A capitulação do Brasil ROBERT KURZ especial para a Folha A cada mês se torna mais claro: o capitalismo global, cuja vitalidade é incansavelmente louvada como, na televisão russa, o frescor intelectual do presidente Ieltsin, na verdade não sairá mais da UTI. As seguidas paradas cardíacas dos mercados financeiros tiveram de ser atalhadas pelos médicos institucionais de plantão com uma alta dosagem de medicamentos. Enquanto o paciente respira com ajuda de instrumentos, o discurso oficial proclama que, além de poder bater recordes mundiais de velocidade, ele é perfeitamente capaz de superar a si próprio. Essa terapia-placebo, adotada em moldes grotescos na crise do México no final de 1994, na crise asiática de 1997 e na crise russa de 1998, tem toda probabilidade de ser repetida na atual crise brasileira de início de 1999. Um dos componentes dessa receita cada vez menos digna de crédito é a idéia propalada com atroz teimosia de que o sistema global de coordenadas não se tornou insustentável, de que as diversas crises não têm absolutamente nada a ver umas com as outras, de que elas são mero fruto da imaginação e remontam sempre a "erros" ou "descuidos" políticos dos respectivos governos. Do mesmo modo que os mandarins políticos dos tigres asiáticos, antes venerados como deuses, foram subitamente tachados de déspotas corruptos, assim também a administração do presidente Fernando Henrique, ainda há pouco tão enaltecida por sua conduta político-econômica, agora é internacionalmente depreciada, junto com o real. Quanto mais encarniçadamente as potências dominantes negam que se trata de uma crise de amplitude global, mais claramente vem à luz essa situação de fato. O colapso do sistema mundial desdobra-se em três planos lógicos, dispostos de certa forma em camadas superpostas. Na base da economia capitalista, o crescimento da criação real de valor já chegou a um impasse, pois as forças produtivas técnico-científicas crescem rapidamente para além da economia monetária moderna, o que pode ser deduzido do crescente descompasso entre o enorme potencial produtivo e o reduzido poder de compra. No segundo plano do capital monetário, simula-se temporariamente um crescimento gradual antecipando-se uma criação de valor futura que jamais ocorre, fato que se manifesta no endividamento constante de consumidores, empresas e Estados, os quais por sua vez mal-e-mal se mantêm à tona por meio da emissão de títulos sem substância real de valor. Esse capital monetário fictício, no entanto, somente é capaz de existir na forma específica de moedas nacionais, que compõem assim o terceiro e último plano. A crise que subjaz ao capital produtivo, portanto, manifesta-se logicamente depois de um certo tempo de incubação como crise financeira, e essa, por seu turno, como crise monetária. As respectivas crises financeiras nacionais assumem a forma transnacional de uma crise monetária quando a própria emissão de moeda da economia interna é substituída pela afluência de capital monetário em outras moedas. Essa possibilidade surgiu apenas quando o dólar perdeu, em 1973, seu lastro em ouro, e o sistema antes fixo das taxas de câmbio passou a oscilar de maneira imprevisível -um primeiro indício da limitação interna da economia real. O capital monetário, já insuficiente para ser reinvestido na produção, buscou uma válvula de escape e afluiu aos salientes mercados financeiros transnacionais, que, no entanto, só podiam ser insuflados sob a forma de numerário nacional, embora cada vez mais alheio à circulação da respectiva economia interna. Em outras palavras, o capital monetário fictício, livre de amarras, deu início a um "baile de máscaras das moedas" ao pular permanentemente dessa para aquela "fantasia" monetária, a fim de especular com as oscilações das taxas de câmbio de livre flutuação, sem jamais ter de se fixar em investimentos estratégicos de caráter imóvel. Com isso também foi superada a teoria clássica da taxa de câmbio criada pelo economista sueco Gustav Cassel (1866-1945), a qual em última instância fazia com que as relações entre as moedas dependessem do movimento real dos bens internacionais. Mas não foi a teoria de Cassel que se revelou falsa, foi o capitalismo que se tornou suspeito a seus próprios fundamentos e falsificou a si mesmo como realidade positiva. O fluxo de capital monetário não é mais expressão do fluxo real de mercadorias; ao contrário, a produção de bens (e portanto a sobrevivência de países e continentes inteiros) é somente um aspecto secundário da liquidez que inunda o globo por intermédio das moedas. Mas, em vez de registrar o caráter crítico dessa mudança, desde os anos 80 os economistas preferiram favorecer a teoria financeira das taxas de câmbio desenvolvida particularmente pelos anglo-saxões, teoria