A retórica da moeda

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Grespan, Jorge. “A retórica da moeda”. São Paulo: Folha de São Paulo, 26 de novembro de 2000.
A retórica da moeda
JORGE GRESPAN
especial para a Folha
Se a inflação nos parece hoje coisa do passado, as armas com as quais ela vem sendo vencida são também
perigosas e merecedoras de cuidado. Nesse sentido, continua relevante e estratégico estudar a política
monetária, considerando seu impacto sobre o nível e a forma da atividade econômica, onde o mau uso de
seus instrumentos pode deixar terríveis seqüelas. É esse, já de início, um dos grandes méritos do livro de
Demian Fiocca, que reconstitui o debate recente sobre a oferta de moeda no círculo dos pós-keynesianos,
retomando a filiação deles aos textos do mestre nos anos 30. Que se compreenda bem o prefixo que
adjetiva a corrente dos economistas estudados: "pós" aqui não significa simplesmente terem eles escrito
depois de Keynes, indicando, muito mais, a sua oposição ao grupo atualmente majoritário e dominante nas
academias e governos. Esse grupo tenta conciliar o pensamento de Keynes com o anterior, justamente
criticado pelo economista inglês, elaborando uma "síntese" de caráter no mínimo duvidoso. Assim se
revela aquela que me parece ser a intenção profunda do livro e outro de seus grandes méritos, ao indicar
que o adversário principal do keynesianismo são as teorias monetaristas, sempre tão influentes entre os
(neo)liberais. Isso chega a ser o "Leitmotiv" do texto, despontando em passagens cruciais, como na
definição da obra de Keynes pelo objetivo de entender e lidar com as crises econômicas ou na engenhosa
apresentação das idéias de Kaldor e Minsky sobre a oferta de moeda.
Hábil aproximação
Mas o leitor não-especialista não deve desanimar diante da complexidade dessas questões e do necessário
rigor com que Fiocca as aborda. Seu livro tem um ritmo muito bom, começando com um tratamento
empírico de temas mais próximos do noticiário de economia e evoluindo apenas gradualmente a um nível
mais alto de abstração e sofisticação técnica.
Ao longo de seus capítulos, seguimos o autor na hábil aproximação entre as idéias de Keynes e dos póskeynesianos, demonstrando que, inclusive para o mestre, a oferta monetária não é determinada só pelos
Bancos Centrais, mas também pelos sistemas bancário e financeiro privados, que "endogenamente"
podem criar moeda.
O ponto é que variações no lado monetário afetam a atividade "real" da economia e que também variações
desse lado "real" afetam o lado monetário. Ambas as proposições não são aceitas pelos monetaristas.
E as consequências desse desacordo não são poucas. Fiocca enfatiza muito bem que as teses póskeynesianas, apesar de certa divergência recíproca, são unânimes em criticar a simplicidade com que o
monetarismo concebe a oferta de moeda e sua relação com a inflação. Como o sistema bancário privado
também cria moeda, então os Bancos Centrais devem controlar primeiramente o crédito, por meio da taxa
de juros, e não diretamente o estoque de moeda da economia pela prefixação de metas quantitativas. Essa
ênfase no crédito é fundamental, especialmente quando recordamos a importância dada por Keynes ao
componente especulativo nos períodos de expansão da economia, o que torna suas idéias, aliás,
extremamente atuais.
Mas, se o livro consegue mostrar que os Bancos Centrais são obrigados a atuar surpreendentemente de
modo keynesiano, resta confirmar bem o caso brasileiro: será que nossas autoridades monetárias apenas
usam uma retórica monetarista, num "cacoete infeliz" ou "concessão doutrinária", ou será que elas de fato
se aproximam do pensamento pré-keynesiano? Afinal, em nossas plagas o (neo)liberalismo avançou talvez
já demasiadamente. Esperamos, porém, que Fiocca tenha razão até nisso.
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