manipulacao_discurso_juridico

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Liberdade de religião, estado laico, autonomia universitária, princípio da igualdade: Uma
análise da posição do STF no Julgamento da ADI 2806-5.1
Flávia Moreira Guimarães Pessoa2
Dilson Cavalcanti Batista Neto3
SUMÁRIO
1. Introdução. 2. Análise Crítica do Discurso: Os estudos de Fairclough. 3. A Manipulação do
Discurso Jurídico. 4. Questões doutrinárias envolvidas na ADI 2806-5. 4.1. A liberdade de
religião enquanto princípio fundamental no Direito Brasileiro e o Estado laico. 4.2. A
autonomia universitária. 4.3. A Igualdade. 5. Liberdade de religião, estado laico, autonomia
universitária, princípio (postulado) da igualdade: Uma análise da posição do STF no
Julgamento da ADI 2806-5. 5.1. Considerações iniciais. 5.2. Apresentação do problema:
liberdade religiosa enquanto proteção a um dia de guarda e o Poder Judiciário. 5.3. Análise
Crítica da ADI 2806/RS. 5.3.1 Voto do Ministro Ilmar Galvão (Relator). 5.3.2 Voto do
Ministro Sepúlveda Pertence. 5.4. Existe neutralidade entre o Estado Brasileiro e a Igreja? 5.5
Soluções Possíveis. 6. Considerações Finais. 7. Referências bibliográficas.
RESUMO
O artigo aborda a existência de manipulação no discurso jurídico de uma forma ampla,
partindo do referencial teórico dos estudos de Fairclough sobre o tema, aprofundando valores
jurídicos como Liberdade Religiosa, Estado laico, Autonomia Universitária e Igualdade. De
forma específica, analisa o Acórdão exarado pelo Supremo Tribunal Federal nos autos da ADI
2806-5 que versa sobre a adequação das atividades do serviço público aos dias de guarda de
diferentes religiões.
O presente artigo foi elaborado no âmbito do grupo de pesquisa “Hermenêutica Constitucional Concretizadora
dos Direitos Fundamentais e Reflexos nas Relações Sociais”, projeto de pesquisa “Direitos fundamentais e
manipulação do discurso jurídico: uma análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e sua repercussão
na sociedade através dos meios de comunicação” da Universidade Federal de Sergipe.
2
Professora Adjunta da Universidade Federal de Sergipe, Juíza do Trabalho (TRT 20ª Região), Especialista em
Direito Processual pela UFSC, Mestre em Direito, Estado e Cidadania pela UGF, Doutora em Direito Público
pela UFBA, líder do grupo de pesquisa “Hermenêutica Constitucional Concretizadora dos Direitos Fundamentais
e Reflexos nas Relações Sociais” da Universidade Federal de Sergipe. Artigo elaborado com o apoio do PIBIC e
do PAIRD da Universidade Federal de Sergipe.
3
Acadêmico de Direito da Universidade Federal de Sergipe, bolsista do PIBIC, integrante do grupo de pesquisa
“Hermenêutica Constitucional Concretizadora dos Direitos Fundamentais e Reflexos nas Relações Sociais” da
Universidade Federal de Sergipe.
1
2
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo visa a proceder à avaliação, a luz dos estudos de análise crítica
do discurso, da posição do STF nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade 2806-5,
que trata da adequação das atividades do serviço público aos dias de guarda de diferentes
religiões. Para atingir o objetivo proposto, o artigo divide-se em quatro partes, sendo ao final
expostas as conclusões. Na primeira, é procedida a revisão bibliográfica dos estudos de
Fairclough sobre Análise Crítica do Discurso. Na segunda, é avaliada a manipulação do
discurso jurídico de uma forma ampla em todas as instâncias do Poder Judiciário. Na terceira,
abordadas as questões doutrinárias envolvidas, quais sejam: a liberdade religiosa enquanto
princípio fundamental no Direito Brasileiro e o estado laico, a autonomia universitária e o
princípio da igualdade. Na quarta, analisa-se criticamente o Acórdão proferido nos autos da
ADI 2806 pelo Supremo Tribunal Federal. Finalmente, são apontados os pontos principais do
texto.
2 ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO: OS ESTUDOS DE FAIRCLOUGH
Mister, inicialmente, para a adequada compreensão da manipulação do discurso
jurídico, frisar a relevância dos estudos de análise crítica do discurso 4, disciplina que se
interessa pela relação que há entre a linguagem e o poder, ocupando-se, fundamentalmente, de
análises que dão conta das relações de dominação, discriminação, poder e controle, na forma
como elas se manifestam através da linguagem (WODAK, 2003). Nessa perspectiva, a
linguagem é um meio de dominação e de força social, servindo para legitimar as relações de
poder estabelecidas institucionalmente.
As noções de crítica, ideologia e poder são conceitos básicos para a Análise
Crítica do Discurso. Entende-se a crítica, segundo Wodak (2003), como o resultado de certa
distância dos dados, considerados na perspectiva social e mediante uma atitude política e
centrada na autocrítica. Já ideologia é um termo utilizado para indicar o estabelecimento e
conservação de relações desiguais de poder. O poder “se refere às formas e aos processos
4
A partir da década de setenta, desenvolveu-se uma forma de análise do discurso e do texto que identificava o
papel da linguagem na estruturação das relações de poder na sociedade, o que se chamou de Análise do
Discurso. Já em 1990, devido aos estudos limitadores de algumas teorias em Análise do Discurso, surge a
Análise Crítica do Discurso, a qual se propõe a estudar a linguagem como prática social e, para tal, considera o
papel crucial do contexto (FAIRCLOUGH, 2001, p. 20).
3
sociais em cujo seio, e por cujo meio, circulam as formas simbólicas no mundo social”
(WODAK, 2003, p. 30). Por isso, a análise crítica do discurso indica, como um de seus
objetivos, a desmistificação dos discursos por meio da decifração da ideologia.
Fairclough, criador do termo Análise Crítica do Discurso, propõe sua teoria
através da operacionalização de teorias sociais na análise do discurso linguisticamente
orientada, a fim de compor um quadro teórico – metodológico adequado à perspectiva crítica
de linguagem como prática social. Para alcançar tal objetivo, a Análise Crítica do Discurso
assenta-se, inicialmente em uma visão científica de crítica social. Em segundo lugar, funda-se
no campo da pesquisa social crítica sobre a modernidade tardia. Por fim, sustenta-se na teoria
e na análise lingüística e semiótica. (RESENDE; RAMALHO, 2006, p. 23)
A primeira sustentação apontada justifica-se pelo fato de que a Análise do
Discurso Crítica é motivada pelo objetivo de prover base científica para um questionamento
crítico da vida social em termos políticos e morais, ou seja, em termos de justiça social e de
poder. Por outro lado, o enquadramento no campo da pesquisa social crítica sobre a
modernidade tardia resulta do interesse de aplicação da Análise do Discurso Crítica em
pesquisas que contemplam, direta ou indiretamente, investigações sobre discurso em práticas
sociais da modernidade tardia. Por fim, a sustentação na teoria e análise lingüística e
semiótica auxiliam a prática interpretativa e explanatória tanto a respeito de constrangimentos
sociais sobre o texto como de efeitos sociais desencadeados por sentidos de texto.
(RESENDE; RAMALHO, 2006, p. 23)
Fairchough (2001) propõe um modelo tridimensional de Análise de Discurso, que
compreende a análise do texto, da prática discursiva e da prática social, nessa ordem
encaminhados, partindo da análise do texto para a análise da prática social.
Assim, na análise do texto avalia-se, dentre outros, o vocabulário, gramática,
coesão e estrutura social. Em seguida, na análise da prática discursiva, avalia-se a produção,
distribuição, consumo, contexto, força, coerência e intertextualidade. Finalmente, na análise
da prática social, observa-se a ideologia, sentidos, pressuposições, metáforas, hegemonia,
orientações econômicas, políticas, culturais, ideológicas etc. (RESENDE; RAMALHO, 2006,
p. 23)
Por seu turno, as reflexões em Análise do Discurso Crítica sobre as características
da modernidade tardia fundam-se em Giddens (1991, p. 22) para quem modernidade tardia é a
fase atual de desenvolvimento das instituições modernas, marcada pela radicalização dos
traços básicos da modernidade, ou seja, a separação de tempo e espaço, mecanismos de
desencaixe e reflexividade institucional. Realmente, as instituições modernas apresentam
4
descontinuidades em relação a culturas e modos de vida pré-modernos, em decorrência de seu
dinamismo, grau de interferência nos costumes tradicionais e impacto global. A reflexividade
da vida social, por seu turno, refere-se à revisão intensa, por parte dos atores sociais, da
maioria dos aspectos da atividade social, a luz de novos conhecimentos gerados pelos
sistemas especialistas. sendo que boa parte desse conhecimento é veiculada pela mídia.
Assim, diferentemente da época anterior, a reflexividade foi “externalizada” na modernidade,
de forma que as informações de que os atores sociais se valem para a reflexividade vem “de
fora” (RESENDE; RAMALHO, 2006, p. 31).
Saliente-se, ademais, que embora a difusão dos produtos da mídia seja globalizada
na modernidade, a apropriação desses materiais simbólicos é localizada, ou seja, ocorre em
contextos específicos e por indivíduos especificamente localizados (RESENDE; RAMALHO,
2006, p. 32).
Assim, o conceito de reflexividade refere-se à possibilidade de os sujeitos
construírem ativamente suas auto-identidades, em construções reflexivas de sua atividade na
vida social. Por outro lado, identidades sociais são construídas e podem ser contestadas por
meio de classificações mantidas pelo discurso (RESENDE; RAMALHO, 2006, p. 32).
Vistos, assim, alguns conceitos básicos de Análise do Discurso Crítica, mister
analisar-se, no item seguinte, como ocorrem, de forma genérica, alguns casos de manipulação
no discurso jurídico.
