A PRÁTICA LIBERTADORA DE JESUS

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Através janela histórica aberta
na Idade Média, a Família
Carmelita testemunha pela
reflexão e ação de seus
membros o seu compromisso
com a Justiça e Paz e
Salvaguarda da Criação. Esta
coleção “Zelo Zelatus Sum”,
em cada número, apresenta
algum destes testemunhos ou
reflexões de algum membro,
ou membros da Família
Carmelita. A ilustração da
capa de cada libreto tem este
simbolismo: pela janela da história a Família Carmelita de
muitos modos (simbolizados nos tipos de letra) e em todos
tempos (simbolizados na crescente aproximação das frases)
segue demonstrando o seu compromisso com a Justiça, a Paz e a
Salvaguarda da Criação.
Prática Libertadora de Jesus
A
PRÁTICA
JESUS
LIBERTADORA
1
DE
CARLOS MESTERS, O.Carm.
Número 1
Fevereiro 2005.
Comissão Internacional de Justiça e Paz da Ordem do Carmo.
Publicação da Comissão Internacional de Justiça e Paz da
Ordem do Carmo.
Secretaria Executiva CIJPOC.
Cúria Generalícia da Ordem do Carmo.
Via Giovanni Lanza, 138
00184 – Roma (RM) – Itália
Tel: (+39) 06 4620181
Fax: (+39) 06 46201847
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Prática Libertadora de Jesus
2
A PRÁTICA LIBERTADORA DE JESUS
INTRODUÇÃO
O que nos une como Carmelitas não é a idade, nem a raça, nem a língua,
nem a política, nem a cultura, mas é a vontade comum de viver o Evangelho
de Jesus Cristo, de realizar a doação das nossas vidas, de prestar serviço aos
irmãos, sobretudo aos pobres, e de realizar a vontade de Deus, dentro da
Família Carmelitana, de acordo com o ideal que ela nos propõe na sua
Regra, na sua Tradição, na sua Prática, nos seus Santos e Santas.
Uma Família Religiosa nasce a partir de uma necessidade do povo de
Deus. Alguém, um grupo, sente o apelo e responde: São Bento, São
Francisco, São Domingos, o grupo de romeiros no Monte Carmelo, Santa
Teresa de Avila, Madre Maria das Neves, tantos outros, homens e mulheres.
Cria-se um grupo, do qual vai nascendo a Ordem, a Congregação, a Família.
Assim nasceu e continua nascendo a Ordem do Carmo, a Família
Carmelitana, até hoje, nos vários cantos do mundo e da Igreja. Somos
desafiados a fazer renascer o carisma. Chamados a recriar, não a repetir!
Estamos sempre entre dois pólos: de um lado, a realidade presente, as
necessidades do povo de Deus, os pobres; do outro lado, o nosso passado, a
tradição mística do Carmelo. Os dois, em nome de Deus, fazem apelo à nossa
consciência, cada um a seu modo. A tradição mística nos oferece a forma
concreta de como nós, carmelitas, devemos viver o evangelho. Os pobres do
mundo denunciam qualquer forma de riqueza acumulada que é causa de
privação para os outros, inclusive a riqueza acumulada da tradição religiosa.
Por isso, a tradição deve ser sempre relida a partir do anúncio da Boa Nova
aos pobres (cf Lc 4,18).
Mas há um terceiro polo. Somos nós mesmos, isto é, a realidade da nossa
família carmelitana. Quem somos de fato? Somos muitos! Milhares, no
mundo inteiro: irmãos e irmãs das várias Ordens e Congregações, das Ordens
Terceiras, dos muitos movimentos e associações carmelitanas, espalhadas por
todo canto. Somos aquilo que fazemos: paróquias, colégios, orfanatos,
família, trabalho profissional, pastorais, administração. A rotina dos nossos
trabalhos absorve 90% dos nosso esforços. Este é o nosso presente, nossa
Prática Libertadora de Jesus
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realidade concreta, o peso de cada dia, cheio de ambivalência. Não é só dos
pobres, nem só da tradição, mas também desta realidade da família que
chegam até nós os apelos de Deus. É o terceiro polo! É a fidelidade que
devemos às nossas famílias e comunidades, aos nossos confrades, às nossas
irmãs e ao povo que nos foi confiado. É esta realidade ambivalente que mais
pesa na tomada das decisões e no encaminhamento concreto das coisas.
Muitas vezes, ela nos faz entrar em conflito, pois nem sempre nossa vida está
de acordo com as exigências do Evangelho, da tradição mística e das opção
pelos pobres. É com este desejo de fidelidade ao que Deus pede de nós hoje,
que vamos a refletir sobre a Prática Libertadora de Jesus, descrita nos quatro
evangelhos.
Não se pode pedir ao Evangelho aquilo que ele não pode dar. Por
exemplo, no tempo de Jesus não havia fábricas de automóveis, nem
organização de sindicatos. Não havia ônibus nem avião, não havia internet
nem tantas outras coisas que hoje existem. O Evangelho não tem receita
pronta para resolver estes nossos problemas. Mas, como veremos, no tempo
de Jesus havia:
1. gente explorada por um sistema injusto (Mt 25,26);
2. desemprego crescente (Mt 20,1-6);
3. empobrecimento e endividamento crescentes (Mt 18,23-26);
4. poderosos ricos que não se importavam com a pobreza dos outros
(Lc 16,19-21);
5. tensões e conflitos sociais (Barrabas);
6. repressão sangrenta que matava sem piedade (Lc 13,1-3);
7. classes altas comprometidas com os romanos na exploração do
povo (Jo );
8. grupos de oposição aos romanos que lutavam pela libertação
(Zelotes e atos);
9. a religião oficial, ambígua e opressora;
10.a piedade confusa e resistente dos pobres.
I. OLHAR NO ESPELHO DO PASSADO PARA VER A
SITUAÇÃO DO POVO
1. A Época de Jesus
Quando Jesus tinha mais ou menos quatro anos, morreu Herodes, o
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rei da Palestina, aquele que matou as crianças de Belém (Mt 2,16). Naquela
ocasião, o reino dele foi dividido entre os filhos. Arquelau, um dos filhos,
recebeu o governo sobre a Judéia, no Sul. Ele era menos inteligente que o pai,
mas mais violento (cf Mt 2,22). Só na tomada de posse dele, foram
massacradas em torno de 3000 pessoas na praça do Templo! Governou dez
anos e foi deposto pelos romanos por incompetência.
A Galiléia, no Norte, a terra de Jesus, ficou para outro filho de
Herodes, chamado Herodes Antipas (Lc 3, 1), aquele que matou João Batista
(Mc 6,14-29). Este Antipas permaneceu mais de quarenta anos no governo.
Durante todos os trinta e três anos que Jesus viveu, nunca houve mudança de
governo na Galiléia! Foi sempre o mesmo Herodes Antipas. Que governo era
esse?
2. O Governo de Herodes Antipas na Galiléia
Quem mandava mesmo na Palestina, desde 63 antes de Cristo, era
Roma, o Império. Por isso, Herodes Antipas, para não ser deposto como o
irmão Arquelau, procurava agradar a Roma em tudo. Insistia sobretudo numa
administração eficiente que desse lucro ao Império e reprimisse qualquer tipo
de subversão. A preocupação dele não era o bem do povo, mas sim a própria
promoção. Gostava de ser chamado benfeitor do povo. Na realidade era um
explorador (Lc 22,25).
