Erotismo, sexualidade e gênero Aula 1 Nesta história da doença (...) discute-se francamente as relações sexuais, os órgãos e funções sexuais são chamadas por seu nome correto. Com isto, o leitor poderá se convencer, após minha exposição, que não recuei da discussão de tais assuntos em tal linguagem com uma garota. Devo então também me justificar desta acusação? Eu reivindico simplesmente os direitos do ginecologista ou ainda direitos muito mais modestos. Seria índice de estranha e perversa lubricidade supor que conversas parecidas seriam um bom meio de excitação sexual1. Estas são algumas afirmações do psicanalista Sigmund Freud que vocês poderão encontrar na páginas introdutórias à apresentação de um caso de histeria escrito em 1905 e conhecido como “o caso Dora”. Tais afirmações são interessantes por expor uma transformação a respeito do ato de falar sobre sexo que irá marcar todo o século XX. Enquanto médico, Freud pede a si mesmo o direito de discutir francamente as relações sexuais, os órgãos, chamando as funções sexuais por seu nome correto. Esse falar franco não é, no entanto, o falar franco que, por exemplo, os libertinos do século XVIII conheceram, com sua crença de que o que é da ordem do sexual deveria habitar todos os poros do discurso a fim de que o desejo seja incitado por sua revelação discursiva. Qualquer um que já leu Sade sabe que o ato de falar e descrever é, neste caso, o principalmente movimento capaz de excitar o desejo. Os libertinos do século XVIII, animados à sua maneira pela crença no esclarecimento produzido pela razão, não gozam em silêncio. Mas, como disse, o falar franco de Freud é outro. Ele não é animado pela descoberta de formas de incitação aos prazeres. Não, Freud prefere ficar ao lado dos ginecologistas a ser confundindo com alguém que suporta essa estranha e perversa lubricidade dos que usam da descrição direta da atividade sexual para seduzir uma garota. Ele prefere uma fala “seca e direta”, capaz de dar aos órgãos sexuais seus nomes técnicos e comunicar seus nomes quando estes são desconhecidos pela paciente. Uma fala que descreve as perversões “sem indignação”. Ou seja, como já disse Foucault, esta fala é uma vontade de saber baseada na submissão da sexualidade ao modo de descrição de uma ciência, uma scientia sexualis. Esta talvez fosse uma das mais impressionantes invenções da modernidade: uma ciência da sexualidade, um discurso científico sobre o que devo fazer para não ter uma sexualidade patológica. Mas aqui começa um problema importante. Pois o que precisa acontecer à experiência dos nossos desejos para que ela possa ser objeto de uma ciência? Não de uma literatura (que é um regime de explicitação discursiva próprio), não de uma arte erótica, mas de uma ciência. Pois ser objeto de uma ciência significa assumir uma certa metamorfose. Como os objetos da físicas, a sexualidade deverá poder ser mensurada, quantificada, calculada. Poderei então dizer, por exemplo, que o transtorno de interesse sexual por parte de mulheres terá, como alguns de seus critérios diagnósticos, como lemos no mais recente manual de FREUD, Sigumnd; “Brichstuck einer Hysterie-Analyse” In: Gesammelte Werke Vol. V, Frankfurt: Fischer, 1999, p. 186 1 psiquiatria (o DSM-V): ausência ou redução de excitação sexual durante a atividade sexual em aproximadamente 75% a 100% dos encontros. Da mesma forma, no transtorno de desejo sexual masculino hipoativo, encontraremos uma persistente ou recorrente deficiência de pensamentos, fantasias e desejos por atividade sexual durante, no mínimo, seis meses. Transtornos de ejaculação precoce serão divididos em três grupos: suave (se a ejaculação ocorrer entre 30 segundos ou 1 minutos após a penetração), moderado (entre 15 e 30 segundos) severo (quando ocorre antes da penetração ou em até 15 segundos após a penetração). Foi pensando na generalização desse modo de saber sobre a sexualidade que alguém como Georges Bataille escreveu: Esses livros falam da vida sexual? Falaríamos do homem limitando-nos a dar números, medidas, classificações de acordo com a idade ou a cor dos olhos? O que o homem significa a nossas