psicanálise e evolucionismo

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PSICANÁLISE E EVOLUCIONISMO
Antônio Teixeira
Psicanalista da EBP-MG
Professor UFMG
Palestra proferida no dia 14 de março de 2009
No projeto Estação Pátio Savassi
Quando Júlia me convidou a intervir nessa estação do saber,
consagrada às efemérides de Charles Darwin, para falar sobre uma possível
articulação entre a psicanálise e o tema do evolucionismo, a primeira idéia que
me ocorreu foi a proximidade, talvez já conhecida entre alguns de vocês, que
Freud aponta entre a repercussão suscitada pela psicanálise e pelas doutrinas
de Copérnico, no plano da astronomia, e de Darwin e Wallace no que tange à
seleção natural.
No entender de Freud, a destituição do eu e da consciência, pela
psicanálise, do seu lugar central no funcionamento da mente, estaria em
continuidade com os gestos através dos quais Copérnico e Darwin teriam
desalojado, respectivamente, a terra do seu lugar central no cosmos e o
homem de seu lugar diferenciado na Criação. Para explicar, então, a
hostilidade suscitada pela psicanálise, tanto nas comunidades leigas quanto
nas comunidades científicas, comparável ao furor gerado por seus dois
predecessores, Freud irá se valer, na 18ª conferência de introdução à
psicanálise (1922), da idéia de uma ferida narcísica infringida pela ciência
sobre o amor próprio (Eigenliebe) da humanidade.
O amor próprio funcionaria assim – para retomar uma expressão cara a
Bachelard - como uma espécie de obstáculo epistemológico à progressão da
ciência, do momento em que ele abriga uma recusa relativa a uma verdade da
qual o eu se recusa a tomar conhecimento. Essa verdade sonegada,
comparável ao conteúdo ideativo recalcado pela neurose, encontrar-se-ia
assim recusada na medida em que coloca justamente em questão a imagem
sobre a qual o eu se constitui. O fato, portanto, do Eu se compor como uma
função
essencialmente
imaginária,
erigida
através
das
sucessivas
identificações do sujeito, estaria desse modo na origem dessa recusa dirigida à
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ciência enquanto saber que desestabiliza os esquemas imagéticos do antigo
modelo de conhecimento.
É, aliás, por se manter ainda cativo da imagem que Copérnico, aos
olhos de Lacan, não teria sido tão revolucionário ou tão copernicano como
normalmente se crê. Pois embora possamos lhe atribuir o mérito de ter
concebido, para a astronomia, um modelo que retira a Terra do centro do
cosmos, ainda assim ele mantém o centro em seu esquema de pensamento.
Coube a Kepler, e não a Copérnico, o mérito de ter rompido com a boa forma
imaginária da figura do centro e do círculo, ao propor a trajetória elíptica para
se pensar a órbita da Terra e dos demais planetas (a quem interessar possa:
atitude estética e pensamento científico – Panofsky).
Do mesmo modo, embora a teoria de Darwin tenha retirada o homem de
seu lugar a parte, no plano da criação, ela nem por isso deixou de nos manter
no topo da evolução. Centro e topo, em ambos os casos, ainda se mantêm,
como se houvesse uma dificuldade, da parte dos próprios cientistas, em aceitar
o rompimento com o modelo hierárquico do pensamento. O universo da
ciência, a despeito dos próprios cientistas, é essencialmente isonômico, ele
não admite nenhum tipo de hierarquia entre seus elementos. Mencionar o
resquício de alquimia na tabela periódica, a lei da inércia de Descartes.
Podemos falar, portanto, de uma ferida narcísica infringida pela ciência
moderna ao amor próprio da humanidade, na medida em que o narcisismo se
constitui como uma demanda de privilégio, de exceção para si mesmo. É
justamente contra isso que se coloca a psicanálise, ao negar ao eu e à
consciência os privilégios até então concedidos pela psicologia que lhe
antecedera.
Mas se foi preciso que Freud fosse cientista, ou pelo menos
reconhecido, em sua época, como um representante do saber científico por
aqueles que o procuravam, é porque o sofrimento neurótico com o qual ele foi
se haver decorre essencialmente desse não querer saber referido a um desejo,
ou a uma representação pulsional, que não convém com a harmonia dessa
imagem requerida pelo narcisismo do eu. Ao adotar, como técnica de
tratamento, o princípio de associação livre, em que se pede ao paciente que
diga, sem selecionar, o que lhe vem à mente, Freud visa justamente desvelar a
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representação do desejo recalcado, reduzindo ao máximo as obstruções
causadas pelas exigências imagéticas do eu.