Três coisas marcavam a política de Herodes e tiveram consequências
profundas na vida do povo da Galiléia do tempo de Jesus:
1. A Nova Capital. A Bíblia não fala, mas a história informa que
Herodes Antipas construiu uma nova capital, chamada Tiberíades, para ser o
novo centro econômico da Galiléia. Chamou assim em honra Tibério, o
imperador de Roma. Seria o mesmo que chamar Brasília de Bushlândia, ou
Manila de Clintoncity. Ele atraía para lá judeus não praticantes e gente que
não era judeu. Para atraí-los oferecia facilidades, privilégios e terra, em parte
tirada do povo através de altos impostos. Tiberíades era um quisto estranho
no meio da Galiléia. Era lá que vivia Herodes com “os magnatas, os generais
e os grandes da Galiléia”(Mc 6,21). Era lá que moravam os donos das terras,
os juizes muitas vezes insensíveis (Lc 18,1-4). Era para lá que iam o produto
do povo e os impostos, e que Herodes fazia suas festas e orgias de morte,
como foi o banquete em que mandou matar João Batista (Mc 6,21-29). Jesus
andou em todas as aldêias e cidades da Galiléia. Chegou a morar em
Cafarnaum (Mc 2,1). Mas não consta nos evangelhos que ele tenha entrado
em Tiberíades. Jesus se distanciava dos “palácios dos reis”, onde morava o
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pessoal “de roupa fina” (Mt 11,8). Ele preferia a vida mais austera, igual à de
João Batista (Mc 11,8-11).
2. A Classe dos funcionários. Ao longo daqueles quarenta anos de
governo de Herodes Antipas, criou-se na Galiléia toda uma classe de
funcionários fieis ao projeto do rei: escribas, comerciantes, fiscais do mercado, publicanos ou coletores de impostos, militares, policiais, juizes,
promotores, magistrados, chefes locais, e outros. A maioria deste pessoal
morava na capital, gozando dos privilégios que Antipas lhes oferecia. Mas
também havia funcionários espalhados pelos povoados e aldêias. Em cada
povoado, aldêia ou cidade havia um grupo de simpatizantes que dependiam
do governo. Vários escribas e fariseus estavam ligados ao sistema e à política
do governo. Nos evangelhos, os fariseus aparecem junto com os herodianos
(Mc 3,6; 8,15; 12,13).
3. O Latifúndio. Durante o governo de Antipas cresce o latifúndio
em prejuízo das pequenas propriedades comunitárias que eram a característica
do sistema tradicional dos judeus. A produção agrícola da Galiléia começa a
orientar-se não mais a partir das necessidades das famílias como antes, mas
sim a partir das exigências do mercado. A arqueologia provou a existência de
grandes propriedades que visavam um maior excedente de produção para
poder exportar. Os muitos impostos faziam diminuir a rentabilidade das
pequenas propriedades. O Livro de Henoque, escrito nesta época, denuncia os
poderosos donos das terras e exprime a esperança dos pequenos: “Então, os
poderosos e os grandes já não serão mais os donos da terra!” (Hen 38,4).
O ideal dos tempos antigos era este: “Cada um debaixo da sua vinha
e da sua figueira, sem que haja quem lhes cause medo” (Miq 4,4; Zac 3,10; 1
Mac 14,12). Aos poucos, porém, a política do governo de Herodes tornava
impossível a realização deste ideal. É como hoje. A situação está ficando tão
ruim que já não é possível realizar o ideal dos tempos antigos: “Cada um no
seu lote com casa própria e bom salário, sem medo de ser assaltado!” Que
saudade!
3. Povo ameaçado, sem defesa
Neste novo sistema não havia defesa nem previdência para o povo.
Em caso de doença, má colheita, pragas ou outros desastres, o povo ficava
sem ajuda. No sistema anterior havia o clã, a comunidade, que era a proteção
das pessoas e das famílias. No novo sistema que começava a ser implantado
pelo governo de Herodes Antipas, isto já não existia mais, ou cada vez menos.
Agora, a primeira preocupação do agricultor era esta: juntar o necessário para
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pagar os impostos ao governo e os dízimos ao Templo, e separar da colheita a
parte que devia servir como semente para a próxima colheita. Ao todo, mais
da metade da produção! O pouco que sobrava tinha que ser o suficiente para
manter a família. Consequência: empobrecimento progressivo!
Esta situação transparece nas parábolas de Jesus. Por exemplo, o
dono de terra que exige mais do que pode e deve(Mt 25,26). Os trabalhadores
desempregados à espera de um biscate(Mt 20,1-6). O patrão que mora longe e
deixa tudo entregue ao caseiro(Mt 21,33). O povo que vive cheio de dívida,
ameaçado de ser escravizado(Mt 18,23-26). O desespero e a exploração que
corrompem e levam o pobre a assaltar(Mt 21,34-39) e a explorar o próprio
companheiro(Mt 18,27-30; Mt 24,48-50). A insegurança das estradas por
causa dos assaltos(Lc 10,30). Funcionários corruptos que se enriquecem com
os bens dos outros(Lc 16,1-7). Riqueza que ofende os pobres(Lc 16,19-21).
Jesus sabia o que se passava no país!
Estas mudanças desintegravam a vida do povo e só faziam aumentar
a saudade dos bons tempos antigos, quando todos ainda se preocupavam com
o bem-estar de todos. Agora era o contrário. O clã, isto é, a comunidade, tinha
cada vez menos resistencia, menos força para reagir. Era como hoje! Dona
Cícera que veio do interior da Paraíba para morar na periferia de João Pessoa,
dizia: “No interior, a gente era pobre, mas tinha sempre uma coisinha para
dividir com o pobre na porta. Agora que estou na cidade, quando vejo um pobre bater na porta, eu me escondo de vergonha, porque não tenho nada em
casa para dividir com ele!”
4. A Religião Oficial: Escribas, Fariseus e Sumos
Sacerdotes
Uma grande contradição marcava a vida do povo. O projeto do
governo vinha de fora. Não levava em conta a cultura nem a religião do povo.
Era contrário à Tradição. Mas os que deviam defender a Tradição, estes, pela
sua vida e pelos seus interesses, estavam de mãos dadas com a política do
governo.
Os fariseus insistiam na pureza(Mc 7,1-12; 2,16). Diziam ser contra
os romanos, mas alguns deles andavam com os herodianos(Mc 3,6; 8,15;
12,13). Os escribas insisistiam na Lei de Moisés, mas aprovavam o assassinato de João Batista por Herodes(Mc 11,31-32) e se reuniam com os
sacerdotes e anciãos contra Jesus que os incomodava(Mc 11,18). Alguns
deles chegavam a arrancar o dinheiro do povo(Mc 3,6; 8,15; 12,13.40). Os
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Sumos Sacerdotes estavam preocupados com o culto no templo, mas
permitiam que o próprio templo se transformasse num antro de
exploração(Mc 11,17). A política romana favorecia os interesses desta elite e
encontrava nela um apôio no controle e na repressão ao povo(Jo 11,45-49).
Os fariseus, escribas e sacerdotes diziam defender a Tradição, a Lei, a
Pureza, a Escritura, o Sábado, o Templo. Mas o que eles defendiam já não era
o que Deus queria quando, no passado, fêz surgir estes valores. Na mão deles,
a Tradição anulava a Lei(Mc 7,13), a Lei anulava a vida(Mc 2,27; 3,4), as
normas da pureza pesavam sobre o povo(Mt 11,28), o Templo era usado para
ganhar dinheiro(Mc 11,17), a Escritura estava coberta por um véu(2 Cor 3,1215). Defendiam uma religião alienada!
E o povo de Deus? O povo estava ameaçado de perder tudo. Diante
do avanço do projeto do Governo ninguém lhe revelava o verdadeiro Projeto
de Deus! Diante das normas e leis ensinadas pelos escribas e fariseus,
ninguém lhe revelava a gratuidade do amor de Deus!(Mt 9,13) As autoridades
religiosas não percebiam, ou melhor, não queriam perceber a gravidade do
momento nem a necessidade de uma mudança radical do rumo da caminhada.
