os itinerários terapêuticos e a

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OS ITINERÁRIOS TERAPÊUTICOS E A
RELAÇÃO MÉDICO - PACIENTE
Angel Matínez Hernáez
Universidad Rovira i Virgili
Tradução: Virgínia Jorge Barreto, Abril 2006
Observação: foram inseridos no presente texto trechos selecionados de
entrevistas feitas com usuários e profissionais nos centros de saúde que
julgamos ilustrar e contribuir para a reflexão feita no presente texto.
Estas incursões têm apenas a intenção de suscitar o debate e são de
inteira responsabilidade da equipe de coordenação do curso. O autor foi
consultado. Todas as incursões estão inseridas em uma caixa de texto.
I – Introdução
A doença suscita nos indivíduos afetados perguntas sobre o como e o
porquê de sua adversidade, assim como idéias e comportamentos visando
à obtenção da cura. Estas questões, idéias e comportamentos respondem a
modelos culturais enraizados na realidade local, na qual os acometidos
vivem e interagem, e dependem de fatores materiais e econômicos,
históricos, lingüísticos, vinculados à organização social e à adscrição
étnica e religiosa dos pacientes.
Apesar destes modelos poderem ser entendidos como instrumentos para a
ação frente a um determinado episódio de doença, nem por isso devemos
pensar que são reproduzidos de forma mimética pelos acometidos. Os
modelos leigos ou profanos sobre a saúde, a doença e a atenção, não se
encontram tão formalizados como as explicações médicas, entre outras
coisas, porque não costumam formar parte de uma tradição escrita, senão
que se reproduzem por transmissão oral, oferecendo assim uma grande
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diversidade e variedade, e ao mesmo tempo, fórmulas mistas entre os
sistemas expertos (biomedicina), a medicina tradicional e os saberes
populares.
Freqüentemente os pacientes misturam e trocam idéias, remédios e formas
de tratamentos diferentes, como é o caso da crença da bruxaria como
causadora de doenças, o uso de medicamentos e dos recursos rituais
tradicionais.
O profissional de saúde deve conhecer os modelos e as práticas mais
relevantes e recorrentes entre os pacientes que atende, com o objetivo de
prever seus comportamentos associados. Desta maneira poderá
desenvolver estratégias adequadas de comunicação clínica, estabelecer
uma previsão das condutas dos pacientes e aproveitar os recursos locais
existentes.
Um primeiro exercício que deve ser realizado por todo profissional que
trabalha em uma comunidade, indistintamente do caráter monoétnico ou
pluriétnico da mesma, consiste na elaboração de um mapa ou descrição do
Sistema de Atenção em Saúde (SAS – Sistema de Atención en Salud) aí
presente. Por SAS, também conhecido sob o anglicismo de Health-Care
System, entendemos o conjunto de sistemas de idéias e práticas sobre a
doença que co-existem em um determinado contexto local e que podem ser
integrados por:
A
biomedicina
(também
denominada
medicina
científica,
cosmopolita, alopática, ocidental e, inclusive, convencional);
Os sistemas médicos folk (curandeiros, raizeiras, xamans etc)
Os sistemas de medicina tradicional ou próprios de tradições
escritas (medicina tradicional chinesa, medicina ayurvédica, medicina
árabe-galênica etc)
Os sistemas médicos populares (concepções e práticas leigas ou
profanas das populações, como o autocuidado)
E os chamados sistemas ou medicinas alternativas (homeopatia,
naturismo, iridologia, sofrologia e um longo etecétera)
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A Figura 1 ilustra graficamente a pluralidade de sistemas que podem ser
incluídos em um SAS e toma como centro do gráfico a realidade popular
com seus processos de autocuidado e automedicação, os quais
constituem, na maioria das vezes, a origem do processo terapêutico. Na
realidade, um SAS é um conjunto de modelos de conhecimento, práticas e
recursos que irão canalizar a demanda de atenção que se realizará num
determinado contexto local. Neste sentido, pode ser entendido como o
marco no qual irão se desenvolver os itinerários terapêuticos e a relação
médico/paciente.
