Erotismo, sexualidade, gênero Aula 5 Na aula de hoje, terminaremos o primeiro módulo de nosso curso, dedicado à leitura de O erotismo, de Georges Bataille. Durante este primeiro mês de curso, procurei apresentar a estrutura da experiência social descrita por Bataille a partir do conceito de “erotismo”. O termo “experiência social” é adequado para falarmos do erotismo porque se trata, ao menos para Bataille, de um fato, tal como o sagrado, o sacrifício e a dádiva cuja realidade tem a força de fundar vínculos e modificar relações sociais. Vimos como o erotismo do qual fala Bataille não é simplesmente um conjunto de práticas ligadas a processos de intensificação dos prazeres sexuais e de incitação dos desejos. Bataille não quer fundar uma arte erótica mais completa e atual. Na verdade, o erotismo aparece como experiência social com forte capacidade crítica em relação a nossas formas hegemônicas de vida. Através do erotismo, Bataille procura aliar crítica social, crítica do sujeito e crítica da razão apelando a uma peculiar materialismo que dá, a alguns temas clássicos do pensamento marxista (como a reificação, o trabalho abstrato), uma versão completamente inusitada. A importância dada por Bataille a um fenômeno como o erotismo, e sua maneira de insistir que o erotismo traz em seu bojo uma concepção revolucionária de sociedade, vincula-se, por um lado, à compreensão do que poderíamos chamar de “problematização política do desejo”. Bataille age como quem acredita que o desejo, a maneira como ele circula e constitui laços, é um fator político decisivo. Já em suas análise sobre o fascismo, ficava clara a perspectiva de avaliar situações sócio-políticas a partir da compreensão da maneira com que a experiência da heterogeneidade era capaz de habitar o desejo. Há um claro pensamento da diferença que serve de fundamento para a crítica gerada pela filosofia de Bataille. Diferença que se configura principalmente através dos conceitos de heterogeneidade e excesso. Todo o papel fundamental que a noção de diferença desempenhará no pensamento francês a partir dos anos sessenta, principalmente através de filósofos como Jacques Derrida, Gilles Deleuze e Michel Foucault é incompreensível se não entendermos Georges Bataille um importante antecessor. Por outro lado, lembremos como, em nossa primeira aula, eu afirmara que a caraterística maior de uma questão filosófica é sua forma de se perguntar sobre como um fenômeno ou um objeto é um evento. Como dissera em nossa primeira aula, dentro da perspectiva filosófica, não se trata de simplesmente descrever funcionalmente objetos, nem de justificar suas existências, dar aos objetos razões de existência a partir de uma reflexão sobre o dever-ser. Na verdade, a filosofia tenta compreender como o aparecimento de certos objetos e fenômenos produzem modificações em nossa maneira de pensar, no sentido o mais amplo possível. Pois um evento não é apenas uma mera ocorrência. Um evento é o que problematiza a continuidade do tempo, exigindo o aparecimento de outra forma de agir, de desejar e de julgar. Um evento é sempre uma ruptura que reconfigura o campo dos possíveis produzindo tal reconfiguração em nossas formas de vida que parecemos, mesmo que usemos as mesmas palavras de sempre, habitar um mundo totalmente diferente. No fundo, é desses eventos, e apenas deles, que a filosofia trata. Neste sentido, podemos dizer que o erotismo é o nome dado por Bataille à compreensão de que há algo na experiência sexual que tem a força de um acontecimento. Para tanto, foi necessário que a dimensão do sexual aparecesse como espaço no qual o homem se encontra distante tanto da natureza quanto de sua afirmação como indivíduo autônomo. Feita a crítica da subordinação do sexo aos imperativos de reprodução, a distância em relação à natureza pode ser afirmada. Feita a crítica da subordinação do desejo aos prazeres que guiam os sistemas individuais de interesse, o segundo passo pode ser dado. Neste sentido, é inegável que a experiência do erotismo recupera, à sua maneira, as expectativas disruptivas do surrealismo enquanto fundamento para uma crítica social renovada. Por outro lado, há em todo acontecimento, a figura de um contraacontecimento que é objeto de nossos esforço de suspensão. Como vimos nas aulas passadas, o contra-acontecimento do qual o erotismo é a melhor resposta é o facismo. Vimos como a crítica social de Bataille era uma crítica radical da sociedade do trabalho. Nossas sociedades modernas ocidentais são