olhos se coloca sem dúvida para além dessas noções: estas se impõem à atenção, mas não acrescentam a um conhecimento já dado senão aspectos inessenciais2. É muito provável que Freud, quando falava com sua garota histérica sobre sexo, não pensasse em um modelo de saber desta natureza, o que talvez explique a natureza quase literária de seus relatos de caso. Mas sua posição expressa outra importante ideia presente no desejo de transformar o que é da ordem do sexual em objeto de um discurso científico, a saber, a crença de que o falar franco sobre sexo implicaria, por um lado, lançar luz sobre o que somos e como nos relacionamos mas, por outro, transformar o que somos e como nos relacionamos. Como se a possibilidade do indivíduo moderno fazer a experiência de si mesmo como sujeito de uma “sexualidade” fosse dispositivo fundamental de sua autodeterminação. É pelas vias da sexualidade que eu me constituiria como sujeito dotado de uma história (a história do meu desejo), de um corpo (o regime de prazeres próprio ao meu corpo) e, principalmente, de uma identidade. Isto talvez nos explique porque nossas sociedades ocidentais precisam tanto defender a existência, como dirá Michel Foucault: “de um discurso no qual o sexo, a revelação da verdade, a inversão da lei do mundo, o anúncio de um outro dia e a promessa de uma certa felicidade estão ligados”3. Se Freud pode se vangloriar de não ter recuado diante de assuntos desta natureza com uma garota de não mais do que quinze anos, é porque ele já faz parte de uma época na qual falar de sexo é talvez a forma privilegiada de revelar a verdade sobre os sujeitos e suas posições existenciais, prometer uma certa felicidade através da constituição de uma relação autônoma consigo mesmo. Notem uma inflexão importante. Não se trata de afirmar que pelas vias da sexualidade nós poderíamos descobrir uma história, um corpo e uma identidade. Trata-se de dizer algo mais forte, a saber, que constituiríamos um corpo, uma história e uma identidade. Compreender-se como sujeito de uma sexualidade equivaleria a uma construção que não seria simplesmente fruto de, digamos, um projeto individual, mas da internalização das categorias do discurso de uma ciência. Uma ciência que não apenas descreve, mas que também, e principalmente, produz. Uma ciência que, de forma muito peculiar, produz seus 2 3 BATAILLE, Georges, A parte maldita, Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 180 FOUCAULT, Michel; Histoire de la sexualité – vol. I, Paris: Gallimard, 1976, p. 15 objetos: “O que acabamos por chamar de ‘sexualidade’ é o produto de um sistema do conhecimento psiquiátrico que tem seu estilo muito particular de raciocínio e argumentação”4. Ou seja, assim o problema da sexualidade não se encontra na identificação de uma espécie de libido natural que deve se fazer sentir. O problema da sexualidade se transforma na descrição de modos de produção de corpos, histórias e identidades a partir das categorias de um discurso social fortemente normativo como a ciência. O que isto significa de maneira concreta? Tomemos como exemplo a invenção da homossexualidade como categoria clínica. Um fato que ocorre apenas em meados do século XIX com o estabelecimento do quadro das perversões através destes grandes tratados psiquiátricos como o Psychopatologia sexualis, de Krafft-Ebbing. De certa forma, nós podemos dizer que não era possível ser homossexual antes de meados do século XIX. Nós podemos mesmo dizer que não havia homossexuais antes de meados do século XIX. Claro que práticas homossexuais existiram antes e sempre existirão, mas não a concepção, tão evidente para nós, de que elas, por si só, definem uma identidade social em toda sua extensão, fazendo com que o conjunto dos atos, de modos de percepção sejam atos de um homossexual, modo de perceber de um homossexual. Por exemplo, haviam práticas homossexuais na Grécia antiga, mas elas não eram uma questão em si, não estávamos em um mundo no qual classificava-se o comportamento de alguém a partir de suas preferências por pessoas do mesmo sexo ou do sexo oposto. A verdadeira questão definidora na Grécia era