Universidade Federal do Rio Grande do Sul Faculdade de Medicina Disciplina: Métodos de Abordagem em Saúde Comunitária RELATÓRIO SOBRE AS VISITAS À UBS VILA PINTO Giordani Rodrigues dos Passos e Samuel Millán Menegotto – Turma D INTRODUÇÃO Como parte das atividades desenvolvidas na disciplina de Métodos de Abordagem em Saúde Comunitária e no intuito de conhecer o Programa Saúde da Família, realizamos, ao longo do primeiro semestre de 2008, uma série de visitas à Unidade Básica de Saúde Vila Pinto. A Vila Pinto, localizada na zona leste de Porto Alegre, compõe, juntamente com as vilas Fátima e Divinéia, a região conhecida como Grande Mato Sampaio, que abriga cerca de 12.000 habitantes, distribuídos em mais de 2.500 famílias. Aproximadamente 70% desta população têm idade inferior a 40 anos. A grande maioria possui baixo poder aquisitivo e baixo nível de escolaridade e de profissionalização. A reciclagem de lixo é uma das principais ocupações dos habitantes da comunidade. Na década de 90, a região era tida como uma das mais violentas de Porto Alegre. As mulheres eram usadas como “mulas” pelo tráfico e as crianças e os adolescentes ficavam completamente vulneráveis à drogadição, à exploração e ao abuso sexual. Hoje a Vila Pinto é toda asfaltada e iluminada; as casas, antes feitas de madeira, agora são, quase todas, de alvenaria. Das dezenas de pontos de tráfico que existiam, restaram apenas alguns. Mesmo assim, ainda hoje os moradores são forçados a conviver com uma guerra que se arrasta há anos: três grupos rivais (os Mirandas, os Bragés e, mais recentemente, os Bala na Cara) disputam negócios lícitos e ilícitos na região, resultando em um alto índice de homicídios entre jovens, principalmente do sexo masculino. A atenção primária à saúde é feita, na Vila Pinto, por uma Unidade Básica de Saúde que conta com uma médica, uma enfermeira, duas técnicas de enfermagem e quatro agentes comunitárias. A população atendida é composta por cerca de 1.000 famílias (4.500 pessoas). Para alguns procedimentos que não são realizados na UBS Vila Pinto (consulta com dentista, por exemplo), os moradores são encaminhados ao posto vizinho, que fica no bairro Bom Jesus e atende 24 horas por dia. RELATO DA 1ª VISITA No dia 03/04/2008, fizemos a primeira visita à UBS Vila Pinto. Fomos muito bem recebidos e conhecemos a equipe do posto. Aliás, cabe registrar que a equipe da UBS Vila Pinto tem uma peculiaridade: sua composição é basicamente a mesma há muitos anos, o que é raro, visto que a rotatividade no PSF costuma ser alta (especialmente nos cargos de médico e enfermeiro). A enfermeira Marinês inicialmente encarregou-se de mostrar-nos as instalações do posto, que são muito bem conservadas. A casa que abriga a UBS passou por reformas recentemente e hoje possui dependências muito bem adaptadas às suas necessidades, incluindo, por exemplo, uma sala para manuseio e esterilização de materiais contaminados. A infra-estrutura só não era melhor porque muitos equipamentos estavam sem condições de uso. A geladeira destinada ao armazenamento das vacinas estava estragada (só seria consertada muitas semanas mais tarde), obrigando a população a buscar o posto da Bom Jesus para obter as vacinas que estavam em falta na Vila Pinto. Nenhum dos vários otoscópios disponíveis tinha pilha. Segundo a enfermeira, não seria muito difícil conseguir pilhas sem depender do governo, mas deixar os otoscópios parados era a única forma de pressionar as autoridades, não só quanto às pilhas, mas também em relação a outros recursos pendentes. A seguir, a enfermeira Marinês e a Dra. Silvia colocaram-nos a par do funcionamento do posto. Conhecemos a agenda (como as consultas e demais atividades da equipe são distribuídas ao longo da semana), os tipos de consultas e os procedimentos burocráticos envolvidos. Através de vários tipos de relatórios, tudo é registrado e enviado para