A SINGULARIDADE E A ESCUTA NAS RELAÇÕES ESCOLARES: O que dizem os docentes de uma escola pública Elisabete Cardieri Resumo: As práticas educativas organizam-se em encontros-desencontros que revelam a singularidade e a trama fugaz a que cada um está assujeitado. Para além do universo simbólico e do imaginário que marcam o cotidiano escolar, há momentos inusitados que, a partir de uma escuta distinta, favorecem a percepção do singular. O objetivo do trabalho é, a partir de relatos de docentes, refletir acerca da disponibilidade para a escuta nas relações educativas. Palavras-chave: singularidade; escuta; práticas educativas; relações escolares. Introdução As práticas educativas escolares realizam-se a partir de situações e vivências que articulam inúmeros elementos: alguns claramente reconhecidos (encontro entre pessoas de gerações e formação diferentes, delineamento de ideais formativos, eleição de conteúdos, etc.) e outros que se tecem tacitamente, e deixam efeitos e marcas (percepções, imagens, concepções e pré-concepções). Nas duas dimensões, perspectivas de formação circulam, se manifestam e se estabelecem expressando concepções (e/ou pré-concepções) de acerca do ser humano, da aprendizagem, dos objetivos da educação, de valores fundamentais para convivência e inserção social. Podemos reconhecer que, a partir da Modernidade, algumas concepções assumiram um caráter prevalente nas elaborações da Filosofia, bem como nas atividades da Ciência nascente, promovendo efeitos na organização e nas práticas da educação formal. As dimensões de racionalidade e regularidade que nortearam as investigações e reflexões científicas, em vista de um saber universal, incidem também nas práticas educativas ao inspirar e estabelecer ideais e procedimentos de formação. Desde Comênio, no início da Idade Moderna, constatamos a reflexão pedagógica dedicada a explicitar quem é o ser humano, o aluno, o professor; como ocorre o processo de conhecimento, a aprendizagem etc, e, a partir daí, propor procedimentos para uma atuação educativa exitosa, enfim, “ensinar tudo a todos.” Se, por um lado, o estabelecimento de padrões explicativos possibilitou a expansão do conhecimento sobre fenômenos naturais, por outro, em especial para as ciências humanas, minimizou e descartou aspectos também essenciais, que não se enquadravam na lógica do universal. No entanto, é interessante constatar que o próprio processo de investigação e de aprofundamento vertical desencadeou pesquisas que possibilitaram incluir e articular elementos e fatos não reconhecidos anteriormente. Nesse âmbito, a Psicanálise pode ser apontada como uma das contribuições significativas, na medida em que ousou investigar sintomas e patologias que o saber médico de então não considerava relevantes. Encontramos o mesmo movimento na Física (física quântica, teoria do caos) e na Química (com a teoria das estruturas dissipativas) como expressões da busca de novas referências de compreensão diante de fenômenos complexos. Trazemos para nossa discussão algumas contribuições da Psicanálise (de orientação lacaniana) para refletirmos sobre a dimensão de singularidade que constitui cada ser humano, a partir das tramas tecidas nas vivências mais elementares e fundantes de sua existência. Essas reflexões contribuem para nos distanciarmos de concepções (ou pré-concepções) acerca de um suposto sujeito universal e genérico (“a criança”, “o adolescente”, “o professor”) e voltarmos nosso olhar para o sujeito singular e o que cada um tece, estabelece, constitui consciente e/ou inconsciente nas relações que vivencia. Em nosso cotidiano, constatamos que o encontro entre as pessoas tem sempre potencial gerador de um mal estar, de um mal entendido, de uma dúvida, de um ‘o que será que ele quis dizer?”