se alguém desempenhava ou não o papel de um agente passivo, se alguém era ou não capaz de ser senhor de seus desejos. Daí porque alguém como Foucault dirá: O que opunha um homem com temperança e senhor de si mesmo a outro que se consagrava aos prazeres era, do ponto de vista moral, muito mais importante do que aquilo que, entre eles, distinguia as categorias de prazeres aos quais se poderia abandonar voluntariamente5. Isto significa que, em última instância, a homossexualidade como identidade é uma invenção que só aparecerá no século XIX. Ela é uma construção produzida por uma forma de circulação do discurso psiquiátrico e médico que tem na ideia de “sexualidade” seu dispositivo principal. Sexo e filosofia Bem, até agora, o que fiz foi apresentar para vocês uma forma de pensar o problema a experiência sexual produzida no interior de um projeto filosófico específico, a saber, este animado por Michel Foucault. A partir de certo momento, como veremos no decorrer deste curso, Foucault entenderá que todos aqueles que gostariam de compreender melhor como as estruturas de poder funcionam na sociedade ocidental moderna deviam se dedicar a pensar a emergência da sexualidade. Eles deveriam tentar entender melhor porque, a partir de certo momento, nos pareceu fundamental não apenas dizer que fazemos sexo, mas que 4 5 DAVIDSON, Arnold; The emergence of sexuality, Harvard University Press, p. 32 FOUCAULT, Michel; Histoire de la sexualité – II, Paris: Gallimard, 1984, p. 244 temos uma sexualidade e que afirmar tal sexualidade no espaço público, se fazer reconhecer a partir dela, era um problema político da mais alta importância. Mas vocês poderiam se perguntar: desde quando e por que pensar sobre sexo seria um problema filosófico? Por que sexo e os discursos que o envolvem seriam objetos de investigação propriamente filosófica? Ou seja, não um problema ligado à psicologia e a reflexão sobre seus modos de intervenção clínica, não um problema sociológico ligado a práticas sociais de codificação de comportamentos de interação, não um problema biológico ligado a modos de reprodução, mas um problema filosófico. Porque vocês poderiam se perguntar se não seria melhor deixar um objeto dessa natureza a outras áreas de saber, ao invés de discuti-lo em um curso de filosofia. “A filosofia é uma reflexão para a qual qualquer matéria estranha serve, ou diríamos mesmo para a qual só serve a matéria que lhe for estranha”6. Esta frase é de um filósofo da ciência chamado Georges Canguilhem, orientador de Michel Foucault. Talvez ela seja a melhor frase para aqueles que começam um curso de filosofia. Pois ela fornece uma boa resposta ao problema do objeto próprio à filosofia. Se descartarmos a visão historiográfica que dirá ser a filosofia a reflexão sobre os textos que definem o campo da tradição filosófica, definição ruim não apenas devido a sua circularidade mas devido à incompreensão da gênese da chamada “tradição filosófica” (gênese que admite textos até então completamente fora do dito debate intratextual da tradição filosófica), então ficamos com uma questão central. Ela se enuncia da seguinte forma: haveria de fato um conjunto de objetos que poderíamos chamar de “objetos filosóficos”, assim como falamos que existem objetos e fenômenos próprios à economia, à teoria literária e à sociologia? Mas se existir tal conjunto de objetos, poderia um filósofo falar de um texto literário, fazer considerações sobre um problema econômico ou discorrer sobre, por exemplo, a natureza dos papéis sociais? Ao fazer isto, ele deixaria de ser filósofo? Quando Canguilhem afirma que só serve à filosofia a matéria que lhe for estranha é para lembrar que há uma especificidade do discurso filosófico: ele não tem objetos que lhe sejam próprios. De certa forma, podemos dizer que a filosofia é um discurso vazio pois não há objetos propriamente filosóficos, o que talvez nos explique porque não pode haver, por exemplo, teoria do conhecimento sem reflexões aprofundadas sobre o funcionamento de, ao menos, uma ciência empírica, não há estética sem crítica de arte, filosofia política sem ciência política, mesmo