Pelo contrário, impediam qualquer tentativa honesta de mudança(Jo 11,4750). Por isso, sem se darem conta, conduziam o povo para o desastre (Lc
13,1-3. 33-35; 19,41-44). O povo era realmente como um rebanho sem
pastor(Mt 9,36). Sem líderes para orientá-lo, sem rumo e sem horizonte,
cansado de tanta opressão e exploração(Mt 11,28), vivia à espera da chegada
do Reino.
É nesta realidade dura e sofrida que Jesus convive com o seu povo!. É
nesta escola que ele “cresce em sabedoria, graça e tamanho, diante de Deus e
dos homens”(Lc 2,52). É tudo isto que ele vê e ouve, vive e sente,
experimenta e sofre, durante 30 anos, lá em Nazaré. É a partir desta situação
que ele vai discernir a ação de Deus, descobrir sua própria missão e anunciar
a Boa Nova do Reino.
II. OLHANDO A RESPOSTA DE JESUS AOS APELOS
DO SEU TEMPO
I – Jesus se apresenta com a sua mensagem ao povo
Após trinta anos (Lc 3,23) de vida escondida em Nazaré, Jesus se
apresenta ao povo com a sua mensagem (Lc 4,18). Em Nazaré, ele tinha
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convivido longos anos (Lc 2,51) com os agricultores da Galiléia, explorados
pelo sistema dos impostos herdado dos persas e dos gregos e pelo latifúndio
criado pelos romanos. Ele mesmo era carpinteiro (Mc 6,3). Enquanto crescia
(Lc 2,40) em sabedoria, idade e tamanho diante de Deus e dos seres humanos
(Lc 2,52), assistia às explosões de violência tão comuns na Galiléia, à
progressiva organização dos Zelotes(as), à transferência da capital do seu país
para Tiberíades, às tentativas infrutíferas dos romanos para reduzir à
obediência o povo rebelde da Galiléia (Luc 13,1-3; Atos 5, ).
Via como os escribas e os fariseus reuniam e organizavam o povo
em torno das sinagogas, ensinando-lhes a tradição dos antigos (Mc 7,1-5),
dando-lhes força para resistir, preparando-os para a próxima vinda do
Messias, aguardado por todos como iminente. Via também como eles, em vez
de ensinar a lei de Deus e revelar a face do Pai, a escondiam atrás de uma
cortina espessa de normas e obrigações que tornavam impossível a
observância da lei para os pobres (Mc 7,6-13). Estes se viam condenados por
seus líderes como ignorantes (Jo 7, 49) e pecadores (Jo 10,34).
Via ainda a piedade confusa e resistente dos pobres, tão bem
expressa no cântico de Maria (Lc 1, 46-55), na esperança difusa de um novo
êxodo. Os pobres esperavam que chegasse o tempo da libertação prometida
desde os tempos antigos (Lc 1, 71-73).
Crescendo no meio desta realidade conflitante de exploração
econômica, de convulsões sociais, de desintegração crescente das
instituições, de explosões messiânicas, Jesus, unido ao Pai, torna-se aluno dos
fatos, descobre dentro deles a chegada da hora de Deus e anuncia ao povo:
“Esgotou-se o prazo! O Reino de Deus está aí! Mudem de vida!
Acreditem nesta Boa Notícia!” (Mc 1, 15).
O programa da pregação que fazia do Reino, Jesus o apresenta na
sinagoga de Nazaré: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me
ungiu para anunciar a Boa Notícia aos pobres, enviou-me para
proclamar a remissão aos presos e aos cegos a recuperação da vista, para
restituir a liberdade aos oprimidos, e para proclamar um ano de graça
por parte do Senhor” (Lc 4, 18 – 19).
Jesus se apresenta como quem vem realizar as esperanças do povo,
suscitadas e alimentadas, ao longo dos séculos, pelos profetas. Ele se
apresenta como o Messias-Servo anunciado por Isaías (Is 42, 1-9; 61, 1-2).
Propõe a realização de um ano jubilar, “um ano de graça por parte do
Senhor” (Lc 4,19). O ano jubilar já fora tentado por Nehemias, sem muito
resultado (cf. Neh 5). O ano jubilar é a tentativa de reorganizar todas as
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coisas, para que o povo pudesse recomeçar tudo de novo e realizar a aliança
com Deus que tinha sido quebrada pela infidelidade.
II – Jesus encontra no AT o caminho de retorno ao Pai
Foram sobretudo três as primeiras imagens ou nomes que eles aí
encontraram para verbalizar a novidade antiga de Deus que estavam vivendo.
O próprio Jesus usou as três numa única frase quando disse: “O Filho do
Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate
para muitos” (Mc 10,45). As três são: Filho do Homem, Servo de Javé e
Redentor (resgatador). Elas são, por assim dizer, as três fotografias mais
antigas que os primeiros cristãos nos conservaram para nos dizer o que Jesus
significava para eles e qual o caminho que ele abriu para nós chegarmos até
Deus. Vejamos de perto o significado destes três títulos de Jesus:
1. Filho do homem
É o nome que Jesus mais gostava de usar. Este nome aparece com
grande freqüência nos evangelhos. Quinze vezes só no evangelho de Marcos
(Mc 2,10.28; 8,31.38; 9,9.12.31; 10,33.45; 13,26; 14,21.21.41.62).
O título “Filho do Homem” vem do AT. No livro de Ezequiel, ele
indica a condição bem humana do profeta (Ez 3,1.4.10.17; 4,1 etc.). No livro
de Daniel, o mesmo título aparece numa visão apocalíptica (Dn 7,1-28), na
qual Daniel descreve os impérios dos Babilônios, dos Medos, dos Persas e
dos Gregos. Na visão do profeta, estes quatro impérios têm a aparência de
“animais monstruosos” (cf. Dn 7,3-8). São impérios animalescos, brutais,
desumanos, que perseguem, desumanizam e matam (Dn 7,21.25). Na visão
do profeta, depois dos reinos anti-humanos, aparece o Reino de Deus que tem
a aparência, não de um animal, mas sim de uma figura humana, Filho de
homem. Ou seja, é um reino com aparência de gente, reino humano, que
promove a vida. Humaniza. (Dn 7,13-14).
Na profecia de Daniel a figura do Filho do Homem representa, não um
indivíduo, mas sim, como ele mesmo diz, o “povo dos Santos do Altíssimo”
(Dn 7,27; cf Dn 7,18). É o povo de Deus que não se deixa desumanizar nem
enganar ou manipular pela ideologia dominante dos impérios animalescos. A
missão do Filho do Homem, isto é, do povo de Deus, consiste em realizar o
Reino de Deus como um reino humano. Reino que não persegue a vida, mas
sim a promove! Humaniza as pessoas.
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Apresentando-se aos discípulos como Filho do Homem, Jesus assume
como sua esta missão que é a missão de todo o Povo de Deus. É como se
dissesse a eles e a todos nós: “Venham comigo! Esta missão não é só minha,
mas é de todos nós! Vamos juntos realizar a missão que Deus nos entregou, e
realizar o Reino humano e humanizador que ele sonhou!” E foi o que ele fez
e viveu durante toda a sua vida, sobretudo, nos últimos três anos. Dizia o
Papa Leão Magno: “Jesus foi tão humano, mas tão humano, como só Deus
pode ser humano”. Quanto mais humano, tanto mais divino. Quanto mais
“filho do homem” e tanto “filho de Deus!” Tudo que desumaniza as pessoas
afasta de Deus, também a vida religiosa, mesmo carmelitana. Foi o que Jesus
condenou, colocando o bem da pessoa humana como prioridade acima das
leis, acima do sábado (Mc 2,27).
