globalização e neo-liberalismo: obstáculos à democracia

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GLOBALIZAÇÃO E NEO-LIBERALISMO: OBSTÁCULOS À DEMOCRACIA
Fernando G. Jayme
Mestre e Doutorando em Direito Constitucional pela UFMG
Professor de Teoria Geral do Processo da PUC MINAS
Coordenador do Curso de Direito da PUC MINAS - Unidade São Gabriel
O fim da guerra fria representou, em todas as regiões do mundo, uma tendência à
limitação das funções do Estado, confiando ao mercado a solução dos problemas
do bem estar humano.
A derrocada do marxismo no leste europeu, implicou na retomada das idéias
liberais, consistentes em abolir as conquistas trabalhistas e direitos sociais,
retomando o imperialismo pleno e incontestado, sob a designação aparentemente
técnica de "globalização". Trata-se de um retorno ao mesmo esquema de poder,
nos planos interno e internacional, vigente no final do século passado e início
deste, sob aplausos praticamente unânimes em ambas as frentes.
A ausência das condições objetivas para um debate consistente possivelmente é,
para os países subdesenvolvidos, um dos piores dramas deste final de milênio e
um dos maiores obstáculos a que venham, finalmente, a constituir-se em regimes
efetivamente democráticos.
Atualmente, os Estados submetem-se às 'leis de mercado' impostas por
instituições e mercados financeiros internacionais e nacionais, no afã de receber
investimentos provenientes de empresas multinacionais que dispõem, não raro, de
mais riqueza e poder que os próprios Estados.
Os Estados periféricos, apesar de manipulados por esse sistema, sentem-se,
segundo BANDEIRA DE MELLO, "Embevecidos narcisisticamente com a própria
"modernidade", surdos ao clamor de uma população de miseráveis e
desempregados, caso do Brasil de hoje, que não tem ouvidos senão para este
cântico monocórdio, monolítica e incontrastavelmente entoado pelos
interessados."
Em decorrência, pode-se observar que desde 1986, as condições econômicas e
sociais de mais de 1 bilhão e 600 milhões de pessoas têm se deteriorado em uma
velocidade alarmante enquanto que para cerca de 25% da população mundial
estas condições melhoraram, também em um ritmo acentuado. Nas últimas três
décadas, o distanciamento entre ricos e pobres, no mundo, duplicou. Como
resultado, os 20% mais pobres da população percebem 1,4% da renda mundial
enquanto que os 20% mais ricos percebem 85%.
Em relação ao Brasil, a conseqüência das barreiras sociais e econômicas
impostas é a humilhante 74ª posição entre os países do mundo quando
considerado o índice de desenvolvimento humano (IDH). Países com muito menos
condições estruturais encontram-se bem acima na tábua de classificação, como
Argentina (35º), Chile (38º), Colômbia (em plena guerra civil, 68º), Cuba (56º) e
Uruguai (39º), para citar apenas alguns dos países latino americanos .
O estado de penúria que assola o Brasil e faz sofrer milhões de brasileiros é um
problema que inviabiliza o projeto preconizado na Constituição de formar uma
sociedade socialmente justa, através da erradicação da pobreza e da
marginalização, com a conseqüente redução das desigualdades sociais e
regionais (art. 3º, III e IV).
O impacto desta iniqüidade social, especialmente na vida dos pobres é dramático
e, para uma parte significativa da humanidade o gozo dos direitos fundamentais é
ilusório. Há considerável parcela da população, que se encontra absolutamente
marginalizada, tendo apenas presença física no território, não usufruindo de
nenhum benefício da sociedade capitalista industrializada. A situação é tão grave,
que chegou-se ao extremo de encontrar quem "extraordinariamente" sustente a
pobreza como um direito que representaria, na verdade, direito a não viver
miseravelmente, como é o caso de Fernando Barcellos em sua obra Teoria Geral
dos Direitos Humanos.
