Constipação intestinal: terapêutica

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Constipação intestinal: terapêutica
Dra. Elisa de Carvalho
I. Introdução
A constipação intestinal, apesar de ser considerada mais um sintoma do que
uma doença, pode se associar a importantes problemas a longo prazo, com impacto
negativo na qualidade de vida do paciente e na dinâmica familiar.
Tem alta prevalência na população pediátrica, acometendo 2 a 30% das
crianças. No Brasil, estudos realizados em ambulatórios de pediatria, creches,
comunidades e centros de saúde, demonstraram prevalências que variaram entre 15%
a 38%. Em consultórios de Gastroenterologia Pediátrica é uma das três queixas mais
freqüentes, juntamente com a dor abdominal e o refluxo gastroesofágico. Assim, a
constipação intestinal é responsável por um grande número de consultas (com
pediatras e especialistas), internações e uso de laxantes, o que representa um alto
custo econômico para a sociedade.
Do ponto de vista etiológico, a constipação intestinal crônica pode ser
decorrente de alterações funcionais ou orgânicas, como descrito na Tabela 1. O início
precoce (< 03 meses de idade) ou durante aleitamento materno exclusivo, o
comprometimento do estado nutricional e a presença de outros sinais e/ou sintomas,
descritos na Tabela 2, sugerem a possibilidade de causas orgânicas. No período
neonatal, o diagnóstico diferencial deve ser feito com a doença de Hirschsprung, o íleo
meconial, as atresias intestinais e as más formações anorretais. Além disso, o
diagnóstico de alergia à proteína do leite de vaca deve ser considerado em lactentes
que apresentam choro, irritabilidade, distensão abdominal, diarréia ou constipação,
insuficiência do crescimento, vômitos e/ou recusa alimentar. Entram Tabelas 1 e 2.
A constipação intestinal crônica funcional (CICF) é responsável pela maioria
dos casos de constipação crônica e pode induzir o desenvolvimento de complicações,
que contribuem para a persistência e a progressão da constipação. Com a retenção
fecal progressiva, as crianças podem apresentar irritabilidade, saciedade precoce,
anorexia, distensão abdominal e cólicas. Com a evolução do quadro, se instalam
complicações, como o escape fecal.
Assim, pela sua importância em relação à alta prevalência e à morbidade com
a qual pode se associar, esta publicação tem como objetivo abordar o tratamento da
CICF. Para melhor compreensão da terapêutica recomendada, é importante o
entendimento dos conceitos relacionados à definição e à fisiopatologia da CICF.
II. Definição
A constipação intestinal é caracterizada pela eliminação de fezes endurecidas,
em cíbalos, seixos ou cilíndricas com rachaduras; dificuldade ou dor para evacuar;
eliminação de fezes calibrosas, que entopem o vaso sanitário; e/ou freqüência de
evacuações inferior a 3 vezes por semana (exceto em recém-nascidos e lactentes em
aleitamento natural exclusivo). As crianças maiores e os adolescentes podem referir
sensação de esvaziamento retal incompleto após as evacuações. Recentemente,
procurando aumentar a especificidade e a precocidade do diagnóstico da CICF, um
grupo de trabalho internacional, elaborou os critérios diagnósticos de Roma III (2006)
para a constipação funcional na população pediátrica, conforme a faixa etária. Estes
critérios estabeleceram que o diagnóstico da constipação funcional nos recémnascidos, lactentes e pré-escolares (crianças até 4 anos), baseia-se na presença de
dois ou mais dos aspectos descritos a seguir, presentes por pelo menos 01 mês antes
do diagnóstico:
- Duas ou menos evacuações por semana.
- Pelo menos um episódio semanal de incontinência fecal, após a aquisição do
controle do esfíncter anal.
- História de retenção fecal.
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Relatos de evacuações dolorosas ou de dificuldade para evacuar.
Presença de grande quantidade de fezes no reto.
Eliminação de fezes de grande volume, que podem obstruir o vaso sanitário.
Nos pré-escolares, escolares e adolescentes (crianças maiores de 4 anos),
dois ou mais dos critérios descritos, devem estar presentes por pelo menos uma vez
por semana, por um mínimo de 2 meses.