Na hora de ser condenado pelo tribunal religioso do sinédrio, Jesus
assumiu este título. Perguntado se era o “filho do Deus” (Mc 14,61), ele
responde que é o “filho do Homem: “Eu sou. E vocês verão o Filho do
Homem sentado à direita do Todo-poderoso” (Mc 14,62). Por causa desta
afirmação foi declarado réu de morte pelas autoridades. Ele mesmo sabia
disso pois tinha dito: “O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para
servir e dar a sua vida em resgate para muitos” (Mc 10,45).
2. Servo de Javé
Para Jesus, o Filho do Homem é aquele que realiza a missão de Servo
de Javé. Nas três vezes em que ele prediz a sua paixão e morte, Jesus se
orienta pela profecia do Servo de Deus, tal como está descrita no livro de
Isaías, e os aplica ao Filho do Homem (Mc 8,31; 9,31; 10,33).
Naquele tempo, havia entre os judeus uma grande variedade de
expectativas messiânicas. De acordo com as diferentes interpretações das
profecias, havia gente que esperava um Messias Rei (Mc 15,9.32). Outros,
um Messias Santo ou Sumo Sacerdote (Mc 1,24). Outros, um Messias
Guerrilheiro subversivo (Lc 23,5; Mc 15,6; 13,6-8). Outros, um Messias
Doutor (Jo 4,25; Mc 1,22.27). Outros, um Messias Juiz (Lc 3,5-9; Mc 1,8).
Outros, um Messias Profeta (Mc 6,4; 14,65). Cada um, conforme os seus
próprios interesses ou classe social, aguardava o Messias, encaixando-o nos
seus próprios desejos e expectativas. Ao que parece, ninguém, a não ser os
anawim, os pobres de Javé, esperavam o Messias Servidor, anunciado pelo
profeta Isaías (Is 42,1; 49,3; 52,13). Somente os pobres se lembravam de
valorizar a esperança messiânica como serviço ecumênico do povo de Deus à
humanidade. Maria, a pobre de Javé, disse ao anjo: “Eis aqui a serva do
Senhor!” Foi dela que Jesus aprendeu o caminho do serviço.
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A origem dos quatro cânticos do Servo de Deus (Is 42,1-9; 49,1-6;
50,4-9; 52,13 a 53,12) remonta a um grupo de discípulos e discípulas de
Isaías que viviam no cativeiro da Babilônia em torno de 550 antes de Cristo.
Como o Filho do Homem, também o Servo de Deus era uma figura coletiva
que indicava o povo do cativeiro (Is 41,8-9; 42,18-20; 43,10; 44,1-2; 44,21;
45,4; 48,20; 54,17), descrito por Isaías como um povo “oprimido, sofredor,
desfigurado, sem aparência de gente e sem um mínimo de condição humana,
povo explorado, maltratado e silenciado, sem graça nem beleza, cheio de
sofrimento, evitado pelos outros como se fosse um leproso, condenado como
um criminoso, sem julgamento nem defesa” (cf. Is 53,2-8). Retrato perfeito
de uma terça parte da humanidade de hoje!
Este povo-servo é descrito como aquele que “não grita, nem levanta a
voz, não solta berros pelas ruas, não quebra a planta machucada, nem apaga o
pavio de vela que ainda solta fumaça” (Is 42,2). Ou seja, perseguido, não
persegue; oprimido, não oprime; machucado, não machuca. Nele o vírus da
violência opressora do império não consegue penetrar. Esta atitude resistente
do Servo de Javé é a raiz da justiça que Deus quer ver implantada no mundo
todo. Por isso, ele chama o povo para ser o seu Servo com a missão de
irradiar esta justiça no mundo inteiro (Is 42,2.6; 49,6). Os quatro cânticos do
Servo são uma espécie de cartilha para ajudar o povo oprimido, tanto de
ontem como de hoje, a descobrir e a assumir a sua missão.
Jesus conhecia estes cânticos e por eles se orientou. Na hora do
batismo no rio Jordão, o Pai indicou para ele a missão do Servo (Mc 1,11).
Quando, na sinagoga de Nazaré, expôs o seu programa ao povo da sua terra
(Lc 4,16-21), Jesus assumiu esta missão publicamente. A partir daquele
momento, Jesus percorre a Galiléia para ajudar o povo a descobrir e assumir,
junto com ele, esta missão de Servo de Deus.
Jesus foi o Servo de Deus que percorreu o caminho dos quatro
cânticos até o fim. A sua vida e o seu testemunho são o seu melhor
comentário. É nesta sua atitude de serviço que ele nos revela a face de Deus
que nos atrais, e nos indica o caminho de volta Deus.
3. Redentor
Uma das expressões mais antigas, usadas pelos primeiros cristãos para
expressar o significado de Jesus para as suas vidas, é aquela do resgate
(goêl). No Antigo Testamento, caso alguém, por motivo de pobreza ou de
dívidas, perdesse sua terra ou fosse vendido como escravo, o parente mais
próximo (goêl) devia entregar tudo de si para resgatá-lo (Lev 25 e Dt 15) e,
assim, restaurar a convivência fraterna no clã. Era o que se esperava do
Prática Libertadora de Jesus
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retorno do profeta Elias: “reconduzir o coração dos pais para os filhos e o
coração dos filhos para os pais” (Ml 3,23-24). Para os primeiros cristãos,
Jesus era o parente próximo (goêl), o irmão mais velho, que entregou tudo de
si, esvaziou-se, para resgatar seus irmãos e suas irmãs, vítimas da escravidão
da lei, do racismo, da ideologia do império e da religião opressora, para que,
novamente, pudessem viver em fraternidade.
No tempo de Jesus, em nome da Lei de Deus, muita gente era excluída
e marginalizada. Jesus, a partir da sua experiência de Deus como Pai,
denuncia esta situação que esconde o rosto de Deus para os pequenos (Mt
23,13-36). Como parente próximo (goêl), oferece um lugar aos que não
tinham lugar na convivência humana. Acolhe os que não eram acolhidos e, na
sua nova família (Mc 3,34), recebe como irmão e irmã aos que a religião e o
governo desprezavam e excluiam: os imorais: prostitutas e pecadores (Mt
21,31-32; Mc 2,15; Lc 7,37-50; Jo 8,2-11); os hereges: pagãos e samaritanos
(Lc 7,2-10; 17,16; Mc 7,24-30; Jo 4,7-42); os impuros: leprosos e possessos
(Mt 8,2-4; Lc 11,14-22; 17,12-14; Mc 1,25-26); os marginalizados:
mulheres,crianças e doentes(Mc 1,32; Mt 8,17;19,13-15; Lc 8,2s); os colaboradores: publicanos e soldados(Lc 18,9-14;19,1-10); os pobres: o povo da
terra e os pobres sem poder (Mt 5,3; Lc 6,20.24; Mt 11,25-26). Todas estas
pessoas, inclusive Paulo, o perseguidor, tiveram a experiência de terem sido
resgatados para Deus por Jesus, o irmão mais velho, o primogênito (Col 1,15;
Apc 1,5), que para com elas cumpriu o seu dever de goêl: “Ele me amou e se
entregou por mim” (Gl 2,20). Ele se fez escravo, esvaziou-se, para nos
enriquecer com a sua pobreza (2Cor 8,9), para que nós pudéssemos recuperar
a liberdade e retomar a vida em fraternidade.
