O USUCAPIÃO DOS ARQUIVOS Doutoranda Ana Lígia Leite e Aguiar (UFBA) Judith Grossmann, escritora, poeta, ensaísta e, apesar do nome, brasileira, em 1966 e aos seus 35 anos, vai para a Bahia, uma vez que a cidade do Rio de Janeiro lhe parecia, como dito em depoimento, redundante, fazendo, assim, o movimento inverso ao de tantos outros personagens que se dirigiam ao Rio em busca de um “saber viver” que a cidade oferecia. Caminha, em direção a Salvador, na expectativa de fundar alguma coisa. Professora de Teoria da Literatura da Universidade Federal da Bahia a partir de então e, na condição de estrangeira, Judith passa a se empenhar na produção de Oficinas de Criação Literária, algo que lhe conferiria, anos depois, o pioneirismo na realização desse tipo de atividade no Brasil. Propositalmente exilada e longe da família, se instala em terra estrangeira e, porque assim, necessita construir sua linhagem para dar continuidade a si mesma. Como todo clandestino, enfrenta os olhares enviesados na academia que a recebe. E com êxito, movimenta o cenário local: suas oficinas entrariam futuramente para o currículo do curso e, ao lado de alguns professores, ajudaria na concretização de uma pósgraduação em Letras na UFBA. Filha de imigrantes russos, Judith carregará o símbolo da sua diferença para o texto e para a vida. Nascida em Campos, RJ, em 1931, a escritora fantasiaria uma existência entre o exótico e o segredado. Nas linhas da ficção, rabiscaria os liames de sua genealogia à inventividade de um sujeito que se pretende biografável. Desnecessário arriscar o que em seu texto é biografia ou ficção: tudo seria, ininterruptamente, biografia e ficção, na medida em que ela mescla acontecimentos imaginários a fatos verídicos. Grossmann rabisca, em seu percurso de criação literária, personagens da vida “real” e os trabalha, em alguns momentos, sem necessitar da troca de nomes, de situações, na tentativa de transformar o real em ficção ou de dentro da rubrica da ficção trazer algumas cenas da vida, o que acaba por garantir sabor característico à sua obra. Mas diante da possibilidade de ver sua vida rastreada num ensaio biográfico escrito por outrem, o sujeito que se coloca em cena de forma obtusa não perdoa: fecha as portas do arquivo quando o assunto é a vida pessoal. E a literatura e a vida acadêmica, seriam, por acaso, impessoais? Dessa forma, nesse não-dizer cria-se uma persona, um tipo de integridade que confere a cada escritor que opta por esse caminho uma imagem unívoca para além de sua humanidade, imagem linear e que se resolve no silêncio de si mesma. Como se o contrário, uma imagem que apresentasse algum tipo de contradição, configurasse uma traição. Depois de anos guardando recortes de jornal, documentos da universidade para integrarem um futuro acervo na instituição baiana, Judith mantém a existência obnublada. Caminha alegre e ostensivamente: é clandestina, mulher, independente, escritora, mestra. Com um timbre de voz peculiar, não avisa a ninguém aonde vai de calça jeans e batas. Mas um seleto grupo de amigos, mais especificamente, de alunas, sabe ou pelo menos tenta saber o destino desses passos. Ao se localizar constantemente como estrangeira, Grossmann encarna o papel de tantos personagens viajantes, oriundos de tantas palavras, deslocados e, ao mesmo tempo, eleitos pela sua diferença: sotaques, trejeitos, um modus vivendi que opera de forma inebriante em meios ímpares e nos distantes corredores de um antigo prédio de Letras. Caminhando com um ar introspectivo ao mesmo tempo que de certo gozo com a arte literária, o papel do escritori é o “escolhido” para sua atuação cotidiana. Mas ações até então relatadas em petit comitê são delatadas por esse “eu” escritor. O corpo trai o corpo quando atira ao leitor pistas sobre essa vida privada que denunciam essa economia de abertura de sua