ASPECTOS ÉTICOS DO ATENDIMENTO DE EMERGÊNCIA E URGÊNCIA Ética é uma palavra de origem grega, de éthos, que pode ser apresentar dois significados possíveis. Com “e” curto, que pode ser traduzida por costume e, com “e” longo, que significa propriedade do caráter. Ética é na realidade a investigação geral sobre aquilo que é bom. O objetivo da ética é o comportamento moral dos homens em sociedade, a ética incumbe-se e almeja a perfeição do ser humano. A Ética médica visa o comportamento dos médicos no exercício de sua profissão e o alvo da atenção é o paciente, sua dignidade, seus valores, suas necessidades e sentimentos, sejam materiais, morais ou religiosos. Hipócrates foi o mais importante médico grego, personagem lendário e paradigma de todos os médicos; é reconhecido como o pai da medicina. A escola hipocrática mudou os rumos da medicina separando-a da religião e magia, instaurando a base para medicina racional. Além disso, estabeleceu normas e condutas éticas para o exercício da profissão; entre eles o famoso juramento de Hipócrates um dos escritos médicos mais estudados ao longo da história e que apesar da antiguidade ainda traz preceitos éticos válidos até nossos dias. O atendimento em urgência e emergência é uma forma especial do atendimento médico onde condutas são instituídas em pequeno intervalo de tempo, sob pena de insucessos em caso de hesitação. A relação médico-paciente nesta situação sofre uma série de modificações. Os pacientes muitas vezes não têm a possibilidade de escolher os médicos que irão lhes atender, medidas invasivas e de risco muitas vezes são mal informadas ao paciente ou aos familiares, e a carência de local apropriado para a troca de informações confidenciais dificulta uma melhor aproximação entre ambos. A assistência em situações de urgência e emergência exibe vários aspectos que merecem ser discutidos. Desde a carência de recursos, superlotação destes setores, má remuneração e pouca valorização dos profissionais, até uma rotina estressante que conduz ao sofrimento pessoal e medo de exposição a processos. Todos esses fatos tornam cada vez mais impessoais os atendimentos nas emergências. Pacientes transformam-se em fichas e médicos em técnicos especializados. Perde-se o sentido da convivência ética, deixando-se de lado as necessidades fundamentais do ser humano e a solidariedade para com os semelhantes. Uma relação médicopaciente, firmada em bases humanitárias, éticas e legais, favorece o diagnóstico correto e abona uma boa relação interpessoal entre ambos. É necessário que sempre sejam respeitados os princípios da Beneficência, Autonomia e Justiça na assistência médica em situações de urgência e emergência. São princípios sempre presentes no dia-a-dia dos profissionais médicos que tomam decisões continuamente na sua prática diária, sobretudo em situações de emergência, onde muitas vezes as resoluções ainda envolvem a alocação de recursos escassos. Os aspectos éticos são elementos importantes para nortear o processo de tomada de decisões. O nosso Código de Ética Médica (CEM), com um total de 145 artigos, refere-se às palavras urgência e emergência em cinco (7º, 24º, 35º, 58º e 62º), a plantão em dois (37º e 114º) e ainda a iminente perigo de vida em três (46º, 51º e 56º) num total de dez artigos que de alguma forma tratam especificamente destas situações especiais, porém muitos outros se aplicam ao atendimento e conduta do médico que não pode mudar nestas condições. O Colégio Americano de Médicos Emergenticistas publicou em 1997, alguns princípios éticos para esta categoria, princípios estes que de uma forma geral podem ser aplicados aos valores contidos no código de ética médica brasileiro de 1988. Entre estes encontramos relações com os artigos 2º, 4º, 103º, 46º, 11º, 102º, 18º, 19º, 5º e 14º do nosso CEM. Vejamos então o que diz a redação de cada um dos artigos do CEM, acima citados: Art. 7° - O médico deve exercer a profissão com ampla autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços profissionais a quem ele não deseje, salvo na ausência de outro médico, em casos de urgência, ou quando sua negativa possa trazer danos irreversíveis ao paciente. Sendo o médico um profissional liberal goza de liberdade e autonomia no exercício de suas atividades, porém essa liberdade não é incondicional, é evidente que ela está subjugada ao que a ordem social admite como lícito; havendo momentos em que ele é obrigado a prestar assistência, seja por um contrato tácito ou expresso, não podendo opor-se a ordem pública ou paz social. Art. 24 - Suspender suas atividades, individual ou coletivamente, quando a instituição pública ou privada para a qual trabalhe não oferecer condições mínimas para o exercício profissional ou não o remunerar condignamente, ressalvadas as situações de urgência e emergência, devendo comunicar imediatamente sua decisão ao Conselho Regional de Medicina. Trata de um direito do médico, o