leituras ENTRADA GRATUITA LEVANTAMENTO DE SENHA DE ACESSO 30 MINUTOS ANTES DA SESSÃO, NO LIMITE DOS LUGARES DISPONÍVEIS. MÁXIMO: 2 SENHAS POR PESSOA. Poesia de Judith Herzberg Lida por Jorge Silva Melo. Com a presença da autora e da tradutora A imanência das vozes Descobri Judith Herzberg como autora de peças de teatro. Em 1999, terei lido, em tradução francesa, Os Casamentos de Lea (1982), peça complexa, grande peça, peça admirável onde ela, com dorida ironia, faz cruzar diálogos, invectivas, recordações de uma dúzia de personagens, adultos cuja infância decorreu durante a II Guerra, numa Holanda ocupada pelos nazis, gente que, tantos anos e casamentos depois, ainda não sabe viver, nem manter relações, nem crescer, destruída, desfeita que lhes anda a imparável vida sempre a recomeçar. É uma peça fascinante, simples e complexa, de uma complexidade musical, orquestral como raros autores conseguem, e lembramo-nos de Tchéckhov e da sua amplidão coral. E pus-me a ler o seu teatro, em línguas que entendo, até estrearmos O Caracal, belíssima peça para uma actriz que o Alberto Seixas Santos dirigiu e a Sofia Aparício interpretou, no Teatro Taborda, em 2003. E até eu próprio conseguir, em 2005, dirigir a tão linda Fábrica de Nada, musical para todos, pais e filhos, adultos e amigos, invenção linguística e musical. Mas antes, um dia em que veio a Lisboa, ainda havia, no Bairro Alto, aquela A Capital que a ela tanto encantou, foi em 2000, Judith Herzberg ofereceu-me uma antologia dos seus versos, traduzidos em inglês. E duas ou três recolhas em alemão. Só então entendi que Judith Herzberg, que publica poesia desde 1963 (data do seu belíssimo Correio Marítimo), é um dos maiores poetas holandeses, devidamente premiada e louvada, com obra reconhecida por todo o lado, sobretudo na Alemanha. E desatei a ler esta poesia leve, em que cai a sombra dos dias e os pesadelos da memória, a leveza das lembranças também, anotações que serão, para que nada esqueça, para que alguma coisa se salve, a poesia será “o que resta do dia”, na expressão tão pertinente que foi colher a Freud. Sucinta, a sua poesia curva-se perante a ironia e a melancolia, é ácida e estóica, brinca e indica, realista e fantasista, trazendo ao verso uma língua que oscila e vibra, sentidos, formas, infantilidades e pesadelos, temores e sorrisos, essa espuma. Gosto de a ler em inglês, que não sei neerlandês, gosto de a ler ao lado da grande poesia que, neste século, nos veio da Grã‑Bretanha e da América, gosto de a ler, irónica e selvagem, com a rudeza delicada de um Dubuffet (a quem dedica uma poesia, das poucas com endereço), gosto de a reler. Durante estes anos, aqueles livros, a antologia inglesa e as recolhas alemãs, não se sentaram na biblioteca, nesse quarto ao lado do esquecimento, andaram por aqui, no escritório de todos os dias, encontro-os SEG 14 DE JANEIRO DE 2008 PEQUENO AUDITÓRIO · 18H30 no sofá, junto à cama, na mesa da cozinha, têm-me acompanhado, na inconstância dos dias. E a ela, que tanto gosta da lentidão, do correio por via marítima (título da sua primeira recolha), tenho-a lido devagarinho, há sete anos que a vou lendo, afinal, sem atropelo, há poetas assim, a sua poesia é lenta, adagio molto. Agora, ei-la aqui, à sua poesia, agora em português, com original ao lado, para vermos o jogo (onde tanto se perderá, tanto também se ganhará), para salvarmos a biblioteca. E o que são as poesias de Judith Herzberg, tão cantáveis, onde tantas vezes ecoam formas populares, cantilenas, adivinhas, músicas, gatos e lápis de cor, onde tantas vezes a iridescência das palavras corta, brutal, a melopeia, insere, crua, a realidade, incrusta o imponderável peso das coisas, de todas as coisas, e esse tacto, esse tacto que desde sempre me fez pensar que “esta é a poesia das coisas, a sua poeira”. A poesia de Judith Herzberg será a recolha do ouro dos dias, poeira que pode ser, pólens de primavera, é leve e grave, inocente e vivida, sobra nela uma criança, a das rimas infantis, assoma nela a consciência grave da História, da vida tão brutalmente afirmada. Só muito mais tarde percebi que quem a convidou a escrever para o teatro, fê-lo porque reconheceu nos versos de Judith Herzberg a presença das vozes, a cor imanente das personagens, a impermanente mutação das formas, subtilmente passando, lentamente passando pelo corpo. Eu também gosto de ler em voz alta as poesias de Judith Herzberg, em português, claro. É também como se anotasse a minha vida e a da minha gente. jorge silva melo, novembro 2007 leituras Judith Herzberg nasceu em 1934 em Amesterdão. Começou a publicar poesia no início dos anos 1960. Nos anos 1970 iniciou a sua carreira na escrita teatral. É também autora de ensaios, argumentos cinematográficos (nomeadamente do filme Charlotte de Frans Weisz de 1981), peças para televisão e muitas traduções. Várias das suas peças foram igualmente filmadas por Frans Weisz. Recebeu inúmeros prémios e as suas peças estão traduzidas para alemão, inglês, francês, português e