O jurista alemão MÜLLER descreve a gravidade do quadro de exclusão existente:
"não se trata mais de diferenças de classe ou de estratificação social no quadro de
uma inclusão genérica, ainda que muito desigual. Muito pelo contrário, o esquema
inclusão/exclusão sobrepõe-se como uma superestrutura à estrutura da
sociedade, também à estrutura da constituição (...) Na prática se retira aos
excluídos a dignidade humana, retira-se-lhes mesmo a qualidade de seres
humanos, conforme se evidencia na atuação do aparelho de repressão: não
aplicação sistemática dos direitos fundamentais e de outras garantias jurídicas,
perseguição física, "execução" sem acusação nem processo, impunidade dos
agentes estatais da violação, da opressão ou do assassínio. (...) O objetivo da luta
é impor a igualdade de todos no tocante à sua qualidade de seres humanos, à
dignidade humana, aos direitos fundamentais e às restantes garantias legalmente
vigentes de proteção."
As realidades política, histórica e social do Brasil se chocam com a realidade
econômica. A pujança da economia não reflete para uma parcela considerável da
população melhores condições de sobrevivência. O discurso político dominante
tenta demonstrar que esse fato decorre da inexistência de recursos disponíveis
para promover o resgate dessas milhões de pessoas que vivem na miséria.
Acontece que esse discurso é falso, o que acontece é que tais milhões de
pessoas, por não deterem o status civitatis, não interferem na constituição dos
poderes, permitindo que essa situação amoral se perpetue. A crise social e
econômica é seríssima, e na mesma proporção a insensibilidade social dos
governantes.
O Brasil entra no ano de 2002 com 14,5% da população ou 23 milhões de pessoas
no estado de miséria, sobrevivendo com menos de US$ 1,00 por dia, quantia
insuficiente para "comprar alimentos em quantidade mínima necessária à
manutenção saudável de uma vida produtiva - ou seja, algo em torno de 2000
calorias" . Esse número demonstra que o equacionamento da crise social deve ser
uma prioridade por representar ela uma violência ética contra milhões de
indivíduos que não têm condições de existência digna. Além disso, esse
contingente de pessoas alijadas da cidadania representa um problema político,
capaz de comprometer a normalidade e estabilidade das instituições
democráticas. A alegação, contudo de insuficiência de recursos não serve mais de
escusa para o Estado recusar-se a atribuir a todos condições materiais mínimas
de existência, suficientes para satisfazer os direitos à alimentação, à assistência à
saúde, à moradia, ao ensino, deixando claro que falta apenas vontade política
para a resolução deste problema.
O receituário neoliberal imposto pelo Fundo Monetário Internacional, baseado na
flutuação cambial, abertura comercial com derrubada das barreiras alfandegárias,
livre mercado, redução do déficit público e liberalização das taxas de juros,
implicou em estagnação econômica e aumento da pobreza.
Esta situação gerou, conforme denunciou o ex-Presidente da Guatemala, Ramiro
de Leon Carpio, no Fórum Governabilidad democrática y derechos humanos,
realizado em Caracas, nos dias 17 e 18/07/97, o aumento de 3000% (três mil por
cento) nos serviços da dívida externa latino-americana, que, de 770 milhões de
dólares em 1970, saltou para 22 bilhões de dólares em 1986. Com isso, "as
políticas econômicas nacionais latino-americanas se concentraram no pagamento
da dívida externa, deixando de lado os modelos nacionais de desenvolvimento
anteriormente existentes; por sua vez, os credores endureceram suas políticas
através do Fundo Monetário Internacional, de forma que se um país não cumpre
com as exigências, é ameaçado com o isolamento e o castigo financeiro
internacional" . Diante deste quadro de absoluta submissão à globalização, é fácil
descobrir a razão pela qual não há recursos disponíveis para investimentos
sociais.
O próprio Ramiro de Leon Carpio, afirmou que a conseqüência dessa política foi
uma crise econômica profunda, que, ao estagnar a possibilidade dos Estados
desenvolverem-se produziu o aumento da miséria . Os resultados deste modelo
impedem que os países latino-americanos cresçam o suficiente para gerar
recursos necessários para erradicarem a pobreza e, por conseguinte, possibilitar
condições materiais dignas de existência a suas populações.
Na II Cúpula Mundial de Desenvolvimento Social, realizada em São Paulo, em
1996, o Secretário Executivo da CEPAL (Comissão Econômica para América
Latina e Caribe), ao analisar o modelo econômico construído a partir de 1991, no
'Consenso de Washington', afirmou que a diminuição da pobreza e integração
social deixam muito a desejar, uma vez que "A desigualdade social e o
desemprego se agravaram na América Latina porque o padrão de
desenvolvimento que tende a se consolidar na região não gera postos de trabalho
suficientes."
