MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA REGIONAL ELEITORAL DE MINAS GERAIS EGRÉGIO TRIBUNAL REGIONAL ELEITORAL DE MINAS GERAIS PRE/D/2012 - RE - P - _________ RECURSO ELEITORAL Nº 148 -87.2012.6.13.0044 RECORRENTE: Luçano dos Santos Duarte RECORRIDO (A): Justiça Eleitoral RELATOR (A): Juiz Flávio Bernardes O MINISTÉRIO PÚBLICO ELEITORAL , por intermédio da PROCURADORIA REGIONAL ELEITORAL , devidamente instado a se manifestar, o faz nos seguintes termos. Trata-se de recurso interposto contra decisão que cancelou a inscrição eleitoral do recorrente no município de Guar aciama/MG. O recorrente sustenta a flexibilidade do conceito de domicílio eleitoral, que se comprova por vínculos sociais e afetivos e, por fim, que a documentação constante dos autos comprova sua residência no município. É o relatório. Para o deslind e da demanda instalada nos autos, necessário verificar a existência de vínculo juridicamente relevante do recorrente para com o município de Guaraciama, a que corresponde a ZE para a qual pretende a transferência de seu cadastro eleitoral. 1 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA REGIONAL ELEITORAL DE MINAS GERAIS Para tanto, impende salientar que o conceito de domicílio eleitoral, para fins de inscrição e transferência, extrai -se dos artigos 4º, parágrafo único e 8º da Lei nº 6.996/82, que assim dispõem: Art. 4º - O alistamento se faz mediante a inscrição do eleitor. Parágrafo único - Para efeito de inscrição, domicílio eleitoral é o lugar de residência ou moradia do requerente, e, verificado ter o alistando mais de uma, considerar -se-á domicílio qualquer del as. (...) Art. 8º - A transferência do eleitor só será admitida se satisfeitas as seguintes exigências: (...) III - residência mí ni ma de 3 (três) meses no novo domicílio, declarada, sob as penas da lei, pelo próprio eleitor. Por sua vez, o Provimento nº 017/CRE/2011 da CRE/MG, que “Expede instruções para revisão do eleitor ado com identificação biométrica em Municípios do Estado de Minas Gerais” estabelece: Art. 4º A comprovação de domicílio poderá ser feita mediante um ou mais documentos dos quais se infira ser o eleitor residente no município ou nele possuir vínculo familiar, profissional, patrimonial ou comunitário a abonar a residência exigida. (Arts. 64 e 65 da Resolução nº 21.538/2003/TSE c/c Ac. TSE nº 371.C, de 19.9.96). (...) § 4º Ocorrendo a impossibilidade de apresentação de qualquer documento que identifique o do mi cílio do eleitor ou subsistindo dúvida quanto à idoneidade do comprovante de domicílio apresentado, declarando o eleitor, sob penas da lei, ter domicílio no município, o Juiz El eitoral decidirá de plano ou deter mi nará as providências necessárias à obtenção da prova, inclusive por meio de verificação no local. 2 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA REGIONAL ELEITORAL DE MINAS GERAIS A extensão do conceito de domicílio eleitoral, realizada pelo referido Provimento 017/CRE/2011, encontra apoio em diversos precedentes do Tribunal Superior Eleitoral, que em geral definem como sendo o lugar em que a pessoa mantém vínculos políticos, sociais e afetivos. 1 Esta Procuradoria Regional Eleitoral vinha seguindo essa orientação. Ou seja, entendia -se que se provados vínculos políticos, afetivos ou sociais do eleitor com o município, restari a atendido o requisito domiciliar para fins de inscrição ou transferência eleitoral. Contudo, conhecidas e não raras fraudes praticadas em ano eleitoral, com a finalidade de arregimentação de eleitores comprometidos com determinado candidato, e que resul ta, muitas vezes, em um fenômeno demográfico no município que acaba por ter mais eleitores que habitantes, como parece ser o caso dos autos, levaram a uma melhor reflexão e mudança de posição sobre o assunto. Oportuno o resgate da definição de domicílio da pessoa natural, segundo o Código Civil que, no artigo 70, estabelece que domicílio é o lugar onde ela estabelece residência com ânimo definitivo. Vê-se que o legislador, para definir o domicílio civil, reuniu dois elementos: um material, ou externo – a residência, e outro psíquico, ou interno – a intenção de permanecer. Domicílio civil, pressupõe, portanto, a relação física (residência ou moradia) da pessoa com o local, além de um outro elemento anímico ou subjetivo, a intenção de ali permanecer. 1 RESPE nº 23.721/2004, RESPE nº 16.397, RESPE nº 21.829. 