italiano. Disse uma vez: «Evito afirmações moralistas nas minhas peças. Tento que o público possa experimentar a mesma confusão que eu, quando observo a realidade.» Da sua obra poética, podem destacar-se: Zeepost (1963), Beemdgras (1968), Vliegen (1970), Strijklicht (1971), 27 Liedesliedjes (1971), uma versão do Cântico dos Cânticos, Botshol (1981), Dagrest (1984), Twintig gedichten (1984), Dat Engels geen au heeft (1985), Zoals (1992), Doen en laten (1994), Wat zij wilde schilderen (1996), Bijvangst (1999), Staalkaart (2000), Weet je wat ik ook nooit weet (2003), Soms vaak (2004), Zijtak (2007). No teatro, impõe-se, em 1982, com Leedvermaak (Os Casamentos de Lea), a que se seguem En/of (1985), De kleine zeemeermin (1986), Caracal (1987), Kras (1988) Een goed hoofd (1991), Rijgdraad (1995), De Nietsfabriek (A Fábrica de Nada, de 1997), Een golem (1998), Wie es von Wie (1999), Simon (2002), De Weg is weg (2004) Vielleicht Reisen (Talvez Viajar, de 2004) e Petroesjka (2005). Os Casamentos de Lea e O Caracal encontram-se publicados no nº 3 da Revista Artistas Unidos e A Fábrica de Nada na colecção Livrinhos de Teatro nº 13 dos Artistas Unidos/Livros Cotovia. E Talvez Viajar na Revista nº 20 dos Artistas Unidos. Entrevistas e artigos sobre Judith Herzberg foram publicados nos números 10 e 16 da Revista Artistas Unidos. Jorge Silva Melo estudou na Faculdade de Letras de Lisboa e na London Film School. Fundou e dirigiu, com Luís Miguel Cintra, o Teatro da Cornucópia (1973/79). Bolseiro da Fundação Gulbenkian, estagiou em Berlim junto de Peter Stein e em Milão junto de Giorgio Strehler. É autor do ENTRADA GRATUITA LEVANTAMENTO DE SENHA DE ACESSO 30 MINUTOS ANTES DA SESSÃO, NO LIMITE DOS LUGARES DISPONÍVEIS. MÁXIMO: 2 SENHAS POR PESSOA. libreto de Le Château des Carpathes (baseado em Júlio Verne) de Philippe Hersant, das peças Seis Rapazes, Três Raparigas, António, um Rapaz de Lisboa, O Fim ou Tende Misericórdia de Nós, Prometeu, Num País Onde Não Querem Defender os Meus Direitos, Eu Não Quero Viver baseado em Kleist, de Não Sei (em colaboração com Miguel Borges) e O Navio dos Negros, Fala da Criada dos Noailles... Recentemente compilou textos dispersos no volume Século Passado (Cotovia, 2006). Fundou em 1995 os Artistas Unidos de que é director artístico. Realizou as longas-metragens Passagem ou a Meio Caminho, Ninguém Duas Vezes, Agosto, Coitado do Jorge, António um Rapaz de Lisboa e os documentários António Palolo, Joaquim Bravo, Évora, 1935, Etc, Etc, Felicidades, Conversas com Glicínia, As Conversas em Leça em Casa de Álvaro Lapa, Nikias Skapinakis-O Teatro dos Outros, Álvaro Lapa. A Literatura. Traduziu obras de Carlo Goldoni, Pirandello, Oscar Wilde, Bertolt Brecht, Georg Büchner, Lovecraft, Michelangelo Antonioni, Pier Paolo Pasolini, Heiner Müller e Harold Pinter. Enterrado As agulhas do calor e do ódio espetadas na minha roupa emprestada quando um dia de Verão temos de entregá-lo por baixo de árvores experientes, os açougueiros embuçados de negro torsos embalsamados, costas recurvadas, que páram o cortejo com um último passo rotineiro enquanto os cangalheiros – oito longas patas de aranha com ele, o coração morto, seguem colina acima, rangendo com os pés no saibro exactos, solenes, impassíveis. E nós ali de pé, meio desamparados, com a esperança em fuga desenfreada e uma pressa incompreensível; os últimos dez minutos antes de uma amputação. SEG 14 DE JANEIRO DE 2008 PEQUENO AUDITÓRIO · 18H30 Tradução e publicação realizadas no âmbito do ATELIER EUROPÉEN DE LA TRADUCTION / SCÈNE NATIONALE D’ORLÉANS com o apoio da UNIÃO EUROPEIA Comissão de educação e cultura – programa Cultura 2000 Entre eras glaciares Cada um de nós tem a sua força de gravidade, cada um de nós obrigado a desabar de pensamentos, assim noto como é estranho um avião projecta sombra reluzindo por um átimo ao sol e nós deitados na relva entre margaridas a tapar os ouvidos por causa do barulho e continuar depois a conversar como se o Agora não fosse o último momento de uma fase. Uma tarde para recordar, um ano para recordar. a relva firme e viçosa, o sol escaldante (a calote de gelo da Groenlândia ainda não derretida, nós ainda não arrastados pelas águas) flores da infância como estas com um cheiro muito antigo tão brancas, tão amargas e tão margaridas, e um avião que não faz mal a ninguém. Coragem A noite deixou-me outra vez transtornada lentamente a manhã se enche de palavras que eu sei de certeza que significavam alguma coisa, mas o quê? que ontem significavam alguma coisa. Andar é balançar sobre os pés, vejo na rua os seres de sangue quente que tiveram também a inexplicável coragem de se levantarem em vez de ficarem deitados. Nunca ninguém tem a certeza de nada, de ser amado, de ser abandonado tudo é possível e tudo é permitido tudo sucede em alternância. Agora me lembro o que queria dizer: enquanto isso não trouxer infelicidade é uma sensação agradável. Mas no fundo somos doces como Turkish Delight numa lata cheia de pregos. tradução ana maria carvalho lemmens