esta que faz remontar a relação das moedas sobretudo ao peso dos respectivos ativos "depositados" no capital monetário. Finge-se com isso descobrir uma explicação melhor para uma realidade econômica neutra e sempre existente. Ora, as crescentes crises monetárias contradizem esse cenário. É óbvio que as moedas não se equiparam. A antiga disparidade econômica da produtividade entre centro e periferia repete-se mais uma vez na nova constelação das grandezas fictícias. De um lado situam-se as três moedas centrais, o dólar, o iene e o euro (até agora marco alemão), que definem o critério para o capital monetário transnacional. De outro lado encontram-se todas as outras moedas, que têm de medir a si próprias por meio desse critério. Isso significa que somente sob condições gravosas os Estados da periferia são capazes de atrair uma parcela do fluido capital monetário transnacional, a fim de sobreviverem economicamente a despeito da escassa rentabilidade. Nos anos 70 e 80, a crise global manteve-se em grande parte sob o signo das tentativas de contenção nacional. Quando, naquela época, países como o Brasil caíram vítimas da crise de endividamento, pois seus créditos internacionais não puderam mais ser regularmente amortizados, os respectivos bancos centrais passaram a trabalhar a todo vapor, emitindo papel-moeda até as raias da hiperinflação. O FMI (Fundo Monetário Internacional), antes quase ocioso, impediu afinal, na condição de administrador da crise, uma catástrofe global do crédito, pois logrou converter a maioria dos empréstimos estatais a longo prazo dos países devedores em títulos com descontos acentuados, permitindo-lhes circular a partir daí sob o nome de Brady-Bonds (em homenagem ao então ministro das Finanças norte-americano). O preço para tanto foi um drástico surto recessivo em grande parte do Terceiro Mundo. Sem uma solução definitiva, o problema foi simplesmente postergado, porque as ajudas do FMI nada mais são, como é de boa praxe, do que créditos temporários de cobertura. Trata-se sempre, portanto, apenas de assegurar a solvência mínima das obrigações internacionais de um país. Todo o mecanismo repousa na ficção de que cabe somente "colmatar" uma lacuna no processo real de criação de valor. Que tal buraco negro abra uma bocarra cada vez maior não é objeto de previsão, sendo antes um assunto tabu. Até hoje a situação continua a mesma. O que mudou nos anos 90, porém, foi a forma de endividamento. Depois de malograr a contração de créditos estatais a longo prazo, destinados a projetos nacionais de desenvolvimento de cunho político, alguns países periféricos que ainda davam sinal de vida passaram a ancorar suas moedas ao dólar. Com auxílio dessa taxa de câmbio "política" atrelada ao dólar e das altas taxas de juros, o capital monetário internacional de curto prazo foi atraído para financiar a própria reprodução: investimentos para a industrialização voltada à exportação, bem como para a infra-estrutura, mas também inúmeros objetos que renovaram o gosto pelo luxo e pelo consumo. Ao contrário da antiga captação direta de crédito estatal no exterior, agora o capital monetário transnacional afluía aos mercados financeiros do comércio interno -e isso num volume essencialmente maior do que no passado. Dessa maneira foi possível tanto ao Estado quanto às empresas e aos consumidores endividarem-se com dinheiro estrangeiro nos seus próprios mercados financeiros. O potencial inflacionário foi de certo modo burlado com meios político-monetários, pois esse montante em dinheiro não aparecia nem como emissão irregular de moeda pelo próprio Banco Central nem como expansão do volume de dólares que circulavam nos Estados Unidos. Desse expediente lançaram mão não apenas os tigres asiáticos; ele constituiu também a essência do Plano Real de 1994. Como por milagre, a hiperinflação encolheu a zero. O preço dessa refinada manobra foi a renúncia à já fracassada estratégia nacional de desenvolvimento, a abertura dos próprios mercados e o abandono incondicional aos interesses dos fundos de investimento transnacionais. Ela implicou também a defesa a qualquer custo da taxa de câmbio artificialmente "política" como pressuposto do programa como um todo. Mas os custos do afluxo de capital logo suplantaram os resultados dos projetos por ele financiados, tal como no passado. A única diferença foi que a crise assumiu outra forma sob as novas circunstâncias: agora ela se fazia notar como pressão implacável sobre as moedas artificialmente sobrevalorizadas dos "mercados emergentes". O colapso dos tigres asiáticos e da Rússia em breve abateu-se sobre a América Latina e principalmente sobre o Brasil, pois o capital transnacional, leviano, não tardou em bater em retirada: o Brasil teve de amparar a cotação do