6 I Filosofia do Direito 7 8 O que é Filosofia e por que vale a pena estudá-la A. C. Ewing Utilização da filosofia Há uma questão que muita gente formula de imediato quando ouve falar de filosofia: qual a utilidade da filosofia? Não há certamente expectativa alguma de que ela contribua para a produção de riqueza material. Contudo, a menos que suponhamos que a riqueza material seja a única coisa de valor, a incapacidade da filosofia de promover esse tipo de riqueza não implica que não haja sentido prático em filosofar. Não valorizamos a riqueza material por si própria – aquela pilha de papel que chamamos de dinheiro não é boa por si mesma –, mas por contribuir para nossa felicidade. Não resta dúvida de que uma das mais importantes fontes de felicidade, ao menos para os que podem apreciá-la, consiste na busca da verdade e na contemplação da realidade; eis aí o objetivo do filósofo. Ademais, aqueles que, em nome de um ideal, não classificaram todos os prazeres como idênticos em seu valor, tendo chegado a experimentar o prazer de filosofar, consideraram essa experiência como superior em qualidade a qualquer outra. Visto que a maior parte dos bens que a indústria produz, excetuando os que suprem nossas necessidades básicas, valem apenas como fontes de prazer, torna-se a filosofia perfeitamente apta, no que se refere à utilidade, para competir com a maioria dos produtos industriais, quando poucos são os que podem dedicar-se, em tempo integral à tarefa de filosofar. Mesmo que entendêssemos a filosofia como fonte de um inocente prazer http://www.cfh.ufsc.br/~mafkfil/ewing.htm 9 particularmente válido por si próprio (obviamente, não apenas para os filósofos, mas também para todos aqueles a quem eles ensinam e influenciam), não haveria razão para invejar tão pequeno desperdício da força humana dedicada ao filosofar. Não esgotamos, porém, tudo o que pode ser dito em favor da filosofia. Pois, à parte qualquer valor que lhe pertença intrinsecamente acima de seus efeitos, a filosofia tem exercido, por mais que ignoremos isso, uma admirável influência indireta até mesmo sobre a vida de gente que nunca ouviu falar nela. Indiretamente, tem sido destilada através de sermões, da literatura, dos jornais e da tradição oral, afetando assim toda a perspectiva geral do mundo. Em grande parte, foi através de sua influência que se fez da religião cristã o que ela é hoje. Devemos originalmente a filósofos ideias que desempenharam papel fundamental para o pensamento em geral, mesmo em seu aspecto popular, como, por exemplo, a concepção de que nenhum homem pode ser tratado apenas como um meio ou a de que o estabelecimento de um governo depende do consentimento dos governados. No âmbito da política, a influência das concepções filosóficas tem sido expressiva. Nesse sentido, a Constituição norte-americana é, em grande parte, uma aplicação das ideias do filósofo John Locke; ela apenas substitui o monarca hereditário por um presidente. Similarmente, admite-se que as ideias de Rousseau tenham sido decisivas para a Revolução Francesa de 1789. É inegável que a influência da filosofia sobre a política pode às vezes ser nefasta: os filósofos alemães do século XIX podem ser parcialmente responsabilizados pelo desenvolvimento de um nacionalismo exacerbado que posteriormente veio a assumir formas bastante deturpadas. Todavia, não resta dúvida de que essa responsabilidade tem sido frequentemente muito exagerada, sendo difícil determiná-la exatamente, o que se deve ao fato de aqueles filósofos terem sido obscuros. Contudo, se uma filosofia de má 10 qualidade pode exercer influência nefasta sobre a política, com as filosofias de boa qualidade pode ocorrer o contrário. Não há meios de impedir tais influências sendo portanto extremamente oportuno que dediquemos especial atenção à filosofia com o intuito de constatar se concepções que exerceram alguma influência foram mais positivas do que nefastas. O mundo teria sido poupado de muitos horrores caso os alemães tivessem sido influenciados por uma filosofia melhor que a dos nazistas. Torna-se, portanto, imperativo abandonar a afirmação de que a filosofia é destituída de