... ou um ‘eu não imaginei que você fosse assim”... “eu não esperava isso de você”. Tais expressões revelam as sutilezas do incerto, do não saber, do imprevisível que se apresentam diante de nós, inevitavelmente. No âmbito das práticas educativas, essa experiência se amplia, pois estamos diante de dez, vinte ou trinta educandos diferentes numa convivência, por vezes, aparentemente harmoniosa, e em outras dramaticamente conflitiva, mas o risco e a possiblidade de incompreensão, de surpresa e imprevisto sempre se fazem presentes. Reconhecer que o fundamento de tais situações e desencontros está na própria condição de “vivente humano” e estar atento às surpresas e aos equívocos podem contribuir para o manejo da vida. Singularidade humana: algumas reflexões A diversidade é um dado que se apresenta nos encontros cotidianos com tantas pessoas, sempre tão diferentes e singulares. Com licença ao tom coloquial, essa diferença “está na cara”, no rosto de cada um, mas também se revela na impressão digital, no DNA, na tonalidade de voz, na íris, entre outros elementos que constituem nosso organismo como único e irrepetível. Partimos de um corpo que se distingue dos demais As contribuições contemporâneas da Biologia, em especial com Maturana e Varela (1995, p.87), destacam um processo vital sofisticado no qual cada organismo se constitui como um sistema autopoiético. E, a partir de uma organização específica, com características próprias à espécie, cada ser vivo tece e estabelece uma estrutura singular que vai se configurando (e sendo configurada) em cada relação vivenciada com os outros elementos que se lhe apresentam cotidianamente, deixando marcas que só fazem ampliar a dimensão singular desse processo de autopoiese. Entretanto, para além de nosso organismo, ou melhor, fundado nele, a experiência humana historicamente estabeleceu modos de viver e sobreviver que ultrapassam a determinação genética e instintual. Com a convivência, o “animal humano” inventou a cultura, em especial, a linguagem e, a partir dela, nomeia as coisas que o cercam: outros seres, objetos, sentimentos, vivências procurando assim “ordenar” a realidade e o mundo no qual está imerso. A linguagem se integrou de tal forma à dinâmica vital que não nos damos conta dos efeitos que provoca nesse modo de existir especialmente humano. Para além do estabelecimento da nomeação, comunicação, regras, interditos, explicações, elaborações científicas, míticas, teológicas, como expressões que caracterizam as comunidades cultural e historicamente, a linguagem é fonte de equívocos, ruídos, dissonâncias, ou seja, há algo que circula além do dito e/ou a partir do dito. A percepção dessa dimensão tão humana e a escuta atenta aos múltiplos sentidos que ultrapassam as “intenções racionais” veiculadas pela linguagem – e expressas por cada um – foram contribuições proposta por Freud e a Psicanálise que ampliaram nossas concepções sobre a complexidade humana. Singularidade e as contribuições da Psicanálise Num período marcado pela expansão científica e pelo entusiasmo positivista, fundados na racionalidade e nos procedimentos experimentais, as inquietações de Freud o conduziram a insistir e investigar aspectos nem sempre considerados relevantes pela ciência médica de então. Diante de procedimentos que valorizam os padrões de funcionamento biofisiológico do organismo humano, a curiosidade freudiana observou, com o mesmo rigor solicitado pela Ciência, os “padrões” sutis que se manifestavam nos relatos distintos apresentados por pessoas distintas. Sua atenção e, ainda mais, sua escuta atenta favoreceram o reconhecimento dos efeitos singulares de palavras e vivências suscitando sonhos, desejos e temores que, muitas vezes, provocavam impasses para uma vida saudável física e socialmente, ou seja, geravam os sintomas que impediam que as pessoas vivessem e fossem capazes “de amar e trabalhar”. Há aspectos da vida humana que ultrapassam explicações racionais, mas que exercem um papel inegável nos modos de ser e viver e revelam também o fora-de sentido que nos constitui. O reconhecimento, por Freud, do inconsciente como uma dimensão fundante de nossas vidas se fez não apenas indicando que há algo para além da consciência, mas ressaltando que isso não pode ser categorizado e circunscrito a padrões universais. Aliás, é sempre muito interessante perceber como Freud, durante o próprio percurso de elaboração da teoria psicanalítica, procedeu a revisões provocadas pelas manifestações inconscientes veiculadas nas falas de seus pacientes. A escuta atenta aos relatos, às construções de linguagem, às emoções que ali se expressavam e, acima de tudo, a insistência para que os relatos fossem livremente apresentados, permitiram a percepção e o reconhecimento de sentidos específicos – singularmente tecidos pelos sujeitos – para as situações vivenciadas (ou presumidamente