3 A MANIPULAÇÃO NO DISCURSO JURÍDICO
O discurso jurídico tradicionalmente caracteriza-se pelo tecnicismo, presença da
linguagem arcaica e de latinismos, que, em geral, dificultam a produção de sentido pelos
interlocutores. Com efeito, desde cedo os estudantes, já no início do curso de Direito, são
adestrados e perdem o vínculo com a linguagem que antes possuíam e com que se
comunicavam. Tornam-se, assim, “profissionais do Direito” e produtores de um discurso,
propositadamente, inacessível (ASHIKAWA, 2004, p. 16).
Na vida prática dos operadores do direito, o distanciamento em relação à
linguagem comum é instrumental utilizado muitas vezes para disfarçar ou esconder o real
significado das afirmações. Com efeito, em audiências em que a parte comparece
pessoalmente, sem intermédio de um advogado, como por exemplo, em juizados especiais ou
na justiça do trabalho, muitas vezes são proferidas sentenças ou decisões interlocutórias em
5
linguagem hermética, que impossibilita ao autor ou réu compreender o conteúdo das decisões
exaradas.
Não bastasse a dificuldade de compreensão pelo leigo, outro problema
nitidamente presente é o da manipulação na transcrição de depoimentos. Assim, observa-se
grande distância da linguagem oral da colheita dos depoimentos, para aquela das transcrições.
Além da utilização de linguagem hermética e da manipulação discursiva presente
na transcrição de depoimentos, é muito importante ainda ressaltar, no âmbito de um estudo
sobre a manipulação presente no discurso jurídico, a questão da utilização de topoi aceitos
pela coletividade com o objetivo de conseguir adesão ao conteúdo do discurso.
Assim, pode-se facilmente notar em várias petições a referência aos “direitos
humanos”, ao “Estado Democrático de Direito”, às “prerrogativas dos advogados”, que
curiosamente são utilizados por ambas as partes com objetivos opostos.
É interessante notar, outrossim, a apropriação ou influência da mídia sobre o
discurso jurídico. Veja-se que cada vez mais as decisões judiciais são objeto de divulgação e
comentários especializados nos meios de comunicação, em especial aquelas que abordam
temas polêmicos e aquelas exaradas pela mais alta corte do país, o Supremo Tribunal Federal.
Dessa forma, decisões sobre aborto anencefálico, uniões homossexuais, intervenção do poder
judiciário em políticas públicas, por exemplo, foram objeto de intenso debate na mídia
nacional o que leva a observância de uma reflexividade retro-alimentada. Assim, a veiculação
pela mídia tanto toma por objeto as decisões judiciais, como também estimula a reflexividade
e a própria produção de novas decisões seguindo determinada ideologia.
Abordado, de um ponto de vista geral, a questão da manipulação do discurso
jurídico, passa-se, no tópico que segue a aprofundarem-se as questões jurídicas levantadas na
ADI 2806-5, para que assim, posteriormente num segundo momento, avalie-se o discurso
jurídico presente nesta decisão exarada pelo Supremo Tribunal Federal.
4 QUESTÕES DOUTRINÁRIAS ENVOLVIDAS NA ADI 2806-5
Para que se possa analisar uma decisão judicial, é preciso saber quais sãos as
questões jurídicas ali envolvidas, e qual é o conteúdo doutrinário das mesmas. Nos autos do
processo da ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) em análise, pode-se perceber que de
um lado encontra-se o direito fundamental à liberdade religiosa em detrimento do princípio da
iniciativa privativa do chefe do Executivo para dispor sobre regime jurídico de servidor
6
público, da autonomia universitária, do fato do Estado ser laico, e, finalmente, do princípio da
igualdade.
Deixaremos de abordar o princípio da iniciativa do chefe do Executivo por um
motivo simples: trata-se simplesmente de uma regra. Segundo Ávila (2008, p. 80), regras são
“normas imediatamente descritivas, [...], para cuja aplicação exigem a avaliação de
correspondência entre a construção conceitual de descrição normativa e a construção
conceitual dos fatos.” Ou seja, é uma norma que descreve um comportamento o qual deve ser
seguido invariavelmente, sob pena de ilegalidade.
As regras podem ser divididas em regras comportamentais e constitutivas. As
primeiras são normas em um ordenamento que descrevem condutas permitidas, obrigatórias e
proibidas. Já as constitutivas são aquelas que atribuem efeitos jurídicos a determinados atos,
fatos ou situações. Nesses últimos estão as atribuições de competência. (ÁVILA, 2008)
Por ter este caráter eminentemente descritivo e fechado, é de difícil constatação a
manipulação do discurso quando se trata de uma regra. Para tal fim, seria necessário analisar
criticamente o discurso normativo, e não o decisório, o que demandaria o estudo de outro
nível de produção discursiva, o que, evidentemente, não é objetivo aqui almejado5.
Já as outras normas envolvidas na ADI 2806-5 são princípios, ressalvando a
Igualdade que em si engloba o sentido de regra, princípio e postulado. O importante aqui é
saber que os princípios são normas jurídicas finalísticas, ou seja, propõem um fim, sendo que
este não precisa necessariamente ser alcançado, pois o fim instituído é o ponto de partida para
se procurar os meios necessários para sua consecução. E é justamente nessa busca que se
encontra em cenário fértil para a manipulação do discurso jurídico, fundamentando ideologias
em busca de hegemonia.
4.1 A liberdade religiosa enquanto princípio fundamental no Direito
Brasileiro e o Estado laico
A lei estadual 11.830 do Rio Grande do Sul (objeto da ADI 2806), buscava tutelar
a liberdade religiosa no que concerne a proteção do dia de guarda. Adiante, no momento da
análise da decisão, será explicitado o conteúdo da lei e do dia de guarda religioso. Cabe-nos,
agora, apresentar as bases da liberdade religiosa e do Estado laico.
Em sua obra na qual constrói as bases de uma semiótica jurídica, Eduardo Bittar (2008, p. 365) assevera que “o
discurso das práticas jurídicas (normativas, burocráticas, decisórias, científicas) demanda conhecimentos
específicos, formas de locução, técnicas de redação, estilos e medidas próprios.”
5
7
Uma primeira questão deve ser invocada antes da análise sobre a liberdade
religiosa: a diferença entre esta e a liberdade de consciência.
“A liberdade de consciência está prevista no art. 5º, VI6, da Constituição. Não se
esgota no aspecto religioso, mas nele encontra expressão concreta de marcado relevo.”
(MENDES; COELHO; BRANCO, 2009, p. 456). É justamente neste direito que abarca a
liberdade de religião, que o constituinte previu, no capítulo sobre as Forças Armadas, a
objeção de consciência7. Tal objeção não deve estar adstrita somente a questão militar. Já
foram registrados na jurisprudência espanhola pedidos de objeção em casos de realização de
abortos por parte de médicos, enfermeiros. (MENDES; COELHO; BRANCO, 2009).
A liberdade de consciência, além da religiosa, protege a manifestação de
convicção filosófica ou política por parte do cidadão. Já que o Estado Brasileiro tem como
fundamento o pluralismo (art. 1°, inciso V da CF/88), deve garantir que o indivíduo aja de
acordo com suas convicções.
Já a liberdade religiosa é um direito amplo e multifacetário. Podem-se encontrar
referências deste direito em várias ocasiões na Carta Magna8, sendo que o objetivo maior
deste direito é “prevenir tensões sociais, na medida em que, por ela, o pluralismo se instala e
se neutralizam os rancores e desavenças decorrentes do veto oficial a crenças quaisquer.”
(MENDES; COELHO; BRANCO, 2009, p. 463). Reconhecer tal liberdade é tomar a religião
como um bem importante para a formação do cidadão. Por isso a Constituição estipula meios
para que aqueles que seguem uma prática religiosa, o façam sem obstáculos.
A liberdade religiosa divide-se em três modalidades, segundo José Afonso da
Silva (2006): liberdade de crença, de culto e de organização religiosa.
Na primeira esta inserida a “liberdade de escolha da religião, a liberdade de aderir
a qualquer seita religiosa, a liberdade (ou direito) de mudar de religião, mas também
compreende a liberdade de não aderir à religião alguma”. (SILVA, 2006, p. 249) Na segunda,
Diz a Carta Magna de 1988: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre
exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias; [...]”
7
Art. 143, § 1°, da CF/88: “Art. 143. O serviço militar é obrigatório nos termos da lei. § 1º - às Forças Armadas
compete, na forma da lei, atribuir serviço alternativo aos que, em tempo de paz, após alistados, alegarem
imperativo de consciência, entendendo-se como tal o decorrente de crença religiosa e de convicção filosófica ou
política, para se eximirem de atividades de caráter essencialmente militar.”
8
Já no Preâmbulo se faz uma referência a Deus, o que já indica um princípio de diálogo com as religiões. Nos
Direitos e Deveres Individuais temos o art. 5º, incisos VI-VII. Na Organização do Estado: art. 19, I. No capítulo
sobre as forças armadas: serviço alternativo por motivo de objeção de consciência (art. 143 §1º), e isenção de
eclesiásticos (art. 143, §2º). No sistema Tributário Nacional estabelece uma limitação ao poder de tributar
(art.150, VI, b). Na ordem social (Título VIII): educação religiosa de matricula facultativa (art. 210, §1º),
recursos públicos podem ser repassados para escolas confessionais (art. 213, caput e inciso II). E no capítulo
sobre Família tem-se o efeito civil do casamento religioso (art. 226, §2º).
6
8
o intuito é proteger tal direito, pois a religiosidade não está em somente contemplar
interiormente o ser sagrado, mas em prestar-lhe culto público.
O importante a ser destacado nesta segunda modalidade, é justamente como se
poderia enxergar, no ponto de vista de uma Constituição pluralista, os cultos realizados em
espaços públicos. Permitir tal ato não seria privilegiar uma religião em detrimento das outras?
Não seria ferir o direito daqueles que preferem não ter religião? É claro que o Estado, em
virtude da vedação constitucional (art. 19, inciso I, da Carta Magna), não pode definir os
locais de culto. O que se quer destacar é que nesses casos, o direito exercido não é da
liberdade religiosa, mas o da liberdade de reunião. Por isso que, desde que observado o inciso
XVI9 do art. 5º, é permitido manifestação religiosa em espaço público.