A incontinência fecal por retenção, muitas vezes denominada escape fecal ou
“soiling”, ocorre naqueles pacientes com constipação e impactação (retenção) fecal e
consiste na eliminação de fezes nas vestes, de modo involuntário. Deve-se enfatizar
que o escape fecal é facilmente caracterizado após o quarto ano de vida, isto é, após
a aquisição do controle do esfíncter anal. Nas crianças menores, esta condição pode
ser reconhecida, quando o controle do esfíncter anal ocorreu antes da constipação.
-
III. Fisiopatologia
A compreensão da anatomia da região anorretal e da fisiologia da defecação é
fundamental para o entendimento da continência fecal, da constipação intestinal e de
sua terapêutica. O ato de evacuar depende do funcionamento adequado e
sincronizado da motilidade intestinal (peristalse) e dos esfíncteres interno e externo
que envolvem o ânus (musculatura pélvica). O primeiro esfíncter é um espessamento
da musculatura lisa circular do intestino e o segundo é constituído por musculatura
estriada, com controle voluntário.
Ao chegar à ampola retal, o bolo fecal dilata o reto e, conseqüentemente,
estimula receptores que determinam o relaxamento do esfíncter anal interno. Este
reflexo é conhecido como reflexo retoanal ou retoesfincteriano. Neste momento, ocorre
o relaxamento voluntário do esfíncter anal externo, permitindo a eliminação das fezes
ou, se o indivíduo encontra-se em local inapropriado para defecar, a contração,
também voluntária, deste esfíncter, pode adiar a evacuação. Nas crianças que ainda
não adquiriram o controle do esfíncter anal, a evacuação ocorrerá logo após a
chegada do bolo fecal no reto e a dilatação involuntária do esfíncter anal interno.
Quando as fezes não são eliminadas, ocorre um acúmulo destas no reto
(impactação fecal). Quanto mais tempo as fezes permanecem no cólon, mais água é
reabsorvida, o que torna as fezes mais endurecidas e calibrosas, e as evacuações
mais dolorosas. Se o paciente não recebe o tratamento adequado, um ciclo vicioso
pode se instalar: a eliminação dolorosa de fezes duras e grossas estimula o
comportamento de retenção fecal e a inibição da defecação, por meio da contração
voluntária do esfíncter anal externo e do assoalho pélvico (anismo). A persistência
deste quadro pode ocasionar aumento progressivo do calibre do reto e do cólon
(megarreto e megacólon funcionais), bem como a diminuição gradual da sensibilidade
retal e alteração da motilidade intestinal. A progressão deste processo relaciona-se à
diminuição da vontade de defecar e à incontinência fecal por retenção (escape fecal),
como descrito na Figura 1. O tratamento efetivo, dependendo da gravidade destas
alterações, pode reverter estas situações. Entra Figura 1
IV. Tratamento
Nos últimos anos vem ocorrendo uma transformação no tratamento da
constipação intestinal na criança, especialmente, na desimpactação fecal (do uso de
remoção manual, supositórios e enemas; pela desimpactação via oral, com laxantes
osmóticos). De modo geral, o tratamento da CICF depende da idade do paciente e da
gravidade da constipação, compreendendo 03 fases:
 Esclarecimentos aos pais e desmistificação de alguns conceitos
 Desimpactação fecal
 Terapia de manutenção
- Orientações dietéticas e de hábitos de vida
- Uso de laxantes
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Esclarecimentos aos pais e desmistificação de alguns conceitos
A participação adequada dos pais e dos outros cuidadores é fundamental para
o sucesso do tratamento. Para tal, é necessário que eles compreendam que:
- As fezes precisam tornar-se macias e as evacuações não dolorosas, para que
o paciente perca o medo de evacuar e a postura de retenção fecal.
- Para tal, no início do tratamento, em geral, é necessária uma dose alta de
laxantes. Com a melhora gradual do paciente, esta dose inicial é ajustada, até que
seja alcançada a dose mínima necessária para o paciente (dose de manutenção).
- A suspensão dos laxantes deve ser gradual. A desobediência a esta norma é
causa freqüente de reimpactação e recidiva do quadro de constipação.