vivenciadas). Ou seja, os sentidos, as explicações e as significações não são dadas a priori, segundo um quadro de referências preestabelecidas, mas pelo próprio sujeito ao tecer sua fala. O inconsciente se expressa nessa trajetória singular que se apresenta nos sonhos, nos chistes, nos atos falhos, e em outras múltiplas expressões que caracterizam modos de ser e agir, e que nem sempre sabemos explicá-las através de razões conscientes. Há um descompasso entre o que foi dito e o que se queria dizer; entre o que foi falado e os efeitos dessa fala no outro. O psicanalista Jacques Lacan também contribuiu para nos aproximarmos da trama que é tecida singularmente através da linguagem enfatizando nossa condição de sujeitos cindidos, divididos entre uma dimensão consciente e outra inconsciente. Nessa divisão reconhecemos nossos limites ao tentar dizer, utilizar palavras que expressem o que vivemos e sentimos, pois haverá sempre algo que escapa. A exemplo de Freud, as contribuições lacanianas foram revistas e ampliadas pelo próprio Lacan sempre muito atento às novas situações, impasses e, em especial, aos sintomas que se apresentavam à sua clínica e à cultura. Nesse trajeto, retomamos brevemente três dimensões (ou três registros) que nos permitem compreender aspectos que sustentam as tramas e dramas que cada sujeito se vê confrontado na tarefa de sobreviver. O primeiro registro discutido é o Imaginário. Desde suas elaborações iniciais, Lacan faz referência ao Estágio do Espelho e o papel fundante das imagens primordiais na constituição do sujeito. Mas, somos também capturados pelas imagens veiculadas através das concepções sociais, dos ideais, modelos, padrões que circulam em nossa sociedade globalizada, ou através de concepções e preconcepções culturais ou pessoalmente estabelecidas. Estamos imersos num mundo em que a imagem prevalece e nos toca de forma imediata. Não obstante seu caráter fluído, elas se antecipam e exercem sua efetividade nas relações pessoais e também na escola (“bom aluno”, “bom professor”, “fracasso escolar”, etc). Por isso, até seu último ensino, Lacan enfatizou o necessário deslocamento frente às imagens que imobilizam e paralisam o sujeito frente ao seu desejo e a constituição de um novo trajeto. A questão que permanece inquietando a clínica é: será que o sujeito deseja descolar-se dessas imagens assumidas e/ou construídas que o mantém paralisado em seus impasses, em seu sintoma? O que o sustenta nessa posição? O registro do simbólico é outra dimensão que constitui a trama humana, e que se realiza através da linguagem e da fala, e como instância que busca organizar o existir a partir de explicações, concepções e teorias racionalmente elaboradas. Ao dedicar-se a compreender o funcionamento do inconsciente a partir da linguagem, Lacan assinala o caráter de constante deslocamento dos sentidos, de deslizamento da significação, pois o sentido não está garantido na relação linear palavra-coisa, mas se estabelece na relação entre os significantes. Ou seja, através da fala expressamos conscientemente o que “sabemos” e também o que “não sabemos” de nossas vivências singularmente tecidas. A escuta atenta possibilita, para além de reconhecer os limites da linguagem, indagar sobre os sentidos “sem-sentido” que emergem “sem querer”, mas que marcam a singularidade de cada um. No desenvolvimento de seu ensino, Lacan cada vez mais se defronta com o que escapa e que não é possível ser nomeado e descrito pelas teorias e doutrinas, nem mesmo pelas explicações e concepções sociais ou pessoais. Há algo que, através da linguagem, se revela como não dito, mas provoca os efeitos de um dizer, ao produzir uma diferença frente ao padrão conceitual que as palavras “previamente” estabelecem. O registro do simbólico, assim, aponta a incompletude das explicações sempre tão parciais e situadas. Também é possível reconhecer a fragilidade fundante das imagens que emergem, se estabelecem e sucumbem, deixam efeitos, mas não são capazes de representar e especificar a complexidade da existência. Simbólico e Imaginário são construções que buscam explicitar, nomear, por vezes, padronizar a experiência vital, mas é preciso reconhecer seus limites, pois a própria vida nos surpreende constantemente exigindo deslocamentos e novas elaborações. A essa dimensão que sempre