valor, mesmo com respeito à riqueza material. Uma boa filosofia, ao influenciar favoravelmente a política, pode gerar uma prosperidade incapaz de ser alcançada sob a égide de uma filosofia inferior. Outrossim, o expressivo desenvolvimento da ciência, com seus consequentes benefícios de ordem prática, muito depende de seu background filosófico. Houve mesmo quem tenha chegado a afirmar, a nosso ver exageradamente, que o desenvolvimento da civilização como um todo seria concomitante às mudanças na ideia de causalidade, da concepção mágica de causalidade à científica. De qualquer modo, a ideia de causalidade faz parte do objeto da filosofia. A própria ‘perspectiva científica’, em grande parte, foi introduzida inicialmente pelos filósofos. Todavia, certamente não estaremos nas melhores condições para fazer um estudo proveitoso da filosofia se a encararmos principalmente como uma via indireta de acesso à riqueza material. A principal contribuição da filosofia consiste no intangível background intelectual do qual muito dependem o clima espiritual e a feição geral de uma civilização. Nesse sentido, ocasionalmente se desenvolvem ambições ainda maiores. Whitehead, um dos mais expressivos e acatados pensadores modernos, descreve os dons da filosofia como “a capacidade de ver e de prever, aliada a um sentido do valor da vida, ou seja, o sentido da importância que anima todo esforço 11 civilizado”.1 Acrescenta ainda Whitehead que, “quando uma civilização atinge seu auge sem coordená-lo com uma filosofia de vida, difundem-se por toda a comunidade períodos de decadência e monotonia, seguidos pela estagnação de todos os esforços”. Para ele, a filosofia consiste em “uma tentativa de esclarecer as crenças que, em última instância, determinam nossa atenção, a qual integra a base de nosso caráter”. De um modo ou de outro, podemos ter como certo que o caráter de uma civilização é enormemente influenciado por sua concepção geral da vida e da realidade. Até pouco tempo, para a maioria das pessoas, essa concepção era proporcionada pelo ensino religioso, mas as próprias concepções religiosas foram muito influenciadas pelo pensamento filosófico. Ademais, a experiência demonstra que as concepções religiosas podem conduzir-nos à loucura, a menos que sejam continuamente submetidas a uma avaliação racional. Os que rejeitam qualquer concepção religiosa devem ter o maior interesse em elaborar uma nova concepção para, se possível, substituir a crença religiosa. E fazê-lo significa engajar-se na filosofia. Embora não passa substituir a filosofia, a ciência suscita problemas filosóficos. Pois ela não pode dizer-nos que lugar ocupam os fatos com que lida no esquema geral das coisas, não conseguindo nem mesmo esclarecer suas relações com os espíritos que os observam. Nem mesmo pode demonstrar, embora deva admitir, a existência do mundo físico ou a legitimidade do uso dos princípios da indução para prever as prováveis ocorrências futuras ou ultrapassar de alguma forma o que tem sido efetivamente observada. Nenhum laboratório científico pode demonstrar em que sentido os homens têm uma alma, se o universo tem ou não um propósito, se, e em que sentido, somos livres, e assim por diante. Não desejamos com isso sugerir que a filosofia possa resolver esses problemas; no entanto, se ela realmente não 1 Whitehead, A. N., Adventures of Ideas, pg. 125. 12 puder, nada mais poderá fazê-lo, sendo certamente válido tentar descobrir ao menos se tais problemas podem ser solucionados. Veremos que a própria ciência pressupõe continuamente conceitos que subsumem os domínios da filosofia e, da mesma forma que nenhuma ciência pode florescer se não admitirmos tacitamente uma resposta para certas questões filosóficas, não podemos fazer uso mental adequado da ciência, com o intuito de implementar nosso desenvolvimento intelectual, sem admitirmos uma visão de mundo mais ou menos coerente. Mesmo as melhores conquistas da ciência moderna não teriam sido alcançadas se os cientistas não tivessem adotado determinadas suposições de grandes e originais filósofos, nas quais basearam todo o seu proceder. A concepção “mecanicista” do universo, que