legitimo direito de reivindicar condições de trabalho ou remuneração justa, ainda que precisem entender que qualquer suspensão no atendimento médico, suscite em sérios danos ao interesse da coletividade. O artigo traz a ressalva da proibição em situações de e urgência e emergência. Art. 35 - É vedado ao médico: - Deixar de atender em setores de urgência e emergência, quando for de sua obrigação fazê-lo, colocando em risco a vida de pacientes, mesmo respaldado por decisão majoritária da categoria. Reforça a ressalva presente no artigo anterior. A suspensão deste atendimento, além de ferir os princípios éticos, pode resultar em demandas judiciais, pois caracteriza omissão de socorro. Art. 58 - É vedado ao médico - Deixar de atender paciente que procure seus cuidados profissionais em caso de urgência, quando não haja outro médico ou serviço médico em condições de fazê-lo. Reforça a ressalva do artigo 7º e o chama atenção para o ilícito configurado como omissão de socorro na sua forma mais grave de infração a legislação civil e penal, além de violar de forma grosseira os princípios éticos da profissão. Art. 62 - É vedado ao médico - Prescrever tratamento ou outros procedimentos sem exame direto do paciente, salvo em casos de urgência e impossibilidade comprovada de realizá-lo, devendo, nesse caso, fazê-lo imediatamente cessado o impedimento. Refere-se a uma situação observada com certa freqüência, não existindo justificativa para tal procedimento fora de casos configurados no artigo. As prescrições “por telefone” ou através de terceiros constituem formas graves de negligência ou até omissão de socorro. Art. 37 - É vedado ao médico - Deixar de comparecer a plantão em horário preestabelecido ou abandoná-lo sem a presença de substituto, salvo por motivo de força maior. A falta a um plantão pode ser caracterizada como omissão mesmo que não haja o dano, basta o fato de expor a vida e a saúde de outrem a perigo direto ou iminente, nos casos de responsabilidade médica, quando era seu dever, sabendo que naquele período e local o atendimento de pessoas graves deveria ser realizado. Ao deixar de comparecer ao plantão, sem causa que justifique, comete não apenas falta administrativa por ausência ao trabalho, mas também uma falha ética. Art. 114 - É vedado ao médico - Atestar óbito quando não o tenha verificado pessoalmente, ou quando não tenha prestado assistência ao paciente, salvo, no último caso, se o fizer como plantonista, médico substituto, ou em caso de necropsia e verificação médico-legal. Trata da proibição e da assinatura de atestado de óbito por quem não o tenha verificado, ressalvando situações de plantão, onde ao plantonista é dada esta permissão. Art. 46 - É vedado ao médico - Efetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e consentimento prévios do paciente ou de seu responsável legal, salvo iminente perigo de vida. Art. 51 - É vedado ao médico - Alimentar compulsoriamente qualquer pessoa em greve de fome que for considerada capaz, física e mentalmente, de fazer juízo perfeito das possíveis conseqüências de sua atitude. Em tais casos, deve o médico fazê-la ciente das prováveis complicações do jejum prolongado e, na hipótese de perigo de vida iminente, tratá-la. Art. 56 - É vedado ao médico - Desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente perigo de vida. Nestes artigos observamos o cuidado com o principio da autonomia ou respeito às pessoas. A assistência médica, mesmo com seu inestimável valor, não pode passar por cima da dos princípios da Bioética, estes sempre presentes no dia-a-dia dos profissionais médicos. Na relação médico-paciente há uma delegação tácita de poderes ao médico para fazer o necessário, porém isto não retira, do médico, a obrigação de esclarecer seu paciente sobre os riscos e objetivos das medidas diagnósticas e terapêuticas, permitindo a ele uma decisão que lhe satisfaça, ressalvadas as situações de iminente perigo de vida. As situações de emergência e urgência se caracterizam pela necessidade do paciente de um atendimento imediato, não podendo haver uma protelação do mesmo. A rotina do trabalho nestas condições é um fator estressante a mais e as atividades devem ser criteriosamente planejadas. Não há vínculo prévio, o paciente geralmente não conhece o médico, e a relação de confiança é estabelecida pela necessidade deste momento. A estrutura e funcionalidade das emergências devem visar um atendimento rápido e eficaz, tornando-se um desafio para a equipe médica equilibrar a velocidade e a competência com questões éticas e legais que permeiam a relação médico-paciente. As diretrizes do código de ética médica têm um valor fundamental para respaldar os possíveis conflitos de conduta que surgem na presença destes dilemas. Dr. Francisco José Cavalcante Andrade Médico Cirurgião Professor da Evolução do Pensamento e da Pratica Medica – FACIME/UESPI Conselheiro CREMEPI. Secretário ASPIMED.