a Secretaria Municipal de Saúde: doenças mais prevalentes na região; doenças de notificação compulsória; motivo das internações hospitalares; óbitos; exames solicitados; visitas domiciliares, consultas e procedimentos realizados; situação das gestantes e dos recém-nascidos; estado vacinal das crianças e muitos outros dados de importância epidemiológica. Marinês contou-nos a respeito das atividades recentemente desenvolvidas, como a campanha de coleta do preventivo de câncer de colo de útero, realizada durante a Semana da Mulher, em março, e as oficinas de orientações sobre saúde em parceria com acadêmicos da PUCRS. Apresentou-nos, também, um breve panorama sobre as características da população local e a realidade da Vila Pinto. Por fim, observamos o acolhimento e a triagem dos pacientes na recepção, bem como a realização de alguns procedimentos: injeções de Benzetacil, aferição da pressão arterial e realização de curativos. Assim como a equipe do posto, os pacientes mostraram-se bastante receptivos, autorizando com boa vontade a nossa presença durante os procedimentos. RELATO DA 2ª VISITA Na segunda visita, em 17/03/2008, percorremos parte da Vila Pinto juntamente com a agente comunitária Onélia, que mostrou-nos a divisão dos territórios de atuação de cada uma das agentes. Chamou nossa atenção o fato de que a área de cobertura do posto não obedece necessariamente a um critério de proximidade, de forma que algumas famílias cujas casas ficam situadas a cerca de 100 metros do posto não podem ser atendidas na UBS Vila Pinto, motivo pelo qual ficam bastante contrariadas. Naquele dia, uma das tarefas de Onélia era solicitar aos pais das crianças que levassem-nas ao posto de saúde para pesagem (um requisito fundamental para renovação do cadastro no Programa Bolsa Família). No entanto, ao longo do caminho, a agente exercia muitas outras tarefas. Ao encontrar moradores que tinham consulta marcada, por exemplo, a agente aproveitava para lembrá-los do dia e da hora em que deveriam comparecer à UBS. Além disso, muitos moradores abordavam a agente para tirar dúvidas e solicitar ajuda de diversos tipos. Uma senhora veio contar que não sabia mais o que fazer para exterminar os ratos que infestavam sua casa, mesmo apesar de boa parte do salário do marido estar sendo destinado à compra de venenos. Outro morador reclamou das vacinas, que não estavam sendo oferecidas na UBS Vila Pinto (devido ao problema na geladeira). Onélia contou-nos que, na administração do governo anterior, era fácil estabelecer parcerias para que a Vila Pinto contasse com serviços como controle de zoonoses e caminhão para recolhimento do lixo desprezado pelos recicladores. No entanto, tem sido difícil, segundo a agente, estabelecer tais parcerias junto ao governo atual. Também despertou nossa atenção a intimidade que a agente tem com a população local. Onélia conhece a maioria dos moradores pelo nome, sabe quem está deixando a Vila Pinto para morar em outros locais e quem está enfrentando cada tipo de dificuldade. Por ser ela própria uma moradora da região há muitos anos, conta com a aceitação e a confiança dos demais habitantes, que se sentem à vontade para expressar seus anseios, idéias e preocupações. É o caso de um senhor que encontramos no caminho: ele relatou à agente que prefere não ir ao posto porque não se sente bem atendido pela médica (que, segundo ele, deveria “ser médica de burguês”, ao invés de atender pessoas carentes). Essa é uma situação delicada, que provavelmente não chegaria ao conhecimento da equipe de saúde se não fosse por intermédio de uma figura de confiança da população, como a agente comunitária. Por fim, visitamos a casa de uma senhora que, além de bastante debilitada pela hepatite, estava em estágio terminal de AIDS. Ela havia sido internada recentemente, mas nada mais podia ser feito para impedir o curso da doença. A última intervenção