ontologia sem lógica. Em todos estes casos a filosofia toma de empréstimo objetos que lhe vem do exterior, absorve saberes cujo desenvolvimento não lhe compete diretamente. Mas não haver objetos propriamente filosóficos não significa afirmar inexistir questões propriamente filosóficos. Há um modo de construir questões que é próprio da filosofia e este modo admite praticamente todo e qualquer objeto. Tal modelo filosófico de construção de questões nos permite identificar e pensar certos problemas que não poderiam ser pensados de maneira adequada fora do campo da filosofia. De modo operativo, diria que a caraterística maior de uma questão filosófica é sua forma de se perguntar sobre como um fenômeno ou um objeto é um evento. Ou seja, não se trata simplesmente de descrever funcionalmente objetos, nem de justificar suas existências, dar aos objetos razões 6 CANGUILHEM, Georges ; O normal e o patológico, Rio de Janeiro : Forense editora, 2000, p. 12 de existência a partir de uma reflexão sobre o dever-ser. Na verdade, a filosofia tenta compreender como o aparecimento de certos objetos e fenômenos produzem modificações em nossa maneira de pensar, no sentido o mais amplo possível. Pois um evento não é apenas uma mera ocorrência. Um evento é o que problematiza a continuidade do tempo, exigindo o aparecimento de outra forma de agir, de desejar e de julgar. Um evento é sempre uma ruptura que reconfigura o campo dos possíveis produzindo tal reconfiguração em nossas formas de vida que parecemos, mesmo que usemos as mesmas palavras de sempre, habitar um mundo totalmente diferente. No fundo, é desses eventos, e apenas deles, que a filosofia trata. Por isto, não seria incorreto dizer que toda questão filosófica é necessariamente vinculada a um evento histórico, ela é a ressonância filosófica de um evento. Assim, a filosofia cartesiana é solidária do impacto filosófico da física moderna. Ela é a elaboração, até as últimas consequências, da dissolução do mundo fechado pré-Galileu e do advento de um universo infinito de espaço homogêneo e a-qualitativa. A filosofia hegeliana, por sua vez, pode ser vista como fruto das aspirações emancipadoras da Revolução Francesa. Neste sentido, “sexo” será objeto do discurso filosófico quando ele aparecer como um evento. E a boa questão talvez seja: em que condições “sexo” e, principalmente, falar de sexo pode aparecer como um evento, como um acontecimento capaz de produzir reconfigurações profundas em nossa forma de vida? A continuidade do erotismo Podemos dizer que a filosofia do século XX conheceu três maneira diferentes de ver no sexo uma forma de evento. A primeira está nesta forma de centrar as discussões sobre sexo em uma genealogia da sexualidade. Assim, ao falarmos sobre sexo, perguntaremos sobre como tal fala produz individualidades a partir de discursos sociais que procuram legitimar formas diversas de intervenção. Procuraremos entender como tais discursos foram formados, como eles demonstram a natureza produtiva do poder. Isto nos permitirá pensar o poder não apenas como uma forma de coerção imposta que nos coage de fora, mas principalmente como um modo de produzir formas de vida, de dar forma a nossos desejos, sejam nossos desejos de normas, sejam nossos desejos de transgressões. Nesta chave, mostraremos como o aparecimento da sexualidade com sua ciência nos expõe as verdadeiras artimanhas do que significa falar de sexo para alguém, principalmente para alguém que se coloca na posição de detentor de um saber. Voltemos, por exemplo, ao caso de Freud e Dora. Ao falar francamente sobre sexo com uma garota, Freud não apenas escuta. Ele a ensina como falar, em que condições seu desejo pode ser colocado em discurso, qual história ele deve contar, qual conflito ele deve assumir. Falar não é apenas liberar. Falar é também internalizar uma gramática do desejo. Por isto, o simples atos de falar de sexo dentro de um quadro discursivo marcado pelos eixos de uma ciência já é uma forma do poder operar, não este poder que se expressaria através de uma pretensa submissão da minha vontade à vontade do médico. Mas o poder como o que opera em