A terceira liberdade é a de organização religiosa. Nesta, o caráter laico do Estado
se evidencia, pois é o conteúdo daquele direito fundamental de caráter negativo que
fundamenta a laicidade estatal. Ou seja, a liberdade de organização religiosa e o valor laico do
Estado têm o mesmo conteúdo jurídico.
Antes de apresentarmos o conteúdo desta terceira vertente da liberdade religiosa, é
importante trazer a lume a classificação de Silva Neto (2008) sobre as formas de relação entre
o Estado e a religião. São três: união, confusão, separação.
Na união, “nota-se clara preferência da sociedade política por um dado segmento
religioso, tal como ocorreu com a Constituição Imperial brasileira de 1824 e como se sucede
na atualidade com inúmeras constituições estrangeiras.” (SILVA NETO, 2008, p. 35) Nesta
situação, a norma constitucional, invariavelmente, traduz a preferência estatal por
determinada religião.
Quando há a confusão, “não se sabe onde começa o Estado e termina a Igreja ou
vice-versa, porque a autoridade estatal se confunde com a autoridade eclesiástica” (IBDEM,
p. 36). Neste caso, a organização religiosa é o próprio Estado. Não há uma opção em seguir
ou não os comandos de uma religião, pois esta é quem dita as normas civis. A título de
exemplo, temos alguns países do oriente, como o Irã, e o próprio Vaticano.
Finalmente, temos a separação. No mundo ocidental, esta é a maneira mais
comum de relacionamento entre o Estado e as religiões, principalmente porque a postura laica
do Estado pós-moderno está conformada pelo princípio democrático-republicano, “a partir do
Art. 5º, inciso XVI da CF/88: “XVI - todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao
público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para
o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”
9
9
qual podem ser extraídas conseqüências de relevo, como a impossibilidade de uma sociedade
política seguir, prestigiar ou subvencionar facção religiosa.” (SILVA NETO, 2008, p. 36)
O Estado brasileiro nem sempre foi laico. A Constituição Política do Império
estabelecia que a Religião Católica Apostólica Romana era a Religião do Império (art. 5º),
“com todas as conseqüências derivantes dessa qualidade de Estado confessional, tais como a
de que as demais religiões seriam simplesmente toleradas, a de que o Imperador, antes de ser
aclamado, teria que jurar manter aquela religião (art. 103)”. (SILVA, 2006, p. 251).
Antes da constitucionalização de um novo regime, Ruy Barbosa redigiu o Decreto
119-A/1890, estabelecendo a liberdade religiosa e a separação da igreja e do Estado.
“Assim o Estado Brasileiro se tornou laico, admitindo e respeitando todas as vocações
religiosas. O Decreto 119-A reconheceu personalidade jurídica a todas igrejas e confissões
religiosas.” (SILVA, 2006, p. 251). O art. 113, item 5º, da Constituição de 1934 instituiu que
as que as associações religiosas adquiririam personalidade jurídica nos termos da lei civil. As
bases continuaram nas constituições posteriores até a vigente, havendo, portanto, mudanças
pontuais.
Weingartner Neto (2007)10, representa o conteúdo da laicidade do Estado,
conseqüentemente da liberdade de organização religiosa, em cinco princípios. São eles os
princípios da separação, da não-confessionalidade, da cooperação, da solidariedade e o da
tolerância.
O princípio da separação “firma que as igrejas e confissões religiosas estão
separadas da estrutura e da organização político-administrativa do Estado, e são, portanto,
livres na sua organização e no exercício de suas funções de culto.” (WEINGARTNER NETO,
2007, p. 75) Esta posição, porém, não impede que o Estado laico estabeleça relações
diplomáticas com um Estado no qual haja uma relação com de confusão com uma
determinada religião, como visto acima, “porque aí ocorre relação de direito internacional entre
dois Estados soberanos, não de dependência ou de aliança, que não pode ser feita”. (SILVA, 2006, p.
252)
A não-confessionalidade tem como fundamento a não adoção por parte do Estado
de qualquer religião (é vedado que estabeleça cultos religiosos ou igrejas). Não pode este se
10
Em sua obra “Liberdade Religiosa na Constituição”, o autor formata um Catálogo de Posições
Jusfundamentais com a finalidade “concretizar o direito fundamental à liberdade religiosa com apelo às
realidades da vida vincadas pelo fenômeno religioso.” (WEINGARTNER NETO, 2007, p. 77) Além das aqui
apresentadas, o autor levanta mais de oitenta posições jusfundamentais sobre as mais diversas áreas da liberdade
religiosa.
10
pronunciar sobre questões religiosas, “o que exclui subvencionar, embaraçar o funcionamento
ou manter com as confissões religiosas relações de dependência ou aliança”.
(WEINGARTNER NETO, 2007, p. 75) Tal princípio deve ser observado nos atos oficiais e
protocolos do Estado. Malgrado haver previsão constitucional sobre educação religiosa de
matricula facultativa (art. 210, §1º da CF/88), “o Estado não pode programar a educação e a
cultura segundo quaisquer diretrizes religiosas; o ensino público não pode ser confessional.”
(IBDEM, p. 75)
O princípio da cooperação tem como essência a colaboração de interesse público,
vale dizer, o Estado cooperará com as igrejas e confissões religiosas, principalmente para a
promoção dos princípios de direitos e garantias fundamentais, dentre elas, as que estão
diversos incisos da CF, como a prestação da assistência religiosa. Neste princípio, destaca-se
a defesa que o Estado deve “criar condições organizacionais e procedimentais, no âmbito
laboral e educacional, para o mais amplo exercício do direito de dispensa ao trabalho e de
aulas/provas por motivo religioso”. (WEINGARTNER NETO, 2007, p. 76)
No princípio da solidariedade está inserido o fomento das atividades educativas e
assistenciais das confissões religiosas, por meio da limitação do poder estatal de tributar,
“especificamente vedando impostos sobre o patrimônio, renda ou serviços, desde que sem fins
lucrativos e relacionados com as atividades essenciais das respectivas confissões.” (IBDEM,
p. 76) Tal limite tributário tem a finalidade de evitar a criação de embaraços à atividade
religiosa. Ressalve-se que a imunidade se refere a impostos, e não a contribuições sindicais.
Mas a imunidade alcança toda espécie de impostos. (MENDES; COELHO; BRANCO, 2009,
p. 456)
Ainda sobre a supracitada limitação, esta deve abranger não somente os prédios
destinados a culto, mas, também, o patrimônio, a renda e os serviços relacionados com as
finalidades essenciais das entidades nelas mencionadas. “A imunidade deve dizer respeito a
culto religioso. Seitas que não tenham natureza religiosa devem ser consideradas alheias à
hipótese de imunidade” (IBDEM, p. 456) Mas, diante do exposto, qual seria o conceito de
religião capaz de distinguir esta de uma seita?
Os mesmos doutrinadores respondem tal indagação ao afirmarem que será
inequivocamente religião “o sistema de crenças que se vincula a uma divindade, que professa
uma vida além da morte, que possui um texto sagrado, que envolve uma organização e que
apresenta rituais de oração e de adoração.” (IBDEM, p. 461) Não poderá ser considerado um
culto religioso uma atividade comercial ou de ensino qualquer, apenas porque se inicia com
uma oração.
11
O Princípio da tolerância tem como desdobramento dois deveres: do Estado e dos
particulares em relação perseguirem e não discriminar os titulares dos direitos subjetivos
correspondentes da liberdade religiosa, quando do respectivo exercício. (WEINGARTNER
NETO, 2007)
Em relação aos princípios trazidos como conteúdo do Estado laico, e da liberdade
de organização religiosa, destaque-se que o princípio da separação tem conteúdo negativo,
“mas não exime o Estado de garantir, inclusive por meio da legislação penal, o livre exercício
dos direitos subjetivos e liberdade religiosa (dever de proteção).” (WEINGARTNER NETO,
2007,
p.
77)
Assim
como
a
separação,
a
não-confessionalidade
tem
alcance
predominantemente negativo, mas não exclui dimensões positivas. Já nos princípios da
cooperação e da solidariedade, é evidente o caráter promocional e até, em alguns casos,
prestacional.
Apresentada a abrangência da liberdade religiosa, bem como o conteúdo jurídico
do Estado laico, pode-se chegar a algumas conclusões prévias. Primeiramente é a constatação
que a laicidade do Estado não significa, por certo, inimizade com a fé. O Estado brasileiro não
é confessional, mas não se pode defender que é ateu, nem que não há nenhum contato com
qualquer elemento religioso. Pelo contrário, a Constituição acolhe expressamente ações
conjuntas dos Poderes Públicos com denominações religiosas. Além de reconhecer como
oficial determinados atos praticados no seio de cultos religiosos, como é o exemplo da
extensão de efeitos civis ao casamento religioso.
4.2 A autonomia universitária
O caput do art. 207 da CF/88 define que: “As universidades gozam de autonomia
didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao
princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.”
Tal garantia foi consagrada em virtude da própria principiologia que envolve a
Seção de Educação na Carta Magna. Se esta consagrou, em seu art. 206, inciso II, a liberdade
de aprender, de ensinar, de pesquisar e de divulgar o pensamento, a arte e o saber, como um
princípio basilar do ensino, é coerente que se criasse uma manifestação expressa em favor da
autonomia das universidades. (SILVA, 2006).
O primeiro ponto a se destacar é que a autonomia não significa soberania.
12
Mesmo implicando a possibilidade de autonormação, a autonomia não supõe
"soberania" ou "independência" na normatização da matéria que lhe é própria,
porque é poder derivado. Além disso, seu exercício restringe-se a esferas legalmente
delimitadas pelo Estado, o que significa a capacidade de regular, com normas
próprias, situações específicas, intencionalmente não alcançadas pela lei, tendo em
vista a garantia e a proteção de certos interesses. No direito público, a autolimitação
da lei traduz uma abstenção proposital do legislador, para regulamentação total ou
parcial da matéria pelo ente autônomo, sendo esta regulamentação reconhecida e
adotada no sistema jurídico como direito próprio produzido pelo ente autônomo, tão
obrigatório quanto as próprias leis estatais. (RANIERI, 2009, p. 4)
O campo de autonomia é justamente o delimitado no próprio art. 207 da CF/88,
“visando a assegurar o cometimento de funções sociais específicas, concernentes ao interesse
geral, que podem ser sintetizadas no conhecido trinômio ensino/pesquisa/extensão.” (IBDEM,
p. 4).