caracterizou a ciência durante os últimos três séculos, é derivada principalmente da filosofia de Descartes. Por ter ocasionado maravilhosos resultados, o esquema mecanicista deve ser, em parte, verdadeiro, ainda que parcialmente inadequado, apressando-se o cientista em buscar no filósofo o necessário auxílio para erigir novo esquema que possa substituir o antigo. Um segundo serviço inestimável prestado pela filosofia (especialmente pela “filosofia crítica”) reside no hábito, por ela estimulado, de promover-se um julgamento imparcial considerando-se todas as facetas de uma questão, e na ideia que ela oferece do que seja a evidência e de que devemos buscar ou esperar de uma prova. Pode ser esse um importante questionamento das inclinações emocionais e das conclusões precipitadas, sendo especialmente necessário, e com frequência negligenciado, em controvérsias políticas. Se ambos os lados considerassem suas diferenças políticas munidos de espírito filosófico, seria difícil admitir a eventualidade de uma guerra. O sucesso da democracia depende muito da habilidade dos cidadãos em distinguir um 13 bom de um mau argumento, não se deixando enganar por confusões. A filosofia crítica estabelece um padrão ideal para o raciocínio correto e capacita quem a estuda a remanejar argumentos confusos. Talvez seja esse a motivação pela qual Whitehead afirma, na passagem acima citada, que “nenhuma sociedade democrática poderá alcançar êxito sem que a educação geral que a inspire exprima uma perspectiva filosófica”. Na medida em que admitirmos que certa cautela é desejável ao afirmarmos que os homens não deixam de viver de acordo com uma filosofia na qual acreditam, e enquanto atribuirmos a maior parte dos desacertos humanos exatamente à falta desse desejo de sintonia com ideais mais nobres, não poderemos negar a extrema relevância de crenças gerais a respeito da natureza do universo e do bem para a determinação da progresso ou da degeneração da humanidade. Algumas partes da filosofia inegavelmente produzem resultados práticos mais expressivos, mas não devemos por isso incorrer no erro de supor que a aparente inexistência de um suporte de ordem prática para determinado campo de estudo implica que a investigação desse campo seja destituída de sentido prático. Conta-se que um cientista, que costumava jactar-se de desprezar a dimensão prática de toda pesquisa, disse certa vez a respeito de uma: “O melhor disso tudo é que ela possivelmente não revelará qualquer utilidade prática para quem quer que seja.” Todavia, essa linha de pesquisa acabou levando à descoberta da eletricidade. De modo similar, estudos filosóficos por demais acadêmicos e aparentemente destituídos de utilidade prática terminam por exercer profunda influência sobre a visão de mundo, chegando até mesmo a afetar, em última instância, a ética e a religião que adotamos. Pois as diferentes partes da filosofia, os diferentes elementos que compõem nossa visão de mundo, deveriam integrar-se. Tal é pelo menos o objetivo, nem sempre 14 alcançável, de uma boa filosofia. Sendo assim, conceitos à primeira vista muito distanciados de qualquer interesse de ordem prática podem vir a afetar de modo vital outros conceitos que envolvem mais de perto a vida diária. Podemos compreender agora o motivo pelo qual a filosofia não precisa recear a questão de ter ou não valor prático. Devo ao mesmo tempo dizer que não aprovo de modo algum uma concepção puramente pragmática da filosofia. A filosofia merece ser valorizada por si própria, e não por seus efeitos indiretos de ordem prática. E a melhor maneira de assegurarmos esses bons efeitos práticos é nos dedicarmos à filosofia pela filosofia. Para encontrar a verdade, precisamos buscá-la desinteressadamente. E o fato de a encontrarmos se revelará muito útil do ponto de vista prático. Não obstante, uma preocupação prematura com seus efeitos práticos só dificultará nossa busca do que é de fato verdadeiro. Muito menos podemos fazer desses efeitos práticos o critério de sua verdade. As crenças são úteis porque são verdadeiras, e não verdadeiras porque são úteis. 