O interessante, contudo, é Freud perceber que essas representações
recalcadas, essencialmente desarmônicas, dizem invariavelmente respeito à
realidade sexual do sujeito. Se por um lado o Eu se constitui, mediante a série
das identificações que ao longo da vida adquirimos, a partir da imagem social
em que se representa o sujeito, existe algo com relação ao sexo que se coloca
numa orientação essencialmente contrária ao projeto civilizatório da sociedade,
pelo que Freud constata que tanto o recalque quanto a neurose seriam
produtos inevitáveis da condição civilizada do homem. Disso testemunha o fato
da interdição do incesto como elemento universal a todas as culturas.
Para entrar finalmente na reflexão psicanalítica sobre a teoria
evolucionista, eu poderia me valer da tese, mencionada por Freud, de que a
aquisição evolutiva da postura ereta, além de causar, é claro, as nossas
malditas hérnias lombares e dores de coluna, teria gerado uma separação
entre o sexo e o olfato ao mesmo tempo que exposto os órgãos sexuais que se
encontram normalmente ocultos na posição quadrúpede. Disso resultaria, no
entender de Freud, tanto uma separação entre o sexo e o olfato que
concorreria para o recalque da sensibilidade sexual, quanto a reação de pudor
visando re-ocultar os órgãos sexuais que a postura ereta teria exposto.
Mas eu gostaria de convidar vocês a uma reflexão distinta acerca da
relação entre o recalque da sexualidade e a evolução do antropóide para o
homo sapiens. No meu entender, essa relação entre a evolução humana e o
recalque sexual estaria condicionada por um momento específico que
determina nossa condição evolutiva, ao qual diz respeito ao gesto que inaugura
uma percepção instrumental do mundo, por razões que tentarei expor na
seqüência.
Revejam, por exemplo, a passagem inicial de 2001: Uma Odisséia no
Espaço, de Stanley Kubrick. Vocês notarão claramente que a transição do
assim chamado tempo circular ou da natureza, tempo da repetição indefinida
em que os dias se sucedem monotonamente iguais, vocês verão que a
passagem do tempo circular para o tempo linear, ou evolutivo, marcado pelo
progresso do conhecimento e da tecnologia humana que culmina com a nave
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espacial, pois bem, essa transição está ali representada pela aquisição da
habilidade instrumental. É no momento em que o símio antropóide se serve de
um fêmur de caça como instrumento de combate e defesa que se marca
alegoricamente, na visão de S. Kubrick, o ponto de transição para a evolução
propriamente humana, cujo tempo linear segue o ritmo retumbante e pomposo
do Zaratustra de Strauss.
A transformação do elemento da natureza em instrumento, ou utensílio,
é solidária, portanto, do tempo linear, do tempo do progresso que só foi
possível quando se introduziu no mundo, através do trabalho, uma relação de
exterioridade entre o homem e a natureza. O objeto utensílio é o elemento do
qual eu me separo, do qual eu deixo de participar, para submetê-lo a um fim
que lhe é exterior. Referência ao protesto romântico, à doutrina das cores de
Goethe.
Acontece, porém, que se por um lado o elemento do mundo, convertido
em instrumento, passa a ser considerado em relação a um fim exterior a ele, o
próprio fim a se alcançar pelo instrumento acaba sendo colocado, nessa
mesma perspectiva, como meio para outra meta que por sua vez também o
transcende, sem que se possa determinar qual seria a finalidade última desse
circuito. Assim ocorre com o pau, que perfura o solo, para cultivar a planta que,
por sua vez, serve para manter a vida de quem procura o pau para perfurar o
solo, e daí por diante, indefinidamente (BATAILLE, Teoria da religião, p. 298).
O utensílio submete, desse modo, o próprio homem que dele se serve à
servidão desse circuito contínuo, alienando-o também, por sua vez, como um
meio para algo que lhe é exterior.
