A REALIDADE PSIQUICA DO GRUPO E NO GRUPO

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A realidade psíquica do grupo e no grupo
2
Os modelos pós-freudianos
As pesquisas psicanalíticas feitas sobre grupos, depois de Freud, se orga
nizam sob a hipótese de que o grupo, enquanto conjunto intersubjetivo, é o lugar de uma realidade psíquica própria.
Essa hipótese iniciada por Freud, desenvol
vida e fortalecida pelos trabalhos de Bion e Foulkes, fez-se mais precisa com
as pesquisas da Escola francesa de psicanálise grupal. Implica dois debates
fundamentais: o primeiro sobre a noção de realidade psíquica, o segundo sobre
sua extensão nas entidades pluripsíquicas organizadas, como, por exemplo, num
grupo.
Os modelos pós-freudianos: o grupo como entidade psíquica
o emprego de um dispositivo de grupo capaz de corresponder às exigênci
as do método psicanalítico permitiu pôr à prova a validade dos primeiros mode
los e de confirmar seu interesse clínico e teórico. As construções que se desen
volveram sobre essas bases se organizaram principalmente ao redor dos modelos
propostos por W.-R. Bion e por S.-H. Foulkes na Inglaterra, depois na França
por D. Anzieu e por mim próprio. Depois da primeira invenção psicanalítica do
grupo (Viena 1902, cf. capo 1), a segunda e a terceira invenção se caracterizam,
antes de tudo, pelo emprego de uma situação clínica adequada a prover a pesqui
sa e a prática terapêutica com um dispositivo de trabalho fundado sobre os prin
cípios metodológicos da psicanálise.
Londres, 1940
Subsiste certo grau de incerteza e dificuldade de decisão quando procura
mos, através de uma data, fixar a origem de um movimento. Antes de 1940 fo
ram feitas tentativas em Londres e fora de Londres para pensar o grupo como
lugar dos fenômenos específicos: Slavson, Schilder e outros esboçam proposi
ções fecundas e dispositivos que servirão de modelo a pesquisas posteriores. É,
entretanto, justo considerar que a verdadeira invenção psicanalítica do grupo,
62
o Grupo e o Sujeito do Grupo
como entidade pensada com alguns conceitos da psicanálise e experimentados numa situação apropriada, deu-se em
Londres, em 1940.
As circunstâncias merecem ser lembradas: algumas semanas após a morte de Freud, poucos meses depois do início
da Segunda Guerra Mundial, no mesmo hospital de Northfield situado nos arredores de Londres, dois psicanalistas que se
evitavam empregaram um dispositivo metodológico de grupo, instituído por eles usando o modelo do tratamento, com
isso fundando as bases de uma teoria dos grupos a partir dessa nova situação psicanalítica I.
Aspectos do modelo Pressupostos básicos
W.- R. Bion elaborou em 1961 um poderoso modelo teórico para explicar as formações e os processos da vida
psíquica nos grupos. Os conceitos que forjou levam em consideração o grupo como entidade específica e permitem qualificar como grupais os fenômenos que se produzem em seu seio.
As pesquisas psicanalíticas de W.- R. Bion permitem distinguir e articular duas modalidades do funcionamento
psíquico em grupos pequenos, quaisquer que sejam. A primeira define o grupo de trabalho: nele prevalecem processos e
exigências da lógica secundária na representação do objeto e do objetivo do grupo, na organização da tarefa e dos sistemas
de comunicação que permitem sua realização. Essa modalidade de funcionamento que visa a congruência no plano da
lógica secundária entre a representação da tarefa, a malha de comunicações e o objetivo do grupo foi muito bem estudada
pelos psicossociólogos cognitivistas 2.
bioniano:
cultura
ementalidade de grupo.
I De W.- R. Bion é preciso ler Recherches sur /espelils limupes (1961) mas também os desenvolvimentos de Callenlion el /'inleljlrélalion (1970) e os dois tomos (1977 e 1979) de Une ménwire du fulur.
Sobre Bion e sua concepção do grupo. os trabalhos de referência são os de (ou editados por eles) L. Grinberg (1973), M. Pines (1985). C. Neri. A. Correale e P Fadda (1987). F Corrao (1984), l.- C.
Rouchy (1986). Um nÚmero da Revue de psycholhérapie psrchallll/ytique de limupe foi consagrado a Bion (1986. 5-6)
De S.- H. Foulkes deve-se ler principalmente Psycholhérllpie el ana/rse de limupe (1964) e. em colaboração com Fl.Anthony, Psrcholhérllpie llppmche psrchllna/rrique (1957). Um artigo de D. Brown
(1986) compara os postulados de base de Foulkes e de Bion, enquanto um estudo de M. Laxenaire (1983) tenta fazer o paralelo entre o estruturalismo de Foulkes e o de Lacan. Uma excelente edição dos
trabalhos que se inscrevem na corrente da Gmup Ana/rsis foi realizada sob a direção de M. Pines (1983).
A corrente muito ativa ela psicanálise e ela psicoterapia de grupo na Argentina foi constituída a partir elo impulso que lhe eleram as pesquisas de E. Pichon-Riviere, l. Bleger, L. Grinberg, M. Langer, E.
Roelrigué. I. Berenstein. l. Puget. A. Cuissard, A. ele Quiroga. M. Bernard, R. laitin (cf. bibliografia). Uma obra recente de A.- M. Fernandez (1989) propões uma visão crítica elessas diversas correntes.
Entre os trabalhos e pesquisas levados a cabo na Itália destacam-se por seu vigor os trabalhos de F. Corrao. C. Neri. A.
Correale. os ele D. Napolitani. F. Napolitani, S. ele Risio, L. Ancona, F. Vanni. G.- M. Pauletta eI' Anna (1990) elirigiu
uma obra coletiva em que faz um balanço elas pesquisas atuais ela corrente foulkesiana. ao passo que a obra coletiva elirigiela por C.Neri, A. Correale e P Fadela (1987) elestaca as orientações da corrente
bioniana.
2 Atestam-no. na França. principalmente os trabalhos de S. Moscovici. C. Flame,nt. l.- C.Abric. l.- P Coliol.
A Realidade Psíquica do Grupo e no Grupo
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A segunda modalidade do funcionamento psíquico é a do grupo de base
que define o conceito de mentalidade de grupo. Todos os grupos, inclusive os grupos de pesquisa, funcionam
conforme um arranjo de pressupostos básicos e
de suas tensões com o grupo de trabalho.
A cultura de grupo é constituída pela estrutura adquirida pelo grupo em um dado momento, pelas tarefas
empreendidas e pela organização adotada para sua
realização. A mentalidade de grupo é definida como a atividade mental que se
forma num grupo a partir da opinião, da vontade e dos desejos inconscientes
unânimes e anônimos de seus membros. As contribuições destes à mentalidade
de grupo, que constitui seu continente, permitem certas satisfações de seus impulsos e desejos; devem, contudo,
estar conformes com as outras contribuições
do fundo comum e serem sustentadas por ele. A mentalidade de grupo apresenta assim uma uniformidade em
contraste ou em oposição com a diversidade das
opiniões, dos pensamentos e dos desejos próprios dos indivíduos que contribuem para formá-Ia. A mentalidade de
grupo garante a concordância da vida de
grupo com os pressupostos básicos (Basic assumption) que organizam seu curso.
O conceito de pressuposto básico foi formado por Bion para qualificar os diversos conteúdos possíveis da
mentalidade de grupo. Os pressupostos básicos são constituídos de emoções intensas, de origem primitiva,
desempenhando pa
pel determinante na organização de um grupo, na realização de sua tarefa e na
satisfação das necessidades e desejos de seus membros. Eles são e permanecem inconscientes, submetidos ao
processo primário. Expressam fantasias inconscientes. São utilizados pelos membros do grupo como técnicas mágicas
destinadas a tratar as dificuldades que encontram e principalmente para evitar a frustração
inerente ao aprendizado por meio da experiência. Bion colocou em evidência a
semelhança de seus traços com os fenômenos descritos por M. Klein em suas
teorias sobre os objetos parciais, as angústias psicóticas e as defesas primárias.
Desse ponto de vista, os pressupostos básicos são reações grupais defensivas
contra as angústias psicóticas reativadas pela regressão imposta ao indivíduo na
situação de grupo.
Segundo Bion, três pressupostos básicos são os representantes de três esta
dos emocionais específicos, mas, se é verdade que organizam o curso dos fenô
menos psíquicos próprios do grupo e satisfazem os desejos de seus membros,
não são ativados simultaneamente no grupo: eles se alternam e se mantêm prevalentes nele durante algum tempo.
Quando o grupo se organiza de acordo com o pressuposto básico Depen
dência forma-se e persiste no grupo a convicção de que ele está reunido para re
ceber de alguém (guia, professor, terapeuta) ou de qualquer coisa (idéia, ideal,
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o Grupo e o Sujeito do Grupo
organização) de que depende de forma absoluta a segurança e a satisfação de todas as necessidades e de todos os desejos
de seus membros. O grupo é representado como um "organismo imaturo", e uma "fantasia coletiva" sustenta a repre
sentação de uma dependência para a "alimentação psíquica e física" do grupo. A cultura de grupo correspondendo a esse
pressuposto organiza-se em torno da busca de um líder mais ou menos divinizado; ela se manifesta pela passividade e pela
perda do juízo crítico.
O pressuposto básico Luta e Fuga repousa sobre a fantasia coletiva de atacar ou de ser atacado. O grupo está
convicto de que existe um mau objeto interno externo encarnado por um inimigo. Esse inimigo pode ser um membro do
grupo ou uma má idéia, uma idéia adversa ou uma idéia errada. Nos grupos terapêuticas a doença pode representar esse
objeto que é preciso atacar e destruir ou evitar e dele fugir. Nos grupos de pesquisa o erro não é, com freqüência, o único a
ocupar esse lugar: a idéia nova muitas vezes tem esse papel. O grupo que funciona com essa hipótese encontra seu
dirigente entre as personalidades paranóides aptas para alimentar essa idéia, organizando ele sua cultura sobre essas bases.
A fantasia coletiva de que um ser ou um fato vindouro resolverá todos os problemas do grupo sustenta o
pressuposto básico de Acasalamento: uma esperança messiânica é, via de regra, colocada num casal, cujo filho, ainda não
concebido, salvará esse grupo de seus sentimentos de ódio, de destruição ou de desespero. A cultura do grupo se organiza
em torno do casal líder e sobre a idéia de que o futuro é o único portador das soluções esperadas; por isso, para o advento
do futuro, a esperança messiânica não deve jamais se realizar.
