anexo - Pataca Discos

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ARTISTA: BRUNO PERNADAS
ALBUM: “HOW CAN WE BE JOYFUL IN A WORLD FULL
OF KNOWLEDGE”
LANÇAMENTO: 31 MAR 2014
EDITORA: PATACA DISCOS
Numa entrevista em que recorda um encontro que teve com Jimi Hendrix dois
anos antes dele morrer, Joni Mitchell diz que a “primeira mudança” é o
momento mais difícil na carreira de um músico. Durante a conversa que
tiveram num hotel em Otawa, Jimi Hendrix comentou com ela que gostava de
se concentrar na composição e fazer outras coisas, como tocar com uma
orquestra, mas sempre que em público abandonava o espalhafato do seu
virtuosismo à guitarra, era apupado pelo público, que o acusava de não estar
a ser ele próprio.
Marca, estilo, identidade, são atributos que às vezes pertencem mais ao
público do que a um músico. Nos casos de popularidade, o reconhecimento
acaba por se revelar uma servidão e são poucos os que arriscam explorar a
sua criatividade, conformando-se com a fórmula autorizada pelos seus
seguidores. Sempre que um músico é fiel à sua curiosidade, e se interna por
uma área estranha àquela em que conquistou o seu reconhecimento, arrisca-
se a trair os seus admiradores e a enfrentar o mesmo isolamento daqueles
que nunca conseguiram sair do anonimato.
A primeira vez que vi tocar Bruno Pernadas (com o quinteto de jazz When
We Left Paris), no café Tati, uma pequena sala junto ao mercado lisboeta da
Ribeira, tudo me impressionou nele: o virtuosismo; o elaboradíssimo sentido
melódico e rítmico; o ouvido impecável, a forma como deixava a música
respirar, como ouvia os colegas, os pequenos comentários contrapontísticos
e corais; as transições preparando mudanças surpreendentes; o sentido de
tempo, a forma como parava e deixava a música discorrer, ou como
retomava o tema com uma nova proposta; a procura dentro dos temas, sem
nunca abandonar a homogeneidade das canções. Era incrível como a
densidade da música, o espaço para a individualidade de cada um dos
instrumentistas nunca estorvava a clareza, o contraste, o cromatismo, as
nuances e toda uma diversidade temperada de soluções.
Tão boas me pareceram todas as músicas, em cuja escolha adivinhei uma
erudição professoral, julguei tratarem-se de covers de temas menos
conhecidos, mas não menos brilhantes, dos grandes compositores de
standards. No final do concerto, ainda sob o efeito do êxtase, perguntei-lhe
de quem eram os temas. Quando Pernadas me respondeu que eram todos
dele excepto um, a cabeça quase me saltou do pescoço. Nada é tão
chocante como descobrir que o motivo do nosso espanto está plantado à
nossa frente.
As suas composições conseguiam integrar, com uma maestria alquímica, três
dos aspectos criativos mais difíceis de conciliar: originalidade, perspectiva
histórica (ou erudição, se preferirem, que é a capacidade de brincar com
partículas de outros temas ou dialogar com a música dos outros sem se
deixar conotar) e uma elegância de processos sempre repleta de motivos
surpreendentes.
How can we be joyful in a world full of knowledge, o disco, não tem nada a
ver com a música que escutei no Café Tati (ou até com outro projecto musical
seu, Julie & The Carjackers) e tem tudo a ver com o mesmo pensamento
musical. Se existe alguma marca, ou estilo, ou identidade na música de
Bruno Pernadas, não se encontra na sonoridade, mas na forma como ele
concebe estruturalmente as suas canções (chamo-lhes intencionalmente
canções, apesar da sua vocação instrumental.
A sua Stratocaster aparece logo na primeira faixa (no único solo de guitarra
de longa duração do disco; os outros solos longos são de órgão farfisa em
How Would It Be 1, e de vibrafone em Guitarras). As guitarras são a pedra de
toque de uma aventura musical que faz pensar nas fantasias de Júlio Verne,
nas colagens de gravuras de Max Ernst, pela forma exuberante como
elementos familiares são integrados em contextos imprevistos. O disco
corresponde a uma viagem ao centro do ouvido, e as guitarras são o seu
corpo expedicionário. E no entanto, o virtuosismo não se destaca na
execução. Bruno Pernadas toca como um guitarrista, mas pensa como um
compositor e executa como um arranjador. A exuberância não está no
excesso ou na improvisação, nem tão pouco na sobreposição de fontes
sonoras, mas na articulação de registos.