escapa, surpreende e que a linguagem não dá conta de nomear completamente, Lacan nomeou de Real. O Real é distinto da realidade no sentido em que esta se configura como uma construção cultural, imaginária e simbólica. O real da Psicanálise é o real do inconsciente, diante do qual apenas nos aproximamos através da fala – como seres que se tecem na fala – mas não o capturamos. O real manifesta-se também em inúmeras situações que nos surpreendem frente às concepções pré-estabelecidas: o imprevisto, o inesperado, o inominável. Em nossas vivências mais cotidianas a partir de nosso corpo, em nossas relações, em nossos projetos, o real se manifesta revelando que não controlamos tudo, que o mundo não está “subordinado” aos aspectos que estabelecemos, mas, para além de nossos planos, de nossas ações e concepções, a vida pulsa. Nesse contexto, o que podemos fazer é estar atentos aos efeitos de nossos gestos e ações para que possamos tecer novos caminhos... sempre tão incertos, mas escolhidos. O reconhecimento desses três registros, a partir dos quais vivemos e convivemos, contribui para indagarmos: em que medida nossas concepções acolhem dimensões que ultrapassam o que estabelecemos como válido? Em que medida reconhecemos que concepções e teorias (científicas ou não) são elaborações sociais e parciais sobre fenômenos muito mais amplos e complexos? Quando a Psicanálise lacaniana enfatiza a dimensão do real também nos aponta que cada um, em sua existência, tece e é tecido por aspectos que ultrapassam as escolhas conscientes, mas que estão vinculados à nossa trama singular que não está pré-definida, mas se estabelece nas ações e relações vivenciadas. Como afirma Mrech (1998): “[...] nós nos esquecemos que as nossas relações estão em um contínuo processo de mudança. Em um vir-aser. Nós não somos o que vivemos ontem e nem seremos o que vivemos e perceberemos amanhã.” Reconhecer essa dimensão de singularidade em cada um de nós pode contribuir também para estarmos atentos à singularidade do outro, que se manifesta em seus gestos e ações, mas sobremaneira em sua fala e aos sentidos (“sem sentido”) que ali são tecidos e que, certamente, serão distintos e apresentarão nuances diferentes daquelas por outros elaborados. As relações na escola e a singularidade: a percepção dos professores Em atividades de pesquisa realizadas junto a uma escola pública estadual de um município do interior de São Paulo, assumimos a proposta de identificar percepções e concepções dos professores acerca das relações no espaço escolar e das possibilidades e impasses de escutar o outro durante as atividades cotidianas. Trata-se de uma escola localizada em região periférica que atende alunos e famílias moradores de bairros marcados pela violência e condições de vida precárias. No período matutino, são atendidos alunos do Ensino Fundamental I (vinculado ao governo municipal) e nos períodos da tarde e noite, estudam alunos do Ensino Fundamental II e Médio (vinculados ao governo estadual). Nosso trabalho foi realizado com docentes que atuam com Fundamental II e consistiu em conversas individuais, realizadas entre outubro e novembro de 2013, com três educadores: três mulheres (Liz, Vitória e Rebeca) e um homem (João), com idade entre 45 e 55 anos. Do material coletado, destacamos duas categorias para apresentação neste trabalho: a) escuta e o ‘reconhecimento’ do outro e b) a surpresa frente ao inesperado. Antes de apresentar fragmentos dos relatos dos docentes, entendemos ser interessante partilhar que, no período em que estivemos na escola, desenvolvendo atividades de extensão e realizando observações e entrevistas, constatamos que ali se estabelece um clima satisfatório de convivência entre alunos e professores, sem expressões limites de violência e indisciplina. Dentre as queixas frequentes, destaca-se a dificuldade de aprendizagem que sempre é articulada à frágil condição de vida e da família, ao desinteresse e desmotivação do aluno e às deficiências acumuladas nos anos iniciais de escolarização. Esse é um discurso que se repete na fala de muitos educadores que lá trabalham, e entendemos que pode ser articulado à fixação diante das imagens (escola pública, pobreza, desinteresse) que circulam gerando processos de paralização, imobilidade e não responsabilização frente a esses impasses que