A pertinência das afirmações de Bion foi confirmada na análise dos grupos primários naturais e aI1ificiais, bem
como na análise dos grupos institucionais. Todos os grupos, inclusive os grupos de pesquisa, funcionam segundo os
arranjos desses pressupostos básicos e de suas tensões com o grupo de trabalho. O aparelho teórico desenvolvido pelo
psicanalista inglês em suas pesquisas posteriores sobre o pensamento e as estruturas dos vínculos internos e
intersubjetivos veio aumentar a precisão e a amplitude de suas hipóteses.
Algumas contribuições de Foulkes e Ezriel: o grupo como matriz psíquica, a ressonância fantasmática
A contribuição fundamental de Bion não se integrou à corrente da Groupanalysis, constituído
principalmente por S.- H. Foulkes, J. Rickman e H. Ezriel, em bases teóricas e metodológicas sensivelmente
diferentes.
A Realidade Psíquica do Grupo e 110 Grupo
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Em sentido amplo, a grupo-análise é um método de investigação das formações e dos processos psíquicos que se
desenvolvem num grupo; baseia seus conceitos e sua técnica em certos dados fundamentais da teoria e do método psicanalítico e sobre elaborações psicanalíticas originais, requeridas para levar em consideração o grupo como entidade
específica. Num sentido mais restrito, a grupo-análise é uma técnica de psicoterapia de grupo e um dispositivo de experiência psicanalítica do inconsciente em situação de grupo. Cinco idéias principais estão na base da grupo-análise
foulkesiana: o partido de escutar, compreender e interpretar o grupo enquanto totalidade no "aqui-agora"; a tomada em
consideração somente da transferência "do grupo" para com o analista e não das transferências intragrupais ou laterais; a
noção de ressonância inconsciente (Ezriel precisa: fantasmática) entre os membros de um grupo; a tensão comum e o
denominador comum das fantasias inconscientes do grupo; a noção de grupo como matriz psíquica e quadro de referência
de todas as interações.
O postulado principal de Foulkes é que "a natureza social do homem é um fato fundamental e irredutível. O grupo
não é o resultado de interação entre indivíduos. Consideramos que qualquer doença se produz no interior de uma malha
complexa de relações interpessoais. A psicoterapia de grupo é uma tentativa de tratar a malha inteira dos distúrbios, seja
no ponto de origem do grupo original primitivo - seja colocando o indivíduo perturbado em condições de transferência
num grupo estranho" (5.- Foulkes, 1964; trad. franc., 1970, p. 108).
Dos dois anos que Foulkes passou a trabalhar com K. Goldstein, no Instituto de Neurologia de Frankfurt, antes de
iniciar a formação psicanalítica, ele conservou a idéia central da Gestalt - a mesma que inspirou K. Lewin - e a aplicou-a à
sua concepção de indivíduo e do grupo: a totalidade precede às partes, é mais elementar que elas, não é a soma de seus
elementos. O indivíduo e o grupo formam um conjunto de figura-fundo. O indivíduo num grupo é como um ponto nodal
numa rede de neurônios. A noção de Knotenpunkt, que Freud já utilizara na malha das séries associativas em A
interpretação dos sonhos, Foulkes descobre através da neurologia e da abordagem estrutural do comportamento de K.
Goldstein.
Dessa idéia fundamental deriva, para Foulkes, uma outra: a de que o grupo possui propriedades terapêuticas
específicas: a prática da análise de grupo que ele elabora em Londres no início dos anos quarenta, no mesmo hospital de
Northfield onde Bion, na mesma época, reúne as bases clínicas de sua teoria, se justifica assim: "A idéia do grupo como
matriz psíquica, o terreno comum das relações de cooperações incluindo-se todas as interações dos membros participantes
do grupo é primordial para a teoria e o processo da terapia. Todas as comunicações ocorrem no interior desse quadro de
referência. Um fundo de com
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o Grupo e o Sujeito do Grupo
preensão inconsciente, no qual se produzem reações e comunicações complexíssimas, está sempre presente" (lbid., p.1
09).
Os principais fatores terapêuticos do grupo são quatro: o primeiro é a estimulação da integração social e o conforto
no isolamento; Foulkes insiste na "necessidade fundamental do indivíduo de ser compreendido pelo grupo e de estar preso
a ele", a despeito de seu impulso de se retirar dele: "O fundamento social, escreve, sobrepuja-o imediatamente".
O segundo fator é a reação do espelho que aparece "de modo característico quando um certo número de pessoas se
encontram e agem umas sobre as outras. Um indivíduo vê-se a si próprio - muitas vezes a parte recaIcada dele retletida
nas interações de outros membros do grupo. Ele os vê reagir do mesmo modo que ele próprio, ou em contraste com seu
próprio comportamento. Aprende a conhecer-se - e aí está um processo fundamental no desenvolvimento do eu pela ação
que ele exerce nos outros e pela imagem que fazem dele" (lbid.).
Um terceiro fator é o processo de comunicação: todos os dados observáveis, conscientes ou inconscientes, verbais
ou não verbais, são comunicações pertinentes, quer dos participantes, quer do grupo considerado como um todo. Foulkes
considera mais importante que a informação fornecida o processo da comunicação: "O grupo terapêutico estabelece uma
zona comum na qual os membros podem comunicar e aprender a se compreender uns aos outros. No interior desse
processo, os membros do grupo começam a compreender a linguagem do sintoma, dos símbolos e dos sonhos tanto
quanto as comunicações verbais. Devem aprendê-I o pela experiência para que isso seja significativo e, conseqüentemente, eficaz... Esse processo de comunicação tem muito em comum com o processo que vem a tornar
consciente o inconsciente" (lbid., pp. 110-111). A necessidade de recorrer ao método da livre associação de idéias em
situação de grupo, que Foulkes esboça rapidamente e que não será desenvolvida em seguida, repousa sobre os conceitos
de malha e de processos de comunicação.
O quarto fator é a interdependência das modificações que ocorrem no grupo e nos indivíduos que o compõem,
"mesmo se não nos dirigimos a cada um deles em particular" (lhid., p. 156). Se o grupo é o campo de ação da análise de
grupo, seu campo é, para Foulkes "o grau ótimo de liberação e de integração do indivíduo" (1948). O campo de ação é a
malha das interações na matriz psíquica (mental) do grupo.
Esses quatro fatores terapêuticos do grupo definem melhor que as afirmações teóricas de Foulkes a noção de que o
grupo é uma totalidade produtiva de formações psíquicas específicas cuja homologação com as do aparelho psíquico
deverá ser esc\arecida. O conceito de ressonância inconsciente introduzido por
A Realidade Psíquica do Grupo e 110 Grupo
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Foulkes e esclarecido por Ezriel como ressonância fantasmática merece uma atenção particular: ele recoloca a espinhosa
questão da posição da fantasia nos grupos.
A referência metafórica do conceito de ressonância é tomado de empréstimo à Física. Duas noções são importantes
aqui: a de vibração fomentadora e a de amplitude dessa vibração quando se aproxima da freqüência própria do sistema ao
qual pertence. Foulkes (1948) utilizou essa noção para descrever empiricamente um processo psíquico primário da
intersubjetividade constituída na relação simbiótica da criança com a mãe: a ressonância inconsciente é definida como o
conjunto de respostas emocionais e comportamentais inconscientes de um indivíduo à presença e à comunicação de outro
indivíduo. A vibração fomentadora suscitaria o mesmo universo pulsional e representacional entre os sujeitos, mantendoos numa interação mútua. Essa ressonância foi especificada por H. Ezriel (1950) como ressonância fantasmática. O
campo de aplicação da noção é tanto o do tratamento individual quanto o da grupo-análise. Nos grupos a ressonância
fantasmática é um agente da tensão comum e do denominador comum do grupo: a fantasia de um participante suscita e
mobiliza outras formações fantasmáticas nos outros membros do grupo em relação de ressonância com o pnmeIro.
Essa noção deveria ser oposta a outra, complementar, de interferência; se permanecemos no mesmo referencial
físico a interferência designa o encontro de duas ondas de mesma direção que podem se reforçar ou se destruir conforme
suas cristas se superponham ou que a de uma se encontre com a cavidade da outra. A lógica da metáfora nos leva assim a
tomar em consideração esses movimentos em que o suscitar de um impulso ou de uma representação mobilize ou um
reforço ou um antagonismo e uma inversão: isso se traduz em termos de mecanismo de defesa, de recalque e de
denegação para lutar contra o excesso de carga ou da representação intolerável. Esse ponto de vista complementar, que
não parece ser adotado por Foulkes e Ezriel, é um processo fundamental daquilo que eu chamo de aparelhagem psíquica.
o grupo como entidade psíquica, objeto da análise
Todos esses modelos de funcionamento do grupo têm como fundamento a hipótese de que o grupo é uma
organização e um lugar de produção da realidade psíquica, uma entidade relativamente independente da dos indivíduos
que a constituem. Uma conseqüência prática dessa hipótese teórica, além da diferença de tratamento que recebe de Bion e
de Foulkes, é fazer do grupo, enquanto entidade, objeto de investigação e do trabalho psicanalítico. Os conceitos de menta
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o Grupo e o Sujeito do Grupo
lidade de grupo, de cultura de grupo e de pressuposto básico, de malha de comunicações inconscientes, de matriz grupal e
de ressonância fantasmática fazem do grupo uma entidade geradora de efeitos psíquicos próprios. Esses conceitos
constituem o grupo como destinatário da interpretação. Se a interpretação se pensa e se dá em termos de grupo, seus
efeitos são evidentemente desfrutados por cada pessoa, através dos vínculos que a ligam à matriz do grupo ou que a
situam no seu campo de forças. Mas esse vínculo, e o que para cada um é nele posto em risco, não será interpretado
diretamente. Foulkes, como Bion, supõe que o inconsciente produz efeitos específicos no grupo, mas ele o trata mais
como uma qualidade relacionada com os produtos do que como uma instância ou um sistema constitutivo das formações e
dos processos intersubjetivos.