- Medidas coercitivas não podem ser utilizadas com a criança, que não pode
ser punida pelos acidentes (escapes fecais). Pelo contrário, ela deve ser
compreendida e, em alguns casos, pode ser necessária a avaliação psicológica, pois
mesmo que os fatores emocionais não tenham sido a causa inicial da constipação
intestinal, o desconforto, as situações constrangedoras relacionadas ao escape fecal,
os sentimentos de fragilidade e inferioridade que muitas vezes estes pacientes
apresentam, exigem esta abordagem como parte integrante do tratamento.
Ademais, como o tratamento da constipação crônica funcional com escape
fecal e/ou outras complicações é, em geral, longo, necessitando de terapia de
manutenção por cerca de 6 a 24 meses, os pais, comumente, se preocupam com o
uso crônico dos laxantes e com a possibilidade da criança ficar “dependente” destas
medicações para evacuar. Neste contexto, é importante esclarecer que os laxantes
utilizados são seguros, mesmo por vários meses, e que o risco de “dependência” é
maior se a criança não for medicada, pois quanto mais tempo ela permanecer
constipada, maior a possibilidade de evolução para megarreto e outras complicações.
Com o tratamento efetivo da constipação, espera-se: regressão progressiva da
distensão do reto e do cólon, recondicionamento do hábito intestinal, restabelecimento
do reflexo da evacuação, bem como a recuperação da confiança e da autoestima da
criança e do adolescente.
Desimpactação fecal
Quando existe retenção fecal, fecaloma, megarreto e/ou escape fecal, o
primeiro passo é promover a desimpactação, isto é, a completa eliminação das fezes
impactadas. Esta é uma etapa essencial para o sucesso do tratamento. Se este
objetivo não for alcançado, é alta a possibilidade de falha terapêutica.
O esvaziamento retal e o colônico podem ser promovidos por via oral ou retal.
Este último, por meio de enemas de soluções fosfatadas, sorbitol, glicerina ou
vaselina, especificados na Tabela 3, por cerca de dois a quatro dias. O uso de enemas
aumenta o risco de traumas mecânicos à parede retal e de problemas emocionais.
Além disso, os enemas fosfatados podem ocasionar episódios graves e letais de
hiperfosfatemia e hipocalcemia, especialmente em nefropatas e nos pacientes com
doença de Hirschsprung. Entra Tabela 3.
A desimpactação por via oral é uma tendência atual, por evitar manipulações
dolorosas em pacientes que já apresentam medo de evacuar. Podem ser utilizadas
doses elevadas de óleo mineral e polietilenoglicol (PEG), descritas na Tabela 3. Vale
enfatizar que o óleo mineral pode ocasionar pneumonia lipoídica, se aspirado, não
sendo recomendado em crianças menores que dois anos, neuropatas e portadores de
refluxo gastroesofágico.
Apesar de haver variações entre as condutas médicas, atualmente, tem se
difundido rapidamente o uso do polietilenoglicol, tanto para a desimpactação, quanto
para a terapia de manutenção. A água é responsável por cerca de 75 a 80% do peso
das fezes e uma diferença de apenas 10% na hidratação das fezes pode resultar em
importante alteração na consistência destas. O PEG tem alto peso molecular, é um
polímero solúvel em água e tem a capacidade de formar pontes de hidrogênio com
100 moléculas de água por molécula de PEG. Assim, quando administrado via oral, a
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hidratação do conteúdo colônico facilita o trânsito intestinal e promove uma defecação
indolor.
Terapia de manutenção
Orientações dietéticas e de hábitos de vida
Nos pacientes com constipação leve e sem complicações associadas,
recomenda-se modificações na dieta, corrigindo os erros alimentares, se presentes, e
proporcionando uma alimentação saudável, com bom aporte de
líquidos e dos
alimentos ricos em fibras. Nos lactentes em uso de alimentação artificial deve-se
avaliar a possibilidade de constipação decorrente de alergia alimentar, mais
freqüentemente à proteína do leite de vaca, e a necessidade de teste terapêutico com
dietas hipoalergênicas. Nas crianças maiores, deve-se estimular e aumentar o
consumo de leguminosas (feijão, ervilha, lentilha e grão de bico), milho, pipoca, coco,
verduras, frutas (com casca e bagaço) e o farelo de trigo.
