. Quando D. Anzieu introduz, a partir dos dados do tratamento, a noção de Eu-pele, depois o conceito de envelope psíquico, terá, naturalmente, o projeto de estender sua descoberta a outros campos: comporta-se aqui, epistemólogo preciso, como um herdeiro de Freud. Tem o cuidado de trabalhar no duplo limite (instituído por A. Green) do campo psíquico. Ao mesmo tempo sobre o limite interno - resultante da clivagem entre o inconsciente e o consciente - e sobre o limite externo - que organiza, separa, articula as relações entre o campo intrapsíquico, social, cultural. J Círculo de estudos franceses para a pesquisa e formação em psicologia dinàmica. fundado em ] 962 por D. Anzieu e um pequeno grupo de psicanalistas e de psicossociólogos. D. Anzieu escreveu um ensaio sobre a história das idéias no CEFFRAP, em seu CEdipe supposé C<lIIlfuérir le ~/'(Iupe (1976). Aqui ainda, lica por escrever uma história mais ampla sobre o conjunto dos movimentos que se constituíram na França para inserir o grupo numa referência psicanalítica. 78 o Grupo e o Sujeito do Grupo Na ocasião, sua fidelidade será também prosseguir o debate inaugurado de longa data com Lewin. Quando a noção de envelope grupal é estabelecida com toda a naturalidade, ele se refere ao pioneiro da dinâmica dos grupos. Assinala que Lewin tinha esboçado uma reflexão sobre "as barreiras do grupo" (1947), tratando-se essencialmente das barreiras que se opunham à circulação da energia e da informação no interior do grupo; essas barreiras delimitam assim subespaços internos, regidos por variáveis específicas. O abandono por parte de Lewin de seu modelo topo lógico deixou em suspenso o desenvolvimento dessa reflexão; é nesse vazio, nesse hiato, que Didier Anzieu propõe seu próprio modelo; um grupo mantém com a realidade externa fronteiras materiais e intelectuais, fronteiras suscetíveis de fIutuação, lugares de conflitos e de trocas. As pesquisas de Freud sobre as formas elementares do Eu fornecem um outro modelo analógico: "Todo grupo estabelece com outros grupos barreiras de contato, abertas ou fechadas, como se queira, as quais o protegem e o contêm. Funcionam também como antenas, como filtros de possível difusão". A hipótese do Eu-pele - hipótese imposta pelo tratamento psicanalítico individual dos estados precisamente chamados de "Iimite"- parece-lhe poder ser estendida à realidade grupal. É assim que ele apresenta em 1983 a situação do problema. Alguns anos antes, D. Anzieu dava as seguintes explicações: "Um grupo é um envelope que mantém juntos os indivíduos. Enquanto esse envelope não for constituído pode existir um agregado humano, mas não um grupo. Qual é a natureza desse envelope? Os sociólogos que estudaram os grupos, os administradores que os geraram, os fundadores que os criaram põem a ênfase na malha de regulamentos implícitos ou explícitos, de costumes estabelecidos, de ritos, de atos e fatos com valor jurisprudencial, nas indicações de lugares no interior do grupo, nas particularidades de linguagem falada entre os membros e apenas deles conhecidas. Essa malha que encerra os pensamentos, as palavras, as ações, permite ao grupo constituir para si um espaço interno (que busca um sentimento de liberdade na eficácia e que garante a manutenção dos intercâmbios intragrupo) e uma temporal idade própria (compreendendo um passado de onde tira sua origem e um futuro onde projeta realizar suas metas). Reduzido à sua trama o envelope grupal é um sistema de regras, o que atua, por exemplo, em todo seminário, religioso ou psicossociológico. Desse ponto de vista, toda a vida de grupo é apanhada numa trama simbólica: é ela que o faz durar. Está aí uma condição necessária mas não suficiente. Um grupo em que a vida psíquica morreu pode também sobreviver a si mesmo. De seu envelope a carne vivente desapareceu, resta apenas a trama" (] 981, p. 1). Eu gostaria de prosseguir ainda nessa citação: "Só existe realidade inconsciente individual, escreve D. Anzieu, mas o envelope grupal constitui-se no pró A Realidade Psíquica do Grupo e no Grupo 79 prio movimento da projeção que os indivíduos fazem sobre ela com suas fantasias, suas imagos, sua tópica subjetiva (quer dizer com a maneira com que ela se articula, nos aparelhos psíquicos individuais, no funcionamento dos sub-sistemas deste: Id, Ego, Ego ideal, Superego, Ideal do ego). Por sua face interna o envelope grupal permite o estabelecimento de um estado psíquico transindividual, que eu proponho chamar um Si de grupo: o grupo tem um Si próprio. Mais ainda: ele é Si. Esse Si é imaginário. Ele fundamenta a realidade imaginária dos grupos. É