Usando instrumentos ou sintetizadores, tocando-os como teclados ou como
fábricas de texturas, a execução pode ser impecável, mas não é
preponderante – o que lhe importa parece mesmo ser a arte combinatória, o
cromatismo melódico e harmónico, a plasticidade das fontes sonoras, o
movimento. Numa palavra: a composição. As guitarras não são sequer a sua
paleta mais exuberante, são digamos que uma das suas maneiras de dar
pinceladas. As próprias vozes fazem parte deste sentido combinatório, já que
Pernadas tanto faz coros com vozes a cantar uma canção, como com vozes
sintetizadas ou retiradas de filmes.
Um dos aspectos mais aborrecidos da crítica musical passa por descrever a
música de acordo com os géneros musicais nela identificados (e de facto
muita da música que se pratica raramente foge aos seus convencionalismos
e lugares comuns); no meu caso pessoal, mesmo quando gosto de algo, não
consigo deixar de ouvir ressonâncias de outros artistas ou discos. Esta
predisposição para fazer associações é bem irritante: é como se a música
aos meus ouvidos mais não fosse do que um puzzle feito com peças de
outros puzzles em que estou sempre a reconhecer o que já ouvi no passado
e a surpresa está contida nas associações imprevistas e no tratamento do
som.
Nas primeiras audições de How to be joyful, devo confessar que me
ocorreram imediatamente três nomes: Brian Wilson, Robert Wyatt e Van
Dyke Parks (podia acrescentar Shuggie Ottis, mas estaria a fazer batota – foi
o próprio Pernadas que me convenceu a escutar este extraordinário
guitarrista dos anos 70, a influência mais secreta de Prince). A afinidade que
Bruno Pernadas tem com eles joga-se numa alucinada perspectiva erudita
sobre o formato da canção pop.
Brian Wilson cunhou o termo “sinfonia de bolso” quando gravou Good
Vibrations. No caso das canções de How to be joyful, são como peças de
joalharia em miniatura, bolsas de melodias a ramificarem da canção-matriz.
No seu interior reconhecemos o gosto pela exotica (esse subgénero das
orquestras de easy listening, e que nos anos 90 foi retomado por uma nova
geração de músicos que faziam discos como quem compunha bandas
sonoras para filmes imaginários), mas também pelas estruturas complexas
(que definiram o trabalho de Holger Czukay, Robert Fripp, Faust e toda a
geração de Canterbury).
Aquilo a que chamo estruturas complexas passa pela forma como Pernadas
se diverte a saltitar, num jogo de toca-e-foge, entre géneros e estilos
musicais, sem nunca se deter neles. A sua técnica de composição faz pensar
na “arquitectura modular”, pela forma como as suas diversas secções se
autonomizam e, ao mesmo tempo, se integram umas nas outras com efeitos
distintos. O formato de canção em Bruno Pernadas contem uma filigrana de
microestruturas, em que a simplicidade aparente das melodias e dos ritmos
não inibe um incessante curso de fluxos e refluxos.
Camadas e sobrecamadas de sons dão continuidade ao tema, outras
pontuam-no, outras desviam-se para descobrir novos caminhos, outras ainda
retomam o tema, desviam-se outra vez, e elementos pontuais vêm relembrar
o tema deixado para trás, num movimento incessante que parece dançar
uma coreografia de atracções, desvios, fugas e descobertas. A música busca
a sua felicidade, sabendo que encontrá-la é nunca se fechar em círculos,
para poder continuar a procurá-la noutras latitudes, num processo infindável
em que a curiosidade é a própria natureza da felicidade.
Há um mundo de sons encantatórios, não sabemos se efabulados, se à
deriva na memória de quem os toca, que são visitados em How can we be
joyful. Nesta viagem musical tudo está de passagem, tudo é provisório. O
título do disco é muito bonito porque a música, numa expedição em que
prazer e aventura são sinónimos, procura mesmo responder à pergunta nele
contida. A felicidade não é o conhecimento contido no mundo, mas todos os
pequenos mundos que se vão descobrindo e interligando no acesso ao
conhecimento.
“E gostaste do disco?”, perguntas tu. Não consigo deixar de ouvi-lo.
Rui Catalão, Lisboa, Dezembro, 2013
--------------------------------------------------------Todas as músicas foram compostas, arranjadas e produzidas por Bruno
Pernadas. Todas as letras: Bruno Pernadas. Gravado nos Estúdios 15A entre
julho de 2012 e março de 2013. Gravado por Mário Feliciano, Tiago de
Sousa, Afonso Cabral, João Paulo Feliciano e Bruno Pernadas. Gravações
adicionais feitas em casa por Bruno Pernadas. Misturado por Tiago de Sousa
e masterizado por Rafael Toral.
Bruno Pernadas: composição, teclados, sintetizadores, voz, vibrafone, baixo
e guitarras; João Correia: bateria e percussões; Sérgio Costa: flauta; Ricardo
Ribeiro: clarinetes baixo e soprano; José Maria Gonçalves: saxofones;
Afonso Cabral, Margarida Campelo, Francisca Cortesão: vozes
--------------------------------------------------------BRUNO PERNADAS
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