O termo hebraico goêl é tão rico que não tem tradução unívoca. No
Novo Testamento ocorrem os termos libertador, redentor, salvador,
consolador, advogado, paráclito, defensor, parente próximo, irmão mais
velho, primogênito. Todos estes termos, usados para designar Jesus, referemse, de uma ou de outra maneira, a este costume antigo de Goêl, aplicado a
Jesus, nosso irmão mais velho. Apresentando-se como goêl, redentor, dos
irmãos e irmãs excluídas da convivência comunitária, Jesus revela a face de
Deus como Pai, como Mãe, que acolhe a todos e vai atrás dos abandonados.
Resumindo. Foi através da janela destes destes três nomes Filho do
Homem, Servo de Deus e Redentor, os três tirados do Antigo Testamento,
que os primeiros cristãos olhavam para Jesus e transmitiam para os outros o
significado de Jesus para as suas vidas: O Filho do Homem se caracteriza
pela humanidade; o Servo de Deus, pelo serviço; o Redentor, pela acolhida
aos excluídos. Humanizar, Servir, Acolher. São os três traços principais por
onde Deus nos revela o seu rosto em Jesus e nos atrai para si. Eles indicam o
Prática Libertadora de Jesus
13
caminho mais antigo e mais tradicional para nós voltarmos para a nossa
origem e vivermos o essencial da Boa Nova de Deus que Jesus nos trouxe.
Eles nos ajudam a entender como Jesus é Filho de Deus.
III – Jesus Se Coloca Do Lado Dos Excluídos Do Sistema
Fiel ao seu programa e à sua vocação, Jesus convive, a maior parte
do seu tempo, com aqueles que não tinham lugar dentro do sistema social
existente:
1.
2.
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4.
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6.
7.
8.
9.
10.
11.
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14.
prostitutas – que são preferidas aos fariseus (Mt 21, 31 –32; Lc 7,
37-50);
publicanos – tem precedência sobre os escribas (Lc 18, 9-14; 19, 110);
leprosos – são acolhidos e limpos (Mt 8, 2-3; 11,5; Lc 17,12) e os
sacerdotes são obrigados a dar-lhes prova de sua purificação (Lc 17,
14; Mc 1,44; Mt 8, 2-4);
doentes – (Mt 8, 17) são curados em dia de sábado (Mc 3, 1-5; Lc
14, 1-6; 13, 10-13);
mulheres – fazem parte do grupo que acompanha Jesus (Lc 8, 1-3;
23, 49-55);
crianças – são apresentadas como professores de adultos (Mt 18, 14; 19,13-15; Lc 9,47-48);
povo humilde – entende o mistério do reino melhor que os sábios e
entendidos (Mt 11,25-26);
samaritanos – são apresentados como modelo aos judeus (Lc 10,
33; 17, 16);
famintos – acolhe-os como rebanho sem pastor (Mc 6, 34; Mt 9, 36;
15,32) dá-lhes de comer (Jo 6, 5-11) e provoca neles a partilha (Jo
6,9);
cegos – recebem a visão (Mc 8, 22-26; Mc 10, 46-52; Jo 9, 6-7) e os
fariseus são declarados cegos (Mt 23, 16);
coxos – sua cura é sinal de que Jesus pode perdoar pecados sem ser
blasfemo (Mc 2, 1-12; Mt 11,15);
possessos – a expulsão dos demônios é sinal de que chegou o Reino
de Deus (Lc 11, 14-20);
adúltera – é acolhida e defendida contra a lei e contra a tradição (Jo
8, 2-11);
anciã – é defendida dentro da sinagoga contra o coordenador da
sinagoga (Lc 13, 10-17);
Prática Libertadora de Jesus
14
15. estrangeiros – são acolhidos e atendidos (Lc 7, 2-10) e a cananéia
consegue mudar os planos de Jesus (Mc 7, 24-30; Mt 15,22);
16. pobres – o Reino de Deus é deles (Mt 5,3; Lc 6,20) e não é dos
ricos (Lc 6,24);
17. mendigos – na parábola, eles recebem a vida eterna e o rico epulão
vai para o inferno (Lc 16, 19-31);
18. ladrão – é condenado pelo sistema e é recebido por Jesus no Reino
(Lc 23, 40-43);
19. pescadores – são chamados para ser discípulos de Jesus (Mc 1, 1620), enquanto não há nenhum doutor nem escriba no grupo dos
doze;
20. zelotes(as) – alguns deles estão no grupo de Jesus (Mt 10,4; Mc
3,18) junto com Levi, o publicano (Mc 2,14).
Estas atitudes bem concretas de Jesus representam um perigo muito
grande para o sistema dos judeus, pois Jesus escolhe os “imorais”
(prostitutas e pecadores), os “marginalizados” (leprosos e doentes), os
“herejes”(samaritanos e pagãos), os “colaboradores” (publicanos e
soldados), os “fracos” e os “pobres” (que não tem poder nem saber). Os que
não tem “lugar” recebem um “lugar”! E os que tem um “lugar” na
convivência social não recebem um “lugar” na convivência com Jesus!
A opção de Jesus é muito clara. Também o convite é claro: não é
possível ser amigo de Jesus e continuar a apoiar o sistema que marginaliza
tanta gente. Alguns o entenderam e responderam afirmativamente:
Nicodemos (Jo 3, 1-2), que defendeu Jesus no tribunal (Jo 7, 50-52), foi
vaiado e correu o risco de ser expulso (Jo 19,39); José de Arimatéia, que teve
a coragem de pedir o corpo de Jesus para enterrá-lo (Mt 27, 57-60), correndo
o risco de ser acusado de ser contra os romanos e contra os chefes judeus;
Zaqueu que deu a metade de seus bens aos pobres e devolveu quatro vezes o
que tinha roubado (Lc 19, 1-10).
O povo dos pobres logo percebeu a novidade, acolheu Jesus e disse:
“Um novo ensinamento com autoridade!” (Mc 1, 27), diferente dos
escribas e dos fariseus (Mc 1, 22). E indo atrás de Jesus, (Mt 14, 13-14),
esqueceu tudo: casa, comida, filhos, a ponto de parar no deserto (Mc 6, 3536), junto com Jesus, sem comida, quase desfalecendo (Mc 8,1-3). Para o
povo faminto e pobre, Jesus deve ter sido uma simpatia ambulante!
Prática Libertadora de Jesus
15
IV – Jesus nega e combate as divisões criadas pelos
homens
As divisões e oposições existentes naquele tempo vinham das
relações de produção, da raça e da religião. Tudo misturado. Todas elas
contradiziam a vontade do Pai, pois por meio delas muita gente era
marginalizada, colocada de lado, sem esperança de poder obter uma vida
melhor. E muitas vezes, tudo isto era sacralizado e legitimado em nome de
Deus, através de uma interpretação errada da Bíblia.
Jesus denuncia todas estas divisões e as combate através de atitudes
bem concretas:
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
a divisão entre o próximo e o não-próximo – já não depende mais da
raça nem de observância exteriores, mas depende da disposição de
cada um se aproximar do outro, quem quer que ele seja (Lc 10, 29-37);
a divisão entre pagão e judeu – Jesus estava disposto a entrar na casa
do centurião (Lc 7, 6), e atende ao pedido da cananéia (Mt 15, 28);
a divisão entre obras santas e profanas – (oração: Mt 6, 5-8; jejum:
Mt 6, 16-18 e esmola: Mt 6, 1-4) são redimensionadas;
a divisão entre puro e impuro – Jesus questionou toda a legislação
da pureza legal (Mt 23, 23; Mc 7, 13-23) e chegou a ridicularizá-la (Mt
23, 24);
a divisão entre tempo sagrado e profano – colocou o Sábado a
serviço do homem (Mt 12, 1-12; Mc 2,27; Jo 7, 23-24);
a divisão entre lugar sagrado e profano – disse que Deus pode ser
adorado em qualquer lugar, contanto que seja em espírito e verdade
(Jo 4, 21-24; Mc 11, 15-17; 13,2; Jo 2,19) e não só no templo;
a divisão entre pobres e exploradores – denuncia os exploradores
que se dizem benfeitores do povo (Lc 20, 46 –47; 22,25) e derruba as
mesas dos cambistas que são chamados ladrões (Mc 11, 15-17; Mt 21,
12-17).