Figura 1: O sistema de atenção em saúde
Sistema biomédico
(Atencão primária,
atenção hospitalar, etc.)
Sistemas
tradicionai
s
(Medicina
tradicional
chinesa,
medicina
popular,
etc.)
Sistema popular
(Autoatenção,
autocuidado, etc.)
Sistemas
folk
(Curandeiros,
benzedeira,
etc)
Sistemas alternativos
(Naturismo, homeopatía,
viridiologia, etc.)
2- Os itinerários Terapêuticos
Os itinerários terapêuticos (IT) são os processos adotados pelos
indivíduos e grupos humanos para manter ou recuperar a saúde. Esses
processos ou percursos podem implicar em diferentes instâncias em um
SAS como o autocuidado e a autoatenção, os rituais religiosos ou os
dispositivos biomédicos (atenção primária, atenção hospitalar etc). Ë
importante avaliar não apenas os itinerários que são realizados pelos
pacientes no sistema biomédico, mas também todos os recursos dos quais
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se utilizam usualmente e aos quais recorrem para resolver seus
infortúnios. Por exemplo, o usuário pode visitar a Igreja antes ou depois de
uma consulta com o médico ou o enfermeiro; utilizar fitoterapia que lhe
tenha sido indicada por um curandeiro junto com os fármacos; recorrer à
assistência nos ritos próprios de sua cultura; se autocuidar seguindo
instruções dadas por um vizinho ou parente e experimentar a homeopatia.
Estes recursos podem ter um efeito diverso nos pacientes conforme suas
atitudes e doença de base, mas não deve ser negada sua função no
processo terapêutico. O profissional da saúde deve avaliar, em cada caso,
se estes recursos podem ser úteis para o tratamento tanto em termos de
sua eficácia biológica como de sua eficácia simbólica.
A eficácia biológica dos tratamentos tradicionais, alternativos, folk e
populares pode ser examinada de acordo com a compatibilidade ou
incompatibilidade dos princípios empíricos utilizados (fitoterapia,
massagens, dieta etc) com a doença do paciente. Em muitos contextos
locais, os usuários não têm acesso a medicamentos convencionais e o uso
deste tipo de recursos pode ser adequado para aliviar os sintomas e incidir
sobre o processo fisiopatológico. No entanto, em outros casos, esses
recursos podem interferir no processo de cura, caso em que o profissional
de saúde deverá negociar com os promotores de saúde e com os pacientes
os tratamentos a serem adotados.
A eficácia simbólica, por sua vez, deve ser considerada em termos de sua
repercussão no paciente mediante o conhecido efeito placebo e seu
oposto: o efeito nocebo. A biomedicina também utiliza freqüentemente e
de forma inconsciente a eficácia simbólica. A posição de saber do medico,
do enfermeiro ou do profissional de saúde e os próprios medicamentos
constituem símbolos que podem infundir tranqüilidade nos pacientes à
margem de sua eficácia biológica.
Uma grande diversidade de investigações indica a importância da sugestão
no curso e prognóstico da doença. Adicionalmente, as percepções dos
pacientes têm um efeito muito relevante sobre a sua determinação para
continuar com o tratamento.
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Em muitos contextos populares a doença não é percebida apenas como
um problema individual, mas também coletivo, e associado com o resto
das adversidades humanas: a pobreza, a fome, a perda de uma colheita, o
desemprego etc.
Muitas terapias tradicionais, de rituais e curandeirismos se utilizam desse
recurso para produzir, nos acometidos e na comunidade, um efeito de
eficácia simbólica. Desta forma, estes tratamentos cumprem uma função
psicoterápica uma vez que reconfortam aos acometidos e permitem dotar
de um significado social a aflição dos indivíduos. De pouco adianta adotar
uma posição de desvalorização da diversidade dos recursos tradicionais,
folk e populares existentes tachando-os de superstições ou
charlatanismos, uma vez que podem realizar um trabalho importante no
campo da eficácia simbólica. Uma boa prática por parte do profissional de
saúde é a manutenção e o fortalecimento do contato com os promotores
dos diferentes recursos com o objetivo de conhecer como se estabelece a
demanda e evitar, na medida do possível, que se produzam contradições
entre as instruções terapêuticas biomédicas e entre os aconselhamentos e
tratamentos efetuados oriundos de outras instâncias e recursos.