nós dois, seja através do desejo de falar, seja através do desejo de escutar, como o que define as condições do que significa falar e escutar. Mas o século XX conheceu também outras duas formas de compreender sexo como evento. Cada uma delas operou a partir de um conceito. Assim, ao falar sobre sexo não nos focaremos mais na genealogia da sexualidade mas, por exemplo, na força explosiva do que devemos entender por “erotismo”. Esta é a estratégia que vocês encontrarão em outro filósofo francês, de uma geração anterior à Foucault, a saber, Georges Bataille. É dele definições como: O que está em jogo no erotismo é sempre uma dissolução das formas constituídas. Repito-o: dessas formas de vida social, regular, que fundam a ordem descontínua das individualidades definidas que somos (...) Tratase de introduzir, no interior de um mundo fundado sobre a descontinuidade, toda a continuidade que esse mundo é capaz (...) A própria paixão feliz acarreta uma desordem tão violenta que a felicidade de que se trata, antes de ser uma felicidade de que seja possível gozar, é tão grande que se compara a seu contrário, ao sofrimento7. Não é difícil perceber como estamos longe do conceito foucaultiano de sexualidade. Não procuraremos mais saber como, através da assunção de uma sexualidade, constituímos formas, definindo nossa individualidade e nossa identidade. Individualidade que funda um mundo descontínuo, pois mundo composto por esses átomos sociais que são os indivíduos modernos com seus sistemas particulares de interesses que procuram mediar seus conflitos de interesses através de contratos, de limites, de cálculos. Interesses, por sua vez, submetidos à lógica utilitarista da maximização do prazer e do afastamento do desprazer. Bataille acredita que é tarefa filosófica fundamental fornecer as coordenadas para uma crítica da modernidade capaz de demonstrar como o advento do sujeito moderno se realiza, necessariamente, através da organização de uma sociedade composta por indivíduos. Os indivíduos são a unidade mínima da vida social e tais indivíduos se relacionam a coisas a partir de sua utilidade suposta. O mundo da sociedade dos indivíduos é o mundo das coisas úteis ou inúteis, mundo das coisas que produzem prazer ou desprazer. Mas, principalmente, mundo no qual as relações entre pessoas segue a mesma lógica que as relações às coisas. Mundo de pessoas úteis ou inúteis, mundo de pessoas que produzem prazer ou desprazer. Mundo no qual posso avaliar relações entre pessoas da mesma forma que avalio processos financeiros baseados em investimentos (“É, eu investi muito”) e rentabilidade (“Não tive nenhum retorno”). Ou seja, mundo no qual a lógica calculadora do trabalho no interior da indústria capitalista fornece o fundamento para todas as formas de experiência social. Este mundo, dirá Bataille, desconhece duas experiências fundamentais, que tecem entre si relações profundas: o erotismo e o sagrado. Pois o erotismo e o sagrado seriam fenômenos sociais capazes de introduzir, no interior de um mundo fundado sobre a descontinuidade, toda a continuidade de que esse mundo é capaz. Isso significa que estaríamos diante de fenômenos irracionais a partir da lógica utilitarista que guia os indivíduos e suas relações. Vale para o sagrado, o que Bataille diz sobre o erotismo: 7 BATAILLE, Georges; O erotismo, op. cit., pp. 42-43 O erotismo é a meus olhos o desequilíbrio em que o próprio ser se coloca em questão, conscientemente. Em certo sentido, o ser se perde objetivamente, mas então o sujeito se identifica com o objeto que se perde. Se for preciso, posso dizer, no erotismo: EU me perco8. Veremos nas nossas próximas aulas o que pode significar uma experiência do erotismo e do sagrado pensada desta forma. Por enquanto, vale a pena insistir em um ponto. Através da construção de uma noção de “erotismo” desta natureza, Bataille quer pensar com o sexo pode produzir um evento impensável no interior de nossas sociedades capitalistas, nessas mesmas sociedades que mais de um crítica descreveu como sociedades hedonistas. Ele quer mostrar como as sociedades capitalistas não são apenas economicamente