particularidade em contraposição a um desejoso sonho de ser lido, ser reconhecido como pássaro do ninho. Instaurando para si outras genealogias - aos pais de sangue une Clarice, Machado, Guimarães, ao seu veio judaico, o católico, ao nome Judith, Renata e tantos outros nomes a escritora reinventa aquilo que por si só já seria ficção: a ousada noção de genealogia, de começo, de linearidade. No delito que a cada dia se naturaliza para os leitores e pesquisadores de Judith Grossmann, a herança de um texto que se faz compreender melhor via entrevistas com os amigos deixados em solo baiano, algum parente disposto a pequenos recortes de conversa, a prosa alheia que anda pelo imaginário dos que a conheceram, e que são, em sua maioria, relatos que trazem a voz de um tempo em surdina, dizendo, para cada um em separado, o que se deve dizer. Com uma poética auto-centrada, Grossmann sai da cena docente no início dos anos 90, período de grande instabilidade em todo o país, se aposentando. É condecorada com o título de Professora Emérita e com isso fecha o ciclo do magistério abrindo ainda mais o de criação literária. Antes da virada do milênio Judith já terá voltado em definitivo para o Rio de Janeiro. Agora, sob a atenção direta da família e longe da hospitalidade dos soteropolitanos, a escritora tem de reinventar novamente seu espaço, pois que tanto tempo distante a fez reencontrar a casa fora do lugar e os braços do pai agora estão finos como gravetos.ii 40 anos depois Nesta fração de trabalho que ora apresento, interessa a escrita de uma história do presente, trabalhar pessoas vivas, interpretações que ainda estão vingando, relação entre amigos. Judith faz, durante sua estadia em Salvador, amigos que se transformarão em herdeiros de um texto que se quis sem pátria ou que quis todas elas e, por esse caminhar, entregou-se à extensa e única mão que se ofertava: a daqueles que se afeiçoaram a ela ou a sua obra, de forma que esses dois afetos nos surgem, singularmente, sempre juntos. Estes são os ganhadores do peso grave deste prêmio, vez que, para os premiados a doação/ herança de um arquivo pressupõe um afeto supostamente inesgotável, e por essa mesma razão é motivo de gozo e criação de metáforas fraternasiii ao mesmo tempo que coloca seus herdeiros diante da situação de indissociabilidade deste material e, de maneira inusual, prescreve as margens de um tempo posterior, embutindo em suas vidas o possível encargo da dedicação constante. E o afeto cega mesmo quando ilumina a condição do herdeiro. Felizes pelo título que a amizade com Judith lhes confere, suas continuadoras mantêm o pique da escritora, não permitindo que a obra se perca de vista, ainda que em limitados corredores de Letras. A coleção de Judith, seus manuscritos, perderiam o sentido com a retirada de seu agente, no caso, Judith, de cena? Talvez, mas cautelosa, ela orientou o passo dos amigos de forma interessante: instruiu-os pela direção do calor, da ternura, do respeito, do afeto. Juntos todos esses sentimentos, formou-se uma família, não no sentido moderno da coisa e para o qual Foucault e Arendt torceram o nariz, mas no sentido da proliferação e multiplicação das relaçõesiv, já que ela, estrangeira, também se entrega ao estrangeiro, ao desconhecido e é com ele que irá compor, a ele entregará seu patrimônio, sua fortuna simbólica, o seu tudo. Não se pretende induzir, com isso, à conclusão de uma postura muito mais interessada que sincera da parte de Judith, no momento em que se coligava a determinadas alunas de graduação, que mais tarde seriam suas alunas de pós e que mais tarde seriam as divulgadoras de sua obra e que mais tarde seriam as únicas responsáveis pelo cuidado do seus arquivos. A estrangeira constrói suas linhagens e essas linhagens se descobrem, em determinado momento, com um capital cultural, com a força de um nome