o continente no interior do qual uma circulação fantasmática e identificatória vai se ativar entre as pessoas. É ele que torna o grupo vivo" (lbid., pp.l-2). Eis aí marcada a diferença com uma abordagerm psicológica do grupo. Certamente ela convoca o debate, por exemplo, sobre o postulado de que só existe realidade inconsciente individual. Quanto a mim, sustentarei de preferência que a hipótese segundo a qual a realidade psíquica é de uma parte (mas qual?) transindividual, explica certas condições intersubjetivas da formação do inconsciente do sujeito considerado em sua singularidade. A questão da realidade psíquica de grupo e no grupo Depois de Freud, Bion, Foulkes e dos trabalhos da Escola francesa, parece estar suficientemente estabelecida a hipótese segundo a qual o grupo é o lugar de uma realidade psíquica própria e, talvez, é minha opção, o aparelho da formação de uma parte da realidade psíquica de seus sujeitos. Várias questões permanecem em suspenso e exigem um grau a mais de precisão. Inicialmente, a própria noção de realidade psíquica, co-extensiva ao espaço intrapsíquico na representação dominante proposta pela teoria psicanalítica, deve contudo acomodar-se a noções freudianas tais como a comunidade das fantasias, a psique de grupo, as identificações e os ideais comuns e partilhados, com a idéia de ser o homem um "animal de Horda". Sobre a noção de realidade psíquica A realidade psíquica define-se inicialmente por sua consistência própria: a matéria psíquica, o material psíquico são irredutíveis e oponíveis a qualquer outra categoria de realidade. A consistência própria da realidade psíquica é a das formações, dos processos e das instâncias geradas pelo inconsciente, especialmente pelas fantasias inconscientes e pelas séries conflituais desejo/defesa, prazer/ desprazer, realidade interna/realidade externa. Quando Freud tiver realizado a passagem da teoria da sedução à teoria da fantasia de sedução, a realidade psí 80 o Grupo e o Sujeito do Grupo quica será a única a estar em questão na formação dos sintomas neuróticos, por causa do valor específico (exagerado) que ela terá tomado para o sujeito neurótico. Da Interpretação dos sonhos (1900) ao Esboço de Psicanálise (1938) a prevalência concedida aos desejos inconscientes especifica a realidade psíquica: "Quando nos encontramos na presença de desejos inconscientes levados à sua última e mais verdadeira expressão, somos forçados a dizer que a realidade psíquica é uma forma de existência particular que convém não confundir com a realidade material" (S. Freud, 1900, G.- W, lI-lI, p. 625). Os sonhos e as formações homólogas cuja estrutura é a das formações de compromisso, os sintomas por exemplos, são a via de acesso ao conhecimento da realidade psíquica. Esse conhecimento supõe, para quem com ele se envolva, a capacidade de reconhecêIa em si e no outro, de interpretá-Ia. A teoria psicanalítica propôs vários modelos da formação da realidade psíquica: o modelo das formações originárias, efeito do recalcamento originário ou das transmissões transindividuais supõe um já-aí das formas organizadoras da realidade psíquica, enquanto o modelo de apoio explica uma derivação da realidade psíquica a partir de ordens de realidade necessárias à vida e de ocasiões de experiências geradoras de realidade propriamente psíquica. Seja qual for a prevalência desses dois modelos na teoria, ambos supõem a precisão de uma realidade psíquica já constituída e dotada de uma capacidade constituinte.Uma porção da realidade psíquica é partilhada com outros sujeitos: Freud seguirá essa linha de pensamento com os conceitos de identificação por meio do sintoma, de comunidade de fantasia, de apoio dos impulsos do Eu no Eu matemo. Essa perspectiva se tomará mais precisa na representação que a realidade intrapsíquica induz, segundo diversas modalidades, das formações e dos processos da realidade psíquica de um outro sujeito, de um conjunto de outros: será também assim, como já sublinhei, a propósito da teoria do Eu, do Supereu e das identificações na segunda tópica. Por causa dessas extensões, podemos questionar os limites da realidade psíquica: ela não coincide a priori com o espaço individual e com seu fundamento corporal. Os princípios explicativos da formação e da consistência da realidade psíquica não remetem a uma determinação puramente intrapsíquica, leve-se em conta as condições do recalcamento, os processos de apoio ou, a fortiori, a hipótese filogenética. Há aí um primeiro objeto de debate. Um segundo recai mais precisamente sobre a extensão da noção de realidade psíquica nos conjuntos