O objetivo para tal autonomia é garantir que o próprio Estado não venha a
interferir no funcionamento interno das universidades por motivos torpes, ou por simples
divergência ideológica do que é ensinado. Esta deve ser exercida de forma responsável,
eficiente e adequada aos objetivos nacionais e às referências socioculturais, econômicas e
políticas da sociedade na qual se insere. (RANIERI, 2009)
Da análise constitucional da autonomia universitária, em suma, pode-se tirar
algumas conclusões. A primeira é que somente mediante emenda constitucional poderá ser
alterada a autonomia. É, portanto, um verdadeiro direito negativo do Estado que deve absterse de qualquer intervenção em matérias reconhecidamente destinadas somente à tutela
universitária. Em decorrência de se tratar de norma constitucional, o art. 207 é de eficácia
plena e aplicabilidade imediata, “embora aceite regulamentação de caráter instrumental
visando à sua maior funcionalidade, expressa em normas gerais de educação, na lei de
diretrizes e bases ou na legislação ordinária.” (IBDEM, p. 4)
Para o presente estudo, o principal objetivo é saber qual é o limite da autonomia
universitária, já que foi, como se verá na análise do acórdão, sua quebra diante da liberdade
religiosa. Como já afirmado, tal limite provem da própria Constituição.
Existem dois tipos de limite em relação à autonomia universitária. Um genérico
que decorre dos princípios fundamentais do Estado brasileiro, dos direitos e garantias
individuais, e dos princípios educacionais expressos no art. 206 etc.; e os limites específicos
são os indicados no próprio art. 207. (RANIERI, 2009).
13
4.3 A Igualdade
A Igualdade, como já citado, pode ser encarada como regra, como princípio e
como postulado. “Como regra, prevendo um tratamento discriminatório; como princípio,
promovendo um estado igualitário como fim a ser promovido; e como postulado, estruturando
a aplicação do Direito”. (ÁVILA, 2008, p. 150).
Como foi visto o significado de uma regra e um princípio, resta-nos delimitar o
que é um postulado, segundo a classificação de Humberto Ávila (2008), para que possamos
compreender por completo como a Igualdade influencia o fenômeno jurídico. Diferentemente
das regras, que estabelecem condutas, as quais devem ser observadas em sua integralidade,
que podem ser excluídas do ordenamento quando há outra antinômica, os postulados não
descrevem comportamentos. “Em vez disso, estabelecem diretrizes metódicas, em tudo e por
tudo exigindo uma aplicação mais complexa que uma operação inicial ou final de subsunção.”
(ÁVILA, 2008, p. 123).
Não pode ser confundido com um princípio, pois este é uma norma que estabelece
um dever-ser ideal, que pode ser cumprido em vários graus, e em casos de possíveis
antinomias entre princípios, dá-se um peso maior a um em detrimento do outro. Já os
postulados não se prestam a firmar um deve-ser a ser perseguido, “em vez disso, estabelecem
diretrizes metódicas, com aplicação estruturante e constante relativamente a outras variáveis.”
(IBDEM, p. 123). Em suma, postulados são normas sobre a aplicação de outras normas, sendo
assim, pode-se chamá-los de metanormas, ou normas de segundo grau.
É de fundamental importância o conhecimento bem delineado de tais categorias
de normas, pois quando se afirma em uma decisão que um direito está de encontro ao
princípio da igualdade, deve-se saber que a igualdade não é somente um princípio.
Evidentemente, no caso concreto, não se pode fazer uma ponderação entre uma norma e um
postulado, por isso que se fala sempre em contraposição ao princípio da igualdade, e não ao
postulado.
Conhecer o postulado da Igualdade é essencial para que se possa, em cada caso
específico, saber se tal princípio foi ou não afrontado. Já que a CF/88 não dá subsídios
suficientes para se conhecer a metódica envolvida em tal valor, como saber, então, o conteúdo
jurídico da Igualdade?11
Celso Antônio Bandeira de Mello, em sua obra, “Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade”, (2006), faz
uma abordagem substancial sobre a Igualdade enquanto postulado, ou seja, o referido autor traça uma metódica
capaz de auxiliar o aplicador do direito em questões práticas.
11
14
O que, de antemão, se pode retirar da Carta Magna é que não pode uma lei ser
fonte de privilégios, ou perseguição, pois “todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza” (Caput do art. 5º da CF/88). Porém, é pacífica a idéia que em virtude da
própria Igualdade, se estabeleça, em alguns casos, tratamento diverso às pessoas. Na verdade,
“as normas legais nada mais fazem que discriminar situações, [...]. Donde, a alguns são
deferidos determinados direitos e obrigações que não assistem a outras, por abrigadas em
diversa categoria.” (MELLO, 2006, p. 13)
Qualquer elemento residente em coisas, pessoas, ou situações podem ser usados
como fator discriminatório, mesmo a cor, raça e a religião, que aparentemente não são valores
os quais podem sofrer qualquer tipo de discriminação. Evidentemente de que estes fatores
devem guardar intimidade lógica com a situação que se quer regular. A título de exemplo,
imagine-se que em um concurso em que um dos critérios seja a estatura do candidato. Á
primeira vista, parece se tratar de uma grave agressão ao princípio da igualdade. Tal
conclusão vai depender do que, na prática, a situação que se quer tutelar. Caso este critério
seja utilizado em um concurso para Juiz de Direito, realmente estaríamos diante de uma
quebra da Igualdade. Porém, a avaliação seria oposta caso se tratasse de um concurso de uma
agência de beleza.
Sendo assim, o principal questionamento do aplicador deve ser: “quando é
vedado à lei estabelecer discriminações? Ou seja: quais os limites que adversam este
exercício normal, inerente à função legal de discriminar?” (IBDEM, p. 13).
Para que se verifique no caso concreto que não houve quebra da isonomia, é
preciso que três requisitos sejam preenchidos: A) Qual o elemento tomado como fator de
discriminação? B) Qual é o fundamento lógico entre o elemento de singularização escolhido e
a situação que se quer tutelar? C) Tal discriminação está de acordo com os valores
constitucionais? (MELLO, 2006)
Sobre o primeiro questionamento, existem mais dois critérios que devem ser
observados na escolha do fator de discriminação. Deve-se perceber se o elemento escolhido
singulariza no presente e definitivamente, de modo absoluto, um sujeito a ser privilegiado, e
se esse elemento reside na pessoa, coisa ou situação a ser discriminada, não podendo ser
escolhido algo que possa existir desvinculadamente daquelas.
Um exemplo de singularizarão que atua somente em um único caso,
definitivamente e de modo absoluto, pode ser visualizada em uma situação na qual se
estabeleça em uma lei privilégio para “fulano”, filho de “sicrano” e “beltrana”. Para que se
15
observe a Isonomia, é fundamental que a discriminação deixe portas abertas a alguma
eventual aplicação possível sobre futuros destinatários inexistentes à época da formulação
daquela. O fator escolhido pode se voltar a um grupo, ou até mesmo a uma só pessoa, desde
que, em tal caso, vise-se um sujeito indeterminado e indeterminável no presente. (MELLO,
2006).
A Igualdade será ofendida caso a escolha de um fator de discriminação não esteja
na natureza da pessoa, objeto ou situação a ser tutelada. Um exemplo banal, mas que retrata
bem a situação é se o legislador aferir privilégio a alguém em virtude da possibilidade de
chover. De igual forma, uma lei não pode usar o fator “tempo” ou “data” para aferir
discriminação entre pessoas, fatos, ou situações, pois aqueles existem independentemente da
existência destes. “O que pode tomar como elemento discriminador é o fato, é o
acontecimento, transcorrido em certo tempo por ele delimitado.” (MELLO, 2006, p. 33).
Após a escolha de um elemento discriminador, passa-se ao segundo requisito acima
levantado, qual seja a correlação lógica entre o fator de discriminação e a desequiparação
procedida, ou seja, o tratamento dispensado pela lei em virtude do fator elencado. Ou seja, é
preciso que se investigue se o critério levantado tem justificativa lógica, racional, com a
situação que se quer tutelar.
Por exemplo, imagine que em uma lei regulasse dispensa aos funcionários obesos
para assistirem a um congresso religioso. Neste caso, a quebra da Isonomia não ocorreu em
virtude da eleição do fator de discriminação (característica física), mas sim da relação que esta
tem com o tratamento dispensado pela lei, ou seja, o confronto à Igualdade ocorreu na nãorelação lógica entre o fato de ser gordo e o congresso religioso. A situação seria diferente caso
tal critério fosse usado em um concurso para o serviço militar, especificamente para funções
que exigem um preparo físico mais intenso. (MELLO, 2006)
O último passo para aferir a quebra ou não à Isonomia é saber se a discriminação
efetuada está em consonância com os interesses da Constituição. Não é qualquer distinção,
por mais que seja lógica e razoável, que pode se realizar, esta tem que ter relevância com os
valores elencados pela Carta Magna. “Sobre existir nexo lógico, é mister que se retrate
concretamente um bem – e não um desvalor – absorvido no sistema normativo
constitucional.” (MELLO, 2006, p. 42).
Vistos a contribuição da ADC para a análise do discurso decisório judicial, bem
como as questões jurídicas envolvidas na ADI 2806-5, passemos a apresentação e análise
crítica desta decisão.
16
5 LIBERDADE DE RELIGIÃO, ESTADO LAICO, AUTONOMIA
UNIVERSITÁRIA, PRINCÍPIO DA IGUALDADE: UMA ANÁLISE DA
POSIÇÃO DO STF NO JULGAMENTO DA ADI 2806-5
5.1 Considerações iniciais
A Análise de Discurso Crítica, proposta por Chouliaraki e Fairclough é composta por
um rol de cinco etapas que devem ser seguidos pelos estudiosos ao se debruçarem sobre o
objeto, são elas: 1) A percepção de um problema, que normalmente está baseada em relações
de poder; 2) A identificação de obstáculos para que o problema seja superado, ou seja, devese buscar conhecer o que mantêm na prática tal problema. Este item pode ser desdobrado em
mais três, quais sejam, a análise de conjuntura; análise da prática particular e a análise do
discurso; 3) Verificar a função do problema na prática; 4) Se há algum modo de ultrapassar
os obstáculos; 5) Reflexões sobre a análise. (RESENDE; RAMALHO, 2006, p. 37).