Destaquemos o seguinte: as primeiras teorias sobre o grupo, tenham elas sido propostas por Lewin (1947) ou por
Moreno (1954), mas também por Foulkes ou por Bion, são teorias que recaem sobre o grupo como entidade específica, na
qual as contribuições dos sujeitos, sua posição mesma de sujeito singular e de sujeito do grupo são tratadas como
processos e conteúdos anônimos e dessubjetivados. Dito de outra forma e sob esse aspecto, as primeiras teorias do grupo
que o constituem como objeto epistêmico e como espaço psíquico peculiar, são teorias de quais o sujeito desaparece
naquilo que o singulariza: sua história, sua colocação na fantasia inconsciente, a idiossincrasia de suas pulsões, de suas
representações, de seu recalcamento.
Será preciso esperar que os trabalhos da Escola francesa restituam ao grupo o valor de objeto psíquico para seus
sujeitos, antes que se iniciem as pesquisas sobre suas aparelhagens psíquicas e o que as organizam, antes que se aclarem
as ilusões com que o vínculo grupal se estabelece, mas também as modalidades do trabalho psíquico nos grupos.
A terceira invenção: Paris, 1960
A terceira invenção psicanalítica do grupo é contemporânea de vários movimentos cujas afinidades
restariam estabelecer pelo menos para dois deles. Quero antes de mais nada falar das rupturas e das criações
institucionais no seio do movimento psicanalítico francês: 1963, criação da Escola freudiana de Paris; 1964,
criação da Associação psicanalítica da França. Essas criações foram geradas em grande parte nos conflitos que
se estabelecem em tomo da posição de J. Lacan antes e depois da cisão que o conduz a formar sua própria
Escola. O ato de sua fundação merece ser relembrado por interessar a nosso propósito. Lacan, herói solitário,
proclama: "Eu fundo - sozinho como sempre estive na relação com a causa psicanalítica - a Escola francesa de
psicanálise...". Mas será somente por
A Realidade Psíquica do Grupo e no Grupo
69
intermédio dos grupos, e dos grupos a que dará o nome de cartéis, é que se fará a adesão à escola. O grupo e o poder do
Plus-Un no cartel serão os instrumentos da realização dos objetivos da Escola, não os sujeitos psicanalistas, na sua
singularidade. O que não impedirá Lacan, num artigo da revista Scillicet, o único a ter a assinatura de um nome, o seu, de
denunciar os efeitos de grupo naquilo em que ele os "mede na obscenidade que acrescentam aos efeitos imaginários do
discurso". Repete-se assim a influência do grupo e a proibição de pensar, a fortiori, de elaborar sua prática psicanalítica. A
clivagem entre o lugar considerável designado ao grupo na fundação da instituição psicanalítica, e sua rejeição como
objeto psicanalítico, subtraído à elaboração psicanalítica só pode produzir um desses efeitos de retomo ao real, sob a
forma de violência e de destruição dos aparelhos de pensar! .
O que é pois um efeito de grupo?
Para dar um sentido psicanalítico aos "efeitos de grupo"
Essa noção se forma primeiro nos trabalhos de etologia animal, que, por volta de 1920, se orientam para pesquisas
de fisiologia social. Os trabalhos de Uvarov sobre o gafanhoto peregrino apanhado e desenvolvido em laboratório por
Chauvin são suficientemente conhecidos, bastando uma exposição sobre eles, limitada ao essencial. Sabe-se que o
gafanhoto peregrino existe sob duas formas, de características morfológicas diversas importantes: uma solitária e
sedentária, a outra gregária e migratória. Quando as condições do meio são favoráveis, a espécie do tipo solitário começa
a pulular, produzindo-se um efeito de grupo que modifica a morfologia e o comportamento dos gafanhotos: seu sistema
nervoso e endócrino se transformam, acarretando um aumento de metabolismo, da atividade e o aumento do
desenvolvimento ao longo de mudas sucessivas. Aparece uma afinidade social que aumenta os agrupamentos em massa
cada vez mais volumosas e numerosas. Uma imitação reflexa provoca a revoada de todos quando um deles começa a voar.
O efeito de grupo modifica o comportamento e causa a afinidade social que sensibiliza à influência recíproca estimulações
sensoriais entre congêneres, influência que, por sua vez, acelera os fenômenos de grupo. R. Chauvin tornou evidente, em
laboratório, a reversibilidade do processo: se o fato de agrupar-se é suficiente para transformá-Ios, o isolamento dos
gregários os conduz à morfologia de solitário 2 .
I A obra de F. Roustang pode ser ti da como uma referência (1976). As histórias da psicanálise não levam em conta essas
de J. Chemouni (1991).
pesquisas. Há uma exceção corajosa 110 livro
2 Podem-se consultar os trabalhos de R. Chauvin em suas obras sobre insetos (1956) e sobre o comportamento social dos
os efeitos de grupo e os efeitos de massa.
animais (1961), 110 qual ele expõe o que são
70
o Grupo e o Sujeito do Grupo
Os trabalhos de fisiologia social colocaram em evidência os efeitos de grupo em outros animais, mostrando que o
agrupamento pode constituir uma proteção eficaz contra a hostilidade do meio, sua influência na sexualidade e sobre a
taxa de reprodução e o fato de modificar o crescimento. A imitação reflexa induzida por esses efeitos foi observada no
peixe vermelho (ele se alinha à sua imagem num espelho), no carneiro e no homem (o bocejo "social").
Seguramente, as transposições desses resultados para o homem recolocam os problemas clássicos das diferenças
entre o animal e o homem. Os efeitos da longa infância humana sobre o desenvolvimento da aprendizagem e da cultura, a
importância decisiva da linguagem articulada, a instituição de leis, de regras e de símbolos sociais, a formação das
identificações, distintas da imitação na sua gênese e funcionamento, conferem, entre outros traços, uma especificidade à
sociabilidade humana. A parte das montagens inatas, instintuais e automáticas é ao mesmo tempo diminuída e inserida
num organização diferente. A hipótese psicanalítica do inconsciente sustenta outras hipóteses sobre os efeitos de grupo e
sobre os processos psíquicos por eles gerados e modificados.
Entretanto, antes de explicarmos isso, confirmamos, através de um atalho pelas pesquisas da psicologia social, o
interesse dessa noção, dando-lhe um primeiro conteúdo psíquico. Detenho-me aqui na experiência princeps de M. Shérif
(1935) sobre as pressões conformistas e a criação das normas de grupo. Em laboratório, Shérif reúne uma série de
indivíduos que ele coloca numa situação tal que são levados a emitir um julgamento sobre um fenômeno que pode ser
avaliado quantitativamente de diferentes maneiras. Shérif utiliza como suporte técnico de sua experiência o efeito
autocinético de um ponto luminoso projetado na parede de uma sala escura. Nessa situação, o quadro de referência
perceptivo desparece e o ponto luminoso é percebido em movimento. Shérif estuda a avaliação ou amplitude do
movimento percebido em duas situações diferentes: quando o indivíduo está isolado (i); quando está em situação de grupo
(g). Duas situações de grupo constituem-se de fato no plano experimental: quer a avaliação seja primeiro feita
individualmente depois em grupo (i g), seja o inverso (g i ). Em situação de grupo, cada indivíduo anuncia publica e
oralmente sua avaliação.
Os resultados obtidos são os seguintes: na avaliação em que o indivíduo está isolado (i, i g) as avaliações são muito
dispersas no conjunto da população, mas as variações dos julgamentos de cada indivíduo tendem a estabilizar-se, depois
de várias experiências em torno de uma norma perceptiva que lhe é própria. Em situação de grupo, a dispersão dos
julgamentos individuais se reduz consideravelmente e as normas perceptivas individuais são substituídas por uma norma
perceptiva de grupo. As avaliações individuais posteriores aos julgamentos emitidos em grupo (g i) são influenciadas pela
norma de grupo que se conserva, as
A Realidade Psíquica do Grupo e no Grupo
sim, interiorizada pelos membros do grupo. A convergência entre avaliação individual e norma de grupo é, entretanto,
menos marcada quando os indivíduos foram previamente colocados em situação individual (i g).
O efeito de grupo que produz a norma perceptiva de grupo depende da influ~
ência recíproca que os indivíduos exercem uns sobre os outros quando, nas condi
çõesda experiência, ficam reunidos. A experiência de Shérif faz supor que a incerteza quanto à avaliação do
movimento autocinético é reduzida pelo efeito
normativo do grupo. A conformidade com a norma toma-se então um critério da
prova de realidade. Os fenômenos postos em evidência por Shérif manifestam-se
nos grupos reunidos para tratar de um problema comum. São tanto mais ativos
quanto o problema a resolver está ligado os alvos principais e à tarefa primordial
do grupo. Observações posteriores mostraram que as normas são reforçadas ou
restabelecidas quando a coesão do grupo fica ameaçada e quando elas se traduzem por enunciados de linguagem
próprias ao grupo ou por provérbios. Encontram então nos efeitos de discurso uma força de confirmação importante: o
ponto de vista não é anódino desde que as pessoas se interessem pelos processos associativos nos
grupos e pelos efeitos de discurso que se produzam aí; pressões conformistas e
normas de grupo asseguram a permanência do grupo e desenvolvem o sentimento de pertencer ao grupo em seus
membros.
Entretanto, é preciso que em caso algum se perca de vista que essas experiências mostrem que o efeito de grupo,
para produzir-se, deve, de um modo ou de outro, encontrar nos membros do grupo uma tendência ou uma predisposição
favorável à sua constituição. É desse ponto de vista que a crítica de Lacan nos interessa aqui, tanto quanto seu
questionamento.
o efeito de grupo como acréscimo de obscenidade ao efeito imaginário do discurso
'''Eu meço o efeito de grupo, escreve J.Lacan, pelo que ele acrescenta de obscenidade ao efeito imaginário do
discurso." (1973, p.31.) Essa afirmação, entre as raras e decisivas que Lacan enunciou sobre o grupo I , aponta uma
questão real. Mas houve como efeito de grupo o aferrolhamento da pesquisa para uma corrente inteira da psicanálise, ao
denunciar os efeitos de grupo ao invés de propor sua análise.
O interesse de Lacan pelos efeitos de grupo estudados pela etologia animal expressa-se em suas conferências na
Escola Normal Superior da rua d"Ulm. Reproduzindo diante de seus ouvintes a observação de Uvarov e de
I Sobre Lacan e a questÜo do grupo, além do artigo de 1971. poder-se-ia ler a "Lettre de dissolution de I' École Freudienne
de Paris"( 1990) e o .. Acte de fondation de l' École française de psychanalise" (1964).