caracterizadas por serem, principalmente, sociedades do trabalho, no sentido do trabalho aparecer como atividade fundamental para a constituição das identidades sociais e para o reconhecimento dos sujeito. Vimos como a expectativa de realização conjunta de exigências de expressão da individualidade e formação em direção ao auto-controle era elemento definidor dos valores que mobilizamos na avaliação social do trabalho. Trabalhar sempre será uma operação servil. Podemos mesmo modificar radicalmente a divisão social imposta ao trabalho pelo capitalismo e permitir que todos tenham a posse dos meios de produção e de seus frutos. Para Bataille, isto não mudará o essencial, a saber, que o mundo do trabalho é o mundo da produção e que produzir implica ser capaz de submeter atividades ao cálculo de tempo e metas, não se deixar desviar das metas estabelecidas, perguntar-se pela utilidade final de cada objeto produzido, avaliar cada ação a partir do valor que ela produziu. Ou seja, o mundo do trabalho é um mundo no qual posso calcular valores que são homogêneos, intercambiáveis. A lei que imponho para mim mesmo quando organizo minhas atividades a partir da lógica do trabalho é uma lei que me ensina a calcular, a medir, a quantificar minhas atividades, os objetos que produzo e, principalmente, o prazer final que alcanço. E neste ponto que se encontra, para Bataille, o verdadeiro núcleo da experiência de alienação produzida pela sociedade do trabalho. No entanto, o erotismo é uma atividade estranha à tal racionalidade instrumental própria à sociedade do trabalho. Tal estranhamento se expressa na natureza excessiva do erotismo. Ao falar de “excesso” neste contexto, Bataille não afirma que o erotismo é mais intenso que o trabalho. Seu excesso não é da ordem da grandeza, mas da alteridade. Nem sempre, “excessivo” significa o que é muito grande, pois isto corresponderia a dizer que há uma medida comum entre os dois fenômenos, sendo que um é apenas maior do que o outro. Na verdade, “excessivo” significa aqui o que excede minha capacidade de medir, simplesmente porque é o que não se mede, o que colapsa toda medida, porque sua lógica não é a lógica dos objetos mensuráveis. Neste sentido, mesmo quando for leve, etéreo e silencioso, mesmo quando se reduzir a um simples olhar ou a um toque, o erotismo será excessivo. Porque seu excesso é a recusa do que não aceita ser sentido e vivido da mesma forma que sentimos as coisas que podemos calcular, mensurar e quantificar. O erotismo será sempre excessivo porque o que lhe caracteriza é exatamente aquilo que não entra na imagem atual do homem, deste homem da sociedade do trabalho e da lógica utilitária. Assim, quando Bataille propor uma espécie de fórmula ontológica ao afirmar que: “o ser é também o excesso do ser, elevação ao impossível”1, devemos entender com isto que é próprio da definição do ser o reconhecimento de uma relação constitutiva com o que lhe determina. Neste contexto, “impossível” não significa inexistente; “impossível” significa o que não se expressa na configuração atual dos possíveis e que, por isto, força tal configuração a modificar-se. Foi tendo tal contraposição em mente que introduzi o conceito de “soberania”. Para Bataille, a resposta à alienação produzida pela sociedade do trabalho passa pela reconstrução do conceito de soberania, agora aplicado à posição subjetiva. Bataille retira o conceito de soberania das mãos daquele que se encontra no centro do poder político para transformá-lo em um conceito capaz de descrever a posição de todo e qualquer sujeito que não se encontre mais em situação de alienação e servidão. Mas eu insistira com vocês que o conceito batailleano de soberania tinha um caráter fundamental: ele não descreve o poder que domina. Normalmente, o soberano, enquanto fonte do poder, submete a vontade do outro à sua vontade, submete às coisas à condição de coisas das quais ele pode gozar como proprietário, submete o tempo ao tempo do seu desejo. Mas Bataille insiste que a verdadeira soberania é um poder que não domina, poder de quem tem segurança suficiente de não precisar de dominar para se defender. Isto pode nos explicar porque, ao analisar a sociedade soviética, Bataille dirá que ela poderia fornecer um caminho para uma soberania comum, a partir do momento em que todos abrem mão soberanamente de todo traço de soberania monárquica. Para além do caráter dificilmente defensável de uma proposição desta natureza (difícil aceitá-la se lembrarmos do lugar