pluripsíquicos como são os grupos. Há lugar para considerar alguns obstáculos que se opõem a essa perspectiva, já que a experiência psicanalítica se fundamenta exclusivamente na prática do tratamento individual. .J A Realidade Psíquica do Grupo e 110 Grupo 81 Podemos, sem grande dificuldade, analisar e interpretar os investimentos instintivos e as representações de que o grupo é objeto na realidade psíquica de seus membros. O tratamento psicanalítico individual torna acessíveis essas formações ao analisando e ao analista; entretanto, ele não permite seguir seus efeitos no agenciamento da realidade psíquica de que o grupo é o lugar. Se aceitarmos a hipótese de que a realidade psíquica se manifesta no grupo, não ficaremos embaraçados em admitir que, para uma porção decisiva, ela consiste nos efeitos dos desejos inconscientes de seus membros e que conserva estruturas, conteúdos e funcionamentos próprios a cada um dos sujeitos singulares: a atividade do recalcamento secundário, a fantasia inconsciente secundária, a produção de sintomas, o conflito psicossexual inconsciente, os mecanismos de defesa são "no mais alto grau estritamente individuais", como observa Freud. Temos, contudo, de estar atentos à maneira como a realidade psíquica se manifesta, aos conteúdos preferencialmente mobilizados, às transformações que sofre e aos efeitos que ela produz quando se liga a formações idênticas, homólogas ou antagonistas em outros sujeitos no grupo. Todavia, devemos admitir igualmente que, se não fazemos reticências a essa idéia é porque nossa concepção de grupo permanece ainda, via de regra, a de uma soma de psiques individuais. De fato, sernos-á mais difícil conceber, analisar e interpretar como decorrente de um nível de determinação, de organização e de funcionamento grupal a realidade psíquica - ou, pelo menos, certas dimensões da realidade psíquica - que se constitui nos grupos. A essa hipótese se opõe principalmente a dificuldade envolvida na incerteza teórica a respeito do modo de produção dessa realidade. Para avançarmos nesse debate, precisamos enriquecer nossa hipótese. A noção de realidade psíquica de grupo: principais aquisições e problemas teóricos em suspenso Resumamos as principais aquisições: formações e processos psíquicos produzem-se no grupo e são regidos por uma lógica de determinação e por instâncias próprias a esse conjunto. Uma variante dessa afirmação é que o grupo é o lugar de uma realidade psíquica que se produz apenas em grupo. Podemos dizer assim que a realidade psíquica do grupo não se deixa reduzir à soma das contribuições dos membros do grupo. Essas formações e esse processo têm que ser modificados em seu modo de constituição, no seu funcionamento e nos seus efeitos. Essas aquisições, observe-se, podiam outrossim qualificar os trabalhos da psicologia social, e mais precisamente os da dinâmica de grupo. O que especifica a perspectiva psicanalítica é que ela encara o grupo como sistema de formações e de processos psíquicos derivados do inconsciente na determinação pró 82 o Grupo e o Sujeito do Grupo pria de cada sujeito e nas suas determinações transindividuais; ela define também o grupo como aparelho gerador de efeitos psíquicos relativamente autônomos em relação às psiques singulares, seus suportes e produtos; como aparelho da realidade psíquica que mantém em ligação as formações intrapsíquicas de seus sujeitos, trabalha e contém as formações que lhe são comuns, assim como as que são geradas por seu agrupamento. Desse ponto de vista, podemos encarar o grupo, com reserva das representações imaginárias que o objetivariam em uma imago, como uma entidade psíquica regida por determinações e processos próprios. Esses últimos qualificariam a realidade psíquica de grupo e admitiriam a noção de um trabalho psíquico de grupo. Sustentariam a noção de grupo como entidade específica. O problema teórico capital é, evidentemente, o do Inconsciente no grupo: a hipótese da realidade psíquica de grupo/no grupo o pressupõe, mas não o resolve enquanto não dispusermos de representações suficientemente consistentes e comprovadas para descrever seu ou seus lugares psíquicos, as energias e os processos que lhe são próprios, os conflitos que nele se geram com outras instâncias, os efeitos aí produzidos. Embora os conceitos propostos por Fréud, depois dele por Bion, Foulkes e seus colaboradores, em seguida pelos psicanalistas da escola francesa, suponham a hipótese do inconsciente nos grupos, não explicam essas questões. Temos que lidar com o problema seguinte: qual metapsicologia está em condições de explicar o inconsciente, as formações