eram os remédios que, com pouco sucesso, buscavam minimizar o sofrimento físico. No dia anterior à nossa visita, essa senhora, ex-prostituta, havia tentado o suicídio, mas fora impedida por familiares de jogar-se da janela da casa, que fica bastante elevada em relação ao nível da calçada. Nessa mesma família, bastante humilde, quase todas as mulheres eram portadoras do HIV, e muitos homens já haviam falecido de AIDS após contraírem a infecção através do compartilhamento de seringas para uso de drogas injetáveis. A visita a essa casa foi, sem dúvida, uma experiência muito marcante, que nos permitiu um contato bastante próximo com a realidade precária e sofrida em que vivem muitas famílias no Brasil. RELATO DA 3ª VISITA No dia 08/05/2008, a equipe do posto estava mobilizada para vacinar contra a gripe os idosos e as pessoas acamadas. Como a geladeira da UBS Vila Pinto continuava estragada, as vacinas foram emprestadas pelo posto vizinho (UBS Jardim Carvalho). Inicialmente, observamos a enfermeira Marinês e a estudante de enfermagem aplicando as vacinas. A seguir, pudemos nós mesmos realizar esse procedimento, aplicando a vacina em uma senhora idosa e em uma menina de 11 anos. No caso desta menina, paraplégica devido a um atropelamento e restrita à cama, cabe assinalar que ela ficou muito feliz ao receber a visita e a atenção de tanta gente. Apesar de não poder falar, mal conseguia conter sua alegria, que manifestava através da expressão facial e respondendo sim ou não às nossas perguntas através do piscar dos olhos. A alegria dessa menina diante da presença da equipe de saúde ao redor de sua cama demonstra os benefícios de proporcionar à pessoa doente ou com limitações a sensação de que ela é importante e receberá toda a atenção e os cuidados necessários ao seu bem-estar. No trajeto entre uma casa e outra, muitas pessoas que nos viam segurando um isopor em que se lia “VACINAS” aproximavam-se para receber a imunização, mas eram informadas de que jovens e adultos não-acamados apenas poderiam receber a vacina no posto da Bom Jesus. Por outro lado, muitos dos idosos visitados em casa para a aplicação da vacina não quiseram recebê-la, alegando motivos diversos. De volta à UBS, tomamos conhecimento de um assunto sobre o qual os membros da equipe do posto só falavam em sussurros: havia suspeita de que uma menina da região tivesse sofrido um episódio de abuso sexual. No dia anterior, essa menina de 4 anos havia sido levado ao posto com um quadro de alucinações e ataque histérico de início súbito. Ela puxava a própria roupa, levava as mãos à região genital e gritava desesperadamente para que alguém tirasse “o bicho que estava sobre ela”. A mãe negou que sua filha pudesse ter visto ou ter sido atacada por qualquer animal e contou que, no dia anterior, havia deixado a menina na casa da avó, onde moram alguns primos adolescentes. A menina foi encaminhada ao Hospital Materno-Infantil Presidente Vargas (referência em casos de suspeita de abuso contra crianças), onde permaneceu internada. Segundo as técnicas de enfermagem da UBS, o fato de a menina ter sido internada para “observação” é, na verdade, um indício forte de que os profissionais do Hospital tenham, de fato, confirmado a suspeita de abuso. RELATO DA 4ª VISITA A forte chuva que caía no dia 29/05/2008 foi o motivo apontado pela equipe da UBS para justificar o baixíssimo número de moradores que procuraram atendimento na manhã daquele dia. Os poucos que o fizeram foram ao posto apenas para retirar seus medicamentos de uso crônico ou pedir remédio para dor de cabeça, ou ainda para aferir a pressão arterial. Acompanhamos uma das técnicas de enfermagem, que foi visitar uma senhora diabética e hipertensa que, há alguns dias, havia sofrido um AVC e não podia caminhar. O objetivo era medir a pressão arterial e a glicemia dessa senhora, além de verificar se ela estava conseguindo