Disso resulta que se quisermos pensar uma finalidade última, ou
soberana, ou seja, de algo que não seria meio para outra coisa, essa finalidade
última somente pode ser concebida como algo absolutamente inútil, que não
pode ser convertido em instrumento. Somente num mundo de seres
indistintamente supérfluos se pode conceber a dimensão soberana daquilo que
para nada serve, que existe como fim em si, e não em vista de outra coisa
(IDEM).
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Se considerarmos, então, que o homem se define como ser de
linguagem, não deixa de ter interesse constatar que nessa humanização
instrumental do mundo introduzida pelo trabalho – a qual se atesta pela
presença de utensílios nos mais remotos lugares em que uma comunidade
humana se formou – é a captura dos seus elementos numa montagem que
define a própria esfera das relações coordenadas pelas leis da linguagem.
Assim como o objeto encadeado na montagem utilitária deixa de ser
considerado por si mesmo, para ser visto somente como uma peça em relação
ao sistema de uso em que ele se encadeia, na montagem simbólica
estruturada pela linguagem cada palavra, cada elemento significante encontra
seu valor determinado para além de si mesmo, conforme as relações que
entretém com os demais elementos do sistema que ali se compõe.
É, portanto, nesse mundo humanizado pelo trabalho e estruturado como
um sistema de linguagem, que Bataille nos convoca a considerar o fenômeno
ritual do sacrifício abordado nos estudos de antropologia. Mas o que lhe
importa não é, propriamente falando, captar qual seria o verdadeiro sentido do
sacrifício, conforme tentaram os antropólogos que o antecederam; no seu
entender, o que o sacrifício coloca em suspenso é justamente a dimensão do
sentido regulado pelas leis da linguagem.
Podemos, por isso, afirmar que o sentido do sacrifício consiste no
sacrifício do sentido. Por suspeitar que a lógica do sentido seja uma lógica
derivada do mesmo interesse servil do mundo instrumental, Bataille propõe que
se conceba a experiência do sacrifício, fora da regência do sentido. O sacrifício
é somente soberano na medida em que o discurso significativo não o informa.
Se não faz, por conseguinte, sentido perguntar qual seria a utilidade social do
sacrifício, na visão de Bataille, é porque o sacrifício vem romper precisamente
com o circuito da utilidade e do sentido. A utilidade do sacrifício é o próprio
sacrifício da utilidade, posto que a sua função – se é que se pode
legitimamente atribuir uma função ao sacrifício – é de restituir ao mundo
sagrado da participação íntima aquilo que o uso servil ou instrumental
degradou (IDEM, p. 308).
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O sacrifício se opõe à humanização do mundo pelo trabalho,
dissolvendo a relação de exterioridade que o trabalho mantinha entre o sujeito
e as coisas. E do momento em que o uso servil dos elementos do mundo fez
um objeto utensílio daquilo que, originariamente, não estaria separado do
sujeito, o sacrifício destrói este objeto enquanto utensílio para restaurar a sua
relação original de participação.
O que se busca, portanto, é a intimidade perdida da existência soberana
à qual responde o sentimento de sagrado, cujo sentido é dado na destruição
que visa a consumir sem proveito, no sentido de retirar o objeto do
encadeamento
das
obras
úteis.
Desse
desejo
decorre
o
problema
incessantemente colocado pela impossibilidade de ser humano sem cair na
condição de exterioridade instrumental, e dessa condição escapar sem retornar
à intimidade da condição animal. A esse problema, prossegue Bataille, foi
dado “a solução limitada da festa”, no sentido em que é bem um desejo de
intimidade indiferenciada e destruição que ali explode, embora freado por uma
organização social que a contem. O desencadeamento da festa é uma
operação de certo modo encadeada, cerceada nos limites de uma realidade à
qual a festa se opõe.
Se quisermos então pensar, para retornarmos ao que havíamos
anunciado, a relação que se coloca entre a transformação instrumental do
mundo que condiciona a passagem do animal ao homem e o recalque da
sexualidade como condição do processo evolutivo, é preciso entender que na
relação do sujeito ao sexo se expõe o objeto de gozo, o qual se define,
justamente, por não se prestar a nenhum tipo de utilidade. Se quiserem um
exemplo, pensem na demanda de amor, na qual a pessoa se delicia com a
idéia de ser tomada como fim em si mesma, e sente-se aviltada ao menor sinal
de estar sendo usada como meio para algo que lhe é exterior. A metáfora da
boca que a si mesma se beija, proposta por Freud para pensar o auto-erotismo,
define claramente, por sua vez, o arranjo do circuito pulsional como fim em si
mesmo, independente de qualquer finalidade que a cultura tenta atribuir-lhe.