3 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA REGIONAL ELEITORAL DE MINAS GERAIS Não se desconhece que legislador civil admitiu a pluralidade de domicílios, considerando a possibilidade de o indivíduo possuir mais de uma residência de maneira não eventual (art. 71). Para além disso, pode ser considerado o domicílio da pessoa natural o lug ar onde ela exerça suas atividades (art. 72), e, por fim, pode -se ainda considerar domiciliada a pessoa onde for encontrada, desde que não tenha residência permanente (art. 73). No entanto, para fins eleitorais, especificamente para a inscrição eleitoral , o legislador não edificou a definição de domicílio sobre os mesmos elementos (residência e ânimo de permanência), tendo se contentado apenas com o primeiro. Assim é que, para fins eleitorais, considera-se domicílio o lugar de residência ou moradia do el eitor (Lei nº 9.096/82, art. 4º). Mas isso não autoriza a inferência de que vínculos de natureza econômica, profissional, política, social ou afetiva possam instar a qualificação jurídica do lugar como domicílio. Isso porque, como parece óbvio, o element o descritivo (residência ou moradia ), que é o ponto nuclear da definição formulada pela lei eleitoral, traz ínsita a ideia de relação física entre o lugar e a pessoa. Em outros termos, é necessário, para a configuração de um domicílio eleitoral, que no lu gar considerado a pessoa disponha de casa, apartamento, barracão ou outro tipo de imóvel, próprio, alugado ou cedido em comodato, para onde se recolha, que lhe sirva de abrigo. E, diga -se mais, essa relação física somente haverá de se caracterizar como res idência ou moradia se for não eventual . Não obstante a clareza e perfeita delimitação da definição de domicílio conferida pela lei eleitoral, diversos precedentes do TSE, como 4 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA REGIONAL ELEITORAL DE MINAS GERAIS já apontado, têm emprestado à expressão domicílio eleitoral uma exagerada e de sarrazoada amplitude conceitual, ao ponto de abarcar no espectro conceitual de residência ou moradia situações como a de vínculos políticos, afetivos ou de parentesco, econômicos, e outros mais. Com isso se quer dizer que a amplitude conferida ao significado de domicílio eleitoral nos apontados precedentes refoge, evidentemente, às possibilidades semânticas que o texto do artigo 4º da Lei nº 9.096/82 oferece. Não se pretende aqui afirmar que seja a interpretação resultante do método de análise puramente literal ou gramatical do texto a única possível. É certo, como há muito já se afirma, que o sentido ou os sentidos possíveis de um enunciado normativo devem ser revelados a partir de um processo de interpretação que, conforme o caso, haverá de ser mais ou menos complexo, mais ou menos elaborado, podendo chegar -se à consideração de elementos históricos, de análise sistemática, de integração da norma à realidade (social, política e econômica) e de interdisciplinariedade. É possível que a interpretação, exer citada com apoio em tais elementos, venha a revelar vários sentidos possíveis da norma, caso em que o intérprete deverá manifestar preferência por aquele que melhor se ajuste à pauta axiológica do sistema ou subsistema normativo em que inserida a disposição normativa objeto da interpretação. De ver-se que a demasiada extensão do espectro conceitual de domicílio eleitoral, apontada nos precedentes do TSE, é uma posição que 5 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA REGIONAL ELEITORAL DE MINAS GERAIS se apresenta em desconformidade evidente com o sentido gramatical do enunciado normativo em exame. Para ser sustentável juridicamente, essa posição jurisprudencial dependeria de muito bem articulada fundamentação, digna de um vigoroso esforço hermenêutico. Entretanto, ao exame das peças do inteiro teor dos julgados referidos não se enco ntra mais do que lacônicos argumentos, reportados nas notas remissas abaixo. 2 Em suas ponderações, Luiz Lênio Streck, considerou a assertiva de que o sentido gramatical de um enunciado normativo não traduz exatamente o conteúdo da norma, porquanto esse conteúdo só é possível de ver -se revelado a partir de um processo de interpretação. Mas é fora de dúvida que não se pode buscar o sentido da norma absolutamente desconectado do sentido gramatical do texto. Os textos que integram o direito positivo contêm a norma. São textos jurídicos, não textos contábeis ou religiosos. Os enunciados normativos podem não dizer exatamente o que é a norma; podem não esgotar ou mesmo transbordar o seu conteúdo. Porém, a compreensão do sentido da norma há que partir de um enunc iado normativo e não pode se produzir sem a compreensão de que entre texto e norma, respectivamente, se estabelece uma relação tal qual aquela que há entre o ente e o ser. “Para o Código Eleitoral, domicílio é o lugar em que a pessoa mantém vínculos políticos, sociais e econômicos. A residência é a materialização desses atributos.” Voto do Min. Humberto Gomes de Barros no RESPE 23721. “ (…) o TSE, ao interpretar os arts. 42 e 55 do Código Eleitoral, tem liberalizado a caracterização do domicílio eleitoral e admitido o seu deferimento em lugar distinto daquele em que o eleitor mantém o domicílio civil, desde que demonstrado o vínculo.” Voto do Min. Francisco Peçanha Martins no RESPE 21.829. “O conceito de domicílio eleitoral não se confunde com o de domicílio do direito comum, regido pelo Código Civil. Mais flexível e elástico, identifica-se com a residência e o lugar onde o interessado tem vínculos políticos e sociais.” Voto do Min. Sávio de Figueiredo no RESPE 16.397. 