e os processos que dão à psique de grupo e a suas produções uma posição na psicanálise? Mais precisamente: como qualificar um trabalho psíquico de grupo, um recaIcamento e conteúdos recaIcados por ou sob o efeito do grupo, uma volta do recaIcado e a formação de sintomas, portanto de uma subjetividade de grupo? Para descrever a realidade psíquica própria do grupo é necessário construir conceitos apropriados. Não será suficiente qualificar de grupal o inconsciente que nele produz seus efeitos, ou a "mentalidade" que aí se forma. Devemos tomar em consideração as formações e os processos da realidade do nível do grupo sob o aspecto em que são produzidos, dispostos e ordenados pelo trabalho psíquico próprio do grupo. Na maior parte das elaborações persiste a idéia de uma dimensão grupal dos fenômenos psíquicos considerados dominantes e específicos. "Grupal" qualifica uma mentalidade, uma forma de ilusão, uma organização defensiva, uma modalidade da repetição, objeto da transferência, uma dimensão da resistência, um discurso, um trabalho psíquico realizado por um "aparelho de grupo", homólogo e distinto do aparelho psíquico "individual". Mas em inúmeros casos "grupal" indexa tanto um lugar de emergência quanto uma determinação. Enfim, na quase totalidade dos casos, esses elementos de teorização deixam de lado pro A Realidade Psíquica do Grupo e no Grupo 83 posições consistentes sobre a questão do s~(jeito do inconsciente em sua relação com o grupo. Sob que aspecto formações e processos psíquicos podem ser chamados grupais? O que se qualifica como grupal corresponde a níveis de estruturação e de funcionamento muito diversos, sendo preciso distingui-I os. Um primeiro elemento de discriminação recai sobre formações e processos psíquicos que os membros do grupo atribuem ao grupo enquanto objeto personificado: dizer "o grupo pensa" não é necessariamente descrever um pensamento ou uma atividade de pensamento do nível do grupo. Um segundo elemento de diferenciação usa como critério o fato de formações gerais terem uma especificidade de funcionamento na situação de grupo, sem que se questione seu modo de estruturação, relativamente independente da situação de grupo: a ilusão se declina nas formas grupal, familiar, de casal etc. Um terceiro critério é constituído pelas formações e os processos preferencialmente associados (estruturados, recompostos) e qualificados por suas funções na realidade psíquica do nível do grupo. É o terceiro critério que nos interessa aqui. A partir desse critério podemos, com efeito, encarar que nos grupos formam-se espaços psíquicos grupais (continentes, superfícies, cenas, depósitos, enclaves, limites, fronteiras...) engendrados pelas contribuições dos membros do grupo, pela ligação dessas contribuições, pelo que deve ser criado ou suscitado pelo próprio fato de o grupo existir independentemente de seus constituintes singulares; a fronteira do grupo e do não grupo pode bem, para fulano, coincidir com a fronteira do Eu e do não-Eu: em todo o caso uma fronteira do grupo cria-se e mantém-se como formação do grupo I. Do mesmo modo forma-se um tempo grupal que se orienta essencialmente para a ilusão de imortalidade do grupo e para o mito da origem do grupo. Uma memória de grupo se constitui de acordo com os princípios diferentes dos da memória individual 2 . 1 Os primeiros trabalhos sobre a fronteira nos grupos são devidos à abordagem estruturalista de K. Lewin (1947). Eles marcaram as abordagens psicanalíticas de Foulkes. Pichon-Riviere e Anzieu. Entre os trabalhos franceses recentes assinalemos os de Anzieu sobre o dispositivo espacial ternário no psicodrama (1982), de R. Kaes sohre o espaço corporal e os grupos amplos (1974. 19R8), de J.-P. Vidal sobre a grupalidade e as fronteiras do Eu (1991). 2 Poucos trabalhos foram consagrados, a partir dos de E. Minkowski e os de G. Gurvitch sobre as diversas estruturas da temporalidade nos conjuntos inter e transuhjetivos. Entre as pesquisas recentes referentes à psicanálise grupa!. cf. !. Berenstein sobre a estrutura psíquica da temporalidade familiar (1978) e R. Kaes sobre a plural idade dos tempos e o trahalho da memória nos grupos (1985, 1990). 84 o Grupo e o Sujeito do Grupo Já indiquei que, na base dos trabalhos de E. Jaques (1955), colocam-se mecanismos de defesa próprios do grupo, utilizados pelo grupo para fortalecer suas defesas e encontrar o suprimento de defesas faltantes 1. As pesquisas de J.