71
72
o Grupo e o Sujeito do Grupo
Chauvin, ele traz a uma dessas conferências os gafanhotos peregrinos isolados em tubos de ensaio, mostrando as
transformações produzidas por seu gregarismo. Se para Lacan o efeito de grupo se transpõe para o humano, é por estar
associado por ele àquilo que é produzido pelo efeito imaginário do discurso que ele reforça. Mas o efeito de grupo é
primeiro referido à sua concepção de Eu como lugar das identificações imaginárias do sujeito: o Eu é a distância que
separa o sujeito de sua verdade, ele condensa todos os seus ideais, todas as imagens do que quer ou pensa ser; o Eu se
objetiva em suas imagens e essas são o efeito daquilo que lhe é insuportável na prova realizada de sua falta de ser, na sua
relação com a linguagem, no seu desejo e na sua verdade: "Épor parar nesse momento de falta que uma imagem chega à
posição de suportar todo o preço do desejo: projeção, função do imaginário" (1966, p. 655). O acesso à linguagem, se se
confronta com a impossível coincidência do sujeito da enunciação e do sujeito do enunciado, não está isento da recaída na
captura imaginária do eu por seu reflexo especular: "O eu de que falamos, escreve Lacan na introdução ao comentário de
Jean Hyppolite, é absolutamente impossível de distinguir das captações imaginárias que o constituem dos pés à cabeça,
em sua gênese, como em sua posição, na sua função como na sua atualidade, por um outro e para um outro" (1966, p.
374).
O efeito imaginário do discurso é a forma imaginária de seu eu imposto ao outro pelo sujeito, com o qual se
identifica. Ele é somente o representante de um significado recalcado cuja referência é recoberta e perdida na obscenidade
da imagem ou de uma palavra que o representaria inteiro. O efeito do grupo fixa, reforçando-a, a função essencial do
desconhecimento atrelado às formações do imaginário, e o grupo se constitui, para ele e com seu concurso, por seus
efeitos miméticos e alienantes, no mesmo registro. Entretanto nada em absoluto é dito por Lacan, a permitir supor que o
imaginário possa ser aí simbolizado, que ele seja o lugar de coisa diferente de um acréscimo de alienação. De uma questão
real se faz a passagem para uma petição de princípio rebelde a qualquer prova. Eppllr si muove...
Herança e crítica da dinâmica lewiniana dos grupos
O segundo movimento eficaz, do qual presumo ter vínculos com o primeiro, é constituído pela crítica dos
psicanalistas anteriormente ligados a Lacan feita à Psicossociologia, especialmente à dinâmica de grupo e ao morenismo,
em particular sobre seu imaginário da cura social por meio do psicodrama e da sociometria. Essas práticas formam na
verdade as referências prevalentes no uso de uma utilização psicanalítica de grupo, uso que também transgride algu
A Realidade Psíquica do Grupo e no Grupo
73
mas proibições promulgadas pelos ancestrais fundadores.
Não é inútil lembrar os principais postulados de Lewin: eles serão objeto
da crítica que J.- B. Pontalis (1958-59) e D. Anzieu (1964) vão dirigir à dinâmi
ca de grupo, para fundar nessa ruptura epistemológica uma abordagem psicanalí
tica da grupalidade. Para Lewin o grupo forma uma totalidade dinâmica e estru
tural diferente e distinta da soma de seus elementos constitutivos. Essa visão
gestaltista, próxima da concepção durkheimiana da sociedade, sustenta que os
grupos são irredutíveis aos indivíduos que os compõem. Através de uma longa
série de pesquisas apuradas, que transitam do laboratório para o terreno social,
Lewin utilizará um dispositivo de tratamento da resistência à mudança, destacará os eixos teóricos e metodológicos
da dinâmica de grupo, solidariedades, frontei
ras, relações conflitivas e dispositivos de negociação entre as partes e o conjun
to, entre os próprios conjuntos.
Aos princípios dinâmicos evidenciados por Lewin acresce um efeito econô
mico de grupo, efeito a ser captado pelos que utilizam dispositivos de mudança
individual ou coletiva, com fins terapêuticos ou de formação. O fato de a modifi
cação da estrutura do conjunto poder, em certas condições, mudar a economia
dos elementos constitutivos e vice-versa, é uma característica não indiferente
numa perspectiva mais ampla, na qual se inscreve na França a expansão das
idéias lewinianas.
O esforço empreendido pela França do após-guerra para a reconstrução
da organização econômica e social, tocadas pelo conflito de que saia, facilitou
a entrada de práticas e teorias grupais nos meios "psiquistas". Essas práticas
apresentavam duas vantagens insignes: a possibilidade de propor cuidados psí
quicos a um maior número de sujeitos era sobremaneira congruente com os
objetivos do Seguro Social recentemente criado; a participação das técnicas de
grupo num projeto coletivo, ideológico, de ressocialização e de readaptação do
Eu, conjuga-se com as correntes saídas da Ego psychology, na época em plena
expansão: estimular a criatividade, melhorar as "relações humanas", reforçar a
coesão social e os ideais do Eu eram os objetivos mais ou menos explícitos
que as correntes grupalistas podiam pretender atingir. Velha utopia, que en
contrava nos projetos grandiosos de um Moreno um eco e uma prática e que
desenvolvia, à escala da sociedade, uma forma de ilusão grupal made in U.5.A.
e cujos determinantes serão assinalados pelos críticos da influência americana
na Europa.
74
o Grupo e o Sujeito do Grupo
A ruptura epistemológica introduzida pela psicanálise na concepção do grupo
Essa ruptura comporta ao menos esse traço comum com a estabelecida pela psicanálise na ruptura com o saber e a
prática da medicina, da filosofia e da psicologia. O que se modifica é a posição do objeto: essencialmente observado e
manipulado nos procedimentos da medicina e da psicologia, o objeto é considerado pela psicanálise sob o aspecto em que
é investido pelo impulso e pela fantasia. Assim, o grupo não é mais preferencialmente concebido como a forma e a
estrutura de um sistema estabilizado de relações interpessoais, nos quais operam forças de equilíbrio, representações
produtoras de normas e de processos de influência, pressões conformistas, deslocamentos de posições e de papéis. No
campo psicanalítico ele é preferencialmente um objeto de investimentos pulsionais e de representações inconscientes, um
sistema de ligação e de desligamento intersubjetivos das relações de objeto e das cargas libidinais ou mortíferas que lhe
estão associadas. Introduzir a hipótese do inconsciente muda o vertex, as perspectivas, os objetivos, mesmo se a
possibilidade de explicar seus efeitos permanecer ainda vaga. Os critérios de validação das proposições feitas sobre os
grupos não anulam os pertencentes à microssociologia, à morfologia social e à psicologia social: são regulados por
campos epistêmicos diferentes.
É incômodo caracterizar de maneira exaustiva, em alguns parágrafos, as mudanças operadas por ocasião dessa
ruptura: de certa maneira estão ainda ocorrendo; no próprio interior da abordagem psicanalítica há acentuações que
enfatizam aquilo que constitui a ruptura. Se me reportar à maneira com que tratamos a questão na França no começo dos
anos 60, verei o essencial do que na época marcava a diferença na afirmações seguintes, formuladas por J.- B. Pontalis e
por D. Anzieu.
. A hipÓtese do inconsciente: processos inconscientes operam no seio dos grupos. São de diferentes níveis, regulados pela
natureza das identificações, dos mecanismos de defesa, dos conflitos psicossexuais. De uma parte são edipianos e se
organizam em torno da ambivalência em relação à figura do chefe; mas são também pré-edipianas e pré-genitais,
mobilizam fantasias, identificações, mecanismos de defesas e relações de objetos parciais, especialmente os decorrentes
da organização oral da libido. As tensões conflituais oscilam entre esses três pólos de organização estrutural do aparelho
psíquico: neurótico, narcísico, psicótico.
. O grupo pequeno como objeto: a ênfase deve ser posta nos investimentos e representações de que o grupo é objeto.
Pontalis escreve em 1963 que "não basta revelar os processos inconscientes que atuam no seio de um grupo, seja qual for
o engenho de que se saiba capaz de dar provas: enquanto
A Realidade Psíquica do Grupo e 110 Grupo
75
se coloca fora do campo da análise a própria imagem do grupo, com suas fantasias e valores, estuda-se, em realidade todo
o problema da função inconsciente do grupo". Ao destacar a importância dos investimentos instintivos e as representações
de que o grupo é objeto Pontalis tornava a lançar a questão aberta por Freud, retomada por Slavson, de um impulso dito
gregário ou social ou de grupo. Conhecemos a resposta de Freud: "[...] custa-nos conceder ao fator número uma tal
importância que o tornaria capaz de, por si só, suscitar na vida psíquica do homem um impulso novo e ordinariamente não
ativado. Nossos cômputos são, por isso, orientados em direção a duas outras possibilidades: que o impulso social possa ser
não originário e não decomponível e que os inícios de sua formação possam ser encontrados num círculo mais estreito,
como, por exemplo, o da família" (G.- w., XIII, 74; trad. franc., 1981, p.124).
No fundo, a questão não é resolvida por Freud. Os traba1hos recentes sobre o apego sugerem que anterior a qualquer
investimento do objeto o impulso originário de agarrar encontra primeiro um fundamento na necessidade vital de apegarse ao corpo da mãe, de manter com a superfície de seu corpo e com a atividade psíquica que acompanha as aproximações
um contato prévio a todo o apoio do impulso em cima da experiência de satisfação das necessidades corporais
indispensáveis à vida. As pesquisas efetuadas sobre os autistas reunidos em grupo permitem manter a hipótese de que o
impulso de agarrar encontra-se especialmente vivo neles. Mas aqui, ainda, ela não nos conduz a concluir pela existência
de um impulso social originário; no máximo o impulso de agarrar-se poderia constituir o início da formação de uma
tendência secundária a acompanhar (social) e a se agrupar (grupal).
. O grupo como realizaçÜo dos desejos inconscientes: a perspectiva aberta em 1963 por J.- B. Pontalis sobre a posição de
objeto que o grupo toma na psique de seus membros precedeu de alguns breves anos a tese decisiva de D. Anzieu: o grupo
é como o sonho, o meio e o lugar da realização imaginária dos desejos inconscientes infantis. Conforme esse modelo que
fornece um princípio de explicações tomada de empréstimo à interpretação do sonho, os fenômenos que se apresentam
nos grupos aparentam-se a conteúdos manifestos. Derivam de um número limitado de conteúdos latentes. Se o grupo,
como o sonho, é uma realização imaginária de um desejo, então os processos primários, disfarçados por uma fachada de
processos secundários, são, no caso, determinantes. O grupo, tenha ele cumprido eficazmente a tarefa que se impôs, ou
tenha se paralisado, é um debate com uma fantasia subjacente: "Os sujeitos humanos vão aos grupos da mesma maneira
que em seu sono entram no sonho". Lugar privilegiado da realização do desejo
76
o Grupo e o Sujeito do Grupo
inconsciente de seus membros, o grupo mobiliza neles mecanismos de defesa do eu. Como o sonho, como o sintoma, o
grupo é a associação de um desejo que busca sua via de realização imaginária e de defesa contra a angústia suscitadas no
eu por essas realizações.