Agindo assim, Jesus sacode e relativiza as pilastras do sistema
judaico: observância do sábado, o templo, as obras santas como jejum, oração
e esmola, a lei da pureza legal (Mt 23, 25-28), a prática da justiça feita pelos
fariseus (Mt 5,20), a própria lei de Moisés (Mt 5,17.21.27.31.33.38). Jesus
denuncia a tentativa de chegar a Deus através do próprio esforço e do próprio
mérito: “Somos servos inúteis!” (Lc 17,10). Deste modo, ele liberta o povo
da tirania da lei, da tirania dos intérpretes da lei, da tirania dos que, em nome
Prática Libertadora de Jesus
16
do seu saber maior, impunham fardos pesados ao povo dito ignorante (Mt
23,4).
V – Jesus combate os males que estragam a vida humana
“Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em
abundância!”(Jo 10,10). Agindo contra o sistema dos judeus, o objetivo de
Jesus não é só intervir na situação. O seu objetivo é libertar a vida reprimida
e oprimida, vida criada por Deus à sua imagem e semelhança.
Por isso, Jesus luta contra todos os males que estragam a vida e
contra todas as formas de opressão que impedem a abundância da vida (Jo
10,10): contra a fome, pois alimenta os famintos (Mc 6, 30-44; 8,1-10);
contra a doença e a tristeza, pois cura os enfermos (Mt 4, 24; 8, 16-17) e dá
poder de curá-los (Lc 10,9; Mc 6,13; 16 –18; Mt 10, 1-8); contra os males da
natureza, pois acalma os ventos e as tempestades (Mt 14,32; 8, 23-27); contra
os demônios e maus espíritos, pois os expulsa (Mc 1, 23-27; Lc 4, 13) os
proíbe falar (Mc 1, 34) e os enfrenta na hora das trevas (Lc 22, 53); contra a
ignorância, pois ensina o povo (Mt 9, 35) e faz com que crie consciência
crítica frente à realidade e frente às suas lideranças (Mc 1,22); contra o
abandono e a solidão, pois acolhe as pessoas e não as marginaliza (Mt 9,36;
11, 28-30); contra o literalismo opressor, pois denuncia os fariseus e escribas
legalistas que pervertem o objetivo da tradição (Mt 23, 13-15); contra as leis
que oprimem o ser humano e impedem o seu crescimento, pois coloca o ser
humano como objetivo e fim de todas as leis (Mt 12, 1-5; Mc 2, 23-28);
contra a opressão, pois acolhe o povo oprimido (Mt 11, 28-30) e denuncia os
opressores que se fazem passar por benfeitores da nação (Lc 22,25); contra o
medo, pois se apresenta com a sua mensagem: “Não tenham medo!” (Mt 28,
10; Mc 6,50).
Jesus retoma o projeto do Criador: “No começo não era assim!”
(Mt 19, 8). Deus criou a vida para ser bendita (Gn 1,28) e não maldita. Onde
a vida não tem condições de ser bendita e abundante, lá Jesus se compadece e
age. Assim, ele se compadece do povo abandonado e marginalizado, sem
lideranças que o conduzissem e orientassem (Mt 9, 36-38). Uma das
preocupações principais deve se pedir a Deus para que mande operários para
a sua messe (Mt 9, 38), isto é, líderes que possam dirigir e conduzir o povo
para o seu verdadeiro destino!
Por isso entre os males combatidos por Jesus estão também as falsas
lideranças do seu tempo que desviavam o povo do caminho. Entre elas se
Prática Libertadora de Jesus
17
encontram representantes do poder econômico, do poder político e do poder
religioso.
VI – Jesus desmascara a falsidade dos grandes
Atitudes que Jesus tomou com relação aos representantes do poder
econômico, ou seja, com relação aos ricos e à riqueza:
1.
“é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha, do que
um rico entrar no céu” (Mc 10, 25; Lc 18, 24-27);
2.
na parábola do homem que constrói grandes armazéns, ele denuncia a
acumulação de bens (Lc 12, 13-21; Mt 6, 19): “Bobo, esta noite, você
vai morrer!” (Lc 12, 20);
3.
não acredita muito na conversão dos ricos, pois diz: “Se não
acreditarem Moisés e nos profetas, também não vai acreditar se
alguém ressuscitar dos mortos !” (Lc 16,31) ;
4.
denuncia a hipocrisia dos fariseus que se apresentam como observantes,
enquanto são amigos do dinheiro (Lc 16, 14) e roubam a casa das
viúvas (Lc 20, 47);
5.
derruba a mesa dos cambistas no templo e os chama de ladrões (Lc 19,
46);
6.
“Ai dos ricos! Pois já receberam a sua recompensa!” (Lc 6,24);
7.
prefere o óbulo da viúva às grandes esmolas dos ricos (Lc 21, 1-4);
8.
ele mesmo não tem nada (Lc 9,58) e pede o mesmo dos seus discípulos
(Lc 12,33): tem que deixar tudo para poder seguir a ele (Mc 10, 21-22;
Lc 14, 33);
9.
no grupo de Jesus, a posse dos bens é comunitária, Judas é o
responsável pela caixa comum (Jo 13, 29; 12,6);
10. diz claramente que não é possível servir a dois senhores, a Deus e ao
dinheiro! (Mt 6,24).
Atitudes que Jesus tomou com relação aos representantes do poder
político, ou seja, com relação ao poder e aos poderosos daquele tempo:
Prática Libertadora de Jesus
18
1.
ele não freqüenta a casa dos poderosos, pois gente, pois gente de roupa
fina é só nos palácios (Mt 11, 8);
2.
contesta e critica o exercício do poder na sociedade e pede que o poder
seja exercido como um serviço (Jo 13, 14-15; Mt 23,11; 18, 1-4);
3.
chama Herodes de raposa (Lc 13,32) e, conduzido diante dele na hora
do julgamento, não lhe diz uma só palavra (Lc 23,9);
4.
a Pilatos contesta a arrogância: “Você não teria esse poder se não lhe
tivesse sido dado!” (Jo 19,11);
5.
enfrenta o soldado que bate nele: “Se falei errado, prove! Se falei
certo por que me bate?” (Jo 18, 23);
6.
ele mesmo sendo Senhor e Mestre, se faz servo dos seus discípulos e
pede que eles façam o mesmo (Jo 13, 13-16);
7.
na hora de sua condenação ele é considerado mau pagador de impostos
(Lc 23,2);
8.
no mesmo julgamento, é considerado subversivo, que andou
subvertendo o povo desde a Galiléia (Lc 23,5);
9.
quando perseguido pela polícia em Jerusalém, ele foge e se esconde (Jo
8,59; 11,8.53-54);
10. previne os discípulos: “Atenção! Vão perseguir vocês (Mt 10,17-22) e
vão pensar que estão fazendo uma obra agradável a Deus!” (Jo
16,2).