-c. Ginoux (1982) puseram em evidência especialmente a especificidade grupal de certos mecanismos de repetição, merecendo sua análise que nos detenhamos sobre esse ponto. A tese é a seguinte: a formação de uma repetição grupal é uma das modalidades que o grupo decide adotar para providenciar a ruptura em caso de transição brutal entre dois meios ambientes. Ginoux distingue as repetições individuais entre o grupo e os fenômenos repetitivos propriamente grupais. Destes ele descreve a origem, a função econômica, o funcionamento e a evolução. A origem da repetição seria a reativação repentina de um passado de origem traumática esquecido, reativação transferida na situação de grupo. A origem traumática da repetição não serve para defini-Ia: ela é igualmente atual para o Eu dos participantes e está desde então ligada ao período inicial dos primeiros encontros entre os membros do grupo e o (os) psicanalista (s). Esses encontros iniciais entre as representações fantasmáticas dos participantes, o dispositivo do grupo e dos analistas seriam vivenciados sob o signo da execução maciça, do estupor ou da decepção (J.-c. Ginoux, 1982, pp. 36-37). A função econômica da repetição grupal pode ser entendida de duas maneiras complementares: a primeira destaca a reprodução compulsiva de um trauma originário, a segunda a restituição abreativa e progressiva de uma situação prétraumática. Na segunda concepção, Ginoux privilegiará o valor da reação de defesa das repetições grupais: defesa destinada a isolar os participantes de um meio ambiente atual, insuficientemente adaptado às suas necessidades mais profundas. Essa perspectiva esclarece a origem da repetição grupal numa sucessão de rachaduras num meio ambiente momentaneamente incapaz de preencher uma função protetora e para-excitante. Ginoux submeteu sua hipótese à prova em várias situações clínicas: meu ponto de vista, entretanto, é de que uma análise diferencial mostraria que ela é validada com tanto maior precisão quanto as especificidades da transferência, da contratransferência e da intertransferência possam ser caracterizadas. De fato, a noção de rachadura no meio ambiente não é objetivável fora da fantasia atualizada pela e na transferência para com os objetos do meio ambiente. Numerosos I Questão renovada pelos trabalhos de R. Roussillon sobre o paradoxo (1991) e os mecanismos metadefensivos nas instituições (1988); cf. também as pesquisas de F. André (1986) e F. Aubertel (1987) sobre os mecanismos de defesa e as defesas paradoxais nas famílias. A Realidade Psíquica do Grupo e no Grupo 85 exemplos mostrariam antes, segundo penso, que as transferências que constitu em "o meio ambiente" como suficientemente confiável tornam possível a atuali zação e a perlaboração dos traumas anteriores I . A análise de Ginoux tem o mérito de especificar as condições que tornam possível a quaHficação grupal da repetição. A noção clássica proposta por D. Anzieu, de uma forma de ilusão, que seria grupal não define apenas um objeto da ilusão, mas uma modalidade de sua produção e uma função específica na gênese da reahdade psíquica de grupo. As noções de imaginário grupal e de enve lope psíquico grupal correspondem a essas dimensões: nem a ilusão grupal, nem o envelope grupal se definem pela estrutura grupal, mas por sua função no processo grupal e na posição do sujeito no grupo. Das minhas próprias pesquisas, destaquei outros tipos de formação psíqui cas grupais, cuja estrutura e efeitos são homólogos às formações de compromis so e aos sintomas. Pus em evidência as formações do ideal próprio do grupo e dos conjuntos, principalmente das formações do Ideal, da Idéia onipotente e do Ídolo fetiche que são as ideologias. Coloquei em evidência o modo pelo qual os processos associativos, para os quais contribuem os processos primários de cada sujeito, se organizam em cadeias associativas grupais. Essas são duplamente determinadas: são formadas por enunciados sucessivos ou simultâneos dos membros do grupo e determinados por uma lógica grupal, cujos conteúdos e or ganizações decorrem de um pensamento grupaf2 . Supus, e me exphquei sobre essa hipótese, que no âmbito de sua lógica própria o grupo sustenta e dispõe uma parte de sua função recai cante, sendo intrapsíquicos os mecanismos recalcadores. Enfim o modelo do aparelho psíquico grupal qualifica um disposi tivo de Hgação, de formação, de transformação e de transmissão da realidade psíquica do nível do grupo. Além dos critérios de definição do grupal, critérios heterogêneos pois que se trata de definir os efeitos do grupo, tanto das estruturas de grupo ou ainda dos funcionamentos de grupo, em todo o caso, e isso é uma aquisição considerável, os conceitos designam uma região da reahdade psíquica que não adquire valor e consistência senão por ser ligada ao agrupamento dos sujeitos que a constituem: ela subsiste fora de sua singularidade. Melhor ainda, ela torna a lançar o debate sobre a articulação do intrapsíquico e do grupal. I Entre os raros trabalhos sobre a repetição nos grupos. o artigo de 1.