15 Sobre a Filosofia do Direito2 A filosofia, ao mesmo tempo em que é uma sistematização do pensamento, é um enfrentamento do próprio pensamento e do mundo. Tudo isso pode se aplicar a objetos específicos da própria filosofia, como o direito. E, assim sendo, a filosofia do direito nada mais é que a filosofia geral com um tema específico de análise, o direito. A filosofia do direito, sendo objeto da filosofia, não é, de modo algum, um método. Assim sendo, não se pode dizer que haja a filosofia aristotélica, a maquiavélica, a hegeliana e a dos juristas. Pelo contrário, o direito, sendo um tema, equipara-se ao rol de outros temas. Pode-se dizer então da filosofia política, da filosofia da religião, da filosofia da economia, da filosofia da estética e da filosofia do direito. A visão filosófica marxista pode tratar tanto da política, da economia, da estética, quanto do direito. Ao se dizer então de uma filosofia do direito marxista, isso se refere a um tema específico, o direito, a partir de um dos grandes métodos filosóficos estabelecidos, o marxismo. A filosofia do direito não se opõe à filosofia agostiniana, nem a filosofia política se opõe à filosofia althusseriana. Agostinho e Althusser são autores de métodos filosóficos; a política e o direito são temas. Sendo a filosofia do direito a própria filosofia geral com um objeto específico, a indagação que se põe preliminarmente diz respeito à própria localização do que seja jurídico, já que é isso que dá identidade à filosofia do direito. A especificidade da filosofia do direito Para que na multiplicidade do pensamento se 2 MASCARO, Alysson L. Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2012. 16 identifique a filosofia do direito, exige-se uma dupla especificidade: ela é um ramo específico da filosofia geral e o máximo pensamento possível sobre o próprio direito. Distinguir a filosofia do direito tanto da filosofia geral quanto do pensamento jurídico comum é a tarefa inicial da sua identificação. Filosofia do direito e filosofia A filosofia do direito, enquanto tema específico da filosofia geral, é-lhe indistinta quanto aos métodos e seus grandes horizontes. Um kantiano enxerga a religião, a sociedade, a política e o direito a partir de uma perspectiva geral que é o próprio kantismo. O mesmo a um tomista ou a um marxista. Sendo ainda filosofia, filosofia do direito não é estranha à estrutura geral do pensamento filosófico, configurando-se apenas como o aprofundamento de uma temática específica. Por conta disso, o problema inicial da filosofia do direito está na especificidade do que se possa considerar por direito. A depender dos juristas, essa questão historicamente não se resolve de modo uníssono. Para alguns, o fenômeno jurídico se circunscreve às normas estatais. Para outros, as apreciações sobre o justo também entram na composição do direito. Da parte da vida jurídica, essa não é uma resposta pronta. Mas também a filosofia do direito não se limita à resposta do jurista sobre o próprio direito, na medida em que se estende para além da compreensão média do operador do direito sobre si próprio e sua atividade. Assim, a filosofia do direito pode desvendar conexões íntimas entre o direito e a política, o direito e a moral, o direito e o capitalismo, que escapam da visão mediana do jurista. Tais limites sobre o que é o jurídico da filosofia do direito são ainda variáveis a depender da visão filosófica que 17 se adote para essa compreensão. Um kantiano trabalha com certa relação entre direito e moral, mas o foucaultiano trabalha essa relação de outro modo. Por essa razão, não se pode encerrar o jurídico da filosofia do direito em limites estreitos que não permitam dar conta da variedade de apreciação sobre tal fenômeno. Mas também não se pode perder de vista alguma referência mínima de diálogo entre as tantas apreciações sobre o que é direito, sob pena de se findar a possibilidade de uma mirada relacional e comparativa. Assim sendo, em se tratando de um objeto histórico variável socialmente e variável também a depender da visão filosófica, haverá sempre conexões entre a filosofia do direito com outros objetos específicos da própria filosofia que lhe sejam próximos e cujas fronteiras