Texto de Nicolas Grimaldi em "Sócrates, o feiticeiro" (Edições Loyola) – Trechos das pgs.7 a 10. Tradução de Nicolás Nyimi Campanário. As notas ao final são minhas. “Quando o servidor trouxe a taça de veneno que acabara de preparar, Sócrates olhou-o, como era de seu costume, um pouco por baixo com seus olhos de touro e perguntou-lhe se com esse veneno ele poderia fazer uma libação a uma divindade.” Fédon, 117 b Sócrates era um feiticeiro. O testemunho é do próprio Platão. “Ouvindolhe”, diz-lhe Mênon, “parece que fui drogado. Tu me enfeitiçastes tão bem que não sei mais o que penso”. Essa magia constituía o charme de Sócrates. Ele encantava. O efeito de suas palavras era tão arrebatador quanto a música. Como se tratasse de um transe dionisíaco, era-se possuído. Alcibíades confessava não poder ouvi-lo sem ficar totalmente a sua mercê. Acusá-lo de feitiçaria era reconhecer-lhe o poder, do mesmo modo que aqueles que o admiravam. E, com efeito, designando-o em As nuvens como o mais célebre dos sofistas, Aristófanes não mostrava um Sócrates capaz de persuadir qualquer um sobre qualquer coisa? [1] Ora, vangloriando-se de ser capaz de fazer qualquer pessoa perder o sentido da realidade, de fazê-la experimentar o falso como mais evidente que o verdadeiro e o real como mais inconsistente que o irreal, a sofística também era uma feitiçaria. Até mesmo os discípulos que viam em Sócrates o mais cáustico crítico dos sofistas não deixavam de reconhecê-lo, eles também, como uma espécie de feiticeiro, de mágico ou de xamã [2]. Quando Sócrates tem apenas algumas horas a mais de vida, ou alguns momentos, é menos o desaparecimento de seu amigo que Fédon lamenta que a perda do encantador: “Onde encontraremos um mágico tão perfeito depois que nos abandonares?” E, contudo, esse xamã, esse feiticeiro, sempre é o ponto de referência como o próprio exemplo do que deve ser um filósofo [3]. Ele não apenas parece ter encarnado o modelo humano de filósofo, mas além disso nos faz remontar a origem da filosofia à sua maneira de pensar e de argumentar. O que precisamos tentar compreender é por que o primeiro dos lógicos, o inventor da dialética praticou filosofia como uma feitiçaria. [...] O que torna Sócrates um feiticeiro é, em primeiro lugar, o fato de ele ser um curandeiro. A maior parte dos males que afetam o corpo, explica ele a Cármides, se originam na alma; mas “a alma só pode ser curada por meio de discursos que agem como encantamentos”. Sócrates pretendia livrar a alma se suas dores unicamente com a magia de suas palavras, como as parteiras que recorrem a drogas para aliviar as dores das parturientes. [...] Fédon ficava maravilhado, sentindo gratidão: “Como soube nos curar!”. [...] O segundo [traço] é devolver cada um a si mesmo ao restaurar o sentido de sua identidade. Isso é o que Sócrates faz tanto com Alcebíades como com aqueles cujos tormentos ele evoca no Teeteto. O terceiro traço característico de um xamã é ser habitado por espíritos ou escolhido por alguma divindade. Ora, há divindades que aparecem nos sonhos de Sócrates para anunciar-lhe o futuro ou para exortá-lo à poesia. É por se sentir investido pelos deuses de uma missão de justiça que Sócrates interroga, questiona, e põe à prova a competência de que se vangloriam os notáveis atenienses. É também um espírito divino, um demônio [4], uma voz sobrenatural que o contém quando ele poderia se desviar do destino que lhe foi atribuído pelos deuses. Quanto a permanecer em sua cela e ali esperar a morte em vez de fugir, não apenas as Leis em uma célebre prosopopéia o comprometeram a isso, mas também o que o próprio Deus lhe prescreve [5]. Há por fim um quarto traço característico em que se reconhece o poder sobrenatural de um xamã: poder libertar-se de sua existência corporal, às vezes conhecer o êxtase, e “elevar-se aos céus porque já esteve lá”. Ora, não há temas mais constantes que esses nos discursos socráticos. Prepararse, por meio de todos os tipos de exercícios ascéticos, para desatar os nós que mantêm a alma vinculada ao corpo, chegar gradativamente até a insustentável visão do absoluto não são a base do ensinamento do Fédon e da República? Por fim, a metáfora ascendente, a oposição entre as aparências de baixo e as realidades lá de cima não teriam sido tão pesadamente ridicularizadas por Aristófanes nas Nuvens se elas não tivessem sido, notoriamente, tão repetitivas nos discursos de Sócrates [6]. *** [1] Se ainda existem críticos céticos em relação à própria existência de Sócrates enquanto ser real – e não apenas um personagem da obra de Platão –, é principalmente devido à obra de Aristófanes, ironicamente uma sátira de Sócrates, e também ela mesmo uma crítica, que hoje podemos ter evidências fortes de que ele realmente existiu. Foi satirizando ao grande filósofo que nada deixou escrito que Aristófanes nos deixou o legado da confirmação de que “algum Sócrates existiu”. [2] É muito comum encontrar críticos que se opõe a filosofia das idéias de Sócrates afirmarem que ele era um dos maiores sofistas, senão o maior. Ocorre que, antes é preciso indagar-se: e será que tais críticos realmente compreenderam a filosofia de Sócrates? Eu, de minha parte, posso afirmar que é praticamente impossível compreendê-la apenas no campo da linguagem e da teoria – é preciso vivenciá-la! [3] O que é o grande paradoxo da filosofia moderna: elevar Sócrates ao patamar de precursor da filosofia ocidental, para depois ignorar solenemente o fato de que ele foi um místico – não no sentido metafórico ou estrito a linguagem, mas no sentido real e objetivo. Ele foi um iniciado nos Mistérios de Elêusis e em inúmeros outros, além de citar constantemente o Oráculo de Delfos como catalisador de sua busca pela sabedoria. Mas, e o que os “filósofos modernos” sabem sobre isso? Muito pouco, quase nada... Eis o paradoxo. [4] Para os gregos da época demônios (daemons) eram espíritos que faziam uma espécie de intercâmbio de informações entre o reino dos homens e o reino divino. Poderiam ser bons ou maus, sendo que os que influenciavam Sócrates poderiam ser comparados, em realidade, ao que hoje chamamos de anjos ou arcanjos. Claro que os mesmos seres que deturparam esse conhecimento irão prontamente discordar. [5] Sócrates não fugiu da prisão, Buda fugiu de seu palácio, Jesus não fugiu da cruz. Seres de consciência elevada que vem a Terra geralmente colocam sua missão acima da própria vida – inclusive por compreenderem que sua vida perdurará e que a missão é o que importa. [6] É interessante como nesse livro curto e escrito de forma brilhante, Grimaldi tenha exposto inúmeras evidências de que Sócrates era um xamã, edificando a concepção de uma filosofia das idéias, para ao final tentar desconstruí-la com uma filosofia secundária atribuída ao próprio Sócrates no livro Parmênides. Ocorre que, para compreender o Parmênides, Grimaldi teria de abandonar a filosofia (teoria e lógica), e adentrar a religião (prática e experiência). Não deixa de ser um bom exemplo da perplexidade que Sócrates provoca até hoje na filosofia moderna.