soberano do líder no stalinismo), fica a compreensão do esforço em pensar algo que poderia significar a soberania comum no campo social. Soberania da partilha comum da parte maldita. Por outro lado, vimos como depor toda vontade de domínio significava não querer mais controlar as coisas através da sua submissão à utilidade delas para mim, que normalmente sou seu proprietário, nem controlar o tempo através da submissão do presente ao futuro que eu projeto. Futuro que se define como causa das limitações que aceito no presente, que aprisiona o presente em uma rede causal profunda onde só faz sentido o que se submete à necessidade definida na idealidade do futuro. Este tempo é um tempo do gozo. A fim de compreender porque Bataille associa a afirmação de tal soberania ao movimento de transgressão, eu sugeri operarmos uma passagem em direção àquilo que poderíamos chamar de uma “filosofia da natureza”. Ela se expressa em uma forma peculiar de pensar a relação entre a vida e morte, entre a organização e a desorganização. Para Bataille, há um mobilidade interna ao fato vital que leva todo organismo a precisar saber como lidar com algo desorganizador que lhe aparece como excessivo, pois não submetido ao padrão atual de suas atividades e de normas. Esta energia excessiva pode servir ao 1 BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 201 crescimento e desenvolvimento do próprio organismo, mas a partir de certo ponto ela pode levar à sua destruição, ou seja, às destruição de sua forma. As formas vitais não apenas se desenvolvem; elas procuram impedir que o princípio vital que as modifica (no caso, a energia) as leve à destruição: “se não temos força para destruir a energia em acréscimo, ela não pode ser utilizada; e, como um animal intato que não se pode domar, é ela que nos destrói, somos nós mesmos que arcamos com os custos da explosão inevitável”2. Neste sentido, as individualidades orgânicas são estruturalmente instáveis, pois para dar conta da energia que as atravessa, elas devem gastá-la como puro dispêndio, ou seja, como algo que, do ponto de vista da pura conservação das formas atuais, não tem sentido algum. Mas gastar como puro dispêndio significa admitir um conceito de organismo biológico que age sem ter em vista sua própria auto-preservação e reprodução. Ele age fragilizando as normas que lhe servem como fundamento para a auto-preservação de sua forma momentânea. Neste sentido, há uma violência que é coextensiva à própria mobilidade da vida. Talvez seja pensando nisto que Bataille pode dizer: “Não há nada que reduza a violência”3. Pois: A vida é sempre um produto da decomposição da vida. Ela é tributária, em primeiro lugar, da morte, que desocupa a vaga; em seguida, da corrupção que segue a morte e recoloca em circulação as substâncias necessárias à incessante vinda ao mundo de novos seres4. Por pensar a atividade vital a partir da forma de um movimento no interior do qual organismos aparecem como sistemas em perpétuo desequilíbrio que Bataille precisa insistir que a soberania própria ao erotismo é sempre transgressiva. A transgressão é o nome a para um movimento que se desdobra através da perpétua reversibilidade das normas. Mas, para Bataille, não basta que tais reversibilidades ocorram. Há um modelo de transgressão privilegiado por seu pensamento, pois produtor de uma experiência substantiva de heterogeneidade. A este respeito, Bataille censura o pensamento materialista de, até então, ceder à “obsessão de uma forma ideal da matéria, de uma forma que se aproximaria, mais do que qualquer outra, daquilo que a matéria deveria ser”5. A seu ver, trata-se de um falso materialismo, incapaz de compreender o caráter polimórfico e promiscuo da matéria. Este falso materialismo ainda é dependente de uma hierarquia própria ao caráter elevado da ideia. Mas a verdadeira transgressão nos faz nos reconhecermos naquilo que Bataille chama de matéria baixa: “A matéria baixa é exterior e estrangeira às aspirações ideais humanas e se recusa de se deixar reduzir às grandes máquinas ontológicas”6. Uma matéria baixa que é a afirmação do caráter informe da matéria, do caráter “baixo” que uma certa tradição filosófica sempre associou à matéria, a saber, caráter do que se decompõe, do que se quebra, o que apodrece, o que não subsiste no interior do tempo e por isto está em plasticidade contínua. A verdadeira transgressão, dirá Bataille, é reconhecimento de si na heterogeneidade radical do que se decompõe, do que se quebra e apodrece. E 