Batista Jr, Paulo Nogueira. “A Rússia revisitada”. São Paulo: Folha de São Paulo, 6 de setembro de 2001. Jel: F A Rússia revisitada Paulo Nogueira Batista Jr "O dinheiro compra tudo. Até amor verdadeiro", dizia Nelson Rodrigues. Eis aí uma verdade profunda. Lembrei-me dela a propósito do notável controle que os circuitos de dinheiro e poder exercem sobre o fluxo internacional de informações. Veja, leitor, o caso da Rússia. Há três anos, ela estava no centro das atenções. A sua crise financeira repercutiu em várias regiões do planeta, inclusive aqui no Brasil. A moratória russa de agosto de 1998 marcou época. E deu margem a prognósticos sombrios sobre o futuro da economia do país. No entanto, desde 1999, a economia russa tem tido menos imprensa do que cachorro atropelado. Já reclamei dessa indiferença em artigo publicado nesta coluna há mais de um ano ("Esqueceram a Rússia", 4 de maio de 2000). O silêncio continuou (uma exceção foi a boa reportagem de Milton Gamez publicada no jornal "Valor" em 28 de agosto último). Como é possível? O mistério é de uma transparência total: depois de fazer diversas barbaridades financeiras, ao arrepio de todas as recomendações do "establishment" econômico internacional, a Rússia está indo bastante bem. Em 1998, sob o impacto da moratória unilateral, as previsões da comunidade financeira para a Rússia eram medonhas. O jornal britânico "Financial Times", por exemplo, em editorial de 31 de agosto, previu uma "prolongada agonia econômica" para o país. O megaespeculador George Soros, na época patrão do atual presidente do Banco Central do Brasil, recomendou que a Rússia introduzisse um "currency board" (em carta ao "Financial Times", 13 de agosto de 1998). O célebre economista Rudiger Dornbusch, do Massachusetts Institute of Technology, fez a mesma sugestão ("Russian Meltdown", 10 de setembro de 1998, web.mit.edu/rudi/www/). "Currency board" para a Rússia! Nada mais, nada menos do que o modelo monetário da Argentina! Naquele tempo, diga-se de passagem, Domingo Cavallo tinha "status" de guru em países do antigo bloco soviético. Chegou a assessorar a Rússia, por recomendação do então diretor-gerente do FMI, Michel Camdessus, para quem o sistema monetário argentino poderia ser uma saída para a crise de agosto de 1998 (ver o relato do próprio Cavallo no seu livro "Pasión por Crear", Planeta, Buenos Aires, 2001, págs. 206-8). Felizmente, a Rússia não seguiu esse caminho. Deixou o rublo flutuar e registrou grande depreciação cambial. Depois de decretar moratória unilateral, partiu para uma reestruturação compulsória de suas dívidas, provocando grande desalento nos meios financeiros. Passaram-se três anos. Não vieram os desastres anunciados. Ao contrário, o desempenho da economia russa tem sido impressionante. Em 1997, um crescimento do PIB de 0,5% parecia um grande resultado, lembra Stanley Fischer, até recentemente vice-diretor gerente do FMI ("The Russian Economy: Prospects and Retrospect", 19 de junho de 2001, pág. 1, www.imf.org). Em 1999, o crescimento russo foi de 3,5%; em 2000, chegou a 7,7% -os melhores resultados desde o desaparecimento da União Soviética. A inflação subiu, mas não chegou a fugir inteiramente de controle. Está atualmente um pouco acima de 20% ao ano. O balanço de pagamentos em conta corrente teve um superávit de mais de 18% do PIB em 2000. As contas públicas também vêm registrando superávits. As reservas internacionais cresceram de forma acentuada (estatísticas detalhadas podem ser encontradas em "Russian Federation: Report on PostProgram Monitoring Discussions", 17 de maio de 2001, www.imf.org). A que atribuir esses resultados? Segundo Fischer, o desempenho da Rússia em termos de crescimento desde 1999 "se deve em grande parte a dois fatores: a desvalorização real e os preços mais altos da energia. (...) Em retrospecto, o colapso da moeda e a remoção de grande parte da carga de endividamento foram provavelmente importantes para as melhoras subsequentes na economia da Rússia" (idem, págs. 2 e 7). Antes da moratória de 1998, recorda Fischer, havia uma discussão sobre se a Rússia deveria desvalorizar o rublo ou reestruturar a dívida (idem, pág. 6 e 7). Acabou tendo que fazer as duas coisas. Alguma semelhança com a Argentina de 2001? Os problemas econômicos da Rússia ainda são graves. Não vai ser fácil superar a herança da ineficiência soviética e os desastres da era Ieltsin. Em todo o caso, a moral da história parece clara: o "establishment" econômico-financeiro pode ser um péssimo conselheiro.