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Disso decorre, a nosso entender, que o aspecto propriamente
escandaloso da descoberta freudiana não se deixa explicar simplesmente por
uma suposta liberação do dizer sexual. Esse escândalo se deve antes ao fato,
que a prática psicanalítica evidencia, de que o sexo não se encontra
naturalmente subordinado, como coisa ou objeto instrumentalizado do mundo,
a nenhum tipo de finalidade exterior a sua própria satisfação, seja esta a
finalidade biológica (reprodução) ou a finalidade cultural (sublimação). Se há
algo de específico, com relação ao sexo, que o coloca em posição de escória
ou de resto, no interior do mundo instrumentalmente ordenado, esse algo, que
a idéia freudiana de uma perversão polimorfa infantil ressalta, é justamente a
soberania da satisfação sexual como fim em si, dissociado de toda espécie de
vínculo para com as normas instrumentais da cultura.
Na verdade existe, como nota Bataille, um caráter contagioso na
atividade sexual que exclui a possibilidade de sua observação objetiva como
coisa neutralizada pela percepção científica. Não se pode ter da atividade
sexual uma visão objetiva pela impossibilidade mesma de instrumentalizar essa
atividade como meio para um outro fim (BATAILLE, 1957, p. 169). É impossível
ter do sexo um conhecimento puramente instrumental, posto que não se pode
conhecer o sexo sem dele ter alguma espécie de participação íntima, seja ela
na forma da excitação que nos atrai, seja ela na forma do sentimento de
náusea que nos causa repulsa.
Foi Tim Maia quem disse uma vez que o Brasil não conhece o
progresso, porque aqui a prostituta se apaixona e o cafetão tem ciúmes. Seja
qual for a validade dessa observação, ela nos permite pensar, ainda que por
uma via anedótica, que o que põe a perder a instrumentalização da pulsão é
justamente o fracasso de destiná-la ao uso separado do sujeito.
Por outro lado, é bem verdade que existem, como se sabe, tentativas
quase sempre patéticas de objetivar a realidade sexual, num esforço de tratar o
sexo como objeto instrumentalizável do mundo. Pelo menos as pessoas de
minha geração já devem ter ouvido falar no outrora famoso relatório Shere Hite,
que consistia numa tentativa de estabelecer, mediante um inventário de
depoimentos levantados pela autora, algum tipo de configuração objetivável
dos avatares da sexualidade feminina. Pois são justamente os impasses
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dessas tentativas de objetivação do sexo que interessam a Bataille, quando ele
se debruça sobre o antecessor masculino do relatório Hite, o relatório Kinsey,
tanto mais que esses impasses revelam a posição de escória do sexo no
interior do mundo ordenado pela instrumentalização do trabalho.
O que interessa particularmente a Bataille, no relatório Kinsey, é o fato
de não ser a devoção religiosa que inibe a atividade sexual, como se é levado
normalmente a supor. O que inibe a atividade sexual (conforme demonstra
claramente o relatório) é a devoção ao trabalho, pelo que se observa o maior
grau de atividade sexual na escória social (underworld) que desse regime se
encontra excluída. Pois se é através do trabalho que o homem ordena o mundo
dos objetos-coisa e se reduz, neste mundo, a uma coisa como meio para
outras, essa transformação exige precisamente a renúncia da relação ao sexo
que para nada serve.
Assim, ao passo que a humanidade, no que ela se define pela relação
ao trabalho, tende a sacrificar a exuberância sexual, a sexualidade, qualificada
de bestial, é o que mais se opõe à redução do homem à condição instrumental
de objeto-coisa. Mas se a atividade sexual se opõe ao conjunto dos
comportamentos humanizados, é porque pelo trabalho se determina a via da
consciência por meio da qual o homem saiu da animalidade e adquiriu a
faculdade de discernimento objetivo das coisas. E na medida em que a
humanidade se definiu pelo trabalho e pela consciência, ela maldisse a
exuberância sexual, fazendo, da relação com o sexo, uma experiência que,
embora soberana, estaria para sempre marcada pelo sentimento de asco e
vergonha.