injustas, mas principalmente elas organizam nossas formas de vida a partir da exclusão de experiências que retiram da vida sua mobilidade e força. Notemos como há, aqui, ao mesmo tempo, uma tentativa de retornar à experiências pré-modernas do sagrado e do erotismo para fornecer o fundamento da crítica social no capitalismo avançado. Mas este retorno é animado por um evento histórico preciso. Como veremos, a experiência prémoderna só aparece à Bataille desta forma porque ela é vista a partir dos olhos de alguém animado por uma profunda experiência estética de ruptura ligada ao modernismo, em especial ao surrealismo. O mesmo surrealismo do qual Bataille representava a versão não-oficial, em conflito contínuo com aquela representada por André Breton. Neste sentido, através da reflexão filosófica sobre o sexo, Bataille procura pensar um evento que teria a força de, ao mesmo tempo, fornecer a explicação sobre porque sofremos no interior das formas de vida hegemônica do capitalismo e abrir a vida social para o impacto de experiências estéticas maiores da primeira metade do século XX. Gênero A terceira maneira que veremos nesse curso de falar sobre sexo, e ela só ganha força nas últimas décadas do século XX e no início do nosso século, passa pelo uso do conceito de “gênero”. Foi a filósofa norte-americana Judith Butler quem se responsabilizou pela transformação de um conceito psiquiátrico em forte conceito de orientação para práticas de transformação social. Seu verdadeiro inventor foi o psiquiatra Robert Stoller em um livro de (vejam só vocês) 1968 intitulado Sexo e gênero. Nele, Stoller procurava descrever os processos de construção de identidades de gênero através da articulação entre processos sociais, nomeação familiar e questões biológicas. Judith Butler, por sua vez, irá levar às últimas às últimas consequências a distinção entre sexo (configuração determinada biologicamente) e gênero (construção culturalmente determinada). No seu caso, não se trata de fornecer uma nova versão da distinção clássica entre natureza e cultura, até porque gênero, segundo Butler: “é o aparato discursivo/cultural através do qual ‘natureza sexual’ ou ‘sexo natural’ são produzidos e estabelecidos como ‘pré8 Idem, p. 55 discursivo’, como prévios à cultura, uma superfície politicamente neutra na qual a cultura age”9. Tal noção de gênero como ante-câmara de produção da ‘natureza sexual’ permite a Butler, entre outras coisas, defender o caráter ideológico de uma noção binária de gênero (masculino/feminino), já que: “a pressuposição de um sistema binário de gênero depende da crença em uma relação mimética entre gênero e sexo na qual gênero espelha sexo ou é, por outro lado, restringido por ele”10. Diferentemente da noção foucaultiana de “sexualidade”, que é acima de tudo um conceito eminentemente crítico, a ideia de “gênero” está carregada de uma teoria da ação política, teoria que procura entender a maneira com que sujeitos lidam com normas, subvertem tais normas, encontram espaço produzindo novas formas, não apenas como eles são sujeitados às normas e completamente constituído por elas. Por isto, pelas mãos de Butler, a teoria de gênero não será apenas uma teoria da produção de identidades. Ela será uma astuta teoria de como, através da experiência de algo no interior do sexo que não se submete integralmente às normas e identidades, descubro que ter um gênero é um “modo de ser despossuido”11, de abrir o desejo para aquilo que me desfaz no outro. Daí uma afirmação como: A sociabilidade particular que pertence à vida corporal, à vida sexual e ao ato de tornar-se um gênero [becoming gendered] (que é sempre, em certo sentido, tornar-se gênero para outros) estabelece um campo de enredamento ético com outros e um sentido de desorientação para a primeira pessoa, para a perspectiva do Eu. Como corpos, nós somos sempre algo mais, e algo outro, do que nós mesmos12. Aqui, mais uma vez, sexo aparece como o nome de um evento marcado pelo advento das exigências de reconhecimento do que, até então, estava expulso do universo do humano. Do que era visto como patológico, doentio e, por isto, sem