sejam porosas. A filosofia do direito dialoga diretamente com a filosofia política, na medida em que, na maior parte da história, política, direito e Estado guardaram íntima proximidade. Mas também se há de descobrir alguma ligação entre o direito e a ética, na medida da apreciação do justo enquanto virtude. Na prática, o fenômeno jurídico se espraia sobre inúmeros fenômenos, alguns mais proximamente, outros mais distantes, mas sempre com possíveis conexões. Pode-se dizer que a filosofia do direito é irmã da filosofia política, é certo, mas, embora lhe seja mais distante, quem há de dizer que seja totalmente estranha à filosofia da estética? Não há alheamento do fenômeno jurídico em relação a nenhum outro fenômeno histórico e social, e por isso também a filosofia do direito é a totalidade da filosofia, apenas contando com um eixo especificado. Por tal razão, em muitos momentos a filosofia do direito deve se socorrer de outros objetos específicos da filosofia para sua compreensão e mesmo para sua diferenciação, se for o caso. Se no passado grego clássico o direito era considerado uma manifestação política por excelência, a sua compreensão só pode ser dada em conjunto 18 com as questões da filosofia política clássica. Mas há de se lembrar que o direito era parte da paidéia, da educação grega. Assim sendo, há até nexos entre uma filosofia do direito e uma lata filosofia da educação. Filosofia do direito e direito De outro lado, além de ser um objeto específico da filosofia geral, lastreado em seus métodos, a filosofia do direito deve ser especificada em relação ao próprio pensamento jurídico. É certo que não se chama o arrazoado de uma petição inicial por filosofia do direito. Os argumentos de um juiz ao prolatar uma sentença em geral são técniconormativos, não jusfilosóficos. Mas há um campo do conhecimento técnico-jurídico que não é eminentemente casual, vinculado aos casos em disputa nos fóruns. Quando alguém transcende a análise de uma norma jurídica específica do Código de Processo Civil e se pergunta sobre o que são as normas jurídicas em geral, está dando um salto de generalização de suas reflexões. A partir de que grau esse salto consegue já se situar naquilo que se possa chamar de filosofia do direito? Durante grande parte da história, com a indistinção do direito em relação à política, à ética, à moral e à religião, os discursos mais amplos sobre o direito, que não era ainda eminentemente técnico, eram tidos por filosofia do direito. No entanto, com o capitalismo, a contar da modernidade, o direito adquire uma especificidade técnica. Ele passa a ser considerado a partir do conjunto das normas jurídicas estatais. A partir desse período, conseguiu-se construir uma espécie de pensamento que, não sendo estreitamente ligado a fatos ou normas ou casos isolados, mas sim tratando das normas, situações e técnicas jurídicas de modo mais ainda assim está adstrito ao mundo técnico-normativo. Costuma-se chamar espécie de alto pensamento jurídico por teoria geral 19 do direito. A teoria geral do direito, que na verdade não é teoria geral de todo o fenômeno jurídico, mas sim das técnicas jurídicas estatais capitalistas consolidadas a partir da modernidade, pode de modo mais exato ser denominada por teoria geral das técnicas jurídicas, ou mesmo teoria geral da tecnologia jurídica. Esse pensamento não é casual nem eminentemente ligado a uma experiência técnica específica. Ele já consegue ser geral, na medida da generalização das técnicas jurídicas no capitalismo moderno e contemporâneo.3 No entanto, ainda assim, a teoria geral do direito não salta um grau qualitativo distinto da própria lógica interna do afazer jurídico quotidiano. É verdade que a discussão sobre o conceito de ordenamento jurídico e a questão da teoria geral da relação jurídica são maiores do que a pergunta sobre o prazo para a interposição de um recurso no processo penal, mas ainda assim não logram alcançar a reflexão mais alta sobre o próprio direito em relação ao todo da história e da sociedade. A filosofia do direito é um pensamento ainda mais alto e mais vigoroso que a teoria geral do direito. Enquanto a teoria