que pesa tanto porque requer cuidados especiais, quanto porque legitima a história de outras pessoas, na medida em que esse nome torna-se a mediação entre a história de uma época e seus personagens. Herdar um nome é um peso, mas também um facilitador para garantir um lugar confortável em um campo cultural e simbólico. Essa herança assegura que nada do que aconteceu pode ser perdido para a história. O contexto dos anos 90, momento em que Judith organiza e doa seu acervo, distribui lotes de heranças, espólios, é quando ocorre o boom da historiografia, da valorização do local e a clandestinidade de Judith Grossmann passa, então, a ser vista não mais como diferença, mas como fator que a conecta à cena baiana. Sem abrir mão da origem firmada na variedade, a escritora entrega sua produção ao solo estrangeiro soteropolitano, palco agregador no qual o convívio da amizade não descartou a formação de “agentes” para o encargo dos papéis que iam se amarelando com o tempo. Herdar um arquivo pode ser aqui comparado com herdar uma casa velha, antiga, que atenta a vista para sua história e que necessita de zelo e de restauração. Muito além do pessimismo que essa analogia pode fazer soar, quando comparo o arquivo a essa imagem desejo falar da questão da oportunidade. Oportunidade de se elevar os documentos a um ponto de discussão que frutifique e instaure a coragem da verdade de que tanto falou Foucault. O que tento dizer é que a herança de um arquivo, seja de Judith, de um célebre francês ou de alguém por se publicar, traz a marca d’água de um sentido, primeiramente, apenas para quem herda, mas, a posteriori, pode vir a tomar proporções tão gigantescas, que o papel do herdeiro fica multifacetado, picotado pelas mãos de estranhos, estrangeiros que desejam devorar as obras dos outros e que são contaminados por objetos de estudo, pela novidade que esses objetos desencadeiam na vida desses indivíduos, promovendo verdadeiro alvoroço nas idéias destes. A oportunidade está, portanto, relacionada à abertura que o verbo “estudar” propõe. Mas o que eu tenho ouvido por aí, é que algumas coisas não podem ser ditas quando as pessoas ainda estão vivas. Eu deveria desejar que elas morressem logo? Propor isso como um desejo coletivo? Sabendo que esta não seria e não é a melhor opção, jogaria a questão para a quem a criou: o escritor. Ele se quer público, se quer comido e devorado, mas quer seu direito à privacidade, aos segredos a aos resguardos. Tendo em vista o que os meios de comunicação promovem hoje na sociedade, estamos todos expostos e sem tempo de escondermos a nudez. Com o escritor não seria diferente: seria ainda pior, pois com ele viria a figura febril do leitor, invadindo seu terreno, querendo suas intimidades, trivialidades, asperezas, contradições, sorrisos. Para aquele que trabalha com a cena da escrita para além da cena da escrita, não adianta Judith (e estendo a questão a qualquer outro artista.), ter doado sua sensualidade, sua rotina de escritor, seu coração aberto a pouco amigos. Há o olhar pedinte e ameaçador daqueles, os outros, os estranhos, que olham pela porta de vidro. Mas revertendo o jogo de perguntas, o que quer esse leitor? E eu pergunto isso também a mim, ao pensar que o jogo entre o público e o privado é uma construção, uma invenção, um despiste que é literatura. Saber que a subjetividade que tanto procuro é também uma invenção, uma ficção e que ficcionalizamos e representamos até quando estamos sozinhos. A idéia de integridade que é fantasiada por alguns escritores é humana na medida em que anarquivizamos a vida, selecionamos o melhor retrato, rasgamos papéis comprometedores. E se, por um acaso, mostrássemos as contradições desses indivíduos que tanto lutaram por uma vida em zelo, estaríamos a diminuir a figura do escritor? Retratá-los nessa perspectiva apenas íntegra, ao meu