2 Idem, p. 46 Idem, p. 72 4 Idem, p. 79 5 BATAILLE, Georges; Matérialisme, In: Oeuvres complètes vol I, p. 179 6 BATAILLE, Georges; Le bas matérialisme et la gnose, In: idem, p. 224 3 algo do erotismo se deixa tocar exatamente por tal tipo de experiência material: pelo corpo que não se submete integralmente à sua própria imagem, pela fragilidade dos instantes que desaparecem no tempo, pela matéria que sempre se perde e se decompõe, pela reversibilidade contínua dos corpos que perdem algo de suas formas. Sade e a linguagem da violência Dois artigos de O erotismo são dedicados ao Marques de Sade. De fato, foram os surrealistas que recuperaram a importância literária de Sade, um autor recorrente no pensamento francês a partir de então, seja através do próprio Bataille, seja através de Pierre Klossowski, de Blanchot, de Jacques Lacan, de Gilles Deleuze e Michel Foucault. Há algo da concepção batailleana de soberania que encontra expressão na obra de Sade. Tal concepção está expressa em afirmações como: Sade só quer ter acesso ao gozo mais forte, mas esse gozo tem um valor: significa a recusa de uma subordinação ao gozo menor, uma recusa a condescender! Sade, em benefício dos outros, dos leitores, descreveu o ápice que a soberania pode atingir: há um movimento de transgressão que não para antes de ter atingido o ápice da transgressão. Sade não evitou esse movimento, seguiu-o em suas consequências, que excedem o princípio inicial da negação dos outros e da afirmação de si. A negação dos outros se torna, no extremo, negação de si mesmo (...) Há algo mais perturbador do que a passagem do egoísmo à vontade de ser consumido por sua vez no braseiro que o egoísmo acendeu?7. A que Bataille alude aqui? Não compreenderemos nada da literatura de Sade se imaginarmos que seus personagens são impulsionados pela simples procura de maximizar seus prazeres individuais. Na verdade, Sade está à procura de uma purificação da vontade que a libere de todo conteúdo empírico e patológico. Blanchot fala do desejo de: « fundar a soberania do homem sobre um poder transcendente de negação »8. De onde se segue, por exemplo, o conselho do carrasco Dolmancé à vítima Eugénie, na Filosofia na alcova: "todos os homens, todas as mulheres se assemelham: não há em absoluto amor que resista aos efeitos de uma reflexão sã”9. Uma indiferença em relação ao objeto que pressupõe a despersonalização e o abandono do princípio de prazer. Este é o sentido de um outro conselho de Dolmancé à Eugénie: "que ela chegue a fazer, se isto é exigido, o sacrifício de seus gostos e de suas afeições" 10. Esta experiência de quem sacrifica seus gostos e afeições em nome de uma espécie peculiar de imperativo é fundado na crença de aceder a um “gozo mais forte” que recusa sua subordinação a um gozo menor. Este gozo mais forte não é, pois, a afirmação dos interesses egoístas da pessoa. Há algo no movimento do desejo sadeano que, como dirá Bataille, “excede o princípio inicial da negação dos outros e da afirmação de si”. Se a 7 Idem, p. 202 (BLANCHOT, Lautréamont et Sade, Paris, Minuit, 1949, p. 36) 9 SADE, La philosophie dans le boudoir, Paris: Gallimard, 1975, p, 172 10 SADE, ibidem, p. 83 8 negação dos outros se torna negação de si mesmo é porque sacrifico tudo o que me individualiza para participar de um movimento incessante, exaustivo e gratuito de repetição do gozo. Movimento que se dá para além do prazer. Um pouco como Madame de Saint-Ange que, em meio às orgias produzidas por Dolmancé, o repreende por este estar tendo prazer em algo que deveria ser feito com apatia e contenção. O gozo dos personagens de Sade, como vários observaram, é um gozo apático. Neste sentido, o que Sade demonstra é a nudez do ápice em direção ao qual algo em nós caminha. Nudez da vontade de ser consumido no braseiro que o próprio egoísmo acendeu. Daí uma afirmação como: Sade consagrou intermináveis obras à afirmação de valores inaceitáveis: a vida era, se acreditarmos nele, a procura do prazer; e o prazer era proporcional à destruição da vida. Dito de outro modo, a vida atingia o mais alto grau de intensidade numa monstruosa negação de seu princípio11. Em outro texto, Bataille descreve este “excessivo ápice daquilo que somos”12, este “mais alto grau de intensidade” da vida como aquilo que define algo que o excesso próprio à vida subjetiva, a saber, a “experiência interior”: “A experiência interior responde à necessidade na qual me encontro - a experiência humana comigo – de colocar tudo em causa (em questão) sem repouso admissível”13. Esta é a descrição de uma experiência sócio-histórica bastante precisa, ligada à consciência de que a modernidade traz consigo uma modalidade específica de sofrimento: o sofrimento de ser apenas um eu, com suas limitações e defesas. Pois Bataille age como se nosso sofrimento mais aterrador fosse resultante do caráter repressivo da identidade. Esta é a temática maior de um certo pensamento francês contemporâneo (Lacan, Deleuze, Derrida, Foucault). Podemos mesmo dizer que para todos eles, a modernidade não é apenas momento histórico onde: “não somente está perdida para ele [o espírito] sua vida essencial; está também consciente dessa perda e da finitude que é seu conteúdo”14. Perda que implicaria a pretensa angústia crescente do sentimento de indeterminação. A modernidade seria também a era histórica de elevação do Eu a condição de figura do fundamento de tudo o que procura ter validade objetiva. O que neste caso significa: era do recurso compulsivo e rígido à autoidentidade subjetiva enquanto princípio de fundamentação das condutas e de orientação para o pensar. Levando tal contexto em conta, poderemos compreender melhor uma colocação como: Se alguém me perguntasse o que nós somos, e, de qualquer modo, lhe responderia: essa abertura a todo o possível, essa expectativa que nenhuma satisfação material poderá apaziguar e que o jogo da linguagem não poderia enganar! Estamos à procura de um ápice. Cada um, se lhe agrada, pode negligenciar a procura. Mas a humanidade em seu conjunto 11 Idem, p. 207 Idem, p. 219 13 BATAILLE, Georges; L’expérience intérieur, p. 15 14 HEGEL, G.W.F., Fenomenologia do Espírito I, Petrópolis : Vozes, 1992, p. 24 12 aspira a esse ápice, que se ele a define, que só ele é sua justificação e sentido15. Neste sentido, Sade teria, ao menos aos olhos de Bataille, o mérito de ter colocado em cena até onde estaríamos dispostos a chegar para nos livrar de tal sofrimento. No entanto, a posição de Sade guarda algo de profundamente reativo, e essa natureza reativa é sua limitação. Bataille explora com exaustão o fato paradoxal de uma literatura como a apresentada por Sade. Pois se Sade é, de fato, um carrasco sádico, há de se lembrar que carrascos não escrevem, pois: “a violência é silenciosa, já que a linguagem é, por definição, a expressão do homem civilizado”16. A violência permaneceu em princípio sem voz. Por isto, Bataille pode dizer: Na verdade, essas dissertações da violência, que incessantemente interrompem os relatos de cruéis infâmias de que os livros de Sade são formados, não são as dissertações dos personagens violentos a que são atribuídas. Se tais personagens tivessem vivido, sem dúvida teriam vivido silenciosamente17. Por isto, dirá Bataille, a linguagem de Sade é a de uma vítima. Linguagem de quem estava preso na Bastilha pelo homem que não aceita mais a própria desmesura de sua experiência interior. Vítima revoltada de uma injustiça que lhe leva a transformar a violência naquilo que ela não é, no seu oposto, a saber: “uma vontade refletida, racionalizada, de violência”18. Esta linguagem inventada por Sade é, assim, uma linguagem reativa de quem procura criar uma violência que teria a calma da razão, linguagem de quem faz entrar na consciência exatamente aquilo que revoltava a consciência, a desmesura que a consciência tudo fez para esquecer. Daí porque os vínculos em Sade se constroem através da partilha da revolta que procura a profanação desenfreada. A revolta das vítimas da incapacidade de uma sociedade fundada em fenômenos sociais que estejam à altura do excesso próprio ao ser. A filosofia, a experiência interior e o riso Mas o que seria uma linguagem capaz de expressar tal experiência interior sem precisar, ao mesmo tempo, colocar-se como reação e revolta à disciplina imposta pelo homem que não aceita a própria desmesura? O que seria um vinculo social livre da obrigação de reagir através da transformação do silêncio próprio à violência em palavra de revolta? Na verdade, poderíamos mesmo se perguntar sobre como seria uma experiência que recuperasse a violência bruta própria ao silêncio. Neste ponto, encontramos uma dicotomia importante entre saber e erotismo. Tal dicotomia está expressa em afirmações como: “O filósofo pode nos falar de tudo o que experimenta. Em princípio, a experiência erótica nos obriga ao silêncio”19. Uma obrigação ao silêncio que 15 BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 300 BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 