Os promotores da medicina tradicional e os recursos populares existentes
numa comunidade podem se converter em aliados e agentes de saúde, ao
invés de adversários. Uma doença nos modelos populares pode, por
exemplo, estar relacionada com um desequilíbrio da fisiologia humana e do
corpo, como nos sistemas médicos naturalistas que consideram a etiologia
em termos de uma oscilação entre o frio e o calor, ou outro tipo de
princípios como o masculino e o feminino, e também até mesmo tendo sido
produzida por um agente humano ou sobrenatural, como são as
explicações de tipo personalista. A bruxaria, o mal olhado ou a possessão
por um espírito são alguns exemplos desta ultima. Imaginemos, por um
momento que – e tal como se explica no Caso 2 do artigo “Etnografia e
Educação para a saúde” – uma população entenda que a diarréia é uma
conseqüência do excesso de calor no corpo e, portanto considere que o
tratamento adequado deva ser a administração de um remédio frio. É
possível que existam promotores de saúde tradicionais e folk neste
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conjunto que reafirmem estas concepções populares, com a qual, o
paciente e os familiares procurarão um “remédio frio”. Neste caso, o
profissional de saúde deverá ter conhecimento destas nosologias para
resolver os problemas relativos a uma falta de aderência ao tratamento ou
a uma má administração dos medicamentos. Neste sentido, uma estratégia
que pode ser útil é propor a terapia biomédica (soro oral, antibióticos, etc)
como um recurso “frio” que possa ter um resultado efetivo contra as
infecções intestinais, pois, do contrario, poderá produzir um rechaço entre
os indivíduos que devem velar pela correta administração dos
medicamentos: os acometidos ou as mães com filhos com processos
diarréicos. Como veremos no trecho sobre a relação médico/paciente é
importante que o profissional de saúde utilize as categorias locais (frio,
calor, susto, empacho, etc) para que suas prescrições sejam
compreensíveis pelos doentes e seus familiares.
O conhecimento do SAS e dos ITs mais recorrentes numa determinada
área é de grande utilidade para o profissional de saúde na hora de
estabelecer uma boa comunicação clínica com seus pacientes e poder
gerar uma previsão da demanda, assim como um aproveitamento dos
diferentes recursos (populares, folk, tradicionais, alternativos etc), e uma
avaliação das dificuldades e das possíveis contradições entre os
comportamentos e as idéias dos pacientes e as expectativas dos
profissionais.
Na hora de avaliar os itinerários terapêuticos, os profissionais de saúde
devem saber responder às seguintes perguntas sobre os diferentes
recursos terapêuticos existentes em seu SAS:
Quantos tipos de recursos existem no território onde se dá o
atendimento e a que setores ou sistemas podem ser atribuídos: sistema
tradicional, folk, popular, biomedicina, medicinas alternativas etc?
Quem são os representantes destes recursos: curandeiros, médicos
tradicionais, xamans, médicos etc?
Quais são as diferentes nosologias ou classificações da doença que
os diferentes promotores realizam sobre as doenças?
Como abordam os casos estes promotores de saúde? Quais são os
rituais terapêuticos e os tipos de tratamentos utilizados?
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Qual é a eficácia biológica ou empírica de cada uma das terapias?
Qual é a eficácia simbólica presumível de cada uma das terapias?
Por quê, quando e como se decidem os pacientes a freqüentar os
diferentes recursos terapêuticos?