seguir o tratamento de forma adequada. Constatamos que, apesar de ter sido encaminhada para tratamento com fisioterapeuta (para tentar reverter algumas seqüelas do AVC), essa senhora não poderia comparecer à consulta (que já estava marcada), porque não tinha condições de pegar um ônibus, e nem ela nem sua filha tinham dinheiro para pagar um táxi; tampouco tinham conhecidos que pudessem dar carona. De volta ao posto, ficamos parados na recepção conversando com as técnicas de enfermagem e aguardando que chegasse algum paciente. A médica não estava presente nesse dia, a enfermeira estava envolvida com alunos da enfermagem que visitavam o posto e as agentes comunitárias não saíram para fazer visitas. O resto da manhã foi, portanto, muito pouco produtivo. Sentimos que faltou um planejamento prévio para que a equipe do posto pudesse proporcionar a nós atividades diferentes das que já haviam sido feitas. RELATO DA 5ª VISITA Na quinta e última visita (12/06/2008), estava previsto que acompanharíamos algumas consultas da Dra. Silvia. Infelizmente, porém, não apareceram pacientes (não estava chovendo, mas a temperatura estava em torno de 5ºC). Resolvemos, então, acompanhar a agente comunitária Rosana em mais uma caminhada pela Vila Pinto. Percorremos o trajeto que ela costuma fazer todos os dias para lembrar as pessoas sobre a data das consultas, ouvir as demandas da população e visitar os pacientes que têm prioridade (hipertensos, diabéticos, idosos, crianças menores de um ano e gestantes, bem como os indivíduos que passaram por internação hospitalar recente). No caminho, Rosana falou-nos sobre a realidade da Vila Pinto, as rotinas da UBS e a função de cada profissional do posto. Chamou nossa atenção o fato de que uma das atividades das agentes comunitários da Vila Pinto é fazer a intermediação entre os moradores que querem castrar seus animais de estimação e as instituições que fazem esse serviço gratuitamente (como o Hospital de Clínicas Veterinárias da UFRGS). Cada agente gerencia uma lista dos animais da sua área de atuação que aguardam a cirurgia. Rosana mostrou-nos o prédio que abriga a Associação Missionária Beneficente Centro São José. A entidade pertence a um grupo religioso que promove diversas atividades voltadas a crianças. Com a condição de que estejam matriculadas e freqüentando a escola, essas crianças podem, em seu turno livre, freqüentar oficinas de artesanato e aulas de informática e de dança, entre outras atividades. Ao lado do Centro São José fica uma outra entidade, a Associação Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Ao contrário do que o nome indica, essa segunda instituição não possui vinculação religiosa, e por isso promove oficinas de educação sexual, além de muitas outras atividades voltadas a adolescentes. Por fim, junto às duas associações funciona uma creche comunitária, o que resulta num interessante conglomerado de instituições que, em conjunto, são responsáveis por uma atenção integral às necessidades educativas dos jovens da região. A Vila Pinto conta, ainda, com o Centro de Educação Ambiental, uma iniciativa dos próprios moradores locais. Trata-se de um local onde, em parceria com empresas privadas, são disponibilizadas oficinas de costura e de técnicas de reciclagem de lixo, biblioteca e aulas de judô. Ali funciona, também, um dos telecentros montados pela prefeitura de Porto Alegre. Infelizmente, essas entidades são vítimas de furtos (especialmente de computadores) com uma certa freqüência. Essa é apenas uma das manifestações da violência na região: a agente comunitária conta que todos os dias, a partir das 23 horas, os integrantes da facção Bala na Cara percorrem a Vila Pinto de moto para intimidar os rivais, ao mesmo tempo em que se ouve, na vila vizinha Mato Sampaio, o som dos tiros de metralhadora. Os moradores não se assustam mais (dizem que “é só mais um tiroteio”). Segundo