Essa derivação obedece a mecanismos precisos, alguns gerais e apropriados a qualquer produção inconsciente, outros
específicos da situação de grupo: por exemplo, o que D. Anzieu chamará de ilusão grupal, ou o que eu assinalarei como a
ideologia e as alianças inconscientes. Resulta disso que a facilidade ou a dificuldade de comunicação entre os membros
dependem da ressonância das oposições entre suas vias imaginárias inconscientes respectivas: trata-se aí de fenômenos
sobre os quais não agem a maior parte dos métodos de formação e de discussão que pretendem melhorar as comunicações.
Essas poucas mudanças (não relacionadas exaustivamente aqui) que afetam a posição teórica do grupo
acompanham-se de modificações conseqüentes na metodologia e nos princípios explicativos: a situação metodológica de
grupo vai-se organizar sobre o enunciado da regra de livre associação ou de seus equivalentes no jogo psicodramático; a
constituição de um campo de transferências, de resistências e de contratransferências será a condição de trabalho da
interpretação cujos objetos e objetivos vão refletir o estado da teoria: "bloqueios da vida imaginária", "nós paradoxais",
"função resistencial da liderança", "angústias arcaicas"; as interpretações estarão "centradas no grupo" ou, ao contrário,
estritamente endereçadas aos sujeitos envolvidos na situação etc.
A contribuição de Didier Anzieu
Gostaria agora de tentar precisar o que se apresenta para mim como a contribuição especial de Didier Anzieu para a
criação da psicanálise de grupo. Um primeiro inventário sobre a questão do grupo foi efetuado quando ele ensinou na
Universidade de Estrasburgo; o Boletim da Faculdade de Letras publica um primeiro balanço crítico da corrente
psicossociológica. Estamos em 1964. A etapa imediatamente seguinte nos encaminha para a afirmação de uma realidade
psíquica específica do grupo e, desta vez, trata-se da realidade psíquica inconsciente. Essa afirmação se faz - é preciso
notar - numa relativa independência das pesquisas inglesas. A consistência dessa realidade psíquica é qualificada nos trabalhos conduzidos e publicados por D.Anzieu sobre o imaginário, a ilusão, as fantasias. Nessa época foi levantado um
primeiro inventário a partir do que se poderia chamar objetos necessariamente parciais do corpo grupal: o grupo como
boca, como seio, como barriga, mas também, no registro da fantasmática persecutória, o grupo como máquina. Serão
inventariadas igualmente as angústi
A Realidade Psíquica do Grupo e 110 Grupo
77
as específicas e os meios de defesa correspondentes a essas fantasias e a essas angústias. Todos esses elementos vão
atingir à realização do corte epistemológico introduzido pela psicanálise na concepção do grupo. Aqui o debate com
Lewin - veremos daqui a pouco - é permanente.
Esse trabalho, sem cessar refeito, é também um trabalho de onde são tiradas e enunciadas regras constitutivas do
dispositivo de grupo relacionado com a metodologia psicanalítica. Didier Anzieu teve o cuidado de esclarecer e questionar
as regras de estruturação da prática psicanalítica, e de pôr em evidência o valor heurístico da contratransferência na
situação psicanalítica. Sem essa exigência, criativamente posta em prática, eu não poderia, sem dúvida, ter concebido a
necessidade e as modalidades da análise intertransferencial: foi inicialmente o nosso debate, no seio do grupo do
CEFFRAP J. A contribuição de D.Anzieu à colocação do dispositivo psicanalítico de grupo não teria podido se produzir
sem que se levasse a cabo, paralelamente e interferindo com a prática do tratamento, a prática assídua do grupo, do grupo
de liberdade de palavras e do psicodrama, com toda certeza, mas também do grupo cuja fundação, co-criação e
desenvolvimento foram estabelecidos por ele. O princípio gerador do CEFFRAP é que somente um grupo que concede a
si próprio um mínimo de regras de funcionamento próprios para pôr em evidência as formações e os processos do
inconsciente, e eu sublinho, para produzir efeitos de análise, somente um tal grupo pode encontrar-se numa disposição
favorável para fazer a experiência da realidade psíquica grupal e elaborar seu conhecimento psicanalítico. Há nesse
princípio efetivamente utilizado, não sem crise, algumas rupturas e algumas superações, uma espécie de modelo
metodológico para explorar as condições psicanalíticas de uma instituição psicanalítica e, como em todo modelo, há
obviamente uma parte de utopia e de idealização. Mas trata-se aqui de uma utopia pontual, suficientemente sonhadora
para que não seja imediatamente tomada pelos efeitos do Instituído.
Quando D. Anzieu introduz, a partir dos dados do tratamento, a noção de Eu-pele, depois o conceito de envelope
psíquico, terá, naturalmente, o projeto de estender sua descoberta a outros campos: comporta-se aqui, epistemólogo preciso, como um herdeiro de Freud. Tem o cuidado de trabalhar no duplo limite (instituído por A. Green) do campo psíquico.
Ao mesmo tempo sobre o limite interno - resultante da clivagem entre o inconsciente e o consciente - e sobre o limite
externo - que organiza, separa, articula as relações entre o campo intrapsíquico, social, cultural.
J Círculo de estudos franceses para a pesquisa e formação em psicologia dinàmica. fundado em ] 962 por D. Anzieu e um pequeno grupo de psicanalistas e de psicossociólogos.
D. Anzieu escreveu um ensaio sobre a história das idéias no CEFFRAP, em seu CEdipe supposé C<lIIlfuérir le ~/'(Iupe (1976). Aqui ainda, lica por escrever uma história
mais ampla sobre o conjunto dos movimentos que se constituíram na França para inserir o grupo numa referência psicanalítica.
78
o Grupo e o Sujeito do Grupo
Na ocasião, sua fidelidade será também prosseguir o debate inaugurado de longa data com Lewin. Quando a noção
de envelope grupal é estabelecida com toda a naturalidade, ele se refere ao pioneiro da dinâmica dos grupos. Assinala que
Lewin tinha esboçado uma reflexão sobre "as barreiras do grupo" (1947), tratando-se essencialmente das barreiras que se
opunham à circulação da energia e da informação no interior do grupo; essas barreiras delimitam assim subespaços
internos, regidos por variáveis específicas. O abandono por parte de Lewin de seu modelo topo lógico deixou em suspenso
o desenvolvimento dessa reflexão; é nesse vazio, nesse hiato, que Didier Anzieu propõe seu próprio modelo; um grupo
mantém com a realidade externa fronteiras materiais e intelectuais, fronteiras suscetíveis de fIutuação, lugares de conflitos
e de trocas.
As pesquisas de Freud sobre as formas elementares do Eu fornecem um outro modelo analógico: "Todo grupo
estabelece com outros grupos barreiras de contato, abertas ou fechadas, como se queira, as quais o protegem e o contêm.
Funcionam também como antenas, como filtros de possível difusão". A hipótese do Eu-pele - hipótese imposta pelo
tratamento psicanalítico individual dos estados precisamente chamados de "Iimite"- parece-lhe poder ser estendida à realidade grupal. É assim que ele apresenta em 1983 a situação do problema.
Alguns anos antes, D. Anzieu dava as seguintes explicações: "Um grupo é um envelope que mantém juntos os
indivíduos. Enquanto esse envelope não for constituído pode existir um agregado humano, mas não um grupo. Qual é a
natureza desse envelope? Os sociólogos que estudaram os grupos, os administradores que os geraram, os fundadores que
os criaram põem a ênfase na malha de regulamentos implícitos ou explícitos, de costumes estabelecidos, de ritos, de atos e
fatos com valor jurisprudencial, nas indicações de lugares no interior do grupo, nas particularidades de linguagem falada
entre os membros e apenas deles conhecidas. Essa malha que encerra os pensamentos, as palavras, as ações, permite ao
grupo constituir para si um espaço interno (que busca um sentimento de liberdade na eficácia e que garante a manutenção
dos intercâmbios intragrupo) e uma temporal idade própria (compreendendo um passado de onde tira sua origem e um
futuro onde projeta realizar suas metas). Reduzido à sua trama o envelope grupal é um sistema de regras, o que atua, por
exemplo, em todo seminário, religioso ou psicossociológico. Desse ponto de vista, toda a vida de grupo é apanhada numa
trama simbólica: é ela que o faz durar. Está aí uma condição necessária mas não suficiente. Um grupo em que a vida
psíquica morreu pode também sobreviver a si mesmo. De seu envelope a carne vivente desapareceu, resta apenas a trama"
(] 981, p. 1).
Eu gostaria de prosseguir ainda nessa citação: "Só existe realidade inconsciente individual, escreve D. Anzieu, mas
o envelope grupal constitui-se no pró
A Realidade Psíquica do Grupo e no Grupo
79
prio movimento da projeção que os indivíduos fazem sobre ela com suas fantasias, suas imagos, sua tópica subjetiva (quer
dizer com a maneira com que ela se articula, nos aparelhos psíquicos individuais, no funcionamento dos sub-sistemas
deste: Id, Ego, Ego ideal, Superego, Ideal do ego). Por sua face interna o envelope grupal permite o estabelecimento de
um estado psíquico transindividual, que eu proponho chamar um Si de grupo: o grupo tem um Si próprio. Mais ainda: ele
é Si. Esse Si é imaginário. Ele fundamenta a realidade imaginária dos grupos. É o continente no interior do qual uma
circulação fantasmática e identificatória vai se ativar entre as pessoas. É ele que torna o grupo vivo" (lbid., pp.l-2).
Eis aí marcada a diferença com uma abordagerm psicológica do grupo. Certamente ela convoca o debate, por
exemplo, sobre o postulado de que só existe realidade inconsciente individual. Quanto a mim, sustentarei de preferência
que a hipótese segundo a qual a realidade psíquica é de uma parte (mas qual?) transindividual, explica certas condições
intersubjetivas da formação do inconsciente do sujeito considerado em sua singularidade.