3- A relação médico/paciente
Ainda que a relação médico/paciente constitua uma interação desigual
quanto ao saber sobre a doença – ao profissional é suposto um saber
enquanto que ao paciente é suposta uma falta deste conhecimento – é
importante que médicos e doentes averigúem sobre as concepções e idéias
populares dos doentes e familiares sem preconceitos. Uma atitude
etnocêntrica ou excessivamente arraigada sobre a posição de saber
dificulta o conhecimento das percepções populares, como pode ocorrer na
diferenciação entres doenças do frio e doenças do calor, ou as idéias sobre
a etiologia e o tratamento mais adequado para cada uma das doenças,
além de dificultar o diálogo e a comunicação clínica. Deve-se considerar
que o desconhecimento da realidade e das percepções locais pode levar ao
fracasso terapêutico e inclusive à práticas iatrogênicas, tal como é
indicado no Caso 1 do texto “Etnografia e Educação para a saúde”. Para
evitar estas situações, o profissional deve adotar um modelo comunicativo
do tipo dialógico e não monológico (ver Figuras 2 e 3).
I MODELO MONOLÓGICO
CULTURA
PROFISSIONAL
CULTURA
LOCAL
II MODELO DIALÓGICO
CULTURA
PROFESIONAL
CULTURA
LOCAL
O modelo monológico se baseia na idéia de que a simples transmissão de
informação ao doente sobre seu padecimento é suficiente para uma
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comunicação clínica bem sucedida. Este modelo geralmente toma como
base os seguintes preconceitos e idéias:





Os pacientes não têm idéias prévias sobre sua doença ou essas
idéias são erradas;
A informação médica sobre os procedimentos é suficiente para a
aderência ao tratamento;
Não é necessário adotar uma linguagem simples e compreensível
para os usuários;
Não é necessário levar em conta as variáveis sociais e culturais do
paciente porque são alheias ao processo da doença e a seu
tratamento;
Não é necessário avaliar a própria “cultura profissional” porque esta
é científica e, portanto, não preconceituosa.
No obstante, esta falta de atenção às percepções dos pacientes pode
acarretar em um grave risco de uma prática inadequada (ruim). Mesmo
quando, aparentemente, os profissionais e os pacientes utilizam a mesma
linguagem e, portanto, as mesmas palavras, pode ocorrer que tanto uns
como os outros outorguem um significado diferente ao que se está dizendo.
Nesse aspecto, um exemplo interessante, nos é apresentado pelo trabalho
realizado por Blumhagen sobre a hipertensão nos Estados Unidos, no qual
ele mostrou que apesar dos pacientes utilizarem a palavra “hipertensão”
para se referirem à sua doença, muitos deles consideravam que se tratava
de uma disfunção episódica e não crônica e que passaria tão logo os
problemas de suas vidas cotidianas (perda do emprego, aposentadoria,
divórcio, conflitos familiares etc) não lhes provocassem mais uma forte
“tensão emocional”. Para eles, a hipertensão era um tipo de “hipertensão
emocional” que não possuía características de cronicidade. Por isso,
abandonavam o tratamento pouco tempo depois de iniciá-lo.
Neste ponto, outro exemplo pode ser importante. Em muitos contextos
populares, o diabetes é considerado uma doença que não é crônica e que
pode ser solucionada evitando-se os alimentos doces. Desta forma, tanto
os profissionais como os pacientes, podem utilizar o termo diabetes ou
“açúcar no sangue” e ao mesmo tempo entender diametralmente diferente
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o que está acontecendo. Os pacientes podem, por exemplo, pensar que
podem ingerir todos os tipos de alimentos desde que os mesmos não sejam
doces, com o conseqüente perigo para sua saúde.
Os exemplos da hipertensão e do diabetes nos permitem indicar que o
modelo
monológico,
com
sua
desatenção
das
percepções
e
comportamentos dos pacientes, pode resultar com muita facilidade em
uma falta de aderência ao tratamento ou inclusive em uma prática
profissional ruim.
Com o propósito de evitar esses problemas de comunicação clínica é
importante adotar um modelo dialógico que permita o conhecimento das
percepções e idéias dos pacientes. Algumas das características deste
modelo são:





Ter consciência de que os usuários têm idéias prévias sobre a
doença que, errôneas ou não, devem ser conhecidas pelo profissional
com propósito de negociar o tratamento.