real pulverizando suas reservas internacionais (elas caíram, em poucos meses, de US$ 75 bilhões para US$ 30 bilhões) e sufocando o crescimento interno com uma política de juros extremados, que chegaram a orçar pelos 50%, o que fez o índice Bovespa despencar 75% em relação ao pico da fase de prosperidade. Era de esperar que o Brasil capitulasse, na esteira dos tigres asiáticos e da Rússia, e fosse obrigado a deixar o real flutuar livremente, a despeito de um pacote de ajuda concedido pelo FMI (nesse meio tempo, ele perdeu mais de 20% em relação ao dólar). À diferença da Ásia e da Rússia, a primeira reação ao colapso, curiosamente, foi quase eufórica: num único dia, o índice Bovespa subiu mais de 30%, e muitos áugures internacionais quase retiraram seu sinal de alerta. Tal fato só faz corroborar a memória curta dos atores e a constituição irracional dos mercados financeiros sob a pressão de uma liquidez que não sabe mais para onde ir. É verdade que a situação brasileira difere em alguns pontos daquela dos tigres asiáticos e da Rússia. O mercado interno brasileiro é muito maior e, em alguns setores, relativamente menos dependente do afluxo de capital monetário internacional. Também foi uma sensatez, por parte da administração de Fernando Henrique, em oposição à Tailândia ou à Coréia do Sul, não defender absurdamente a taxa de câmbio "política" até o último centavo, retirando-se em boa hora e reservando-se ainda algum espaço autônomo de manobra. Mas os problemas fundamentais continuam pendentes, e a crise estrutural, de raízes profundas, não é mais capaz de ser conjurada com tais subterfúgios, por mais refinados que eles sejam, pois suas causas estão fora do alcance de toda política governamental baseada no sistema de mercado. O fato de o colapso da taxa de câmbio "política" assumir traços de algo positivo, já que agora o Banco Central brasileiro poderia baixar os juros e a desvalorização seria um alento para as exportações, revela mais recalque do que clarividência. Sim, porque se for assim, por que cargas-d'água terá havido o Plano Real? A ignorância dos otimistas de plantão esquece completamente as condições que levaram ao plano, aliás jamais superadas. De fato, a verdadeira razão para a política de juros elevados não desapareceu, pois o Brasil necessita, somente ele, de 40% dos aproximadamente US$ 180 bilhões de capital monetário transnacional que se encontram à disposição, em 1999, dos mercados emergentes, sempre sob a improvável condição de que não se verifiquem mais outros surtos de crise! Como a âncora de estabilidade da taxa de câmbio desapareceu, os juros não podem ser reduzidos a ponto de fomentar o almejado crescimento interno. Por outro lado, o efeito benéfico à exportação trazido pela desvalorização do real encontrará limites, pois nem o potencial produtivo nem a capacidade de absorção do mercado mundial são suficientes numa conjuntura de crescimento global estagnado. Com tanto mais razão, é ilusório desvincular do contexto econômico o elevado déficit das contas públicas brasileiras, supondo-o "causa intrínseca" da crise, e reclamar credulamente a adoção das rígidas medidas de poupança e elevação de impostos, prometidas sob pressão. Numa forte recessão como essa, é fatal quando o Estado aperta, por pouco que seja, o garrote dos impostos e ao mesmo tempo suspende uma parte de seus gastos em investimentos e consumo. O déficit estatal, em nenhum lugar do mundo, significa somente corrupção; direta ou indiretamente ele é também demanda e vida para milhões de pessoas que já sobrevivem no limite da miséria. Se a situação já é temerária sem déficit público crescente, quem dirá sem ele. A receita milagrosa do FMI, fracassada nos quatro cantos do globo, equivale a exortar a um náufrago que, no interesse de sua própria salvação, cometa antes suicídio. Com isso retornamos novamente ao início: não há nenhuma solução possível de política monetária, porque os próprios fundamentos do moderno sistema produtor de mercadorias estão em xeque. Eis por que as crises dos antigos mercados emergentes continuarão a causar espécie e a saltar de um continente a outro: a China já é o próximo candidato, como mostrou a falência bilionária da sociedade de investimento Gitic, ofuscada pela tempestade brasileira. Quando o capital monetário transnacional, por falta de segurança, retira-se do país, as dívidas em dólar do Estado e das empresas, bem como a dependência de componentes importados para a produção e a subsistência precária da economia interna, só abrem espaço a uma opção: voltar a imprimir papel-moeda. Mas paradoxalmente, tão logo retorne a hiperinflação em meio ao quadro recessivo, a fagulha da crise monetária chispará também sobre as três moedas-chave. Tolo daquele que espera uma vencedora entre elas.