Atitudes que Jesus tomou com relação aos representantes do poder
religioso, ou seja, com relação aos sacerdotes, fariseus e escribas:
1.
acusa-os de hipocrisia: “Dizem, mas não fazem!” (Mt 23, 3.13);
2.
reconhece a autoridade deles: “façam o que dizem, mas não imitem o
que fazem!” (Mt 23, 2-3);
3.
percebe o veneno da ideologia dominante dos fariseus e avisa os
apóstolos: “Cuidado com o fermento dos fariseus!” (Lc 12, 1);
4.
relativiza os ensinamentos dos escribas, a tradição dos antigos e a
própria lei de Moisés, dizendo que o sábado é para o ser humano e não
vice-versa (Mc 2, 27);
Prática Libertadora de Jesus
19
5.
denuncia a falsidade dos fariseus e escribas (Mt 23, 1-36; Lc 11, 3754);
6.
diante do orgulho dos judeus frente ao templo, ele diz: “Podem
destruir este templo, e em três dias, eu coloco outro!” (Jo 2,19);
7.
denuncia o sistema de comércio existente em torno ao templo (Mc 11,
15-18).
Em todas estas e outras atitudes de Jesus, o objetivo não é
simplesmente por contestar, mas contestar as lideranças falsas que usavam o
seu poder para manter a vida presa e oprimida (Mt 23, 13). Jesus queria
libertar a vida reprimida e oprimida (Mt 11, 28).
VII – Jesus propõe uma nova ordem
Tudo isto que Jesus faz, as suas atitudes, seus gestos e suas palavras,
revelam uma nova visão das coisas, um novo ponto de partida, uma nova
ordem. Não é uma nova ordem no sentido de Jesus oferecer um programa
concreto de ação política ou social, mas ele oferece e propõe alguns pontos
básicos que devem inspirar e renovar pela raiz todo o relacionamento entre os
seres humanos, em qualquer tipo de organização que estiverem.
Conforme São Marcos, a Boa Notícia do Reino anunciada por Jesus
tem como efeito:
1. congregar as pessoas em torno a Jesus e entre si, isto é, formar
comunidade (Mc 1, 16-20);
2. fazer surgir consciência crítica no povo oprimido frente aos seus líderes
(Mc 1, 21-22);
3. combater o poder do mal, expulsá-lo e, assim, libertar o ser humano (Mc
1, 23-28);
4. restaurar e salvar a vida do povo para o serviço (Mc 1, 29-34);
5. permanecer unido à raiz que é o Pai, através da oração (Mc 1, 35);
6. manter a consciência da missão e não se fechar nos resultados obtidos
(Mc 1, 36-39);
7. libertar e reintegrar os marginalizados (Mc 1, 40-45).
Diante desta situação, Jesus não se manteve neutro. Em Nome de Deus tomou
posição em defesa da vida e definiu sua missão da seguinte maneira: “O Espírito do
Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para anunciar a Boa Nova aos pobres,
enviou-me para proclamar a libertação aos presos, a recuperação da vista aos
Prática Libertadora de Jesus
20
cegos, restituir a liberdade aos oprimidos e proclamar um ano de graça da parte do
Senhor”(Lc 4,18-19). E a missão que a comunidade recebe de Jesus é a mesma que
Jesus recebeu do Pai: "Como o Pai me enviou assim eu envio vocês"(Jo 20,21).
O que significa isto no concreto? O Evangelho de Marcos nos dá uma ajuda
para encontrar a resposta. Descrevendo o início da missão de Jesus, ele enumera os
pontos principais que devem caracterizar a missão de uma comunidade cristã(Mc
1,16-45):
1. Mc 1,16-20:
Criar comunidade.
A primeira coisa que Jesus faz, é chamar pessoas para seguì-lo. O primeiro
objetivo da missão é congregar as pessoas em torno de Jesus. É criar
comunidade.
2. Mc 1,21-22:
Despertar consciência crítica.
A primeira coisa que o povo percebe é a diferença entre o ensino de Jesus e o
dos escribas. Faz parte da missão contribuir para que o povo crie consciência
crítica frente à religião oficial.
3. Mc 1,23-28:
Combater o poder do mal.
O primeiro milagre de Jesus é a expulsão de um espírito impuro. Faz parte da
missão combater o poder do mal que estraga a vida e aliena as pessoas de si
mesmas.
4. Mc 1,29-34:
Restaurar a vida para o serviço.
Jesus curou a sogra de Pedro, ela levantou-se e começou a servir. Faz parte da
missão preocupar-se com os doentes de tal modo que possam voltar a prestar
serviço aos outros.
5. Mc 1,35: Permanecer unido ao Pai pela oração.
Após um dia de trabalho até tarde, Jesus se levantou cedo para poder rezar num
lugar deserto Faz parte da missão permanecer unido à fonte da Boa Nova que é
o Pai, através da oração.
6. Mc 1,36-39:
Manter a consciência da missão.
Os discípulos gostaram do resultado e queriam que Jesus voltasse. Mas ele
seguiu adiante. Faz parte da missão não se fechar no resultado já obtido, e
manter viva a consciência da missão.
7. Mc 1,40-45:
Reintegrar os marginalizados na convivência.
Jesus cura um leproso e pede que se apresente ao sacerdote para poder ser
declarado curado e voltar a conviver com o povo. Faz parte da missão acolher
os marginalizados e reintegrá-los na convivência humana.
Estes sete pontos tão bem escolhidos por Marcos mostram o rumo e o objetivo
da missão de Jesus: “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em
Prática Libertadora de Jesus
21
abundância!”(Jo 10,10). Estes mesmos sete pontos podem servir como avaliação
para a nossa comunidade.
Alguns destes pontos básicos:
1.
o poder deve ser exercido como serviço (Mt 20, 24-28); quem quiser
ser o primeiro deve ser o último (Mt 20, 16; Mc 9,35); devem lavar os
pés uns dos outros (Jo 13, 14);
2.
Jesus revela Deus como Pai (Mt 23, 8-9; Jo 13, 8-11), esta é a raiz da
fraternidade; pede para que se imite Deus: “Sede perfeitos como
vosso Pai é perfeito, que faz chover sobre bons e maus” (Mt 5, 4348);
3.
Jesus une o amor a Deus ao amor ao próximo; estes dois mandamentos
são iguais e não podem ser separados (Mt 22, 34-40; Mt 6, 14-15); são
como dois lados da mesma medalha; é o mesmo que ligar fé e vida;
4.
Jesus radicaliza a lei, isto é, religa a lei à sua raiz que é o bem-estar
do ser humano (Mt 12, 1-7; Mc 2,27); o resumo da lei é fazer aos
outros aquilo que a gente gostaria que eles fizessem a nós (Mt
7,12);
5.
Jesus renova por dentro o relacionamento homem-mulher, e torna
a exigir o ideal que estava na mente do Criador: “No começo não
era assim!” (Mt 19, 1-9);
6.
Jesus propõe um novo culto e lhe dá um novo conteúdo (Jo 13,1; Lc
22, 14-20);
7.
coloca-se a si mesmo no centro do relacionamento entre o ser humano
e Deus: “Ninguém vem ao Pai senão por mim!” (Mt 11,27; Jo 14,6);
“Eu sou o caminho, a verdade e a vida!” (Jo 14,6).
Onde os seguidores de Jesus tiveram presente estes pontos, eles
necessariamente tomarão as mesmas atitudes frente à sociedade de hoje que
Jesus tomou no tempo dele. Lutarão como ele pela libertação da vida,
aprisionada em estruturas envelhecidas e opressoras, para que todos possam
ter vida e vida em abundância.
Esta nova ordem está presente em germe na própria prática de Jesus
e no jeito novo que ele tinha de ensinar as coisas:
Prática Libertadora de Jesus
22
1.
linguagem simples em forma de parábolas, que não faz saber, mas faz
descobrir (Mc 4,33);
2.
ajuda os apóstolos e o povo a refletir a partir dos fatos (Lc 13, 1-5; 21,
1-4), e das coisas da vida (Mt 6,26; Jo 16, 21-22);
3.
confronta os apóstolos com os problemas do povo: “Dêem-lhes vocês
mesmos de comer!” (Mc 6, 37);
4.