A questão da realidade psíquica de grupo e no grupo
Depois de Freud, Bion, Foulkes e dos trabalhos da Escola francesa, parece estar suficientemente estabelecida a
hipótese segundo a qual o grupo é o lugar de uma realidade psíquica própria e, talvez, é minha opção, o aparelho da
formação de uma parte da realidade psíquica de seus sujeitos.
Várias questões permanecem em suspenso e exigem um grau a mais de precisão. Inicialmente, a própria noção de
realidade psíquica, co-extensiva ao espaço intrapsíquico na representação dominante proposta pela teoria psicanalítica,
deve contudo acomodar-se a noções freudianas tais como a comunidade das fantasias, a psique de grupo, as identificações
e os ideais comuns e partilhados, com a idéia de ser o homem um "animal de Horda".
Sobre a noção de realidade psíquica
A realidade psíquica define-se inicialmente por sua consistência própria: a matéria psíquica, o material
psíquico são irredutíveis e oponíveis a qualquer outra categoria de realidade. A consistência própria da
realidade psíquica é a das formações, dos processos e das instâncias geradas pelo inconsciente, especialmente
pelas fantasias inconscientes e pelas séries conflituais desejo/defesa, prazer/ desprazer, realidade
interna/realidade externa. Quando Freud tiver realizado a passagem da teoria da sedução à teoria da fantasia de
sedução, a realidade psí
80
o Grupo e o Sujeito do Grupo
quica será a única a estar em questão na formação dos sintomas neuróticos, por causa do valor específico (exagerado) que
ela terá tomado para o sujeito neurótico. Da Interpretação dos sonhos (1900) ao Esboço de Psicanálise (1938) a
prevalência concedida aos desejos inconscientes especifica a realidade psíquica: "Quando nos encontramos na presença de
desejos inconscientes levados à sua última e mais verdadeira expressão, somos forçados a dizer que a realidade psíquica é
uma forma de existência particular que convém não confundir com a realidade material" (S. Freud, 1900, G.- W, lI-lI, p.
625). Os sonhos e as formações homólogas cuja estrutura é a das formações de compromisso, os sintomas por exemplos,
são a via de acesso ao conhecimento da realidade psíquica. Esse conhecimento supõe, para quem com ele se envolva, a
capacidade de reconhecêIa em si e no outro, de interpretá-Ia.
A teoria psicanalítica propôs vários modelos da formação da realidade psíquica: o modelo das formações
originárias, efeito do recalcamento originário ou das transmissões transindividuais supõe um já-aí das formas
organizadoras da realidade psíquica, enquanto o modelo de apoio explica uma derivação da realidade psíquica a partir de
ordens de realidade necessárias à vida e de ocasiões de experiências geradoras de realidade propriamente psíquica. Seja
qual for a prevalência desses dois modelos na teoria, ambos supõem a precisão de uma realidade psíquica já constituída e
dotada de uma capacidade constituinte.Uma porção da realidade psíquica é partilhada com outros sujeitos: Freud seguirá
essa linha de pensamento com os conceitos de identificação por meio do sintoma, de comunidade de fantasia, de apoio dos
impulsos do Eu no Eu matemo. Essa perspectiva se tomará mais precisa na representação que a realidade intrapsíquica induz, segundo diversas modalidades, das formações e dos processos da realidade psíquica de um outro sujeito, de um
conjunto de outros: será também assim, como já sublinhei, a propósito da teoria do Eu, do Supereu e das identificações na
segunda tópica.
Por causa dessas extensões, podemos questionar os limites da realidade psíquica: ela não coincide a priori com o
espaço individual e com seu fundamento corporal. Os princípios explicativos da formação e da consistência da realidade
psíquica não remetem a uma determinação puramente intrapsíquica, leve-se em conta as condições do recalcamento, os
processos de apoio ou, a fortiori, a hipótese filogenética. Há aí um primeiro objeto de debate.
Um segundo recai mais precisamente sobre a extensão da noção de realidade psíquica nos conjuntos pluripsíquicos
como são os grupos. Há lugar para considerar alguns obstáculos que se opõem a essa perspectiva, já que a experiência
psicanalítica se fundamenta exclusivamente na prática do tratamento individual.
.J
A Realidade Psíquica do Grupo e 110 Grupo
81
Podemos, sem grande dificuldade, analisar e interpretar os investimentos instintivos e as representações de que o
grupo é objeto na realidade psíquica de seus membros. O tratamento psicanalítico individual torna acessíveis essas formações ao analisando e ao analista; entretanto, ele não permite seguir seus efeitos no agenciamento da realidade psíquica
de que o grupo é o lugar.
Se aceitarmos a hipótese de que a realidade psíquica se manifesta no grupo, não ficaremos embaraçados em admitir
que, para uma porção decisiva, ela consiste nos efeitos dos desejos inconscientes de seus membros e que conserva estruturas, conteúdos e funcionamentos próprios a cada um dos sujeitos singulares: a atividade do recalcamento secundário,
a fantasia inconsciente secundária, a produção de sintomas, o conflito psicossexual inconsciente, os mecanismos de defesa
são "no mais alto grau estritamente individuais", como observa Freud. Temos, contudo, de estar atentos à maneira como a
realidade psíquica se manifesta, aos conteúdos preferencialmente mobilizados, às transformações que sofre e aos efeitos
que ela produz quando se liga a formações idênticas, homólogas ou antagonistas em outros sujeitos no grupo. Todavia,
devemos admitir igualmente que, se não fazemos reticências a essa idéia é porque nossa concepção de grupo permanece
ainda, via de regra, a de uma soma de psiques individuais. De fato, sernos-á mais difícil conceber, analisar e interpretar
como decorrente de um nível de determinação, de organização e de funcionamento grupal a realidade psíquica - ou, pelo
menos, certas dimensões da realidade psíquica - que se constitui nos grupos. A essa hipótese se opõe principalmente a
dificuldade envolvida na incerteza teórica a respeito do modo de produção dessa realidade. Para avançarmos nesse debate,
precisamos enriquecer nossa hipótese.
A noção de realidade psíquica de grupo: principais aquisições e problemas teóricos em suspenso
Resumamos as principais aquisições: formações e processos psíquicos produzem-se no grupo e são
regidos por uma lógica de determinação e por instâncias próprias a esse conjunto. Uma variante dessa
afirmação é que o grupo é o lugar de uma realidade psíquica que se produz apenas em grupo. Podemos dizer
assim que a realidade psíquica do grupo não se deixa reduzir à soma das contribuições dos membros do grupo.
Essas formações e esse processo têm que ser modificados em seu modo de constituição, no seu funcionamento
e nos seus efeitos.
Essas aquisições, observe-se, podiam outrossim qualificar os trabalhos da psicologia social, e mais
precisamente os da dinâmica de grupo. O que especifica a perspectiva psicanalítica é que ela encara o grupo
como sistema de formações e de processos psíquicos derivados do inconsciente na determinação pró
82
o Grupo e o Sujeito do Grupo
pria de cada sujeito e nas suas determinações transindividuais; ela define também o grupo como aparelho gerador de
efeitos psíquicos relativamente autônomos em relação às psiques singulares, seus suportes e produtos; como aparelho da
realidade psíquica que mantém em ligação as formações intrapsíquicas de seus sujeitos, trabalha e contém as formações
que lhe são comuns, assim como as que são geradas por seu agrupamento. Desse ponto de vista, podemos encarar o grupo,
com reserva das representações imaginárias que o objetivariam em uma imago, como uma entidade psíquica regida por
determinações e processos próprios. Esses últimos qualificariam a realidade psíquica de grupo e admitiriam a noção de
um trabalho psíquico de grupo. Sustentariam a noção de grupo como entidade específica.
O problema teórico capital é, evidentemente, o do Inconsciente no grupo: a hipótese da realidade psíquica de
grupo/no grupo o pressupõe, mas não o resolve enquanto não dispusermos de representações suficientemente consistentes
e comprovadas para descrever seu ou seus lugares psíquicos, as energias e os processos que lhe são próprios, os conflitos
que nele se geram com outras instâncias, os efeitos aí produzidos.
Embora os conceitos propostos por Fréud, depois dele por Bion, Foulkes e seus colaboradores, em seguida pelos
psicanalistas da escola francesa, suponham a hipótese do inconsciente nos grupos, não explicam essas questões.
Temos que lidar com o problema seguinte: qual metapsicologia está em condições de explicar o inconsciente, as
formações e os processos que dão à psique de grupo e a suas produções uma posição na psicanálise? Mais precisamente:
como qualificar um trabalho psíquico de grupo, um recaIcamento e conteúdos recaIcados por ou sob o efeito do grupo,
uma volta do recaIcado e a formação de sintomas, portanto de uma subjetividade de grupo? Para descrever a realidade
psíquica própria do grupo é necessário construir conceitos apropriados. Não será suficiente qualificar de grupal o
inconsciente que nele produz seus efeitos, ou a "mentalidade" que aí se forma. Devemos tomar em consideração as
formações e os processos da realidade do nível do grupo sob o aspecto em que são produzidos, dispostos e ordenados pelo
trabalho psíquico próprio do grupo.
Na maior parte das elaborações persiste a idéia de uma dimensão grupal
dos fenômenos psíquicos considerados dominantes e específicos. "Grupal" qualifica uma mentalidade, uma forma de
ilusão, uma organização defensiva, uma modalidade da repetição, objeto da transferência, uma dimensão da resistência,
um discurso, um trabalho psíquico realizado por um "aparelho de grupo", homólogo e distinto do aparelho psíquico
"individual". Mas em inúmeros casos "grupal" indexa tanto um lugar de emergência quanto uma determinação. Enfim, na
quase totalidade dos casos, esses elementos de teorização deixam de lado pro
A Realidade Psíquica do Grupo e no Grupo
83
posições consistentes sobre a questão do s~(jeito do inconsciente em sua relação com o grupo.
Sob que aspecto formações e processos psíquicos podem ser chamados grupais?