Deve-se procurar obter, além da aderência ao tratamento por parte
do paciente, também uma “aliança terapêutica” com o mesmo e com
os diferentes recursos existentes na comunidade, como foi exposto
no trecho sobre os ITs.
É necessário adotar uma linguagem simples, que seja compreensível
pelos usuários.
Há que se avaliar as características sociais, culturais, lingüísticas,
religiosas, econômicas e étnicas dos pacientes para se realizar uma
boa aproximação à doença. Uma medicina que não considera o
contexto social é tão parcial como aquela que não avalia a
fisiopatologia da doença.
Há que se avaliar a própria “cultura profissional” para ser consciente
das diferenças de idéias e percepções no processo de comunicação
clínica.
Um conceito e instrumento que tem um resultado efetivo para a aplicação
de um modelo dialógico de comunicação clínica é a contribuição de Arthur
Kleinman conhecida como “Explanatory Models” (EMS) ou, em português,
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Modelos Explicativos (MES). Os MES são aquelas noções sobre um
episódio de enfermidade e seu tratamento que são detectadas pelos
diferentes participantes da relação clínica. Tanto os profissionais como os
pacientes e familiares desenvolvem MES sobre aquilo que está
acontecendo e podem ser distinguidos neles pelo menos cinco aspectos:
1) O diagnóstico da doença.
2) A causa ou etiologia da doença.
3) A forma em que aparecem os diferentes sinais e sintomas e a
fisiopatologia.
4) O curso, a evolução e o prognóstico da doença.
5) Os tratamentos mais apropriados para a recuperação da saúde.
Evidentemente, existirá uma diferença entre os MES apresentados pelo
paciente e seus familiares e aqueles utilizados pelo promotor de saúde. Os
primeiros podem estar mais sujeitos à variação, à vinculação com os
acontecimentos biográficos e com a cultura de referência, à adscrição
religiosa, étnica e de classe, e podem mostrar uma extraordinária
hibridização com o conhecimento biomédico e com os outros sistemas que
formam o SAS de referência do indivíduo. Os segundos, uma vez que estão
relacionados com um sistema experto e, em muitos casos, com uma
tradição escrita de conhecimento, estarão mais delimitados e, no caso da
biomedicina, terão inclinação a entender a causa da doença em termos de
causas únicas e os tratamentos em termos de terapias somáticas.
Com o propósito de conhecer os MES dos pacientes, o clínico deverá
realizar uma série de perguntas para investigar os significados que estes
outorgam a seu padecimento. Esta tarefa deve ser realizada em uma
linguagem compreensível para o acometido e para seus familiares, pois o
objetivo não é corrigir de imediato os conhecimentos equivocados sobre a
doença, porém conhecer as percepções do usuário.
Um modelo possível de perguntas é o que se encontra em seguida:
1) O que te aconteceu? Qual é seu problema? O objetivo desta pergunta
é aprofundar nos sinais e sintomas do paciente tal como são vividos
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por ele ou ela e averiguar se lhe estão sendo atribuído algum tipo de
diagnóstico, seja popular, folk ou biomédico. O paciente pode, por
exemplo, falar de susto, de empachamento, de açúcar no sangue, de
possessão por um espírito, de estar resfriado ou de desinteria. É
importante questionar, nas diferentes contradições entre os MES
leigos e os expertos, para mais além das semelhanças
terminológicas.
2) Por que aconteceu? Qual é a causa? Essa questão investigará sobre a
etiologia ou as causas reconhecidas pelo paciente. Ele pode, por
exemplo, indicar que o agente causador é a hereditariedade, o
excesso de trabalho, a pobreza, um esforço físico, a água, a comida,
um castigo proveniente de uma instância sobrenatural ou um
microorganismo. Em muitos casos, deve-se considerar que as
respostas a estas questões podem se traspassar com a pergunta
anterior, pois nem sempre se distingue claramente nos MES leigos
entre o diagnóstico e a causa ou etiologia da doença.