geral do direito, a partir da multiplicidade das normas, indaga-se sobre o que é uma norma jurídica estatal, a filosofia do direito indaga a respeito da legitimidade do Estado em ditar normas. De certo modo, a teoria geral do direito para nos limites internos da construção jurídica técnica. Mas a filosofia do direito pega o todo do direito nas mãos. Há uma fronteira muito tênue entre a teoria geral do direito e a filosofia do direito. Hans Kelsen, o mais importante teórico geral – dito cientista – do direito do século XX, é um pensador de rigorosa construção metodológica filosófica. Suas reflexões são teoria geral do direito e filosofia do direito, Remeto à leitura do meu livro Introdução ao estudo do direito. São Paulo, Atlas, 2011. 3 20 portanto, de um grande jurista e de um grande filósofo ao mesmo tempo. Torna-se muito difícil distinguir os momentos em que fala o teórico geral do direito dos momentos em que fala o filósofo. O mesmo se pode dizer, por exemplo, de dois outros gênios ao mesmo tempo da filosofia e do direito do século XX, Evgeny Pachukanis e Carl Schmitt. É verdade que os assuntos do direito, ao serem tratados pela teoria geral do direito, abeiram-se daquilo que possa ser a filosofia do direito. No entanto, enquanto aumento quantitativo e generalização do labor técnico e empírico do jurista, estão ainda adstritos ao campo dessa teoria geral. Enquanto salto qualitativo, na superação do encerramento técnico e na relação com o todo histórico e social, inicia-se então a filosofia do direito. Trata-se de uma distinção bastante variável e difícil, que em geral é tomada pelo jurista como uma divisão de tarefas enciclopédica. Um assunto como o da norma jurídica é tornado, quase sempre, corno assunto de teoria geral do direito – sendo ensinado, pois, na disciplina universitária da Introdução ao estudo do direito. A reflexão sobre o justo, por sua vez, se a deixa reservada à disciplina universitária chamada por Filosofia do direito. Mas não se podem estudar as duas questões como isoladas e alheias entre si, academicamente bem instaladas em duas disciplinas específicas e insulares. Na verdade, a filosofia do direito, em retrospecto, é a própria alimentação geral da teoria geral do direito e dos ramos do direito em específico. Da mesma maneira que é fluida a fronteira entre a filosofia do direito e os outros objetos filosóficos específicos, é fluida a fronteira entre a filosofia do direito e o pensamento geral produzido pelos juristas sobre suas próprias técnicas. Nesse entrecruzamento do pensamento jurídico e do pensamento filosófico levanta-se a filosofia do direito. Um pensamento de juristas ou de filósofos? 21 Sendo um objeto específico da filosofia, a filosofia do direito é uma disciplina de filósofos. Mas se dá com a filosofia do direito o mesmo que ocorre com as filosofias de objeto bastante específico. Em geral, o filósofo de formação ampla não se ocupa das questões da filosofia da música, da filosofia da educação, e muito dificilmente da filosofia da religião. O artista filósofo é que se ocupa da filosofia da música, o religioso filósofo em geral é que se ocupa da filosofia da religião e o educador filósofo é quase sempre o que cuida da filosofia da educação. O mesmo ocorre com a filosofia do direito. No mais das vezes, é o jurista filósofo que se ocupa da filosofia do direito. Quase sempre o filósofo generalista desconhece o direito. E o jurista, por sua vez, nunca se conformou em ser apenas um prático jurídico sem vislumbrar as razões maiores e últimas de sua atividade. Por isso, em várias ocasiões, a filosofia do direito acaba sendo um produto de juristas filósofos. O pensamento jurídico que transcende o nível de uma mera constatação técnica quotidiana, e portanto alcance o porte da teoria geral do direito, é sempre um pensamento de juristas, na medida em que é o jurista o operador do direito e o conhecedor de suas engrenagens. Mas, para que o jurista possa alcançar urna reflexão mais alta sobre o próprio direito, necessita do ferramental filosófico, que não é o mesmo da racionalidade jurídica técnica. A filosofia do direito, assim, alimenta urna dúplice