Para a presente análise, buscar-se-á a percepção do problema abordando a questão das
ações envolvendo liberdade religiosa, autonomia universitária, Igualdade como forma de
introduzir a análise em si. Na análise da ADI, que, a nosso ver, já é por si mesma uma função
do problema na prática, será feita a análise estrutural e interacional do discurso, a percepção
das vozes ideológicas, o significado representacional, destacando os atores sociais envolvidos.
Num outro momento, serão abordadas algumas maneiras possíveis de superação dos
obstáculos construídas pela própria doutrina jurídica. E finalmente em outro tópico, qual seja
a conclusão, far-se-á uma reflexão sobre a análise.
Um ponto importante para se destacar é que não se pretende aqui, malgrado incursões
doutrinárias sobre o mérito da ADI, fazer uma defesa jurídica, sociológica ou até teológica a
favor de um segmento religioso. O objetivo é visualizar na decisão escolhida elementos de
manipulação do discurso através da ADC e da doutrina jurídica. Para que, por fim, sejam
traçadas algumas formas de possíveis soluções para os problemas identificados.
17
5.2 Apresentação do problema: liberdade religiosa enquanto proteção
a um dia de guarda e o Poder Judiciário
Cumpre-nos esclarecer que a maioria das discussões atuais sobre a laicidade do
Estado gira em torno de decisões tomadas pelo mesmo sob influência de uma visão religiosa,
a qual acaba repercutindo sobre direitos como a liberdade de expressão, à saúde pública.
Como exemplo, pode-se citar questões polêmicas como o aborto, ou a pesquisa com célulastronco. Nestes casos, grupos defendem que é “preciso insistir nesta diferença, ou seja, ter
dogmas é um direito da/o cidadã/o. Entretanto, os dogmas não podem impedir que direitos
democráticos se efetivem na sociedade brasileira.” (ROHDEN, 2006, p. 31). Em
contrapartida, outros afirmam que: “quando se sustenta que o Estado deve ser surdo à
religiosidade de seus cidadãos, na verdade se reveste este mesmo Estado de características
pagãs e ateístas que não são e nunca foram albergadas pelas Constituições brasileiras.”
(MARTINS, 2007)
Acontece que na ADI 2806/RS a realidade é outra. Aqui estamos diante de uma
prática estatal (jurisdição), que por influência de um discurso hegemônico religioso em
relação ao dia de guarda, acaba tomando decisões que repercutem sobre uma minoria
religiosa. Ou seja, aqui a influência religiosa hegemônica acaba tolhendo a própria liberdade
religiosa da minoria discordante.
Em um estudo profundo sobre a jurisprudência brasileira envolvendo a proteção
ao dia de guarda, Letícia de Campos Velho Martel (2007) chegou a cinco conclusões, das
quais quatro delimitam bem o problema a ser apresentado. Após a apresentação destas,
perceber-se-á que elas se encaixam perfeitamente ao acórdão prolatado pelo STF na ADI
2806. Passemos, então, a abordar o conteúdo destas conclusões imprescindível para o presente
momento da apresentação do problema, pois oportunamente, aplicaremos tais conclusões no
corpo da decisão em estudo (ADI 2806/RS). :
1) A primeira conclusão foi a verificação da falta de estrutura argumentativa das
decisões envolvendo a liberdade religiosa em sua modalidade proteção ao dia de guarda. É de
fundamental importância que a linha argumentativa seja bem definida dentro de uma decisão,
para que esta tenha um maior de legitimidade me relação aos jurisdicionados. Referindo-se
aos acórdãos pesquisados, a autora afirma:
Em significativa parcela dos acórdãos analisados apresentou-se uma
espécie de sincretismo metodológico. Por exemplo, diversas vezes os
18
julgadores anunciaram um conflito entre princípios, mencionaram a
ponderação e apresentaram a prevalência, sem permitir aos
jurisdicionados perfilhar o iter entre a identificação do conflito
horizontal e o resultado. Foram meras invocações retóricas.
(MARTEL, 2007, p. 46)
A não adoção de um posicionamento jurisprudencial pode acarretar “demasiadas
incoerências entre decisões sobre temas semelhantes, ferindo a integridade do sistema, bem
como a igualdade de tratamento devida aos jurisdicionados.” (MARTEL, 2007, p. 46).
2) Outra conclusão é que muitas vezes, em um mesmo Tribunal, a autora
percebeu que foram proferidas decisões radicalmente distintas12. Percebe-se, inclusive, que
não há referência entre os julgados sobre o tema dentro do próprio Tribunal, e que não há
confronto entre decisões. “Assim, não se consegue compreender os elementos distintivos que
fazem com que, por exemplo, em uns casos adote-se a igualdade formal e noutros a material”
(MARTEL, 2007, p. 47). Ressalta que não propugna um engessamento das decisões nos
Tribunais, chama-se atenção, unicamente, “para a carência de motivação e de padrões para o
desapego do precedente.” (MARTEL, 2007,p. 47).
3) Na maior parte dos acórdãos analisados por Martel (2007), o valor Estado
laico acarretou a denegação de pedidos dos fiéis que em virtude do sábado buscavam uma
tutela jurisdicional específica. “Isso significa que os magistrados reputam a laicidade como a
neutralidade formal, ou seja, como a não imposição de benefícios ou de prejuízos em virtude
da afiliação religiosa.” (MARTEL, 2007,p. 47) Ocorre que a neutralidade estatal em matéria
religiosa é intensamente problemática.13 Se ao invés de prolatarem decisão sem um
fundamento mais bem construído, os julgadores passassem a encarar profundamente os
argumentos contrários e ao demonstrarem as razões que levam uma Corte a seguir os
precedentes ou reputá-los como erros, estariam demonstrando respeito e compromisso pela
igualdade de tratamento devida a todos os jurisdicionados.
12
No caso do STF, antes da ADI 2806/RS,que julgou inconstitucional a lei estadual 11.830 do RS, fora
indeferido pelo Min. Marco Aurélio a Suspensão de Mandado de Segurança 2144, na qual a União pretendia
cassar a concessão de tutela antecipada a um candidato em concurso público que impetrara mandado de
segurança contra a Escola de Administração Fazendária, justamente porque a data da prova caia em um sábado.
Neste caso, a Corte “pondo na balança o valor ‘liberdade religiosa’, não o deixou perecer em prol da
conveniência dos organizadores do concurso público” (SORIANO, apud WEINGARTNER NETO, 2007, p.
240-241).
13
A neutralidade estatal em relação a liberdade religiosa será tratada no item 5.4. que é justamente o principal
obstáculo para que o problema seja superado. (RESENDE; RAMALHO, 2006, p. 37).
19
4) Em 93,10% do total de julgados em relação a todo conjunto pesquisado sobre
todas as modalidades de liberdade religiosa14, os postulantes eram membros da mesma
agremiação religiosa, os Adventistas do Sétimo Dia. “Em assim sendo, é possível concluir
que as normas atinentes à educação pública e aos concursos públicos, ainda que editadas sem
qualquer intento discriminatório (neutras na origem ou prima facie), possuem efeitos
colaterais sobre uma minoria religiosa específica.” Ressalta-se que não é por causa deste dado
que, na visão da autora, este pequeno grupo tem um direito fundamental preponderante, mas
que tal dado demonstra que a Justiça deve se aproximar destas discussões. Ou seja, deve-se
proporcionar a grupos excluídos uma arena de participação, “apta a desobstruir canais
democráticos e a evitar que pré-concepções compartilhadas atinjam núcleos vitais da
autonomia e da construção da identidade dos membros de uma sociedade democrática.”
(IBDEM))
Já se pôde perceber neste estudo que o direito à liberdade religiosa é complexo e
exige um esmero peculiar, em virtude, principalmente, da relação híbrida entre o Estado e a
Religião. Weingartner Neto (2007), comentando sobre as ADI´s similares à 2806/RS que
estão aguardando julgamento (São elas a 3714/SP e a 3901/PA), afirma que “como se vê,
trata-se de questões formais e não parece provável que o STF manifeste-se acerca de mérito
do direito fundamental à liberdade religiosa como um todo envolvido nos pleitos”.
(WEINGARTNER NETO, 2007, p. 242).
Contrariando a previsão do referido autor, o STF na ADI 2806 manifestou-se,
mesmo que de maneira sucinta, sobre a inconstitucionalidade material da lei estadual 11.830
do RS.
5.3 Análise Crítica da ADI 2806/RS
Trata-se de ação que pugna a declaração da inconstitucionalidade da lei 11.830 do
Estado do Rio Grande do Sul que teve como pólo ativo o Governador do referido Estado, e
como pólo passivo a Assembléia Legislativa. Antes mesmo que fosse impetrada tal ação no
Na apresentação da metodologia, a autora explicitou amplitude da sua pesquisa, explica: “Foram visitados os
sítios de todos os Tribunais de Justiça brasileiros, de todos os Tribunais Regionais Federais, do Superior
Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal. (...) Houve falha de pesquisa em cinco Tribunais de Justiça,
pois seus sistemas de busca apresentaram erro ou não estavam disponíveis durante o período de consulta. Foram
eles: a) Piauí; b) Ceará; c) Alagoas; d) Espírito Santo; e) São Paulo. Deste modo, a coleta nos Tribunais de
Justiça restringiu-se a vinte e dois (22). Em seis Tribunais de Justiça não houve ocorrências para as chaves de
pesquisa utilizadas: a) Tocantins; b) Acre; c) Amazonas; d) Rio Grande do Norte; e) Amapá; f) Sergipe.”
(MARTEL, 2007, p. 14).
14
20
Supremo Tribunal Federal, outra ADI (esta a nível estadual) já estava em andamento, sendo
considerada prejudicada devido à publicação do acórdão da Excelsa Corte Nacional.