a agente, apesar da aparente tranqüilidade durante o dia, não é raro encontrar corpos estendidos no chão pela manhã. A Vila Pinto abriga muitos presidiários foragidos. A agente Rosana conta que, apesar de serem portadores de muitas doenças, esses indivíduos relutam em procurar o posto, tanto por acreditarem que serão denunciados para a polícia quanto pelo fato de que, para chegar ao posto, precisariam atravessar locais da vila controlados por facções inimigas. Por não receberem tratamento adequado, tornam-se importantes disseminadores de enfermidades como a tuberculose, ainda mais porque a alta prevalência de doenças imunodepressoras (como a AIDS) na população local favorece a transmissão de doenças infecciosas. Outra grande dificuldade enfrentada pela população da Vila Pinto é a dificuldade da UBS de conseguir agendar consultas com especialistas, bem como alguns exames e procedimentos. Para consultas com ortopedista ou reumatologista, o tempo de espera pode chegar a 3 ou 4 anos! Mamografia demora até 2 anos, e endoscopia também é muito difícil de conseguir. O exame de escarro, por outro lado, é feito imediatamente, dada a grande importância de diagnosticar precocemente os casos de tuberculose. A agente Rosana explicou-nos como funciona o processo de marcação de consultas: uma vez por semana, entre 13h e 13:30h, é o horário reservado para a UBS Vila Pinto entrar em contato telefônico com a central de marcação de consultas e agendar as consultas desejadas. O problema é que, muitas vezes, quando se consegue estabelecer tal contato, faltam poucos minutos para o término desse período de meia-hora. Para cada consulta que se deseja marcar, deve-se informar nome e data de nascimento do paciente e nome da mãe. Dessa forma, o número de consultas marcadas é muito inferior ao número necessário. Porém, uma vez por mês acontece a chamada “liquidação”: no seu período de meiahora junto à central de consultas, a UBS Vila Pinto tem prioridade para escolher, dentre as consultas ainda disponíveis, aquelas que mais lhe interessam. Apenas assim é possível marcar alguma consulta das especialidades mais concorridas, como ortopedia, hematologia e urologia. A UBS Vila Pinto não possui estrutura para atendimento dentário. O posto da Bom Jesus disponibiliza, a cada 15 dias, 2 vagas para moradores da Vila Pinto que necessitem consultar com dentista. Naturalmente, a demanda é muito maior, gerando uma extensa fila de espera. No caminho de volta para o posto, observamos uma área bastante grande que deveria ser uma praça, mas teve toda a estrutura (bancos, brinquedos) depredada e, atualmente, serve de depósito para o lixo rejeitado por algumas famílias de recicladores que ocuparam o local. Nessa área, há um campo de futebol que, mesmo cheio de lixo, entulho e fezes de cães e cavalos, é utilizado pelos jovens moradores para partidas de futebol nos finais de semana, o que propicia um ambiente altamente favorável para acidentes e infecções de diversos tipos. CONSIDERAÇÕES FINAIS A disciplina de MASC proporcionou-nos a valiosa oportunidade de conviver, ainda que apenas por algumas manhãs, com uma realidade diferente daquela a que estamos acostumados. Uma realidade em que as pessoas nem sempre conseguem marcar consultas e exames no momento em que precisam; uma realidade em que as pessoas enfrentam muitos problemas e sofrem com muitas limitações; enfim, um lugar onde as coisas nem sempre dão certo. Na condição de futuros médicos, é nosso dever conhecer essa realidade que, afinal de contas, é a da grande maioria da população brasileira. Mesmo ao longo da faculdade, quando atendermos pacientes do SUS, precisaremos ter em mente que muitas dessas pessoas vivem em condições precárias (moradia, saneamento e alimentação inadequados, alta exposição à violência e a acidentes, grupos familiares desestruturados, acesso limitado a educação e cultura, etc.), que