« continuando da parte 5 Não seja escravo do seu passado. Mergulhe em mares grandiosos, vá bem fundo e nade até bem longe, e voltará com respeito por si mesmo, com um novo vigor, com uma experiência a mais que explicará e superará a anterior. (Ralph Waldo Emerson) Pensamentos libertos Era uma manhã mais fria que o habitual de Janeiro de 2008, e Idoya, uma macaquinha de não mais que 5,5kg e 80cm de altura, era o primata no centro das atenções de um enorme grupo de outros primatas espremidos num laboratório da Universidade de Duke, em Durham (Carolina do Norte/EUA). Com fotógrafos e repórteres do New York Times documentando cada momento da preparação, Idoya foi gentilmente colocada pelos pesquisadores numa esteira hidráulica. Vários cabos conectavam neurochips implantados meses antes em seu cérebro a um eletroencefalograma e inúmeros computadores. Na parede imediatamente a sua frente, a simpática macaquinha já podia ver imagens de alta definição das pernas de um CB-1, um robô humanoide de 90kg e 1,5m suspenso no ar em um outro laboratório científico do outro lado do planeta – mais precisamente em Kyoto (Japão). Era um momento histórico, ou pelo menos era o que torcia Miguel Nicolelis, neurocientista brasileiro pioneiro nos estudos mais aprofundados das interfaces cérebro máquina (ICMs). Nas últimas décadas, Nicolelis havia passado por um longo e penoso caminho, bem ao modo dos grandes pioneiros da ciência: com muitos e muitos erros, muitas e muitas tentativas, e apenas alguns acertos aqui e ali... Mas, felizmente, a qualidade dos acertos suplantou em muito a quantidade de erros; e naquele dia, se tudo corresse bem, todos presenciariam um “pequeno milagre” ocorrer diante de seus olhos. A esteira começou a rodar, e Idoya prontamente começou a caminhar. Não se tratava de trabalho escravo: a macaquinha adorava caminhar um pouco, pois sabia que os outros primatas sempre a recompensavam com deliciosas uvas-passas e biscoitos, de modo que nem os flashes dos fotógrafos a deixaram tímida naquele dia. Nos computadores, um programa de computador com um algoritmo especialmente criado para tal experiência começava a extrair os comandos motores específicos do movimento das pernas de Idoya, filtrados de uma verdadeira avalanche cerebral. Em Kyoto, o CB-1 começava a caminhar em pleno ar, seguindo os comandos elétricos do cérebro da macaquinha, que precisavam atravessar o planeta até o Japão e retornar como um feedback visual em cerca de 250ms (pois as reações conscientes operam numa janela de até meio segundo, ou 500ms). Mas isso não era tudo. Chegava a vez da simpática macaquinha fazer o seu “pequeno passeio pela lua” (a little moonwalk), uma alusão de Nicolelis a importância do experimento – um pequeno passo para Idoya, um grande passo para todos os primatas... “Ao meu sinal, desligue a esteira... Ok, agora!” Enquanto a esteira parava, fazendo com que a macaquinha assumisse uma postura semiereta e imóvel, todos os primatas em Durham fixaram os olhos no monitor que exibia o robô em Kyoto. Até Idoya parecia intrigada, pois continuou a olhar atentamente para as imagens à sua frente. Talvez ela realmente quisesse provar algo, pois tudo o que puderam observar do Japão era aquele distinto robô humanoide andando e andando, suspenso no ar, seguindo as instruções detalhadas que continuavam a brotar de algum canto do cérebro de Idoya. Conforme o próprio Nicolelis relatou em seu livro [1]: “Cada passo finamente esculpido, apenas algumas centenas de milisegundos antes, pelo sopro de vida elétrico que emergia, quase como presente divino, de um radiante, embora agora liberto, cérebro de primata.” Até os primeiros dias do século 21, o mero fato de pessoas conseguirem se comunicar instantaneamente por todo o globo, através de chats na Web, já parecia um grande avanço tecnológico. Algumas mentes afortunadas já podiam mesmo antever o advento dos smartphones, dos tablets, dos chats por vídeo, da TV on demand, etc. Porém, eram poucos, pouquíssimos, que já no início deste século puderam vislumbrar uma era onde nossa tecnologia permitirá que comandemos computadores microscópicos embutidos em todo o tipo de equipamento, automóvel ou eletrodoméstico, e até mesmo dentro de nosso próprio corpo, sem que seja necessário mover um dedo, um único músculo! Com o avanço das ICMs, os computadores poderão ler o baile elétrico que ocorre em nosso cérebro quando “imaginamos um movimento”, ainda que este movimento nem chegue a ser executado por membros e músculos de nosso corpo. De fato, com um entendimento mais completo de como funciona o nosso cérebro, talvez seja