Não havendo, portanto, nenhuma propensão natural da pulsão ao
arranjo instrumental definido pela cultura, a humanização da criança depende
de que se lhe ensine, constata Bataille, “a estranha aberração que é o nojo
(dégoût)”(IDEM, p. 66). De modo que se, para Freud, o nojo (der Ekel)
corresponde ao sintoma de recalcamento de uma antiga zona erógena
(FREUD, 1999, t. V, p. 188-189), é na medida em que o que instrumentaliza a a
libido, destinando-a a uma finalidade exterior definida pela cultura, é o mesmo
fator que gera, na percepção do sujeito, o sentimento de asco frente a um
objeto que outrora fora investido libidinalmente.
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Tanto o asco, como o sentimento de vergonha que lhe corresponde, vêm
funcionar, explicita Freud, à maneira de diques (gleichwie Damme) destinados
a represar a libido, forçando o sujeito a interromper seu curso rumo a um
determinado objeto para o qual ela então fluía (FREUD, 1999, t. V, p. 78-79). O
asco somente se manifesta porquanto persiste, enlaçado a esse objeto, uma
participação libidinal que faz com que este ainda se encontre confundido com o
sujeito. Para usar finalmente a terminologia de Bataille, pode-se dizer que
sentimos asco diante daquilo com relação ao qual mantemos uma espécie de
participação íntima que, por persistir, contraria as exigências que nos impõe a
cultura de nos desfazer dessa participação.
Há, por conseguinte, nessa participação íntima que resiste a ser
desfeita, um fator de viscosidade, inerente à libido, contra a qual o sujeito reage
através dos sentimentos de asco ou de nojo. Não é por esse motivo casual que
encontremos em Freud, em suas considerações sobre a análise interminável, a
surpreendente expressão viscosidade da libido (Klebrigkeit der Libido)
(FREUD, 1999, t. XVI, p. 87).
E muito embora esse termo venha evocar, no dicionário de Laplanche, a
representação freudiana da libido como uma corrente líquida que flui
(LAPLANCHE, 1986, p. 685), o que na verdade está ali em questão é menos a
representação líquida de uma libido que escorre do que a dificuldade
experimentada pelo sujeito dela se lavar, ou seja, de abandonar esse vínculo
de participação íntima para com o objeto que a sexualidade comporta.
É como se houvesse um resíduo de participação libidinal pelo qual o
objeto, que resiste a sua transformação em instrumento, nos convoca à
participação íntima que deveria se interromper com essa transformação. A
experiência do asco seria, por sua vez, a reação subjetiva ao elemento viscoso
que convoca o sujeito a interromper o encadeamento indefinido das coisas em
seu projeto de transformação instrumental do mundo como realidade utilitária,
trazendo-o de volta ao vínculo da participação íntima.
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A idéia de uma viscosidade inerente à libido diz, portanto, respeito à
relação pulsional do sujeito ao desejo, a qual resiste a ser encadeada a uma
finalidade externa. Se quisermos então explorar o sentido, por assim dizer,
metapsicológico, dessa relação entre o asco e a viscosidade, cujo exemplo
seria o caso, mencionado por Freud, da repulsa infantil pela nata, valeria a
pena recorrer a um estudo pouco comentado de Jean-Paul Sartre, autor, como
vocês sabem, de A náusea, o qual propõe uma verdadeira analítica do viscoso
ao final do último capítulo de O Ser e o Nada.
Conforme expõe Sartre, a maneira pela qual a qualidade de um objeto é
percebida encontra-se ligada ao modo de sua apropriação. Um usineiro
percebe a cana de açúcar de modo distinto de um produtor de cachaça. A
qualidade seria efeito da conversão do objeto, enquanto ser em si, no que ele é
para a consciência que o nega, no sentido em que a percepção do objeto
encontra-se condicionada pelo modo de sua apropriação. Essa conversão se
dá em conformidade com o projeto que determina essa relação apropriativa do
objeto, que, como vimos, chega à percepção como instrumento ou utensílio no
mundo definido pelas relações de trabalho.