Jesus ensina com autoridade sem citar autoridades, diferente dos
escribas que viviam citando os doutores da tradição (Mc 1,22);
5.
dá grande atenção às pessoas sem distinção (Mt 22,16);
6.
ensina em qualquer lugar e acolhe todos no seu auditório, inclusive as
mulheres que não podiam participar das instruções nas sinagogas, (Lc
8, 1-3);
7.
apresenta as crianças como professores de adultos: “Se não se
tornarem como crianças, não poderão entrar no Reino!” (Mt 18,3);
8.
ele mesmo vive e faz o que ensina e diz, e ninguém consegue acusá-lo
de algum pecado (Jo 8,46);
9.
ele é livre e comunica liberdade aos que o cercam (Jo 8, 32-36),
dando-lhes coragem de transgredir as tradições caducas dos escribas e
arrancar espigas no campo (Mt 12, 1-8);
10. ora, passa noites em oração, e assim suscita nos outros vontade de orar
(Lc 11,1; 5,16; 6,12; 9,18.28; 22,41).
VIII – Obediente até à morte, Jesus revela o rosto do pai
Jesus é o Filho de Deus. Isto tem a ver com o seu relacionamento
com Deus e com a constituição da sua pessoa. Isto não se prova, mas se
aceita na fé e foi objeto de lenta descoberta por parte dos cristãos. Jesus é o
Messias . Isto tem a ver com o seu relacionamento com os seres humanos e
com a sua missão dentro do Plano de Deus. É da total gratuidade do Pai de
Ele não ter mandado qualquer um para realizar a missão do Messias, mas o
seu próprio Filho.
“Sendo rico, ele se fez pobre!” (2Cor 8,9). Aqui está uma opção
radical que não pode ser desfeita por nenhum raciocínio. Jesus não era
cidadão romano, não tinha nenhum título, não fez curso com Gamaliel, não
estudou em Jerusalém, não tirou diploma; na sua apresentação no templo os
Prática Libertadora de Jesus
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pais fizeram a oferta dos pobres – duas pombas (Lc 2,24); não era sacerdote
nem de família sacerdotal, não era levita nem fariseu, não era escriba nem
zelote(a), nem publicano, nem essênio, nem saduceu. Jesus era um leigo,
operário-agricultor, vindo da Galiléia, onde a instabilidade social era muito
grande. Na comunidade local não era presbítero nem coordenador. Não tinha
a proteção de nenhuma classe. Era conhecido como o carpinteiro (Mc 6,3) ou
filho do carpinteiro (Mt 13,55), viveu “trinta anos” em Nazaré (Lc 3,23), não
casou; nasceu fora de casa numa estrebaria e, assim, desde o seio materno
sofreu as conseqüências do sistema opressor dos romanos. Se você quiser
conhecer a vida dos “trinta anos” do Filho de Deus em Nazaré, pegue a vida
de qualquer nazareno daquele tempo, coloque o nome de Jesus e terá a
biografia dele. Realmente, “sendo rico, ele se fez pobre!”O que para uns é
condenação do destino e do sistema para Jesus se torna e é manifestação da
vontade do Pai. O Pai revela aqui a sua preferência. Jesus vai ficar fiel ao
Pai, ficando do lado dos pobres até à morte! Ficar do lado dos pobres, do
povo sofredor, era o mesmo que ficar do lado do Pai: “Eis-me aqui para
fazer a tua vontade!” (Heb 10, 7.9).
Não foi fácil ficar agarrado ao Pai e ao povo pobre. Sofreu e foi
tentado para entrar por outros caminhos (Mt 4, 1-11; Mc 8,33). Teve que
aprender o que é obediência, (Heb 5,8) mas venceu através da oração (Heb 5,
7; Lc 22, 41-46). Difícil é sentir na carne a fraqueza à qual é condenado o ser
humano empobrecido. Jesus nunca buscou uma saída individual, nunca
buscou privilégios para si. Nasceu pobre, o que era expressão da vontade do
Pai. Escolheu ficar do lado dos pobres, o que era decisão do Filho, querendo
ser obediente ao Pai até à morte, e “morte de Cruz” (Fil 2,8).
Vivendo e anunciando a Boa Notícia do Reino, Jesus vai
provocando conflitos (Mc 1, 2-3,6). Quase todos querendo puxá-lo para o seu
lado, e ele não cede nem se desvia. No fim, ele ficou só, abandonado por
todos (Mc 14,50). Só ficaram algumas mulheres e João, ao pé da cruz! (Jo
19,25). Aqui se revela o mistério profundo que envolve a pessoa de Jesus: o
Pai! Jesus não cabe nas nossas idéias, não pode ser reduzido ao tamanho dos
nossos pensamentos e idéias. Ninguém podia nem pode dizer: “este é um dos
nossos! A gente vai poder aproveitar-se dele para alcançar os nossos
objetivos!” Todos se sentiam interpelados pela prática e pela mensagem de
Jesus a fazer a conversão, a mudança de mentalidade. Só os pobres podiam
dizer: “Este é um dos nossos! Ele quer bem a nós do jeito que nós somos.
Ele não vem até nós com intenções interesseiras nem vem nos
manipular!”
Combatido e puxado por todos os lados, Jesus resiste fiel a algo que
está dentro dele, só nele e no mais profundo do povo pobre e sofrido. É
Prática Libertadora de Jesus
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aquela semente de resistência de que falava o profeta Isaías: “Machucado
não machuca, injustiçado não responde com injustiça, quebrado não
quebra (Is 42, 1-4; Mt 12, 18-21). Assim Jesus procurou imitar o Pai e ser
perfeito como ele (Mt 5,48).
Pela sua ação e pela sua mensagem, Jesus faz brilhar sobre a vida,
tanto individual como coletiva, a face do Pai. Revelando o Pai em gestos bem
concretos, revelava ao mesmo tempo a podridão do sistema, anunciava a
possibilidade de um novo céu e uma nova terra. O Pai é o eixo escondido da
vida de Jesus e a Ele ficava unido através da oração.
A oração é a marca da vida de Jesus. Ele aparece orando em todos
os momentos importantes da sua vida: no batismo (Lc 3,21), no deserto (Lc
4, 1-13), antes de um grande milagre – Lázaro (Jo 11, 41-42), numa grande
alegria – “Pai, eu te agradeço” (Mt 11,25), na escolha dos apóstolos (Lc 6,
12-13), ora por Pedro (Lc 22, 32), passa noites em oração (Lc 5,16; 6,12),
abençoa o pão (Mc 6,41), participa das romarias (Lc 2,41-42), na
transfiguração (Lc 9, 28), provoca vontade de orar – “ensina-nos a orar” (Lc
11,1), na agonia (Mc 14, 32-39), no sofrimento da cruz (Lc 23,34), na oração
sacerdotal (Jo 17, 1-26), na hora de morrer (Lc 23, 46; Mc 15,34).
Ligado ao Pai, Jesus recusa a tentação do messias nacionalista,
populista e racista. Rejeita o que era contra a vontade do Pai e contra o povo
empobrecido. No fim, ficou só e abandonado, exatamente como o povo do
seu país. Morre abandonado, soltando um grito, (Mc 15,37). É o grito dos
pobres! Morre abandonado, acreditando que Deus ouve o grito dos
pobres! Morre acreditando que a vida pisada é mais forte que o poder
que pisa, mais forte que a morte. Morre acreditando que Deus liberta o
seu povo com poder criador que vence a morte. E “no terceiro dia” o Pai
o ressuscitou!
Frei Carlos Mesters
Prática Libertadora de Jesus
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A coleção “Zelo Zelatus Sum” é parte do nosso compromisso
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nas Constituições de nossa Ordem, (cf. Const. 1995, n.303,b) .
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