3) Por que aconteceu nesse momento? Como apareceu o mal estar, de
maneira súbita ou paulatinamente? Estas perguntas devem explorar
aquelas dimensões das percepções relacionadas com o inicio da
doença, o aparecimento e o desaparecimento dos sintomas, as
melhoras ou pioras e a fisiopatologia. Por exemplo, o paciente pode
considerar que seu padecimento foi se incubando durante um tempo
ou que está vinculado a um acontecimento traumático ou
estressante de sua vida. Paralelamente, pode indicar que ele ou ela
sabe quando vai piorar após a avaliação de seus sintomas corporais.
Existem pesquisas que mostram a importância dessas percepções
dos pacientes na prevenção de um infarto ou de uma crise
epiléptica.
4) Você acredita que vai durar muito ou pouco tempo? Trata-se aqui de
avaliar as concepções do paciente sobre o caráter agudo ou crônico
da doença. Já dissemos anteriormente que uma disfunção crônica
como a hipertensão ou o diabetes, podem ser considerados como
padecimentos que não são crônicos em determinados contextos
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populares. Contrariamente, algumas doenças que desde a
biomedicina são consideradas agudas podem ser entendidas como
crônicas pela cultura popular.
5) Quais tipos de tratamento acredita que podem lhe fazer bem?
Finalmente, neste caso devem ser explorados o conjunto de terapias
tanto biomédicas quanto rituais, tradicionais e folk que o paciente
considera que podem ser eficazes para a resolução de seu problema
de saúde. Este ponto é especialmente importante, pois, é sabido que
quanto mais diferentes são as percepções dos usuários a respeito
dos saberes profissionais sobre o tema dos tratamentos mais
adequados, uma maior probabilidade existe de que os pacientes
abandonem as terapias prescritas.
É importante observar que essas perguntas não devem ser aplicadas como
um questionário ou um instrumento epidemiológico. O objetivo não é
quantificar os MES dos pacientes, porem compreendê-los. É por isso que
sobre cada um destes pontos o profissional deve desenvolver segundas e
terceiras perguntas, para explorar com maior detalhe as percepções.
Diante da pergunta “O que aconteceu com seu filho?”, uma mãe pode
responder que lhe “colocaram mal olhado”. A entrevista do profissional não
deve se limitar a registrar “mal olhado” como Modelo Explicativo leigo, mas
continuar perguntado: “o que é ‘mal olhado’?”, “Como você sabe que é isso
que seu filho tem?”, “Por que você acha que isso aconteceu com seu
filho?”, entre outras perguntas possíveis. Trata-se de uma tarefa de
imersão progressiva nos MES dos pacientes, com o que o procedimento
será o uso de perguntas abertas. A Tabela 1 oferece alguns conselhos para
a realização correta deste tipo de entrevista também conhecida como
entrevista etnográfica ou em profundidade.
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Tabela 1 CONSELHOS PARA A ENTREVISTA ETNOGRÁFICA
-
-
Informar sobre as condições da entrevista: confidencialidade, forma
de registro, etc.
Evitar a resposta além e aquém do perguntado.
Não influenciar as respostas ao formular as preguntas:
Ex. Incorreto: Por que o leite materno é bom?
Correto: O quê você pensa sobre o leite materno?
Não influenciar as respostas con atitudes ou comportamentos.
Aprofundar a entrevista com mais perguntas: Por qué? Como? O quê
se passou? Quando?
-
Utilizar a técnica do rebote: repetir as últimas palavras do
entrevistado para que o mesmo continue seu relato.
Não trocar rapidamente de um tema a outro.
Não utilizar perguntas confusas ou com duplo sentido
Utilizar um tom de voz moderado.
As respostas obtidas deverão ser cotejadas com as que podem oferecer o
próprio profissional a fim de determinar as diferenças e as semelhanças
entre os MES expertos e os leigos. O papel do profissional é tratar de
aproximar os dois MES mediante o diálogo e a negociação com o paciente.
E esta tarefa supõe o oferecimento de um protagonismo maior ao paciente
e à sua família no processo de comunicação clínica, assim como um
apoderamento destes indivíduos que irá paralelo, previsivelmente, a uma
maior co-responsabilização dos próprios usuários em matéria de saúde.
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