2 6 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA REGIONAL ELEITORAL DE MINAS GERAIS Por essa razões, e pedindo venia àqueles que comungam da interpretação conferida p elo c. TSE à norma em questão, está a merecer revisão o entendimento esposado por aquela Corte Superior. Não se pode aceitar como domicílio eleitoral, para fins de inscrição ou transferência eleitoral, qualquer outro vínculo do eleitor com o município que não seja a residência ou a moradia, conforme estabelece o artigo 4º da Lei nº 9.096/82. Qualquer outra interpretação da norma que admita diferente espécie de vínculo transborda os limites hermenêuticos, indo além da leitura construtiva do direito para cont rariar o objeto da interpretação, não podendo ser aceita sob pena de completa desconexão entre a norma e sua aplicação. Ainda assim, levando -se em conta que a simples moradia 3 foi considerada pelo legislador como critério de definição do domicílio eleitoral, é possível que o eleitor possua dois domicílios, podendo legitimamente inscrever -se ou transferir sua inscrição para qualquer um deles. Seria, por exemplo, o caso daqueles que durante a semana trabalham nos grandes centros e lá estabelecem moradia par a esse fim, no entanto residem em município independentemente de do interior, eventuais onde alterações pretendem em permanecer suas atividades profissionais. Nesses casos estaria estabelecido o vínculo exigido pela lei eleitoral para inscrição ou transfer ência em qualquer dos municípios. Porém não em meras relações familiares, econômicas ou sociais. Nessa linha de ideias, e tendo em vista que no caso em apreço o recorrente aduz que reside no município de Guaraciama/MG, impende a análise da prova dos auto s. 3 Segundo Caio Mário da Silva Pereira, moradia e residência se distinguem numa escala de gradação, onde moradia estaria colocada antes de residência e o que definiria essa posição seria a estabilidade na habitação. (Instituições de Direito Civil, v. I, 21ª ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 371) 7 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA REGIONAL ELEITORAL DE MINAS GERAIS O recorrido junta aos autos cópia da certidão de nascimento, de consultas médicas realizadas no município, bem como recibo da compra de um lote situado em Guaraciama/MG. A Chefe do Cartório Eleitoral de Bocaiúva/MG, certificou, às fls. 15, que o recor rente reside no município de Glaucilândia, tendo -lhe informado que não possui imóveis em Guaraciama. Sabe-se que os documentos públicos são dotados de fé publica segundo os artigos 364 4 e 334, IV 5 do CPC, gozando de presunção de veracidade. No caso, as p rovas carreadas pelo recorrente apresentam fragilidade quando confrontadas com a certidão de fls. 15, não merecendo prosperar os argumentos recursais despendidos. Não há nos autos nenhuma prova, sequer uma informação, acerca de uma razão plausível para qu e o ora recorrente venha a ser cadastrado como eleitor no município de Guaraciama/MG. Diante disso, duas alternativas se apresentam a essa Corte de Justiça: seguir e aplicar aquela noção conceitual de domicílio eleitoral cristalizada na jurisprudência ou, ao contrário, problematizá -la, como aqui se propõe, submetendo -a ao crivo de uma reflexão em que não podem ser havidos como irrelevantes os dados dessa lamentável realidade política, do ambiente em que o direito deve operar. Se parecer evidente a essa Cor te, como parece ao Ministério Público Eleitoral, que ao direito objetivo se propõe, para além de uma função conformadora, também uma função 4 Art. 364. O documento público faz prova não só da sua formação, mas também dos fatos que o escrivão, o tabelião, ou o funcionário declarar que ocorreram em sua presença. 5 Art. 334. Não dependem de prova os fatos: IV - em cujo favor milita presunção legal de existência ou de veracidade. 8 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA REGIONAL ELEITORAL DE MINAS GERAIS transformadora das estruturas de dominação social e política, é natural que a inclinação se estabeleça em prol da se gunda alternativa aventada. De acordo, portanto, com o conceito de domicílio eleitoral aqui adotado, o recorrente não possui vínculo domiciliar com o município de Guaraciama/MG. Ante o exposto, o MINISTÉRIO PÚBLICO ELEITORAL , por intermédio da PROCURADORIA REGIONAL ELEITORAL , se manifesta pelo não provimento do recurso. Belo Horizonte, 04 de julho de 2012. Eduardo Morato Fonseca Procurador Regional Eleitoral 9