direito à existência, como inumano, pois sem identidade fixa e definida. A modificação da sensibilidade social e da sensibilidade médica para problemas de gênero foi um acontecimento de forte ressonância filosófica, pois nos colocaria diante da compreensão de como nossa humanidade depende do reconhecimento de alguma forma de proximidade com o que colocamos na vala do inumano. Notem então como no caso do uso desses três conceitos (erotismo, sexualidade e gênero) por três filósofos (Georges Bataille, Michel Foucault, Judith Butler) em três momentos intelectuais distintos vemos três estratégias diferentes, embora não completamente divergentes, da filosofia se voltar para uma matéria que lhe é exterior, problematizando aspectos de um mesmo fenômeno: o espanto diante da experiência sexual. Por isto, este curso será organizado através da leitura de três livros. Esta é a leitura obrigatória de vocês: “O erotismo”, de Georges Bataille, o primeiro volume de “História da sexualidade”, de Michel Foucault e “Problemas de gênero”, de Judith Butler. O curso será, em larga medida, uma apresentação comentada desses três livros, ou 9 BUTLER, Judith ; Gender trouble ,New York : Routledge, 1999, p. 11 idem, p. 10 11 Idem, Undoing Gender, New York: Routledge, 2004, p. 19 12 Idem, p. 25 10 de trechos deles. Mas é fundamental que vocês os leiam integralmente para que a experiência do comentário possa funcionar. Ao ler tais livros, lembrem como esses três filósofos tecem, ainda, relações profundas de proximidade. Foucault escreveu sobre Bataille e conhecia bem sua obra, o mesmo vale para Judith Butler sobre Foucault. Há, entre os três, uma interessante circulação de pensamento que não se dá sobre a forma tradicional da influência ou da continuidade. Há uma circulação de pensamento por exploração de possibilidades não trilhadas, como se uma experiência de pensamento fosse sempre algo que deve ficar incompleto, que deve deixar alguns fios descosidos que poderão entrar em tramas completamente diferentes. Esses que leem procurando o ponto no qual os textos de descosem podem não ser os leitores mais fieis, mas são certamente os melhores, os únicos que compreendem o texto filosófico como um processo aberto de invenção. As vezes, a infidelidade é a maneira que o pensamento tem de afirmar sua produtividade. Fidelidade nunca foi uma virtude filosófica, embora a pura e simples incapacidade de entrar nos textos de maneira rigorosa esteja também longe de ser algo a se vangloriar. Por isto, sugiro que vocês vejam este curso como a exposição uma forma de fazer comentário filosófico que não é apenas a imersão na textualidade interna de certos textos da tradição, mas que seja a capacidade de identificar e constituir problemas filosóficos. De fato, vocês aprenderão técnicas fundamentais para todo e qualquer processo filosófico de leitura de textos da tradição : saber identificar o tempo lógico que nos ensina a reconstituir a ordem das razões internas a um sistema filosófico, pensar duas vezes antes de separar as teses de uma obra dos movimentos internos que as produziram, compreender como o método se encontra em ato no próprio movimento estrutural do pensamento filosófico, entre outros. Trata-se de um ensinamento fundamental para a constituição daquilo que chamamos de “rigor interpretativo” que respeita a autonomia do texto filosófico enquanto sistema de proposições e não se apressa em impor o tempo do leitor ao autor. Rigor que nos lembra como o ato de “compreender” está sempre subordinado ao exercício de “explicar”. Mas ele não define o campo geral dos modos filosóficos de leitura. Ele define, isto sim, procedimentos constitutivos da formação de todo e qualquer pesquisador em filosofia. Ele é o início irredutível de todo fazer filosófico mas, por mais que isto possa parecer óbvio, o fazer filosófico vai além do seu início. Por isto, talvez seja interessante aproveitar o início do curso de vocês e mostrar algo diferente do que normalmente nos mostraríamos. Esta é uma maneira de fazer uma aposta na capacidade especulativa de boa parte de vocês. Tenho certeza de que este é o melhor caminho.