-J. Baranes e Y. Gutierrez (1938) merece uma menção particular: ele analisa a participação repetitiva em grupos de formação e de elaboração que pode fazer-se do lado da contratransferência. 2 As pesquisas que impulsionei sobre os processos associativos e o trabalho do pensamento nos grupo poderiam evidente mente esclarecer essas questões. 86 o Grupo e o Sujeito do Grupo Todas essas questões se orientam, ainda uma vez, pela dificuldade de pensar a posição do inconsciente no espaço do sujeito e no espaço do grupo. A realidade psíquica no grupo: a conjunção da realidade psíquica individual e da realidade psíquica grupal É necessária uma hipótese mais complexa para compreender essa articulação. Minha afirmação consiste em que as formações e os processos psíquicos que se formam e se manifestam preferencialmente no espaço pluripsíquico grupal são conjuntamente produzidos e regidos pela lógica das instâncias individuais: a disposição particular dessas formações e desses processos constituiria, por uma parte, o índice de realidade psíquica no grupo. Podemos dizer as coisas de outra maneira e defini-Ias assim: a realidade psíquica do nível de grupo se apóia e se modela sobre as estruturas da realidade psíquica individual, principalmente sobre as formações da grupalidade intrapsíquica. Estas são transformadas, dispostas e reorganizadas conforme a lógica do conjunto. Vale dizer que o próprio agrupamento impõe exigências de trabalho psíquico comandados por sua organização, manutenção, sua lógica própria. Disso resultam formações e processos psíquicos que podem ser denominados grupais na medida em que só são produzidos pelo agrupamento. O grupo desde então deve ser pensado como o aparelho dessa transformação da matéria psíquica, o lugar de sua transmissão. Diremos também que os efeitos subjetivos e o valor da realidade psíquica do nível de grupo são constituídos pela contribuição de cada um no grupo, parte constituída daquilo que o indivíduo coloca, investe, projeta, rejeita e põe à disposição no grupo. A afirmação que eu faço sustenta que as formações psíquicas seriam comuns ao grupo e a cada um: uma tal comunidade é realizada principalmente pelas identificações, manifestando-se no Ideal do Eu, ao qual Freud concede o estatuto de formação intermediária intersubjetiva; outras formações seriam comuns porque seriam de natureza transindividual, isto é, próprias da espécie ou antropológicas, como no caso das estruturas das fantasias e do complexo de Édipo. Entretanto, para que essas formações adquiram um indício de realidade psíquica, importa que sejam objeto de apropriação no grupo e nos sujeitos que o constituem. Parece-me que essas afirmações explicam a superdeterminação da realidade psíquica suposta de grupo, no grupo: ela aparece aí complexa, compósita, intrincada, condensada. A análise deverá discriminar, entre diversos componentes na formação, a estrutura e o funcionamento da realidade psíquica nos grupos, por mais persistente que seja a impossibilidade de definir quanto toca às suas re A Realidade Psíquica do Grupo e no Grupo 87 lações: O grupo já está aí para cada sujeito, não sendo este sua causa, mas por uma parte seu efeito. As funções e a estruturação psíquica que o grupo realiza em vista de sua precedência sustenta, em troca, os investimentos psíquicos de cada um no grupo. A realidade psíquica, no grupo, consiste naquilo que, dos sujeitos do grupo, cabe ao grupo e naquilo que produz e dispõe o grupo, no seu âmbito de determinação própria e para seu próprio fim. A parte que cabe ao trabalho específico do agrupamento é analisável por meio do conceito de aparelho psíquico do agrupamento. Em graus diversos, essas partes permanecem fora do campo do consciente dos sujeitos do grupo, e a fortiori a relação entre essas partes Ihes permanece inconsciente. A hipótese por mim sustentada sobre a complexidade da realidade psíquica do nível do grupo apresenta um duplo interesse: de início, o de não causar impasse sobre nenhuma das questões fundamentais levantadas pela hipótese da realidade psíquica própria do grupo e, em primeiro lugar, a do estatuto do inconsciente - de sua tópica, de seus modos de constituição, de funcionamento e de manifestação. De fato, meu ponto de vista é que, quando supomos um nível específico da realidade psíquica da qual o grupo seria o lugar e