214 17 Idem, p. 216 18 Idem, p. 219 19 Idem, p. 279 16 alguns, como Sartre, compreenderam como convite ao misticismo: “É contra sua própria vontade que o sr. Bataille se serve do discurso. Ele o odeia e, através dele, ele odeia a linguagem por completo. Este ódio, o sr. Bataille partilha com um bom número de escritores contemporâneos. Mas os motivos que ele fornece lhe são próprios: é o ódio do místico que ele reivindica, não o ódio do terrorista”20. De fato, Bataille afirma: “entendo por experiência interior o que normalmente chamamos de ‘experiência mística’”21. Há algo na experiência de fusão e afastamento das estruturas de conhecimento que se expressam na linguagem prosaica própria aos místicos capaz de fascinar Bataille. Mas, como vimos na aula passada, este é um peculiar “misticismo ateu”, um misticismo após a morte de Deus. Ele indica, muito mais, a consciência estética do esgotamento da força representativa da linguagem. Consciência tão alargada que estaria mesmo disposta a fazer a crítica geral da linguagem poética: Se a poesia introduz o estranho, ela o faz pela via do familiar. O poético é o familiar se dissolvendo no estranho e nós mesmos com ele. Ele nunca nos despossui por completo, pois as palavras, as imagens dissolvidas, são carregadas de emoções já provadas, fixadas a objetos que as ligam ao conhecido22. Tal consciência do esgotamento da linguagem não se configura, assim, como uma passagem da filosofia à literatura, com sua linguagem pretensamente menos descritiva e próxima do que não se deixa representar. Ela é um paradoxal retorno à filosofia, já que só a linguagem filosófica seria capaz de guardar o silêncio do heterogêneo, sem nos colocar nas vias da crença em alguma forma de imanência reconquistada pela linguagem. A filosofia não é composta de palavras que carregam emoções já provadas, pois ela é uma linguagem desdramatizada. Ou seja, de uma certa forma o reconhecimento da fraqueza da linguagem filosófica acaba funcionando como sua força. Pois há uma mutação necessária da linguagem, uma mutação através da qual ela não aparecerá mais como um meio de conhecimento, onde ela não servirá para conhecer e descrever, mas para nos levar a algo que não se acomoda completamente à linguagem, que se expressa nas formas do silêncio (e o que é o erotismo a não ser uma forma bastante peculiar de silêncio): O que eu quero dar a ver é o impasse da filosofia que não pode se realizar completamente sem a disciplina, e que, por outro lado, fracassa por não poder abarcar os extremos de seu objeto, o que designei outrora sob o nome de “extremo do possível”, que tocam sempre nos pontos extremos da vida. (...) salvo, a rigor, se, no auge, a filosofia for negação da filosofia, se a filosofia rir da filosofia. Suponhamos, com efeito, que a filosofia verdadeiramente ria da filosofia, isso supõe a disciplina e o abandono da disciplina23. 20 SARTRE, Jean-Paul; Situations I, p. 136 BATAILLE, Georges; L’expérience intérieur, p. 15 22 Idem, p. 17 23 Idem; O erotismo, p. 285 21 Uma filosofia que ri da filosofia é aquela que paradoxalmente procura comunicar (já que o termo é constantemente utilizado por Bataille) o que decompõe a linguagem, vivenciar o que paradoxalmente coloca a vida em risco. Ela não produz exatamente um conhecimento, mas uma experiência que se abre no interior do campo onde nossos modos de intuição e categorização desabam. Neste sentido, a função do discurso filosófico não consiste em fornecer um saber prescritivo e normativo, mas de nos levar a procurar ir em direção àquilo que Bataille chama de experiência interior. “Rir”, neste caso, é um modo de funcionamento do discurso no qual disposições contrárias acabam por conviver. Este riso talvez não seja exatamente o riso da ironia, com sua afirmação de existir sempre algo para além da enunciação e no interior do qual o sujeito do enunciado se aloja. O riso de Bataille é impulsionado por um afeto paradoxal, que não é nem prazer, nem desprazer, mas uma “angústia alegre ”. Um tipo de afeto para o qual talvez não estejamos acostumados, pois é angústia que sabe que o que lhe angustia guarda algo de profundamente necessário: A angústia alegre, a alegria angustiada me dá, em um quente-frio o “dilaceramento absoluto” no qual é minha alegria que termina de me dilacerar, mas no qual o abatimento seguiria à alegria se eu não fosse dilacerado até o fim, sem medida24. 24 BATAILLE, Georges; Hegel, la mort, le sacrifice, In: Oeuvres complètes XII, p. 342