possível uma interface ainda mais direta, onde a separação entre o corpo e o dispositivo que ele “pilota” deixe de ser clara. O nosso “cérebro liberto” poderia, desta forma, incorporar (literalmente) em robôs exploradores das fossas submarinas deste planeta, ou do solo avermelhado de Marte. Mas, para a maior parte de nós, o mais provável é que passemos a viver, cada vez mais, imersos nos ambientes virtuais... De fato, talvez neste tempo o próprio termo – “virtual” – deixe de fazer qualquer sentido. Em seu livro, Nicolelis chamou a ideia de “brainet” (a Web do cérebro): “Nossa interação com sistemas operacionais e programas específicos de nossos computadores pessoais se transformaria num claro exemplo de simbiose virtual, uma vez que nossa atividade elétrica cerebral seria utilizada diretamente para capturar objetos virtuais e, eventualmente, utilizar um novo meio de comunicação, uma verdadeira rede cerebral, a “brainet”, como gosto de chamá-la, um considerável upgrade das redes sociais, que nos permitiria, literalmente, trocar ideias com milhões de outros cérebros navegantes. O fato de empresas como Intel, Google e Microsoft já terem criado suas divisões de interface cérebro-máquina indica claramente que esta ideia não é tão exótica quanto pode parecer à primeira vista. [...] No futuro, o que hoje soa como inimaginável se tornará rotina, pois o ser humano, com suas faculdades mentais amplificadas, certamente terá acesso a uma variedade de ambientes remotos e até mesmo inóspitos, através de emissários que tomarão o formato de ferramentas artificiais sofisticadas, robôs humanoides e até mesmo virtuais, todos controlados única e exclusivamente pelo pensamento de seu mestre.” Imaginem um cenário onde todo e qualquer pensamento irradiado por uma mente humana pode não somente influenciar, como ser influenciado por outro pensamento. Imaginem uma imensa rede de pensamentos interligados, se conectando e entrecruzando uns com os outros. Imaginem os pensamentos mais potentes, com maior penetração sobre as mentes alheias, lentamente galgando degraus numa “lista de tópicos” global. Imaginem um grupo enorme de mentes reunidas em torno dos pensamentos e sonhos mais celebrados, os alimentando e os tornando cada vez mais enraizados nos alicerces desta verdadeira teia global que, em verdade, une todas as consciências humanas... Imaginaram? Agora me digam, com sinceridade, será que estávamos imaginando algo que surgirá num futuro tecnológico, ou algo que não somente existe neste momento, como tem existido desde os primórdios da humanidade? Em seu livro A essência da realidade, o físico israelense David Deutsch afirma que “tudo o que experimentamos diretamente não passa de uma construção virtual, convenientemente gerada para nosso usufruto, por nossa mente inconsciente, a partir de dados sensoriais somados a complexas teorias adquiridas e congênitas sobre como interpretar novas informações”. Ora, se a vida sempre foi uma construção virtual, porque exatamente a “brainet” de Nicolelis seria algo essencialmente novo? Diferente, certamente – novidade, de forma alguma! Desde que nos reuníamos em torno da fogueira no centro da tribo, após mais um dia de caça extenuante, e ouvíamos as histórias dos homens e mulheres que contemplavam as estrelas e diziam se comunicar com espíritos, temos construído, em nossas mentes, em nossos mundos internos, reais ou virtuais (tanto faz), os sonhos mais iluminados, os pesadelos mais macabros, os mitos mais transcendentes. De lá para cá nossas lanças e machadinhas se tornaram ferramentas muitíssimo mais elaboradas, mas que continuam sendo tão somente ferramentas. Um computador, afinal, serve para computar, da mesma forma que uma machadinha serve para cortar – quem utiliza as ferramentas, quem esculpe e interpreta o mundo, real ou virtual (tanto faz), somos nós, os humanos, os que despertaram. Dessa forma, de nada adiantará nos deslumbramos com o avanço de nossa tecnologia, de nos conectarmos numa “brainet” global, se neste processo continuarmos a nos desconectar de nossa essência mais profunda, que aí sempre esteve a quem teve olhos para ver. Antes da Web, antes da teia global de computadores, nós já formávamos uma rede, e já estávamos conectados, como ainda estamos, a Alma de tudo o que há. *** [1] Fiz o que pude para resumir da melhor forma possível a descrição do experimento de Idoya conforme consta em Muito além do nosso eu (Cia. das Letras). Se quer um estudo mais minucioso (e abrangente) do assunto abordado, não deixe de ler a obra. O artigo ainda trará outros trechos do mesmo livro. Crédito da imagem: aaa