se apresentam. Ou seja, o imaginário se estabelece através de estereótipos e preconceitos que circulam e delineiam condutas e atuações sustentadas em expressões tais como: “nem adianta, eles não querem nada”, “é difícil mesmo, eles não entendem a importância do estudo”. Soma-se a essas imagens, a “leitura” acerca da realidade do bairro (que já foi considerado, há anos atrás, um dos mais violentos da cidade) articulado às explicações pretensamente sociológicas e/ou psicológicas associadas à desestruturação da família, aos problemas da adolescência e contato com as drogas, a falta de perspectivas e o potencial envolvimento com o tráfico, entre outros fatores. No entanto, para além da busca de explicações (generalizantes) e das imagens (redutoras), a escola é inegavelmente um espaço de encontros (e também desencontros) entre as pessoas. A diferença que marca cada um sempre será fonte de surpresas, equívocos, dissonâncias, mal estar. É o real que se impõe, mesmo que por lampejos, revelando os limites de toda e qualquer tentativa de explicar e compreender, seja a si mesmo ou ao outro, próximo ou distante, familiar ou estrangeiro/estranho. Ao conversar com os professores, aspectos dessas concepções comuns foram reproduzidos, por vezes com o intuito de “justificar” dificuldades de ações diante dos impasses. No entanto, encontramos também relatos sobre algo que faz ir além do que foi imaginariamente tecido e/ou estabelecido. Sobre a escuta e o reconhecimento da singularidade que cada um apresenta, cada qual a seu modo afirmou a importância da escuta, mas também a dificuldade de que ela ocorra. No entanto, reconhecem que quando a escuta se fez presente, algo novo pode ser percebido, reconhecido. João comentou que, seja em situações de impasses no tratamento de um conteúdo, seja em momentos de conflitos entre os alunos, sempre que sua atuação esteve aberta para escutar (e propor a escuta entre os alunos) “as coisas aconteceram de uma forma melhor.” Segundo ele, escutar permite “perceber o que o outro vive e traz como experiência, suas percepções, seus interesses, que são sempre diferentes do meu... nem sempre a gente está atento a isso.” Rebeca partilhou que, para o trabalho do professor, escutar é uma exigência. “A gente lida com muitas pessoas, e cada um com seu jeito, com os problemas que trazem de casa, e são muitos”. Vitória contou que a questão de escutar, de conversar, é algo que sempre foi muito significativo em sua vida, pois ela gostava muito de conversar com o pai e sempre percebeu que ele dedicava uma atenção especial para as coisas que ela e outros contavam. Mas, percebe que muitas pessoas preferem não falar, não se posicionar, principalmente quando pensa de modo diferente. E segundo essa professora: “Todos perdem, por que cada um fica fechado em si... sem se comunicar, sem saber o que pensa e o que o outro pensa. Mas é difícil.” Liz, por sua vez, utiliza a expressão “sensibilidade” como condição para reconhecer o outro como singularidade e abrir-se para escutá-lo sem ideias prévias. Ela afirma: “Entender, reconhecer o outro? Você só consegue se for totalmente sensível ao outro. [...] não é só você ouvir e falar, mas principalmente ouvir... E isso não é fácil de acontecer, pois todos nós, pela própria bagagem, cada um tenta se impor... e aí você não estabelece diálogo, mas você tenta se impor... e não é sensível ao outro.” Esses fragmentos indicam o peso da dimensão imaginária tanto ao tratar da possibilidade de conversar, entender, dialogar com o outro. Vemos a ênfase à perspectiva do encontro (ou mesmo do “ideal de um encontro”) em que seja possível compreender as pessoas, no entanto, o próprio cotidiano revela situações nas quais o impossível deixa suas marcas. Vale ressaltar que, quando indagados sobre as possibilidades de conversas e trocas de experiências e escuta entre professores, todos afirmaram que é muito difícil, ou seja, é mais fácil trabalhar com os alunos, do que com os colegas. E completaram: os alunos escutam, e os colegas não. Tais afirmações nos recordam a reflexão proposta por Cifali (2009, p. 155): “Entre os adultos, os poderes se exacerbam. Como a legitimidade falta, as rivalidades duais se instalam. Um discurso de colaboração é colocado para encobrir a dificuldade que temos de trabalhar com lógicas diferentes da