O que se qualifica como grupal corresponde a níveis de estruturação e de funcionamento muito diversos, sendo
preciso distingui-I os. Um primeiro elemento de discriminação recai sobre formações e processos psíquicos que os
membros do grupo atribuem ao grupo enquanto objeto personificado: dizer "o grupo pensa" não é necessariamente
descrever um pensamento ou uma atividade de pensamento do nível do grupo. Um segundo elemento de diferenciação usa
como critério o fato de formações gerais terem uma especificidade de funcionamento na situação de grupo, sem que se
questione seu modo de estruturação, relativamente independente da situação de grupo: a ilusão se declina nas formas
grupal, familiar, de casal etc. Um terceiro critério é constituído pelas formações e os processos preferencialmente
associados (estruturados, recompostos) e qualificados por suas funções na realidade psíquica do nível do grupo. É o
terceiro critério que nos interessa aqui.
A partir desse critério podemos, com efeito, encarar que nos grupos formam-se espaços psíquicos grupais
(continentes, superfícies, cenas, depósitos, enclaves, limites, fronteiras...) engendrados pelas contribuições dos membros
do grupo, pela ligação dessas contribuições, pelo que deve ser criado ou suscitado pelo próprio fato de o grupo existir
independentemente de seus constituintes singulares; a fronteira do grupo e do não grupo pode bem, para fulano, coincidir
com a fronteira do Eu e do não-Eu: em todo o caso uma fronteira do grupo cria-se e mantém-se como formação do grupo
I.
Do mesmo modo forma-se um tempo grupal que se orienta essencialmente para a ilusão de imortalidade do grupo e
para o mito da origem do grupo. Uma memória de grupo se constitui de acordo com os princípios diferentes dos da memória individual 2 .
1 Os primeiros trabalhos sobre a fronteira nos grupos são devidos à abordagem estruturalista de K. Lewin
(1947). Eles marcaram as abordagens psicanalíticas de Foulkes. Pichon-Riviere e Anzieu. Entre os trabalhos franceses recentes assinalemos os de Anzieu sobre o dispositivo
espacial ternário no psicodrama (1982), de R. Kaes sohre o espaço corporal e os grupos amplos (1974. 19R8), de J.-P. Vidal sobre a grupalidade e as fronteiras do Eu (1991).
2 Poucos trabalhos foram consagrados, a partir dos de E. Minkowski e os de G. Gurvitch sobre as diversas estruturas da
temporalidade nos conjuntos inter e transuhjetivos. Entre as pesquisas recentes referentes à psicanálise grupa!. cf. !.
Berenstein sobre a estrutura psíquica da temporalidade familiar (1978) e R. Kaes sobre a plural idade dos tempos e o trahalho da memória nos grupos (1985, 1990).
84
o Grupo e o Sujeito do Grupo
Já indiquei que, na base dos trabalhos de E. Jaques (1955), colocam-se mecanismos de defesa próprios do grupo,
utilizados pelo grupo para fortalecer suas defesas e encontrar o suprimento de defesas faltantes 1.
As pesquisas de J.-c. Ginoux (1982) puseram em evidência especialmente a especificidade grupal de certos
mecanismos de repetição, merecendo sua análise que nos detenhamos sobre esse ponto. A tese é a seguinte: a formação de
uma repetição grupal é uma das modalidades que o grupo decide adotar para providenciar a ruptura em caso de transição
brutal entre dois meios ambientes. Ginoux distingue as repetições individuais entre o grupo e os fenômenos repetitivos
propriamente grupais. Destes ele descreve a origem, a função econômica, o funcionamento e a evolução. A origem da
repetição seria a reativação repentina de um passado de origem traumática esquecido, reativação transferida na situação de
grupo. A origem traumática da repetição não serve para defini-Ia: ela é igualmente atual para o Eu dos participantes e está
desde então ligada ao período inicial dos primeiros encontros entre os membros do grupo e o (os) psicanalista (s). Esses
encontros iniciais entre as representações fantasmáticas dos participantes, o dispositivo do grupo e dos analistas seriam
vivenciados sob o signo da execução maciça, do estupor ou da decepção (J.-c. Ginoux, 1982, pp. 36-37).
A função econômica da repetição grupal pode ser entendida de duas maneiras complementares: a primeira destaca a
reprodução compulsiva de um trauma originário, a segunda a restituição abreativa e progressiva de uma situação prétraumática. Na segunda concepção, Ginoux privilegiará o valor da reação de defesa das repetições grupais: defesa
destinada a isolar os participantes de um meio ambiente atual, insuficientemente adaptado às suas necessidades mais profundas. Essa perspectiva esclarece a origem da repetição grupal numa sucessão de rachaduras num meio ambiente
momentaneamente incapaz de preencher uma função protetora e para-excitante.
Ginoux submeteu sua hipótese à prova em várias situações clínicas: meu ponto de vista, entretanto, é de que uma
análise diferencial mostraria que ela é validada com tanto maior precisão quanto as especificidades da transferência, da
contratransferência e da intertransferência possam ser caracterizadas. De fato, a noção de rachadura no meio ambiente não
é objetivável fora da fantasia atualizada pela e na transferência para com os objetos do meio ambiente. Numerosos
I Questão renovada pelos trabalhos de R. Roussillon sobre o paradoxo (1991) e os mecanismos metadefensivos nas instituições (1988); cf. também as pesquisas de F. André
(1986) e F. Aubertel (1987) sobre os mecanismos de defesa e as defesas paradoxais nas famílias.
A Realidade Psíquica do Grupo e no Grupo
85
exemplos mostrariam antes, segundo penso, que as transferências que constitu
em "o meio ambiente" como suficientemente confiável tornam possível a atuali zação e a perlaboração dos traumas
anteriores I .
A análise de Ginoux tem o mérito de especificar as condições que tornam
possível a quaHficação grupal da repetição. A noção clássica proposta por D.
Anzieu, de uma forma de ilusão, que seria grupal não define apenas um objeto da ilusão, mas uma modalidade de
sua produção e uma função específica na gênese da reahdade psíquica de grupo. As noções de imaginário grupal e de
enve
lope psíquico grupal correspondem a essas dimensões: nem a ilusão grupal, nem
o envelope grupal se definem pela estrutura grupal, mas por sua função no processo grupal e na posição do sujeito
no grupo.
Das minhas próprias pesquisas, destaquei outros tipos de formação psíqui
cas grupais, cuja estrutura e efeitos são homólogos às formações de compromis
so e aos sintomas. Pus em evidência as formações do ideal próprio do grupo e
dos conjuntos, principalmente das formações do Ideal, da Idéia onipotente e do
Ídolo fetiche que são as ideologias. Coloquei em evidência o modo pelo qual os
processos associativos, para os quais contribuem os processos primários de cada
sujeito, se organizam em cadeias associativas grupais. Essas são duplamente
determinadas: são formadas por enunciados sucessivos ou simultâneos dos membros do grupo e determinados por
uma lógica grupal, cujos conteúdos e or
ganizações decorrem de um pensamento grupaf2 . Supus, e me exphquei sobre
essa hipótese, que no âmbito de sua lógica própria o grupo sustenta e dispõe uma
parte de sua função recai cante, sendo intrapsíquicos os mecanismos
recalcadores. Enfim o modelo do aparelho psíquico grupal qualifica um disposi
tivo de Hgação, de formação, de transformação e de transmissão da realidade
psíquica do nível do grupo.
Além dos critérios de definição do grupal, critérios heterogêneos pois que se trata de definir os efeitos do grupo,
tanto das estruturas de grupo ou ainda dos funcionamentos de grupo, em todo o caso, e isso é uma aquisição considerável,
os conceitos designam uma região da reahdade psíquica que não adquire valor e consistência senão por ser ligada ao
agrupamento dos sujeitos que a constituem: ela subsiste fora de sua singularidade. Melhor ainda, ela torna a lançar o
debate sobre a articulação do intrapsíquico e do grupal.
I Entre os raros trabalhos sobre a repetição nos grupos. o artigo de 1.-J. Baranes e Y. Gutierrez (1938) merece uma menção
particular: ele analisa a participação repetitiva em grupos de formação e de elaboração que pode fazer-se do lado da
contratransferência.
2 As pesquisas que impulsionei sobre os processos associativos e o trabalho do pensamento nos grupo poderiam evidente
mente esclarecer essas questões.
86
o Grupo e o Sujeito do Grupo
Todas essas questões se orientam, ainda uma vez, pela dificuldade de pensar a posição do inconsciente no espaço do
sujeito e no espaço do grupo.
A realidade psíquica no grupo: a conjunção da realidade psíquica individual e da realidade psíquica grupal
É necessária uma hipótese mais complexa para compreender essa articulação. Minha afirmação consiste em que as
formações e os processos psíquicos que se formam e se manifestam preferencialmente no espaço pluripsíquico grupal são
conjuntamente produzidos e regidos pela lógica das instâncias individuais: a disposição particular dessas formações e
desses processos constituiria, por uma parte, o índice de realidade psíquica no grupo. Podemos dizer as coisas de outra
maneira e defini-Ias assim: a realidade psíquica do nível de grupo se apóia e se modela sobre as estruturas da realidade
psíquica individual, principalmente sobre as formações da grupalidade intrapsíquica. Estas são transformadas, dispostas e
reorganizadas conforme a lógica do conjunto. Vale dizer que o próprio agrupamento impõe exigências de trabalho
psíquico comandados por sua organização, manutenção, sua lógica própria. Disso resultam formações e processos
psíquicos que podem ser denominados grupais na medida em que só são produzidos pelo agrupamento. O grupo desde
então deve ser pensado como o aparelho dessa transformação da matéria psíquica, o lugar de sua transmissão. Diremos
também que os efeitos subjetivos e o valor da realidade psíquica do nível de grupo são constituídos pela contribuição de
cada um no grupo, parte constituída daquilo que o indivíduo coloca, investe, projeta, rejeita e põe à disposição no grupo.
A afirmação que eu faço sustenta que as formações psíquicas seriam comuns ao grupo e a cada um: uma tal
comunidade é realizada principalmente pelas identificações, manifestando-se no Ideal do Eu, ao qual Freud concede o
estatuto de formação intermediária intersubjetiva; outras formações seriam comuns porque seriam de natureza
transindividual, isto é, próprias da espécie ou antropológicas, como no caso das estruturas das fantasias e do complexo de
Édipo. Entretanto, para que essas formações adquiram um indício de realidade psíquica, importa que sejam objeto de
apropriação no grupo e nos sujeitos que o constituem.