favorecem enormemente a ocorrência de muitas doenças. Um médico que não conhece as condições de vida de seus pacientes mais humildes é um médico alienado. Afinal, quando um indivíduo é atendido em um hospital, de nada adianta o médico fazer diagnósticos brilhantes e escolher um tratamento com base nas mais recentes evidências científicas se, ao voltar para casa, tal paciente não conseguir seguir o tratamento e as orientações propostas, talvez porque não saiba ler ou porque tenha dificuldades de visão que o impedem de tomar os medicamentos conforme a prescrição. Fica evidente, então, a importância das agentes comunitárias, que fazem o elo entre a comunidade e os profissionais de saúde, garantindo que as famílias recebam a atenção de que necessitam para manter e recuperar sua saúde. Acreditamos que um excelente investimento nessa área seria contratar mais agentes comunitárias, destinar mais recursos à sua qualificação e melhorar sua remuneração. Certamente, essas medidas teriam um impacto muito significativo sobre a saúde da população, diminuindo a incidência e a prevalência de doenças e aumentando a parcela de casos resolvidos no nível primário de atenção à saúde. Outra medida urgente é tornar mais eficiente o sistema de marcação de consultas, disponibilizando mais vagas, inclusive. Afinal, é inadmissível que um indivíduo espere meses ou até mesmo anos para ser atendido por um especialista ou fazer um exame; sem falar que o agravamento de uma doença ao longo do período de espera acaba onerando muito mais o sistema público de saúde. Aliás, esse é um dos motivos que nos fazem refletir sobre a atuação do médico no PSF. Afinal, ao longo de toda a faculdade, ele estuda para adquirir a capacidade de fazer bons diagnósticos e propor os tratamentos mais adequados para cada caso. Entretanto, quando se vê frente a frente com um paciente em um posto de saúde, muitas vezes é obrigado a escolher não o fármaco mais eficiente, e sim o que não estiver em falta no estoque do posto. Ou ainda, no momento de solicitar exames complementares ou encaminhar o paciente para um especialista, precisa aguardar meses para obter os resultados ou conseguir um agendamento, enquanto vê a situação do paciente agravar-se devido ao tempo de espera. Por esses motivos, acreditamos que trabalhar em um PSF é uma experiência um tanto frustrante para o médico, que se vê limitado em suas possibilidades de atuação. Por outro lado, acreditamos que há, também, um forte sentimento de gratificação, à medida que o médico consegue efetivamente ajudar um grande número de pessoas e melhorar a qualidade de vida das população local, apesar de todas as dificuldades impostas. Através das visitas à Vila Pinto, pudemos observar a aplicabilidade de muitos conteúdos teóricos estudados em outras disciplinas. Na Parasitologia, por exemplo, estudamos os mecanismos de transmissão de dezenas de parasitíases, mas nenhuma aula teórica proporciona uma noção tão concreta do problema quanto a experiência de ver crianças brincando descalças próximo a um esgoto, ou entre fezes de cães e cavalos, ou ainda junto a cães sarnentos e infestados por carrapatos e pulgas. Ao conhecer os procedimentos burocráticos aos quais a equipe do posto dedica boa parte de seu tempo (elaboração de relatórios para a Secretaria Municipal de Saúde), pudemos observar a etapa mais inicial do processo de vigilância epidemiológica que, em última instância, culmina na disponibilização de dados epidemiológicos atualizados e precisos através do DataSUS. Assim, pudemos conhecer a origem dessa importante ferramenta que foi estudada na disciplina de Epidemiologia. Da mesma forma, outras matérias (Microbiologia, Promoção e Proteção da Saúde do Adulto e do Idoso, Psicologia Médica) adquiriram um significado muito mais concreto através da experiência vivida no MASC, enriquecendo enormemente a nossa formação acadêmica.