Estudo Da Selecao Vocabular - Português - tarciana

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Estudo da Seleção Vocabular
Todo usuário da língua possui a chave que lhe dá acesso ao mundo das palavras. A capacidade
da linguagem humana é essa chave. Quando criança, o falante, de modo bastante natural,
principia a utilizar o valioso instrumento da linguagem. Enquanto tímido aprendiz de palavras
reproduz muito e cria pouco. Porém, seguindo um caminho irretornável, não mais necessita
de que lhe digam o que falar como falar. Já se sente perfeitamente capaz de seguir sozinho.
Sente-se seguro do conhecimento que possui, do acervo vocabular de que dispõe. O uso que
fazemos desse acervo vocabular é determinado pelas situações que vivenciamos.
Dessa forma, em um dado contexto, a seleção vocabular da qual lançaremos mão para
produzir um texto deverá estar de acordo com o sentido que queremos dar à nossa
mensagem. Então, não nos causa espanto que o nosso aluno/usuário da língua queira manterse fiel ao seu texto, reproduzindo na escrita aquilo que pensou e disse. Mesmo que esse texto
passe a ser “condenado” por não se ajustar aos padrões impostos pelas gramáticas
normativas. Parece-lhe que, ao mexerem no seu texto, estão retirando o seu direito de ser
autêntico.
O pessoal fizeram muita bagunça na sala, professora!
A gente gostamos de aula vaga.
É perfeitamente compreensível que tais construções sejam usadas pelo falante/escritor, uma
vez que ele não quer deixar dúvidas de que está referindo-se a um grupo de várias pessoas.
No seu entender, o verbo no singular soa de forma estranha, não condiz com a verdade que
ele quer expressar.
Sobre o papel do sentido nas relações entre as palavras, afirma Guiraud (1972, p. 26-27):
O sentido, tal como nos é comunicado no discurso, depende das relações da palavra com as outras palavras do contexto, e
tais relações são determinadas pela estrutura do sistema lingüístico.
À estrutura do sistema lingüístico chamamos gramática internalizada por cada indivíduo, o
mesmo que conhecimento implícito da língua, conforme Perini (2000, p. 12.). Por saber
empregá-la, o falante faz as relações que deseja com as palavras escolhidas de seu léxico,
de forma que molda seu texto para este atenda às suas intenções. A disposição em que coloca
as palavras valoriza o significado delas. Wittgenstein (apud Rector, 1980, p. 53.) corrobora
esta idéia ao “constatar que as palavras só significam na medida em que estão num contexto
interativo, isto é, como se seu valor variasse em função de sua disposição face às demais”.
A interação da palavra com o contexto revela-se no discurso, pois é nele “que se manifestam
estas relações da linguagem, visto que o discurso é o lugar de encontro do significante e do
significado e o lugar das distorções da comunicação que ocorrem devido à liberdade da
comunicação.” (Rector, 1980, p. 130.)
O falante não deseja perder a liberdade de comunicar-se, de colocar no ato de comunicação
do qual faz parte sua marca pessoal. Atentemos aqui para a questão do estilo próprio. Uma
entonação diferente, uma determinada flexão de grau, uma intencional ausência de flexão de
número são exemplos de marcas pessoais que ocorrem na fala e que naturalmente se
concretizam na escrita.
AMIGO 1: - Comprei um estojo ‘manero’. Custou só dois ‘real’!
AMIGO 2: - Também, você é filhote de loja de um e noventa e nove!
Há tendência, por parte do falante de língua portuguesa, a reduzir ditongos em simples
vogais, conforme atesta Coutinho em sua “Gramática Histórica (COUTINHO, p. 108.). Assim,
para o usuário da língua, é perfeitamente correto falar “manero” em vez de “maneiro”. Tal
tendência acaba por ser explicitada na escrita por influência da oralidade. Se ninguém
praticamente fala “manteiga”, conseqüentemente estaremos diante da palavra “mantega” nas
redações de nossos alunos.
Quanto à questão da ausência de flexão de número da palavra “real”, temos aqui duas
colocações. Por um lado, poderíamos considerar a expressão “dois real” apenas um caso de
erro de concordância; por outro lado, estaríamos diante de uma seleção vocabular empregada
para expressar, por exemplo, esperteza de quem compra um bom produto por um pequeno
preço.
Em nossa literatura, há muitos exemplos em que a seleção vocabular aliada à linguagem oral,
só para determo-nos em assuntos objetos de nosso estudo, produzem obras originalíssimas.
Citemos, para ilustrar, Mário de Andrade com “Macunaíma” (texto em prosa) e Oswald de
Andrade com o texto em verso que vai transcrito a seguir:
brasil
O Zé Pereira chegou de caravela
E preguntou pro guarani da mata virgem
- Sois cristão?
- Não. Sou bravo, sou forte, sou filho da Morte
Teterê tetê Quizá Quizá Quecê!
Lá longe a onça resmungava Uu! ua! uu!
O negro zonzo saído da fornalha
Tomou a palavra e respondeu
- Sim pela graça de Deus
Canhem Babá Canhem Babá Cum Cum!
E fizeram o Carnaval.
(Andrade apud Cereja & Magalhães, 1995, p. 312.)
Para o falante/usuário da língua o que conta é a praticidade. Se na linguagem oral, ele dispõe
de tanta liberdade para comunicar-se, por que não fazer uso dessa liberdade também na
escrita? Não queremos dizer com isso que devemos abolir, no ensino da língua, as regras que
estruturam nosso sistema lingüístico, mas que precisamos adaptá-las à realidade do falante.
Por que não acompanhar na escrita a dinamicidade da língua?
Concluindo, o ensino da língua pode contribuir para que o nosso aluno (falante competente
da língua materna) aproprie-se de conhecimentos que permitam que ele não apenas chegue
perto e contemple as palavras, mas que faça bom uso da chave que possui para que não dê
respostas pobres ou terríveis às perguntas que lhe forem feitas.
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