O requerente alegou que a lei ofendeu o princípio da independência e harmonia
dos Poderes, já que desrespeitou a iniciativa privativa do Presidente da República para legislar
sobre servidores públicos civis (art. 61, §1º, “c” c/c art. 84, III e VI da CF/88), da União (art.
22, XXIV da CF/88), e agrediu a Igualdade (art. 5º, caput da CF/88). Invocou ainda o caráter
laico do Estado não podendo se submeter a interesses de uma religião, nem aos dispositivos
da referida lei, principalmente no que concerne a prestação diferenciada por parte dos
organizadores. (art. 1º, §1º da extinta lei 11.830/RS)
A Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul alegou em sua defesa que teve
como objetivo regulamentar o que está previsto na Declaração Internacional dos Direitos do
Homem e do Pacto de São José da Costa Rica, no que concerne à proteção ao dia de guarda e
feriados religiosos, “princípios estes a que estão submetidas às ações administrativas de
qualquer natureza, tanto as praticadas no âmbito do setor público como no setor privado [...]
não podendo nenhum ato administrativo obrigar qualquer cidadão a abdicar de sua crença
para poder ter acesso ao seu direito.”15
A fim de esclarecer e situar a análise, é importante conhecer o teor da lei impugnada.
Eis o texto:
Lei Estadual nº 11830, de 16 de setembro de 2002. Dispõe sobre fatos relacionados
com a liberdade de crença religiosa, determinando à administração pública e a
entidades privadas o respeito e a observância às doutrinas religiosas no Rio Grande
do Sul.
Art. 1 º - O processo seletivo para investidura de cargo, função ou emprego, nas
estruturas do Poder Público Estadual, na administração direta e indireta, das funções
executiva, legislativa e judiciária, e, ainda, as avaliações de desempenho funcional e
outras similares, realizar-se-ão com respeito às crenças religiosas da pessoa,
propiciando a observância do dia de guarda e descanso, celebração de festas e
cerimônias em conformidade com a doutrina de sua religião ou convicção religiosa.
§ 1 º - Quando inviável a promoção de certames em conformidade com o caput, darse-á à pessoa a alternativa de realizar a prova no primeiro horário em que lhe
permitam suas convicções, ficando o candidato incomunicável desde o horário
regular previsto para os exames até o início do horário alternativo previamente
estabelecido.
§ 2 º - Considera-se primeiro horário, para efeitos desta lei, à luz das convicções
religiosas dos judeus ortodoxos, adventistas do sétimo dia, entre outras análogas, o
término do interregno dos pores-do-sol de sexta-feira a sábado.
§ 3 º - Aplica-se também o disposto neste artigo à realização de provas de acesso a
cursos, em qualquer nível, de instituições educacionais públicas e privadas.
Art. 2 º - É assegurado ao aluno , por motivo de crença religiosa, requerer à
instituição educacional em que estiver regularmente matriculado, seja ela pública ou
privada, e de qualquer nível, que lhe sejam aplicadas provas e trabalhos em dias não
coincidentes com o período de guarda religiosa.
15
STF. ADI 2806/RS. Relator: Ministro Ilmar Galvão.
21
§ 1 º - A instituição de ensino fixará data alternativa para a realização das atividades
estudantis, que deverá coincidir com o período ou turno em que o aluno estiver
matriculado, contando com sua expressa anuência, se em turno diferente daquele.
§ 2 º - Para o gozo dos direitos dispostos neste artigo, o aluno comprovará,
preferencialmente, no ato de matrícula, esta condição de crença religiosa, através de
declaração da instituição religiosa a que pertença.
§ 3 º - O aluno, caso venha a se congregar a uma instituição religiosa no decorrer do
ano letivo, gozará dos mesmos direitos, com a apresentação de declaração após a sua
congregação.
Art. 3 º - Os servidores públicos civis de qualquer das funções que compõem a
estrutura do Estado, da administração direta, gozarão do repouso semanal
remunerado preferencialmente aos domingos, ou em outro dia da semana, a
requerimento do servidor, por motivo de crença religiosa, desde que compense a
carga horário exigida pelo Estatuto e Regime Único dos Servidores Públicos Civis
do Estado do Rio Grande do Sul ou legislação especial.
Art. 4 º - Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.
Art. 5 º - Revogam-se as disposições em contrário.
5.3.1 Voto do Ministro Ilmar Galvão (Relator)
Ao proferir seu voto, o Ministro Ilmar constrói sua argumentação da
inconstitucionalidade formal em virtude de desobediência à regra da iniciativa para legislar
sobre os assuntos tratados na lei. Conforme se pode verificar:
.
No que toca à Administração Pública estadual, o diploma impugnado padece de
vício formal, uma vez que proposto por membro da Assembléia Legislativa gaúcha,
não observando a iniciativa privativa do Chefe do Executivo, corolário do princípio
da separação de poderes.
Já, ao estabelecer diretrizes para as entidades de ensino de primeiro e segundo graus,
a lei atacada revela-se contrária ao poder de disposição do Governador do Estado,
mediante decreto, sobre a organização e funcionamento de órgãos administrativos,
no caso das escolas públicas; bem como, no caso das particulares, invade
competência legislativa privativa da União.
Por fim, em relação às universidades, a Lei estadual n.º 11.830/2002 viola a
autonomia constitucionalmente garantida a tais organismos educacionais. Ação
julgada procedente. 16 (grifo nosso)
A leitura do trecho referente ao voto pode dar a impressão de que o último item
(relacionado à autonomia universitária) tenha de igual forma aos outros, sido considero como
uma inconstitucionalidade formal, muito embora se possa dizer que é, ao fundo, material, pois
a autonomia universitária é princípio substantivo. Malgrado a invocação de tal direito das
universidades, não se apontou qualquer restrição concreta em virtude do exercício da
Liberdade Religiosa “Esse modo de agir pode soar como uma ocultação do problema, pois a
autonomia universitária foi trabalhada como se fosse um espaço de competência intocável das
instituições de ensino superior.” (MARTEL, 2007, p. 25)
16
ADI 2806/RS. Op. Cit. P. 366.
22
A autonomia universitária, como já exposta, não é uma liberdade absoluta. Deve
guardar consonância com as normas constitucionais, principalmente no que concerne aos
princípios da educação elencados no art. 206 da Carta Magna. Dentre eles está igualdade de
condições para o acesso e permanência na escola (art. 206, I da CF/88).
A partir deste princípio pode ser questionado se a lei considerada inconstitucional
está ou não de acordo com a Igualdade. Retomando os requisitos para aferição de possível
quebra da Isonomia, deve-se saber: 1) Qual o fator que elenca para haver a discriminação? 2)
Este valor tem relação lógica com a situação que se quer tutelar? 3) A discriminação efetuada
é querida pela Constituição?
O fator de discriminação escolhido na 11.830/RS foi a religião. Mais
precisamente, “crenças religiosas da pessoa, propiciando a observância do dia de guarda e
descanso, celebração de festas e cerimônias em conformidade com a doutrina de sua religião
ou convicção religiosa.” (MARTEL, 2007, p.25). No caso em tela, o elemento escolhido
atende o primeiro requisito, pois a lei não fora feita para um determinado sujeito ou religião
especificamente. Mas para qualquer um, de qualquer religião, desde que guarde realmente o
dia no qual irá se realizar a prova ou a aula. Mesmo que em alguma situação no caso concreto
somente uma pessoa viesse a exercer tal direito, ainda assim a lei teria o caráter de
impessoalidade.
Ainda neste requisito, é importante salientar que o critério aferido pela lei
considerada inconstitucional não está em algo externo ao indivíduo. Está ligado ao direito
individual fundamental da liberdade religiosa.
Em relação ao segundo requisito, não se encontra motivo pelo qual não se afirme
que não há conexão lógica entre o sujeito ser, p. ex., guardador do sábado, e ele ter o direito
de fazer a prova de concurso em horário diferente compatível com sua crença. Pode-se
perguntar então este não teria uma vantagem em relação aos outros candidatos. A lei previa,
em seu art. 1º, §1° a incomunicabilidade do candidato até o pôr-do-sol, a partir de quando este
começaria a realizar o mesmo certame aplicado aos demais. Sendo assim, o segundo requisito
é observado.
A grande questão está no terceiro requisito. Aqui se precisaria de um juízo de
ponderação dos valores envolvidos, de uma análise à luz dos princípios constitucionais e da
doutrina. Aprofundar tal questionamento seria defender uma tese, o que, como já foi
afirmado, não é o objeto deste estudo. Fica apenas a crítica de que nas decisões envolvendo o
tema, ainda não existe posição jurisprudencial fundamentada. Segundo Martel (2007, p.46):
23
Nos acórdãos examinados, três pontos demonstram com singularidade esse
problema. Primeiro, o conceito indeterminado interesse público, via de regra, não
recebeu determinação de conteúdo. Em certas ocasiões foi associado à igualdade,
noutras à seleção do candidato mais apto, noutras à ausência ou presença de
prejuízos à administração e, na maior parte, foi usado como se seu conteúdo fosse
óbvio e por todos conhecido. Em nenhum julgado houve distinção entre interesse
público primário e secundário, tal qual levantado nas razões dos autores e, por vezes,
em pareceres ministeriais. Segundo. Ao princípio da igualdade foram conferidas
duas interpretações diametralmente opostas, o mesmo valendo, em menor medida,
para o princípio da impessoalidade.
O interessante é que o Estado brasileiro a tanto tempo já consagra a Liberdade
Religiosa como direito fundamental, mas ainda, nessa questão específica sobre o dia de
guarda, ainda não tem uma construção jurisprudencial, legislativa sobre o tema. Certamente,
tal fenômeno está ligado a fatores além do Direito. A resposta vem da formação históricocultural da nação, e de como o Estado lidou, e lida com determinada confissão religiosa. O
Estado legitima de várias formas, inclusive através de decisões, a hegemonia desta linha de
pensamento religioso em detrimento de outras minorias.