nossa. Cada um acusa o outro de desistência.” Outra perspectiva que se pode destacar na fala dos professores revela a dimensão da surpresa diante do “esperado” (do que foi predito), ou seja, o imprevisto surpreende revelando limites das ‘previsões estabelecidas’. São frequentes, em escolas públicas, os comentários que expressam a crença na não capacidade dos alunos, relacionada a “fatos concretos”: dificuldades de aprendizagem, desinteresse, desmotivação, a falta de perspectiva na vida, entre outros. Em escolas localizadas na periferia das cidades, as condições precárias de vida intensificam essas concepções associando também como fatores: a desestruturação familiar, o não acompanhamento dos pais no desenvolvimento escolar do filho, a falta de formação e vivências culturais, etc. Outras explicações decorrem de pesquisas em educação que discutem tais problemas sob os mais diferentes referenciais teóricos ou dados estatísticos que são apresentados buscando ratificar queixas sobre o fracasso escolar. Esse ‘perfil’ (que circula via imaginário e/ou simbólico) vai tecendo efeitos de verdade que não favorecem a percepção da singularidade que constitui cada um, alunos ou professores. Ao escutar os professores destacamos alguns relatos que revelaram a surpresa diante de situações que suspendem uma imagem “previamente” estabelecida. Liz relatou que sempre preferiu trabalhar com alunos das séries finais do ensino fundamental, no entanto, no último ano, foi-lhe atribuída uma turma de 6º ano. [...] mas tenho problema com 6º ano, pelo jeito deles, [...] então eu entrei na sala, assim meio... falando bem, mas sem brincar... e certo dia uma criança falou alguma coisa, nem lembro mais, e eu dei uma gargalhada por que eu achei gozado... e aí, uma aluna falou: ‘olha, a professora riu!’. Isso me fez pensar: ‘puxa vida, eu sempre séria’.” O riso naquele momento suscitou a surpresa que quebrou imagens: da professora “sempre séria” e os alunos atentos a uma marca que ela deixava com seus gestos. João, Vitória e Rebeca partilharam situações nas quais os alunos surpreenderam ao realizar tarefas e atividades na própria escola ou fora dela. Rebeca relatou o encontro com dois ex-alunos, um deles apresentou muitos problemas em sua passagem na escola. Certo dia, ela foi surpreendida com a colaboração espontânea desse aluno que era integrante da guarda mirim e com seu comentário sobre a importância das orientações e insistência da professora para a realização dos trabalhos de artes com disciplina e dedicação. Trouxe também o relato de outra ex-aluna que atuava como gerente em uma loja da cidade. O comentário de Rebeca presentes nos dois relatos foi: “A gente nunca espera”. No contexto da entrevista, a surpresa pode ser relacionada à atuação dos dois jovens, mas também ao reconhecimento que eles manifestaram acerca da contribuição da professora para a vida de cada um, ou seja, efeitos que só posteriormente podem ser nomeados. Vitória comentou sobre uma turma, também de 6º ano, que apresentava muitas dificuldades de aprendizagem, os alunos eram muito dispersos, geravam problemas de disciplina, apesar de ser um grupo muito pequeno. Quando alguns docentes já tinham desistido, a necessidade de preparar material para a Feira de ciências designou para aquela turma a tarefa de montar uma pirâmide alimentar. Várias ideias foram propostas pelos alunos que decidiram prepará-la produzindo os alimentos com argila ou biscuit. A dedicação de cada um em atividades para as quais apresentava mais habilidade (no trabalho mais minucioso ou que exigia mais força) promoveu uma percepção diferenciada dos docentes diante de cada um aluno e também, por parte dos alunos, ou seja, a percepção do possível em contraposição ao impossível que já marcava aquela turma “X”. Entendemos que, nas situações apresentadas, podemos constatar o imprevisto que se manifesta e surpreende frente às inevitáveis antecipações e opiniões que tecemos no encontro com o outro e socialmente. Ir além das imagens que se precipitam e da força das explicações lógicas, simbolicamente articuladas, solicita a disponibilidade para a escuta e atenção diferenciadas para reconhecer a trama singular que cada um tece (e é tecido) sem que saiba exatamente o que. A singularidade e a escuta: articulações com a psicanálise: Ao considerarmos que