Mas a qualidade do objeto não reduz a um simples modo de projeção do
sujeito sobre a coisa que ele nega, nessa apropriação instrumental. Existe
também a resistência do objeto, que se opõe a esse esforço de apropriação
instrumental. Essa resistência do objeto, que não se deixa transformar em
instrumento, que cobra, portanto, de mim, uma intimidade, é percebida
justamente através da qualidade do viscoso.
Se o projeto pelo qual o homem humaniza o mundo através do trabalho,
equivale, como se viu, ao plano de sua apropriação instrumental, que consiste
em tratar o elemento do mundo como utensílio separado do sujeito, fazendo
cessar a sua relação original de participação, o elemento viscoso é aquele que
se opõe a esse projeto pela maneira particular que ele tem de fisgar aquele a
quem ele se dá. É como se a viscosidade, em seu contato, fosse o sentido de
ser em si, que cobra uma intimidade de quem pensa dele poder se apropriar na
exterioridade do uso instrumental. O elemento viscoso exige um vínculo de
participação íntima que põe a perder o projeto de sua apropriação como
utensílio.
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O elemento viscoso é um ser do qual acreditamos poder nos apropriar,
mas que, ao mesmo tempo, não se possui jamais: ele escapa de nós e a nós
se une quando dele queremos nos livrar. Ele nos escapa como a água, mas
sem que se possa apropriar de sua propriedade de escapar-se (para se lavar,
por exemplo), já que ele igualmente se nega como fuga, colando-se ao corpo
do qual parece escapar. Sua fuga líquida é quase uma permanência sólida, a
qual se põe a perder ao mesmo tempo em que não nos abandona.
Se a atividade humana é, pois, uma mediação negadora, em seu projeto
apropriativo do elemento do mundo, há no viscoso uma resistência que se
recusa a se aniquilar em seu ser, ao mesmo tempo que um amolecimento que
seria um aniquilar-se a meio caminho (IBIDEM). O viscoso é compressível, dá
a impressão que se pode possuí-lo, mas no momento em que creio possuí-lo, é
ele que me possui. Ali está seu caráter essencial: sua moleza faz ventosa. Eu
quero largá-lo, mas o viscoso se adere a mim. Ele me aspira, cobra de mim
uma participação.
Se é, pois, por um lado, com a “docilidade suprema” do ser possuído
que ele se dá, mesmo quando não se o quer mais, por outro lado o que se
realiza, sob esta docilidade, é uma “apropriação dissimulada do possuidor pelo
possuído”. O símbolo, que ali se destaca, é o mesmo que se desdobra nos
temas das possessões venenosas (IDEM, p. 655): tal como a túnica enviada
como presente por Djanira à Hércules, que se cola inexoravelmente à sua pele,
até levá-lo à morte, o elemento viscoso termina por absorver o sujeito que dele
queria se apropriar. O viscoso é, pois, a revanche do elemento do mundo do
qual eu acreditava poder dispor sem dele participar, em vista de uma finalidade
exterior. Poderíamos mesmo dizer que ele é o anti-utensílio.
Se Freud vê então, na viscosidade da libido, um elemento não
analisável, impossível de modificar, chegando a concebê-la ao modo de um
fator constitucional constante que se agrava com o envelhecimento, pode-se
arriscar a dizer que pela viscosidade se define a dimensão não utilizável que a
libido manifesta em sua experiência. Dela deriva a permanência inevitável, em
todo e qualquer tratamento, de um resíduo sintomático que nunca se logra
dissipar, em que pese os melhores e mais bem intencionados esforços
terapêuticos.
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Pois essa falta de êxito não se deve a uma insuficiência terapêutica que
um aprimoramento técnico da psicanálise poderia sanar; o que está em
questão é a composição libidinal do sintoma que não pode ser orientada para o
tratamento. O que se revela, nessa aderência do sujeito ao sintoma intratável,
é a própria viscosidade da libido cuja presença se atesta, aos olhos de Freud,
na forma de uma energia não utilizável, comparável ao fator de entropia no
sistema físico (FREUD, IDEM, p. 87). Isso nos obriga a considerá-la em sua
condição soberana, conforme descreve Bataille, a propósito do que para nada
serve, e que portanto se opõe, no caso da experiência analítica, a todo tipo de
finalidade terapêutica.
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