O receituário neoliberal desconsidera o fato de que a realização dos direitos
fundamentais depende em grande medida da atuação estatal. Com efeito, o
Estado não deixou de ser o responsável por assegurar a realização destes
direitos. No Estado democrático a busca do bem comum consta em sua Carta de
Princípios, que é a Constituição. Ela consagra os compromissos de participação
efetiva do povo no destino político do país e o de promoção dos meios
necessários para propiciar ao ser humano uma vida digna.
A democracia se afirma na proclamação e reconhecimento da soberania popular,
sendo indispensável, no magistério de BANDEIRA DE MELLO, "que os cidadãos
tenham não só uma consciência clara, interiorizada e reivindicativa deste título
jurídico político que se lhes afirma constitucionalmente reconhecido como direito
inalienável, mas que disponham das condições indispensáveis para poderem fazêlo valer de fato. Entre estas condições estão, não apenas (a) as de desfrutar de
um padrão econômico-social acima da mera subsistência (sem o que seria vã
qualquer expectativa de que suas preocupações transcendam as da mera rotina
da sobrevivência imediata), mas também, as de efetivo acesso (b) à educação e
cultura (para alcançarem ao menos o nível de discernimento político traduzido em
consciência real de cidadania) e (c) à informação, mediante o pluralismo de fontes
diversificadas (para não serem facilmente manipuláveis pelos detentores dos
veículos de comunicação de massa)".
A dignidade humana só se tornará realidade quando todas as pessoas estiverem
livres da miséria, mediante a criação de condições de desenvolvimento capazes
de propiciar a todos o acesso a direitos econômicos e sociais, da mesma forma
que, atualmente, assegura-se o exercício de direitos civis e políticos. Veja-se, a
propósito, a lição de TRINDADE :
"o enfoque integral dos direitos humanos tem sido invocado precisamente para
lograr uma proteção mais eficaz dos direitos econômicos, sociais e culturais,
sempre que também se invoque uma violação da cláusula da não discriminação
consagrada nos tratados de direitos humanos. [...] O reconhecimento da dimensão
social dos direitos humanos, a partir do próprio direito fundamental à vida, abre
amplas possibilidades no combate à pobreza extrema mediante a afirmação e
vigência dos direitos humanos."
O direito à liberdade, à segurança pessoal e à busca da felicidade constituem
apanágio do ser humano e são contemplados na definição dos direitos
fundamentais, considerados indivisíveis, ou seja, direitos civis, políticos,
econômicos, sociais e culturais são direitos indissociáveis e têm por fundamento a
integridade da pessoa humana. A realização da dignidade humana só se faz
mediante a promoção plena e permanente de todos estes direitos.
Desta forma, para cumprir com sua missão constitucional, o Estado deve orientarse pelo princípio da dignidade da pessoa humana e comportar-se de duas formas,
de acordo com a natureza dos bens jurídicos que assegura, isto é, a liberdade ou
os direitos fundamentais. Com vistas a assegurar as liberdades individuais, o
Estado não atua, preservando a esfera privada das pessoas, que não pode ser
arbitrariamente invadida. Para implementar os direitos fundamentais, o Estado
atua positivamente, executando ações efetivas para concretizá-los.
A incúria estatal na realização dos direitos fundamentais, nos convoca, sob a
égide da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, ao exercício da
cidadania. Nesta Carta de Princípios estabelece-se o compromisso de todos
perante a comunidade, o que significa o dever de agir, uns em relação aos outros,
com espírito de fraternidade. Trata-se de uma convocação para a atuação do
jurista, principalmente, com responsabilidade social, porquanto lhe cabe
estabelecer os limites do juridicamente válido, restringindo o arbítrio, e, enquanto
agentes transformadores da realidade social têm condições de contribuir para que
as normas jurídicas aprovadas sejam aplicadas e interpretados no interesse da
sociedade.
Essa atuação construtiva a cargo do jurista deve ser intensificada, uma vez que
não se refere a atuações isoladas senão a condutas permanentes realizadas no
interesse geral, voltadas à construção da sociedade fraterna e justa preconizada
na Constituição.
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