Parece-me que essas afirmações explicam a superdeterminação da realidade psíquica suposta de grupo, no grupo:
ela aparece aí complexa, compósita, intrincada, condensada. A análise deverá discriminar, entre diversos componentes na
formação, a estrutura e o funcionamento da realidade psíquica nos grupos, por mais persistente que seja a impossibilidade
de definir quanto toca às suas re
A Realidade Psíquica do Grupo e no Grupo
87
lações: O grupo já está aí para cada sujeito, não sendo este sua causa, mas por uma parte seu efeito. As funções e a
estruturação psíquica que o grupo realiza em vista de sua precedência sustenta, em troca, os investimentos psíquicos de
cada um no grupo. A realidade psíquica, no grupo, consiste naquilo que, dos sujeitos do grupo, cabe ao grupo e naquilo
que produz e dispõe o grupo, no seu âmbito de determinação própria e para seu próprio fim. A parte que cabe ao trabalho
específico do agrupamento é analisável por meio do conceito de aparelho psíquico do agrupamento. Em graus diversos,
essas partes permanecem fora do campo do consciente dos sujeitos do grupo, e a fortiori a relação entre essas partes Ihes
permanece inconsciente.
A hipótese por mim sustentada sobre a complexidade da realidade psíquica do nível do grupo apresenta um duplo
interesse: de início, o de não causar impasse sobre nenhuma das questões fundamentais levantadas pela hipótese da
realidade psíquica própria do grupo e, em primeiro lugar, a do estatuto do inconsciente - de sua tópica, de seus modos de
constituição, de funcionamento e de manifestação. De fato, meu ponto de vista é que, quando supomos um nível específico da realidade psíquica da qual o grupo seria o lugar e a organização, segundo penso, graças ao aparelho de ligação,
de transformação e de diferenciação que aí se utiliza, não podemos sustentar que esse desenvolvimento dos processos e
das formações psíquicas comporte uma determinação inteiramente autônoma, que seria estranha aos sujeitos constituintes
do grupo. Esse desenvolvimento e essa determinação por uma parte se desdobra através da intermediação dos sujeitos
singulares, pelo agenciamento complexo de formações e processos psíquicos preferencialmente mobilizados no sujeito do
grupo; por outro lado são geridos pelo aparelho do grupo.
O segundo interesse é o de distinguir a realidade psíquica do nível do grupo da realidade intrapsíquica no espaço
grupal. Podemos então articular essas duas dimensões, longamente e ainda, com freqüência, desconectadas na teoria e na
clínica. Os corolários dessas afirmações são que, primeiro, não podemos encarar a formação da realidade psíquica
individual a partir de certas exigências impostas pelo grupo e a partir de certas experiências da realidade psíquica de
grupo, no grupo; segundo, temos que lidar com a questão do sujeito do Inconsciente no grupo.
Tal hipótese deve obviamente ser estabelecida com precisão e seu interesse teórico ser confrontado com seus efeitos
na clínica. Para situar sumariamente a medida desse risco posto em jogo, será suficiente perguntar-se se o trabalho psicanalítico em situação de grupo pode alcançar algum desprendimento do Eu dos vínculos que o constituíram, quando esse
trabalho se propõe como objetivo unicamente o reconhecimento do que cabe com propriedade a cada sujeito nos nú
88
o Grupo e o Sujeito do Grupo
cleos de realidade psíquica de que o grupo é formado. Admitir que a realidade psíquica no grupo não se reduz à soma das
contribuições psíquicas de cada um de seus membros considerados isoladamente é também admitir que os investimentos e
as representações de cada um se ligam e se metabolizam nas formações e nos processos psíquicos originais. A maior parte
dessas formações e desses processos serão incognoscÍveis e permanecerão alheios ou estranhos para cada um, se a análise
não os abarcar em seu campo. Ao contrário, logo que a análise os toma em consideração, distingue-os e interpreta-os
como efeitos de uma aparelhagem psíquica dos sujeitos no vínculo do grupo; desde que os reconhece como formações e
processos produzidos no grupo pelos sujeitos e sem sua vontade intencional, ela não exclui o sujeito, ao contrário,
restabelece-o como sujeito, ator e atuado nessa aparelhagem. O Eu (Je) é então solicitado a pensar essas formações
psíquicas sem o sujeito singular exclusivo, esses processos e formações que constituem a parte intersubjetiva de sua
subjetividade.
Problemas metodológicos a serem trabalhados
Não foi possível avançar na formulação desses problemas sem usar um procedimento empírico novo e isso foi
essencialmente e em primeiro lugar obra de psicanalistas ingleses: desenvolveram-se práticas de grupo que encontraram
na teoria e no método da psicanálise apoios, correspondências, aproximações que a crítica e a clínica permitiram aplicar à
análise de grupo.
Eu queria, entretanto, formular um ponto de vista crítico em relação à focalização das interpretações sobre o grupo
considerado como entidade que exclui a tomada em consideração do papel do sujeito no grupo.
Os conceitos formados pela escola inglesa, tanto a de Bion quanto a de Foulkes, desbravaram as primeiríssimas vias
que permitiram esclarecer a consistência das formações e dos processos psíquicos próprios ao grupo. Todos esses
conceitos tiveram como fundamento a hipótese de que o grupo é um sistema, uma organização e uma unidade de produção
especial. A conseqüência prática dessa hipótese teórica, além da diferença que ela recebe em Bion e em Folkes, é que o
grupo, enquanto entidade, é o objeto de investigação e do trabalho psicanalítico. Se os conceitos de mentalidade de grupo,
de cultura de grupo, de pressuposto básico ou da malha e da matriz grupal são pertinentes, por exemplo, para colocar o
problema das transferências e do processo associativo nos grupos, as designações de meta e de escolhas técnicas propostas
por Foulkes para a análise de grupo colocam questões delicadas quando ele leva em consideração as reações de espelho
sob o aspecto exclusivo da aprendizagem e da compreensão, sem integrar os efeitos imaginários alienantes desse encontro.
O primado conce
A Realidade Psíquica do Grupo e no Grupo
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dido à integração do indivíduo no grupo, à decifração dos sintomas, dos sonhos e dos símbolos confirma o poder da imago
do grupo na passagem entre um conceito teórico (o grupo como totalidade) a uma posição que se pode qualificar de
ideológica (o grupo como princípio explicativo e como figura unificada). A perspectiva que insista sobre o
desagrupamento, sobre a libertação dos efeitos de grupo, sobre a sobrevinda do Eu (Je) e não do desenvolvimento do eu
não é própria da corrente foulkesiana.
No que me diz respeito, não me parece suficientemente claro que o processo de comunicação e de aprendizado de
que é objeto, ambos sustentados pela intervenção dos psicanalistas (que designam a si próprios como líderes) tenham
como resultado tornar "o inconsciente consciente", se for esse o alvo proposto ao trabalho psicanalítico. Supõe-se que o
efeito de uma interpretação que recaia exclusivamente sobre o grupo repercuta no espaço intrapsíquico de seus membros:
na verdade, a interpretação não deve atingi-Ios diretamente. Essa posição tática, no sentido de pôr em jogo o tato na
técnica, por pertinente que seja nos limites que a clínica impõe, não pode ser erigida em regra do método. Ela não pode ser
proposta como um princípio teórico enquanto a articulação não for feita, o mais precisamente possível, entre o nível da
realidade psíquica (sob o efeito) do grupo e do nível correlativo da realidade intrapsíquica, incluindo a transindividual, nos
sujeitos do grupo reunidos em situação de grupo.
A questão que se coloca hoje é definir qual situação psicanalítica constituiria as condições próprias para manifestar
seus efeitos e as posições subjetivas que delas derivam ou que as codeterminam.
Podemos constatar zonas lacunares nos trabalhos empreendidos para definir as condições metodológicas que
fundamentariam uma situação psicanalítica num dispositivo de grupo. As declarações feitas, especialmente na França no
início dos anos 70, para definir essas condições (D. Anzieu, R.Kaes, A. Ruffiot, l.C. Rouchy) tornaram possível uma
articulação mais serrada entre a clínica e a teorização dos processos de grupo, uma abordagem diferenciada dos diversos
dispositivos psicanalíticos I. Entretanto, devemos reconhecer que, excluindo-se algumas raras declarações, a pesquisa está
apenas em seu começo no tocante a questões tão capitais como as dos processos associativos em situação de grupo, as das
cadeias e malhas associativas que aí produzem e organizam o "discurso do grupo", ou as correlativas, da
contratransferência, da escuta do discurso e da interpretação.
I Dispomos de numerosas descrições dos dispositivos técnicos de grupo, mas de poucas reflexões críticas sobre a metodologia. Cf. os estudos de D. Anzieu (1973.1982). A.
Bejarano (1972), R. Kaes (1972. 1976. 1991), J.-c. Rouchy (1983), A. Rumo! (1981,1986), E. Granjon (1989).
90
o Grupo e o Sujeito do Grupo
As insuficiências da pesquisa metodológica têm uma parte de responsabilidade em certas zonas fluidas da
elaboração teórica.
Segunda e terceira rupturas epistemológicas
Uma segunda ruptura epistemológica na abordagem psicanalítica do grupo se produz quando podem ser
distinguidos e nomeados os níveis lógicos da realidade psíquica e suas interferências na complexidade e na
heterogeneidade do fenômeno grupal. Torna-se então possível propor-se um modelo de inteligibilidade, por imperfeito
que seja, para pensá-Ios em suas articulações. Essa segunda transformação é necessária à elaboração da explicação
psicanalítica, a partir do momento em que a metapsicologia do aparelho psíquico individual não pode, apenas por si
mesma, explicar as formações e os processos psíquicos peculiares à dimensão grupal dos esfeitos do inconsciente.
Para que essa segunda fase apareça, é preciso que a posição de membro de um grupo cesse de ser pensada como a
de um simples elemento da estrutura desprovidos de toda subjetividade: ela deve, ao contrário, ser estabelecido como a do
sujeito do Inconsciente, cuja conflitualidade interna se junta com a de outros sujeitos do Inconsciente para formar o grupo.
Este poderá, desde então, ser interrogado sobre essas bases, na função que ele realiza para o sujeito do Inconsciente. Essa
perspectiva que eu sustentarei de maneira mais especial só será aberta ao debate nos anos 70. Com o modelo de aparelho
psíquico grupal, introduzirei um alvo de interpretação de duas faces, centrada nas conexões dos efeitos de grupo com os
efeitos do inconsciente no espaço intrapsíquico, especialmente com a fantasia secundária.
Uma terceira ruptura é previsível, já está preparada: refere-se às transformações introduzidas pela teoria do aparelho
psíquico, especialmente na concepção do Inconsciente por meio das construções saídas da abordagem psicanalítica dos
grupos.
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