exigência: o conhecimento profundo do direito e o conhecimento profundo da filosofia. Desde a Idade Moderna, mas em especial a partir do século XIX, o direito tornou-se um ramo muito especializado e aprofundado do conhecimento. Por isso, às pessoas de formação geral, mesmo de boa formação universitária em outras áreas, escapa uma noção suficiente do direito. Nas faculdades, o graduado em filosofia quase nunca recebe formação jurídica. Daí que a 22 dúplice exigência da filosofia do direito acaba sendo estreitada pela especificidade do conhecimento jurídico. Um filósofo geral lê filosofia do direito pelos olhos de um leigo, ou em geral pelos olhos de filósofo político que em geral é, mas um jurista que alcança a filosofia lê a filosofia do direito plenamente. Na realidade contemporânea, no entanto, a atividade jurídica e o pensamento conservador e positivista afastam do jurista uma formação profunda e ampla de filosofia. Em primeiro lugar, devido ao conservadorismo do jurista, homem geral a serviço das elites, que não querem nenhuma contestação ao dado. Em segundo lugar, devido ao rebaixamento universitário que carreia o jurista à sobrecarga do mero conhecimento de técnicas, somando informações sem perfazer, conjunto, sua formação. E, além disso, também pela estrutura mesquinha do afazer do jurista na sociedade capitalista, premido entre a atividade extenuante de seu ganha-pão que não lhe permite galgar um pensamento mais alto do que o exigido para o quotidiano e a alma contabilista que enxerga o conhecimento como lucro e não como plenitude para situar-se no mundo e transformá-lo. Se a filosofia do direito acaba sendo produto do jurista filósofo, isso não se deve a um pretenso fato de que seu caráter jurídico fosse um pensar em separado. O separado é o objeto, mas o método de pensar é o geral, estabelecido na história da filosofia e em suas possibilidades. O jurista filósofo, ao fazer filosofia do direito, é filósofo. Alguns objetos específicos da filosofia, por serem mais amplos, são mais dados ao conhecimento geral. A política, por espraiada social e historicamente a todos, acaba sendo tábua mínima do filósofo, que então é também filósofo político. A religião, como fenômeno muito recorrente aos indivíduos, também abre espaço mais facilmente à filosofia da religião. Já, em se tratando do direito, o encaminhamento a uma filosofia do direito é mais difícil. O filósofo não se ocupa, 23 ou não vê importância, ou desconhece o direito. E, ironicamente, por sua vez, o jurista também ou não se ocupa ou não vê importância ou desconhece a filosofia. Daí a abundância de juristas e o especialíssimo número de filósofos do direito. A expressão máxima da verdade do direito A filosofia do direito exercita o papel de verdade máxima sobre o próprio direito. No afazer quotidiano do processualista, considera-se que a sentença é válida se prolatada por tribunal competente. Diz-se, então, que a competência formal dá legitimidade ao mando jurisprudencial. Mas é justamente uma argumentação jusfilosófica sobre o que é legitimidade que revestirá com tal chancela de legítima a própria sentença judicial. Nesse ponto, a filosofia do direito parece ser pouco distinta da própria teoria geral do direito. Ao sistematizar o todo do pensamento jurídico, a filosofia do direito esclarece o que é dado. Mas o direito não é dado apenas no seu aspecto in terno, no seu afazer de juristas. Ele se manifesta socialmente, de modo histórico, a partir de determinadas estruturas e relações sociais. Por isso, a filosofia do direito, ao abarcar o todo do fenômeno jurídico, deve necessariamente se debruçar sobre a relação do direito com a economia, com o capitalismo, com a política, com a cultura, as religiões, as classes sociais. Ela não é só a expressão máxima do afazer do jurista – tarefa que se costuma delegar à teoria geral do direito –, mas, sim, expressão máxima do próprio direito enquanto verdade social. Os fios escondidos do direito muitas vezes o determinam mais que suas camadas visíveis aos olhos do jurista. Sabemos que as normas jurídicas são estatais, mas por que há Estado? Por que são as normas jurídicas que 24 protegem