as práticas educativas acontecem a partir do encontro entre pessoas sempre tão diferentes, é interessante destacar que a reflexão sobre a singularidade humana não se faz presente no cotidiano escolar, nem mesmo nos processos de formação de educadores. A Psicanálise nos recorda a tendência narcisista e egocêntrica, tão presente em cada um de nós, como efeito de fechamento em nossas construções imaginárias, e enfatiza a importância da escuta do outro em sua singularidade, como possibilidade de ultrapassar os limites por nós mesmos assumidos. Vale recordar a reflexão proposta por Mrech (1998): A Psicanálise revela que quando nós excluímos os outros, excluímos a nós mesmos. Apenas os outros podem nos trazer os outros olhares. As outras formas de nós sermos vistos. Quando a gente exclui estes outros olhares, excluímos também a possibilidade de incorporar as diferenças, as discordâncias. Com isto nós ficamos apenas com a nossa opinião, na crença de que ela é certa. O que faz com que nós tenhamos sempre que convencer os outros de que as nossas ideias são melhores do que as deles, uma vez mais nós ficamos com o estereótipo, o preconceito, a imagem, e acabamos nos perdendo e aos demais sujeitos, isto é, a todos aqueles que pensam diferente de nós. Para a clínica psicanalítica, a escuta é a experiência fundante do processo analítico. Nesse sentido, é fundamental reconhecer a diferença entre ouvir e escutar. Bastos (2009) reflete que ouvir nos remete aos sentidos da audição, por outro lado, escutar implica prestar atenção para ouvir, estar atento. Sendo assim, a atenção é uma função específica da escuta que solicita o reconhecimento da singularidade do outro. A escuta precisa orientar-se para a singularidade do sujeito, possibilitando que ele se expresse, fale e implique seu desejo. A psicanálise enfatiza a necessidade de resgatar a singularidade da pessoa por meio de sua fala e de sua palavra. Os alunos, por exemplo, precisam que os professores lhes deem chances de expressarem- se por si próprios, para que possam falar e ser escutados, pois a posição de escuta é fundamental para resgatar as particularidades e as hipóteses de cada um. (Bastos, 2009, p.94) Por complexa que seja, ao exigir de cada um a suspensão de juízos e apreciações prévias, a prática da escuta possibilita experimentarmos modos distintos de estar com os outros e inventarmos saídas para situações e impasses. Considerações finais Durante as conversas, os docentes reconheceram a importância da escuta, mas também a dificuldade para que ela se realize efetivamente, muitas vezes atribuída ao outro que “se fecha”, e não favorece que a conversa ocorra, que a palavra circule. Nesse sentido, a percepção da singularidade e da diferença se impõe pela emergência do real a partir de vivências e situações imprevistas, revelando a fragilidade de nossas perspectivas, sejam elas pessoais, sociais, científicas, filosóficas, educacionais etc. Aprender com tais situações, com as surpresas, com o imprevisto pode contribuir para ampliar nossas percepções acerca da trama complexa na qual estamos imersos e assujeitados. Ensinar isso é possível? REFERÊNCIAS BASTOS, A. B. B. I. (2009). A escuta psicanalítica e a educação. Psicólogo inFormação, ano 13, n. 13, p.91-98. CIFALI, Mireille (2009). Ofício “impossível”? Uma piada inesgotável. Educação em Revista. Belo Horizonte, v. 25, n. 01, p. 149-164. LACAN, J. (1987). O Seminário. Livro 2: O eu na teoria de Freud e na técnica psicanalítica. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. _____. (1990). O Seminário. Livro 11: Os conceitos fundamentais da psicanálise. 4ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. _____. (2005). Nomes-do-Pai. Rio de Janeiro: Zahar. MATURANA, H. e VARELA, F. (1995). A árvore do conhecimento. Campinas: Editorial Psy II. MRECH, L. M. (org). O impacto da Psicanálise na Educação. São Paulo: Avercamp, 2009. ________. Os estereótipos e preconceitos dos professores à luz da educação inclusiva e da psicanálise. Disponível em: http://www.educacaoonline.pro.br/index.php?option =com_ content&view=article&id=152:os-estereotipos-e471 preconceitos-dos-professores-a-luz-daeducacao-inclusiva-e-dapsicanalise. Acesso em 19 de janeiro de 2011 SCHNITMAN, D. F. (1996) Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Porto Alegre: Artmed.