Um dos modos de operação da ideologia elencados pela ADC molda-se
perfeitamente ao presente voto: a dissimulação na modalidade tropo. A dissimulação ocorre
quando se sustenta uma relação de dominação por meio de sua negação ou ofuscação
(RESENDE; RAMALHO, 2006). O tropo é “o uso figurativo da linguagem, que pode servir a
interesses de apagamento de relações conflituosas”. (MARTEL, 2007, p. 51). É justamente
isso que acontece quando, na feitura da decisão, não se aborda os conteúdos jurídicos dos
conceitos levantados, o que os tornam vagos, corroborando para que a situação hegemônica
atual permaneça.
5.3.2 Voto do Ministro Sepúlveda Pertence
O que torna este voto particularmente num terreno fértil para a análise do discurso
foi o fato do Ministro ter deixado claro que também julgava a lei como materialmente
inconstitucional, não somente formalmente como todos os outros. E o fez apesar de não ter
havido qualquer argumentação sobre liberdade religiosa no acórdão, nem no STF, nem no
TJRS. Inclusive, nos autos da ADI nº 70005720321 desta Corte17, foi declarado pelo, à época,
Procurador Geral de Justiça:
17
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Ação Direita de Inconstitucionalidade nº
70005720321. Relator: Des. Cacildo de Andrade Xavier.
24
A Mesa da Assembléia Legislativa do Estado, em suas informações, em nenhum
momento contesta os fundamentos jurídicos da inconstitucionalidade. Apenas tece
considerações sobre o mérito da iniciativa, de assegurar em sua plenitude o exercício
da garantia constitucional da liberdade religiosa no Estado. Ora, não se discute o
mérito da iniciativa legislativa. O que se discute é a validade da iniciativa de legislar
em afronta ao princípio constitucional da independência e separação dos Poderes.
(grifo nosso)
Malgrado se prestar a julgar a lei materialmente inconstitucional, o magistrado
constrói uma argumentação simplória para a magnitude do tema. Eis o voto na íntegra:
Sr. Presidente, estou de pleno acordo com o eminente Relator, mas creio que a lei
tem implicações maiores do que o simples problema de iniciativa legislativa.
Pergunto: seria constitucional uma lei de iniciativa do Poder Executivo que
subordinasse assim o andamento da Administração Pública aos “dias de guarda”
religiosos? Seria razoável, malgrado fosse a iniciativa do governador, acaso crente
de alguma fé religiosa que faz seus cultos na segunda-feira à tarde, que todos esses
crentes teriam direito a não trabalhar na segunda feira e pedir reserva de outra hora
para seu trabalho? É desnecessário à conclusão, mas considero realmente violados,
no caso, princípios substanciais, a partir do “due process” substancial e do caráter
laico da República. Deixo claro que também julgo a lei materialmente
inconstitucional.
De pronto já se pode destacar o uso amplamente da primeira pessoa em todo o
voto. O que denota um alto grau de subjetividade, pois a tentativa de demonstrar seu
pensamento foi feita através de somente uma pergunta. Tal destaque é fundamental, pois,
como assevera Resende e Ramalho (2006, p. 67):
Analisar em textos quais vozes são representadas em discurso direto, quais são
representas em discurso indireto e quais as conseqüências disso para a valorização
ou depreciação do que foi dito e daqueles(as) que pronunciaram os discursos
relatados no texto pode lançar luz sobre questões de poder no uso da linguagem.
Para que se possa visualizar, destacaremos no voto o destaque feito acima:
Sr. Presidente, estou de pleno acordo com o eminente Relator, mas creio que a lei
tem implicações maiores do que o simples problema de iniciativa legislativa.
Pergunto: seria constitucional uma lei de iniciativa do Poder Executivo que
subordinasse assim o andamento da Administração Pública aos “dias de guarda”
religiosos? Seria razoável, malgrado fosse a iniciativa do governador, acaso crente
de alguma fé religiosa que faz seus cultos na segunda-feira à tarde, que todos esses
crentes teriam direito a não trabalhar na segunda feira e pedir reserva de outra hora
para seu trabalho? É desnecessário à conclusão, mas considero realmente violados,
no caso, princípios substanciais, a partir do “due process” substancial e do caráter
laico da República. Deixo claro que também julgo a lei materialmente
inconstitucional. (Grifo nosso)
O principal destaque neste voto está no conteúdo do único argumento levantado
pelo Ministro. Mais precisamente, o fato de ele ter usado o termo “dia de culto”, e não “dia de
25
guarda”. Este fato, que parece ser inexpressivo, é de fundamental importância para a
Liberdade Religiosa.
Qualquer dia pode ser dia de culto. A Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso
VI, declara que é assegurado exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a
proteção aos locais de culto e as suas liturgias. Mas não se refere à proteção a um dia de
guarda. Nem mesmo a Declaração Universal dos Direitos do Homem, nem o Pacto de São
José da Costa Rica trazem esta especificidade. Todas estas normas falam em proteção ao
exercício do culto, independente do dia.
Doutrinariamente, é que se constrói uma proteção ao dia de guarda, no qual,
logicamente, existe o culto.18 Mas pensar nesta sentença ao contrário é exigir que sejam
respeitados todos os dias em que houver um culto numa igreja.
A lei 11.830/RS, no caput do seu art. 1º, é clara quando se refere não a dia de
culto, mas sim a dia de guarda. Este também é conhecido como descanso semanal. Segundo
Amauri Mascaro Nascimento, este tem “origem em uma tradição de índole religiosa do povo
hebreu que ordenava que no sétimo dia dever-se-ia descansar das atividades seculares. Tal
mandamento tem como base o fato de Deus ao criar o mundo em seis dias ter abençoado,
santificado e descansado no sétimo dia (sábado = descanso).” (NASCIMENTO, apud
OLIVEIRA, 2007, p. 92).
Toledo Filho (2003, p. 18) faz uma breve análise de como o descanso, que teve
sua origem no sábado, começou a ser guardado no domingo:
No caso específico das comunidades vinculadas à tradição judaica, e bem assim, à
acepção cristã que àquela se seguiu, estabeleceu- se a tradição de efetuar-se a
cessação do labor após um ciclo de 06 dias, parando-se inicialmente no sábado e,
posteriormente, mercê da intensa influência que a Igreja Católica passou a
gradativamente desempenhar, fixou-se o domingo como dia de descanso. São neste
particular recorrentes, na doutrina, referências a um decreto assinado pelo imperador
romano Constantino, no ano 321, proibindo o labor aos domingos para todas as
atividades, exceto as do campo, quando o tempo o permitisse.
Porém, ao contrário do que sugere Toledo Filho, “a guarda do sábado subsiste até
os dias de hoje entre os judeus, bem como entre grupos cristãos minoritários como adventistas
e batistas do sétimo dia entre outros.” (OLIVEIRA, 2007, p. 93). No entanto, é notória que a
grande maioria da cristandade observa o domingo. “Não se pode olvidar que a mudança da
Weingartner Neto (2007, p. 73), em suas posições jusfundamentais anteriormente já citadas, defende o “direito
à dispensa do trabalho e de aulas/provas por motivo religioso, quando houver coincidência com os dias de
descanso semanal, das festividades e nos períodos e horários que lhes sejam prescritos pela confissão que
professam.”
18
26
guarda do sábado para o domingo foi disseminada e aceita a tal ponto que se tornou quase que
universal pela cristandade, com poucas exceções.” (OLIVEIRA, 2007, p. 93).
Não é por acaso que, mesmo sem este revestimento religioso, o Estado, em
praticamente todo o mundo, hoje designa um dia de repouso semanal. Este fenômeno de
internalização de um instituto religioso para os ordenamentos jurídicos se deu, modernamente,
durante a em contraponto à Revolução Industrial. “Com a organização da classe operária em
busca de melhores condições de trabalho, fundou-se uma federação como resultado de um
congresso internacional em Genebra, no ano de 1870, tendo como um dos objetivos
disseminar a prática do repouso semanal.” (OLIVEIRA, 2007, p. 94).
No Brasil, apenas nos anos 30 do século passado, foi que surgiram os primeiros
decretos que previam o descanso semanal remunerado para certas classes trabalhadoras, “até
que a Constituição de 1934 trouxe a previsão do repouso dominical no art. 121, §1º, alínea
“e”, sendo também todos os decretos, surgidos até então sobre a matéria, agrupados na
Consolidação das Leis do Trabalho de 1943 – CLT, artigos 67 a 69. (OLIVEIRA, 2007, p. 95)
A partir deste momento, as Constituições que se seguiram continuaram com a
essência da Constituição de 1934, garantindo o repouso semanal aos domingos. (Atualmente
ele está previsto no art. 7º, inc. XV da CF/88).
Por mais que o descanso semanal, nos dias de hoje, tenha um caráter
eminentemente constitucional-trabalhista, “O aspecto religioso, contudo, ainda permanece na
escolha do dia da semana a ser interrompido, ao se adotar a fórmula “preferencialmente aos
domingos”, bem como na fixação de alguns feriados religiosos.” (PESSOA, 2009, p. 93). E
quando o Estado faz este tipo de escolha, mesmo sem intenção, ele acaba privilegiando um
segmento religioso de maior quantidade de membros, em detrimento das minorias.
É lógico que no caso do Brasil, por ser um país na qual a maioria da população se
diz católico apostólico romano, é compreensível que se escolha o domingo. Porém, não se
pode olvidar que existem minorias que se prestam do Poder Jurisdicional do Estado para que
este garanta seus direitos.
Um último ponto sobre o voto do Ministro Pertence é que em ADC existem
categorias relacionadas ao significado identificacional, pois, em suas experiências no mundo,
as pessoas se posicionam mesmo que involuntariamente como agentes na transformação
social. Uma categoria é a identificação no discurso de afirmações avaliativas. (RESENDE;
RAMALHO, 2006, p. 79)
Após formular a pergunta base para sua argumentação, o Ministro simplesmente
afirma que: “É desnecessário à conclusão, mas considero realmente violados, no caso,
27
princípios substanciais, a partir do “due process” substancial e do caráter laico da República.
Deixo claro que também julgo a lei materialmente inconstitucional.”19(grifo nosso). Percebese de maneira cristalina a visão sobre proteção constitucional ao dia de guarda do, hoje
aposentado, Ministro do STF.