Quanto aos hábitos de vida, deve-se estimular as atividades físicas, não adiar
as evacuações e recondicionar o hábito intestinal. Neste contexto, as crianças são
estimuladas a permanecerem sentadas no vaso sanitário, com apoio fixo para os pés,
após as principais refeições, aproveitando o reflexo gastrocólico. Para as crianças em
treinamento esfincteriano, recomenda-se a interrupção deste treinamento, até que o
paciente apresente melhora da constipação.
Em torno de 25% dos casos de constipação, em geral as crianças maiores de
02 anos, com constipação leve e sem complicações, evoluem bem apenas com estas
orientações. Quando estas medidas falham, em geral nos pacientes com CICF de
maior gravidade ou associada a complicações, deve-se associar à estas orientações,
o tratamento farmacológico, que inclui o uso de laxantes.
Uso de laxantes
O tratamento farmacológico de manutenção baseia-se no uso de laxantes,
como o óleo mineral, o leite de magnésia, a lactulose e o polietilenoglicol (Tabela 4). O
óleo mineral, um laxante emoliente, não deve ser utilizado antes dos dois anos de
idade, pelo risco de aspiração, já mencionado. Nos casos de recusa por parte do
paciente, lembramos que a refrigeração melhora o paladar. A perda anal de óleo
limpo indica dose excessiva deste medicamento.
Dos laxantes osmóticos, o hidróxido de magnésia pode ocasionar intoxicação
em lactentes, caracterizada por hipermagnesemia, hipofosfatemia e hipocalcemia
secundária. Este laxante não deve ser utilizado nos pacientes com insuficiência renal.
A lactulose, um dissacarídeo sintético, é bem tolerado por longo prazo, mas pode
desencadear flatulência e cólicas. Seu uso em doses elevadas pode provocar
hipernatremia. O polietilenoglicol tem apresentação com e sem eletrólitos. A
apresentação sem eletrólitos tem melhor aceitação pelo paciente, por não ter sabor.
Entra Tabela 4.
V. Considerações finais
A constipação intestinal crônica funcional tem alta prevalência em crianças e
adolescentes, pode associar-se a complicações, com impacto negativo na qualidade
de vida do paciente e de sua família; bem como econômico. Assim, a prevenção é tão
importante quanto o tratamento, o que pode ser feito com as medidas descritas a
seguir:
- Estimular o aleitamento materno.
- Garantir uma alimentação saudável, com bom aporte de água e fibras.
- Evitar o treinamento esfincteriano precoce e/ou coercitivo.
- Orientar que não se deve coibir ou adiar a defecação.
- Estimular a defecação após as refeições (reflexo gastrocólico).
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Tabela 1 - Causas de constipação intestinal crônica em pediatria
Constipação crônica funcional
Causas orgânicas
Doenças do trato digestório
Aganglionose adquirida
Aganglionose congênita (doença de Hirschsprung)
Alergia alimentar
Ânus anteriorizado
Ânus ectópico anterior
Ânus imperfurado
Doença celíaca
Estenose anal
Fibrose cística
Má formação anorretal
Pseudo-obstrução intestinal
Doenças endócrinas e metabólicas
Diabetes melito e insipidus
Hipercalcemia
Hipocalemia
Hipotiroidismo
Doenças neurológicas
Anormalidades da medula espinhal
Encefalopatia crônica
Uso de fármacos
Antiácidos
Anticolinérgicos
Codeína
Sais de ferro
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Tabela 2 – Sinais de alarme nos quadros de constipação intestinal
Hábito intestinal anormal ao nascimento
Insuficiência do crescimento
Distensão abdominal
Vômitos
Malformações lombo-sacrais e/ou perineais
Ânus anteriorizado
Sangue nas fezes ou retal
Fezes explosivas ao toque retal
Neuropatia
Atrofia glútea
Erros alimentares
Alergia alimentar
Anorexia (pode
ser por infecção)
Fissura
anal
Aspectos
emocionais
Outras causas de
constipação
Evacuação
dolorosa
Medo de
evacuar
Fezes mais duras e
calibrosas.
Retenção
fecal
Figura 1 - Fisiopatologia da CICF: ciclo vicioso estimulando a retenção fecal.
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