a organização, segundo penso, graças ao aparelho de ligação, de transformação e de diferenciação que aí se utiliza, não podemos sustentar que esse desenvolvimento dos processos e das formações psíquicas comporte uma determinação inteiramente autônoma, que seria estranha aos sujeitos constituintes do grupo. Esse desenvolvimento e essa determinação por uma parte se desdobra através da intermediação dos sujeitos singulares, pelo agenciamento complexo de formações e processos psíquicos preferencialmente mobilizados no sujeito do grupo; por outro lado são geridos pelo aparelho do grupo. O segundo interesse é o de distinguir a realidade psíquica do nível do grupo da realidade intrapsíquica no espaço grupal. Podemos então articular essas duas dimensões, longamente e ainda, com freqüência, desconectadas na teoria e na clínica. Os corolários dessas afirmações são que, primeiro, não podemos encarar a formação da realidade psíquica individual a partir de certas exigências impostas pelo grupo e a partir de certas experiências da realidade psíquica de grupo, no grupo; segundo, temos que lidar com a questão do sujeito do Inconsciente no grupo. Tal hipótese deve obviamente ser estabelecida com precisão e seu interesse teórico ser confrontado com seus efeitos na clínica. Para situar sumariamente a medida desse risco posto em jogo, será suficiente perguntar-se se o trabalho psicanalítico em situação de grupo pode alcançar algum desprendimento do Eu dos vínculos que o constituíram, quando esse trabalho se propõe como objetivo unicamente o reconhecimento do que cabe com propriedade a cada sujeito nos nú 88 o Grupo e o Sujeito do Grupo cleos de realidade psíquica de que o grupo é formado. Admitir que a realidade psíquica no grupo não se reduz à soma das contribuições psíquicas de cada um de seus membros considerados isoladamente é também admitir que os investimentos e as representações de cada um se ligam e se metabolizam nas formações e nos processos psíquicos originais. A maior parte dessas formações e desses processos serão incognoscÍveis e permanecerão alheios ou estranhos para cada um, se a análise não os abarcar em seu campo. Ao contrário, logo que a análise os toma em consideração, distingue-os e interpreta-os como efeitos de uma aparelhagem psíquica dos sujeitos no vínculo do grupo; desde que os reconhece como formações e processos produzidos no grupo pelos sujeitos e sem sua vontade intencional, ela não exclui o sujeito, ao contrário, restabelece-o como sujeito, ator e atuado nessa aparelhagem. O Eu (Je) é então solicitado a pensar essas formações psíquicas sem o sujeito singular exclusivo, esses processos e formações que constituem a parte intersubjetiva de sua subjetividade. Problemas metodológicos a serem trabalhados Não foi possível avançar na formulação desses problemas sem usar um procedimento empírico novo e isso foi essencialmente e em primeiro lugar obra de psicanalistas ingleses: desenvolveram-se práticas de grupo que encontraram na teoria e no método da psicanálise apoios, correspondências, aproximações que a crítica e a clínica permitiram aplicar à análise de grupo. Eu queria, entretanto, formular um ponto de vista crítico em relação à focalização das interpretações sobre o grupo considerado como entidade que exclui a tomada em consideração do papel do sujeito no grupo. Os conceitos formados pela escola inglesa, tanto a de Bion quanto a de Foulkes, desbravaram as primeiríssimas vias que permitiram esclarecer a consistência das formações e dos processos psíquicos próprios ao grupo. Todos esses conceitos tiveram como fundamento a hipótese de que o grupo é um sistema, uma organização e uma unidade de produção especial. A conseqüência prática dessa hipótese teórica, além da diferença que ela recebe em Bion e em Folkes, é que o grupo, enquanto entidade, é o objeto de investigação e do trabalho psicanalítico. Se os conceitos de mentalidade de grupo, de cultura de grupo, de pressuposto básico ou da malha e da matriz grupal são pertinentes, por exemplo, para colocar o problema das transferências e do processo associativo nos grupos, as designações de meta e de escolhas técnicas propostas por Foulkes para a análise de grupo colocam questões delicadas quando ele leva em consideração as reações de espelho sob o aspecto exclusivo da aprendizagem e da compreensão, sem integrar os efeitos imaginários alienantes desse encontro. O primado conce A Realidade Psíquica do Grupo e no Grupo 89 dido à integração do indivíduo no grupo, à decifração dos sintomas, dos sonhos e dos símbolos confirma o poder da imago do grupo na passagem entre um