5.4 Existe neutralidade entre o Estado Brasileiro e a Igreja?
Prosseguindo nos termos do método da ADC, precisa-se apontar de maneira
sucinta algumas objeções para que o problema central desta análise não seja solucionado.
A grande objeção é a falta de neutralidade do Estado Brasileiro em relação a
preferência a Igreja Católica. Só à título de ilustração, trataremos de dois temas atuais
envolvendo o grau de laicidade do Brasil: a questão dos crucifixos em órgãos do Poder
Judiciário, e a questão dos feriados religiosos.
O Conselho Nacional de Justiça, em sessão realizada no dia 29 de maio, entendeu,
nos julgamentos dos Pedidos de Providências nºs 1.344, 1.345, 1.346 e 1.362, que a aposição
de símbolos religiosos no âmbito de Fóruns e Tribunais revela-se compatível com a cláusula
constitucional da separação Estado-Igreja. (PINHEIRO, 2009). A Justificativa, inclusive,
apoiada por doutrina jurídica bem fundamentada é que as festividades religiosas sob o amparo
do Estado constitucional “sempre que se refiram a símbolos que reacendam na memória
coletiva as suas raízes culturais históricas que lhe conferem identidade.” (MENDES;
COELHO; BRANCO, 2009, p. 464).
Não se pode negar a influência que o catolicismo teve na formação do povo
brasileiro. Porém, para que se obedeçam aos princípios acima expostos que determinam a
laicidade do Estado, é preciso que se repense a influência e privilégio que ainda, nos dias
atuais, uma determinada religião tem sobre o Estado. Além disso, por mais que os símbolos
religiosos das confissões preponderantes, por sua maior difusão, possam também se
configurar como distintivos de uma dada tradição nacional, “o fato é que essa nova
significação que lhes é agregada jamais terá o condão de esvaziá-los da mensagem de fé que
lhes confere sentido.” (PINHEIRO, 2009).
Deve-se ressaltar que a Liberdade Religiosa é também destinada aos ateus,
agnósticos, humanistas, entre outros, que não são obrigados a aceitar que os órgãos públicos
(que também são deles) tenham crucifixos em suas paredes. A identificação simbólica,
19
ADI 2806/RS. Op. Cit. P. 367.
28
mesmo que seja através de um simples crucifixo, entre Poder Público e uma dada crença,
portanto, “para além de representar inaceitável vinculação entre religião e Estado, envia aos
cidadãos de diferentes crenças, aos descrentes e às minorias silenciosas, subalternas
mensagens de desvalor, de preterição e de inferioridade. (PINHEIRO, 2009)
Em relação aos feriados, a discussão é mais extensa e, para que se atendam aos
objetivos aqui perseguidos, observe-se a contribuição esclarecedora dada por Santos (2007):
Imagine-se um dono de estabelecimento comercial Judeu ou Protestante, por
exemplo. Fica ele obrigado a não abrir o seu estabelecimento no dia 12 de outubro,
vez que neste dia homenageia-se Nossa Senhora Aparecida, santa assim reconhecida
pela Igreja Católica Apostólica Romana.
Vejamos por outro lado. Imagine-se seja instituído o "Dia do Ateu" ou mesmo o
"Dia dos Orixás". Como se sentiria um Colégio Católico ao ter que deixar de
ministrar aulas nesse dia? Imaginem a insustentabilidade da medida, caso o Estado
resolvesse criar feriados religiosos para homenagear todas as religiões? Certamente,
é uma hipótese difícil de se vislumbrar.
A esse respeito há quem argumente que a manutenção e criação de tais feriados
nacionais traduziria os costumes e tradições do povo brasileiro. Tal argumento até
tem uma certa validade com relação à Páscoa e o feriado do Natal, que são datas
consagradas em praticamente todos os povos ocidentais e que não representam,
necessariamente, apenas a religião Católica Apostólica Romana, mas todo o
Cristianismo e até Judaismo (Páscoa) há muitos séculos, tornando-se pelo tempo
uma verdadeira tradição. O mesmo não se pode dizer com relação ao feriado do dia
12 de outubro, que, conforme prevê a lei que o instituiu, presta-se ao "culto público
e oficial à Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil". Como pode, em um
Estado Leigo, haver "culto oficial" a uma santa católica?
5.5 Soluções Possíveis
A própria doutrina jurídica já encontrou soluções práticas, possíveis e realizáveis
para o problema levantado, qual seja a dificuldade estatal em lidar com a proteção
constitucional ao dia de guarda.
Em relação à escolha do dia do domingo como dia de descanso semanal
remunerado, e seus reflexos sobre minorias, que guardam outro dia diverso, “o Estado laico
deve favorecer, “através da legislação civil, o direito de escolha, de forma que cada ser
humano possa observar o dia de descanso ou guarda, segundo a sua consciência.” (SORIANO
apud WEINGARTNER NETO, p. 238) Sendo que o princípio da dominicidade estampado na
CF/88 deve ser interpretado em harmonia com a Liberdade Religiosa. (WEINGARTNER,
2007).
Silva Neto (2008, p. 141-143) traz-nos uma solução para as tutelas estabelecidas
na considerada inconstitucional, lei 11.830/RS. Primeiramente em relação à realização de
29
concurso no sábado por fiel da Igreja Adventista do Sétimo Dia ou Judeu ortodoxo, ele
defende que:
Atente-se, de logo, para o seguinte: a Administração Pública deve reverência ao
princípio da impessoalidade, dentre outros assinalados no art. 37, caput, da
Constituição. [...] Ora, se o conteúdo do princípio da impessoalidade retrata uma
Administração que não beneficia ou prejudica determinados indivíduos, impedidose, destarte, tratamento diferenciado, como tornar aceitável que o Adventista do
Sétimo Dia realize prova de concurso público em data distinta da fixada para os
demais candidatos? Não haveria quebra do sigilo e vulneração de todo o certame?
[...] Embora represente um custo maior para o órgão que disponibiliza as vagas a
serem preenchidas por via de concurso público, o direito individual à liberdade
religiosa do adventista não deve ceder espaço à comodidade da Administração
Pública. [...] o candidato a concurso público adepto da religião Adventista do Sétimo
Dia realizará a prova a partir das 18:00 do sábado – isso na hipótese do concurso ser
realizado neste dia -, devendo permanecer incomunicável em sala no local de
aplicação das provas, submetendo-se à mesma avaliação feita aos demais candidatos
do certame.
Na mesma linha, o autor defende que no caso do acesso à educação, em relação às
aulas em dias de guarda, se existe possibilidade de compensação, ou aulas similares em outro
momento, deve-se privilegiar o direito fundamental à liberdade religiosa. Afirma Silva Neto
(2008, p. 148):
Com evidência, se o aluno pode optar entre o curso noturno ou diurno,
possibilitando-lhe (caso opte por aulas pela manhã) o exercício pleno da liberdade
religiosa inerente ao culto, é óbvio que não haverá espaço para a tutela de pretensão
dirigida ao reconhecimento judicial da legitimidade de ausência em tais dias;
contrario sensu, isto é, diante da inviabilidade quanto à freqüência em curso noturno
pela mera e simples inexistência de aulas naquele horário, é possível o acolhimento
da tese de ofensa à liberdade de religião.
6 Considerações finais
No presente estudo buscou-se através dos instrumentos da Análise Crítica do
Discurso, bem como através de uma revisão doutrinária, analisar a ADI 2806/RS.
Foram apresentados alguns conceitos da ADC, dos quais se destaca o de
ideologia. Este pode ser considerado a força-motriz da prática do discurso. Nesta linha,
abordou-se que na vida prática dos operadores do direito, o distanciamento em relação à
linguagem comum é instrumental utilizado muitas vezes para disfarçar ou esconder o real
significado das afirmações. Ou, como foi verificado, esvaziando os conceitos jurídicos usados
30
nas decisões de seus verdadeiros conteúdos, a fim de favorecer certo ponto de vista
hegemônico na sociedade.
Para que se conseguisse fazer uma análise que não somente atentasse para a
semântica textual, mas para uma pragmática, buscaram-se aprofundar os conteúdos dos
conceitos jurídicos presentes na ADI 2806, quais sejam, a liberdade religiosa, o caráter laico
do Estado, a autonomia universitária e a Igualdade enquanto postulado normativo.
Vencida vertente teórica deste estudo, passou-se a analisar efetivamente a ADI
2806/RS, tendo como base metodológica o roteiro sugerido pela ADC. Portanto, foi
primeiramente identificado a dificuldade do Estado enquanto Jurisdição em lidar com a
proteção constitucional do dia de guarda. Num segundo momento, foi feita a análise dos votos
presentes nos autos da Ação em estudo.
No voto do Ministro Ilmar Galvão, constatou-se o esvaziamento do conteúdo da
autonomia universitária, dando-lhe um caráter absoluto e formal. O que foi desmistificado
através da análise doutrinária da própria autonomia universitária e do postulado da Igualdade.
Já no voto do Ministro Pertence, identificou-se por várias vezes o discurso direto,
na 1ª pessoa do singular, indicando um forte subjetivismo em seu voto, em detrimento do
cargo público que ocupava. Outra questão foi a confusão feita entre os termos “dia de culto” e
“dia de guarda”, que, como foi demonstrado, apesar das semelhanças, não são sinônimos. Um
último ponto destacado foi em relação a um juízo de valor interno do discurso, o que na ADC
chama-se afirmação avaliativa, que no caso prático, auxilia o interprete na ligação do ator
social com a ideologia envolvida em seu discurso. (RESENDE; RAMALHO, 2006)
Dando continuidade ao esquema metodológico da ADC, buscou mostrar que o
principal obstáculo para que o Poder Judiciário ainda não tenha se firmado com uma
jurisprudência sólida e bem fundamentada sobre a proteção constitucional ao dia de guarda, é
justamente o relacionamento “não-neutro” entre o Poder Público e uma confissão religiosa em
especial, em detrimento das minorias religiosas ou não.
Por fim, apresentaram-se soluções construídas doutrinariamente para o problema
levantado. bem como para as relações que a extinta lei 11830/RS tutelava.
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