o capital? O afazer do jurista e sua totalização das técnicas não alcançam tal nível. Mas tais perguntas respondem muito mais sobre a verdade do direito do que a somatória do conhecimento parcial que não vislumbra a totalidade das relações sociais do direito. Por essa razão, a filosofia do direito se ocupa das relações sociais que são constituintes e constituídas pelo direito, e isso envolve também o campo da apreciação do direito enquanto manifestação do justo e do injusto na sociedade. O jurista positivista, no seu afazer quotidiano, afasta de suas reflexões a ocupação com o justo. Mas o justo é uma espécie de sombra do próprio direito, que o acompanha inexoravelmente, ainda que das formas mais distorcidas possíveis. De modo geral, o justo é a legitimação filosófica e ética do jurídico. Ocupar-se do justo, portanto, é uma espécie de tensão máxima à qual há de se conduzir a filosofia do direito. A filosofia do direito tomada no seu sentido conservador é tão somente a explicação e a sistematização do dado e reiterado como jurídico. Mas a filosofia do direito como original, como arrancar da verdade da entranha do direito, é maior: ela se ocupa da relação do fenômeno jurídico com a totalidade da sociedade, e não somente com a totalidade interna das técnicas jurídicas. Acima de tudo, sendo uma provocação ao direito e ao mundo, a filosofia do direito aponta as razões estruturais e o caráter injusto ou justo do direito e do próprio mundo. Dos mais altos interesses filosóficos do direito estão a relação estrutural do direito com o todo histórico e social e a preocupação com as apreciações do justo e do injusto. A pensar nos vários temas da filosofia, nos seus múltiplos ramos, como no caso da filosofia do direito, há um alto papel geral, que é o posicionamento político em face do mundo, do conhecimento, dos tempos e da estrutura da sociedade, mas também um alto papel específico que se lhe 25 acresce. Um jurista é um homem do senso comum, que age com diligência técnica mas reproduz um horizonte conservador. Um filósofo do direito que se limite a colecionar as várias visões sobre o direito não é um pensador do direito, mas um homem ilustrado e ainda conformado aos limites do próprio tempo. O filósofo do direito pleno é aquele que, de posse do conhecimento filosófico, amplia os horizontes de seu tempo. Virulento contra injustiças, aponta para o justo que ainda não existe. Em geral, na história do pensamento jurídico, o justo foi sempre tomado como uma preocupação legitimadora e conservadora. Nos tempos medievais e modernos o justo era a manutenção do já dado, não importando qual fosse esse dado, porque, para os medievais, Deus o queria, e, para os modernos, a ordem exigia conservação do já existente. Mas o arrancar da verdade última do direito e do todo social exige uma postulação crítica sobre o justo. O justo, como aquilo que não é, faz por revelar as estruturas do injusto nas sociedades existentes. A exploração capitalista, a distribuição desigual das riquezas, a indignidade, a tortura e a perseguição são exemplos daquilo que pode passar até hoje por direito, mas que deve rejeitar com virulência. O jurista médio enxerga em tudo isso norma, e portanto não se inquieta com tais situações. O filósofo do direito, arrancando o máximo de verdade do direito e da sociedade, aponta a sua tamanha injustiça. O pensar o direito em termos radicais exige o pensar a própria sociedade e a história em termos radicais, até porque as mazelas e estruturas de exploração são conexas. O vigor de pensar e apontar o injusto e o justo faz da filosofia do direito a razão que vai além. Nesse momento, o maior pensamento jurídico não é só a explicação profunda do direito, é o enfrentamento do direito e da sociedade, porque somente por meio da transformação o que é injusto poderá resultar em alguma forma de justo. Enquanto disciplina universitária, a 26 filosofia do direito é pacata e ilustrada. Enquanto verdade máxima do direito, ela é a grandeza do enfrentamento. Extraída do fundo do pensamento original e radical, crítico e transformador, a filosofia do direito é verdade jurídica maior que o próprio direito.