ver, seria acreditar nessa porta de vidro que, uma vez quebrada ou invadida, revelaria uma outra face, a oposta, e não a transitoriedade de várias faces e comportamentos que trazemos conosco. Prefiro acreditar na intransparência desse vidro e sabê-lo opaco, difuso, sem limites precisos, já que este é um vidro codificado e seus limites são os do ato ou efeito de fingir. Nesse sentido, com as esferas embaralhadas e confundidas, o leitor, que é antes um invasor desses sentidos, tem a oportunidade de ir além e procurar não a identidade do seu escritor, mas aquilo que nele se extrapola, a nãoidentidade, o texto que não está lá. As trocas continuam, no entregar amoroso e urgente desses arquivos em mãos fraternas em recebê-los, pois estas também anseiam tocar nesses papéis amarelados, e, passado o primeiro encanto, ficam a suspirar por outras mãos que se lancem nesses mesmos passos, mas que venham sempre (que esta é a regra de praxe!) com hospitalidade ensurdecedora, no sentido derridianov. Judith não permite, ainda, o franco-falar sobre sua vida-obra. O arquivo premeditado durante anos. Ele silencia com seu canto hipnotizante aquele que se aventura a detalhar os fatos da vida pessoal de Grossmann, pela triagem feita previamente pela autora nesses papéis, pelos pedidos suaves de alguém que se propõe a dar algum depoimento. Essas dificuldades são apenas variações das que se impõem a qualquer trabalho de pesquisa. Ora são bocas vetadas, mas poderia ser o mofo, a ilegibilidade da caligrafia, mas as dificuldades tornam-se coisa nenhuma quando o leitor-pesquisador decide fazer usucapião de toda e qualquer fortuna deixada por um escritor que por algum motivo o atraiu. Silviano Santiago, em seu artigo “Suas cartas, nossas cartas”, reflete sobre como nos apropriamos de textos (ele se detém na produção epistolar) que, por decisão soberana de cada um, acabam se tornando públicos. Para quem viola as normas em nome da literatura e de certa curiosidade pessoal, a lei é a do usucapião. No momento da invasão de uma vida particular, a regra geral é, ou pelo menos deveria ser, a da empatia de humano para humano, a generosidade em demonstrar o que essa vida, com seus modos de erros e acertos, pode ter de exemplar. Referências Bibliográficas BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. Trad. Rubens R. T. Filho e José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 2000. (Obras escolhidas; v. II). DERRIDA, Jacques. Da hospitalidade. Trad. Antonio Romane. São Paulo: Escuta, 2003. GROS, Frédéric. Foucault: a coragem da verdade. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2001. (Episteme; 1) GROSSMANN, Judith. Vária Navegação: mostra de poesia. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado; COPENE, 1996. LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. ORTEGA, Francisco. Genealogias da amizade. São Paulo: Iluminuras, 2002. SANTIAGO, Silviano. Ora (direis) puxar conversa! Belo Horizonte: UFMG, 2006. Aqui faço uso da idéia defendida por Clarice sobre o uso da palavra ‘escritor’: Perguntou-me se eu me considerava uma escritora brasileira ou simplesmente uma escritora. Respondi que, em primeiro lugar, por mais feminina que fosse a mulher, esta não era uma escritora, e sim um escritor. Escritor não tem sexo, ou melhor, tem os dois, em dosagem bem diversa, é claro. Que eu me considerava apenas escritor e não tipicamente escritor brasileiro. Argumentou: nem Guimarães Rosa que escreve tão brasileiro? Respondi que i nem Guimarães Rosa: este era exatamente um escritor para qualquer país. LISPECTOR. A entrevista alegre, p.69. ii GROSSANN. O pai-fantasma, p.86. iii Faço alusão ao termo utilizado por Francisco Ortega em sua obra Genealogias da Amizade. iv Cf. ORTEGA. Genealogias da amizade, mais especificamente no capítulo “Amizade na modernidade”. v Cf. DERRIDA. Da hospitalidade.