conceito teórico (o grupo como totalidade) a uma posição que se pode qualificar de ideológica (o grupo como princípio explicativo e como figura unificada). A perspectiva que insista sobre o desagrupamento, sobre a libertação dos efeitos de grupo, sobre a sobrevinda do Eu (Je) e não do desenvolvimento do eu não é própria da corrente foulkesiana. No que me diz respeito, não me parece suficientemente claro que o processo de comunicação e de aprendizado de que é objeto, ambos sustentados pela intervenção dos psicanalistas (que designam a si próprios como líderes) tenham como resultado tornar "o inconsciente consciente", se for esse o alvo proposto ao trabalho psicanalítico. Supõe-se que o efeito de uma interpretação que recaia exclusivamente sobre o grupo repercuta no espaço intrapsíquico de seus membros: na verdade, a interpretação não deve atingi-Ios diretamente. Essa posição tática, no sentido de pôr em jogo o tato na técnica, por pertinente que seja nos limites que a clínica impõe, não pode ser erigida em regra do método. Ela não pode ser proposta como um princípio teórico enquanto a articulação não for feita, o mais precisamente possível, entre o nível da realidade psíquica (sob o efeito) do grupo e do nível correlativo da realidade intrapsíquica, incluindo a transindividual, nos sujeitos do grupo reunidos em situação de grupo. A questão que se coloca hoje é definir qual situação psicanalítica constituiria as condições próprias para manifestar seus efeitos e as posições subjetivas que delas derivam ou que as codeterminam. Podemos constatar zonas lacunares nos trabalhos empreendidos para definir as condições metodológicas que fundamentariam uma situação psicanalítica num dispositivo de grupo. As declarações feitas, especialmente na França no início dos anos 70, para definir essas condições (D. Anzieu, R.Kaes, A. Ruffiot, l.C. Rouchy) tornaram possível uma articulação mais serrada entre a clínica e a teorização dos processos de grupo, uma abordagem diferenciada dos diversos dispositivos psicanalíticos I. Entretanto, devemos reconhecer que, excluindo-se algumas raras declarações, a pesquisa está apenas em seu começo no tocante a questões tão capitais como as dos processos associativos em situação de grupo, as das cadeias e malhas associativas que aí produzem e organizam o "discurso do grupo", ou as correlativas, da contratransferência, da escuta do discurso e da interpretação. I Dispomos de numerosas descrições dos dispositivos técnicos de grupo, mas de poucas reflexões críticas sobre a metodologia. Cf. os estudos de D. Anzieu (1973.1982). A. Bejarano (1972), R. Kaes (1972. 1976. 1991), J.-c. Rouchy (1983), A. Rumo! (1981,1986), E. Granjon (1989). 90 o Grupo e o Sujeito do Grupo As insuficiências da pesquisa metodológica têm uma parte de responsabilidade em certas zonas fluidas da elaboração teórica. Segunda e terceira rupturas epistemológicas Uma segunda ruptura epistemológica na abordagem psicanalítica do grupo se produz quando podem ser distinguidos e nomeados os níveis lógicos da realidade psíquica e suas interferências na complexidade e na heterogeneidade do fenômeno grupal. Torna-se então possível propor-se um modelo de inteligibilidade, por imperfeito que seja, para pensá-Ios em suas articulações. Essa segunda transformação é necessária à elaboração da explicação psicanalítica, a partir do momento em que a metapsicologia do aparelho psíquico individual não pode, apenas por si mesma, explicar as formações e os processos psíquicos peculiares à dimensão grupal dos esfeitos do inconsciente. Para que essa segunda fase apareça, é preciso que a posição de membro de um grupo cesse de ser pensada como a de um simples elemento da estrutura desprovidos de toda subjetividade: ela deve, ao contrário, ser estabelecido como a do sujeito do Inconsciente, cuja conflitualidade interna se junta com a de outros sujeitos do Inconsciente para formar o grupo. Este poderá, desde então, ser interrogado sobre essas bases, na função que ele realiza para o sujeito do Inconsciente. Essa perspectiva que eu sustentarei de maneira mais especial só será aberta ao debate nos anos 70. Com o modelo de aparelho psíquico grupal, introduzirei um alvo de interpretação de duas faces, centrada nas conexões dos efeitos de grupo com os efeitos do inconsciente no espaço intrapsíquico, especialmente com a fantasia secundária. Uma terceira ruptura é previsível, já está preparada: refere-se às transformações introduzidas pela teoria do aparelho psíquico, especialmente na concepção do Inconsciente por meio das construções saídas da abordagem psicanalítica dos grupos.