DURKHEIM: UMA BREVE VISÃO Magda Regina Ribeiro Braga Pedagoga Luciane Selegar INTRODUÇÃO Ao efetuarmos qualquer tipo que seja de análise sobre a obra de pensadores influenciados pela filosofia iluminista, assim como o foi Durkheim, é preciso ter sempre em conta, de forma bem delineada, a crença havida de que o avanço da humanidade, no rumo do aperfeiçoamento, tem as suas normas ditadas por uma força muito forte, senão intransponível, qual seja, a lei do progresso. Recebeu o pensador ainda, influência de outras escolas, muito embora tenha atuado não por uma base de condução distinta em seus conceitos, mas tratou de reorganizar e de fundir muitos desses conceitos, no rumo da busca e da criação de um sistema totalmente novo, permitindo-se o exercício da crítica e da contestação a certas tendências intelectuais dominantes em sua época. Para Durkheim, a sociedade não é somente o produto da soma ou da justaposição de consciências, de ações e de sentimentos particulares, de maneira que ao misturarmos tais ingredientes, por associação, por combinação ou por fusão, estaríamos assim propiciando o nascimento de algo novo e ainda, de algo externo às consciências em questão. Em sua lógica particular, ainda que o todo seja composto pelo agrupamento das partes, tem também aí origem, uma série de fenômenos que dizem respeito ao todo diretamente, e não às partes que o compõem somente. A sociedade, desse modo, é mais do que a soma dos indivíduos que dela fazem parte, podendo compreender-se a sua gênese somente ao considerarmos o todo e não as partes individualmente. A Especificidade do Objeto Sociológico A força surgida dos sentimentos imanentes à constituição da sociedade de um modo geral, suplanta a força particular dos indivíduos e esta, por sua vez, surge não só da união destes indivíduos contemporâneos num único corpo social, mas também pela colaboração de indivíduos de gerações anteriores que, de uma forma histórica ou não, acabaram por intermédio de suas construções, vindo a auxiliar na modelação do reflexo social surgido no hoje, no presente. Para Durkheim, todo o modo de agir permanente ou não, que possa exercer alguma forma de coerção externa ao indivíduo ou ainda, que por apresentar existência própria, independente das manifestações individuais que possa ter e, por isso, com sentido geral na extensão de uma sociedade, são denominados de fatos sociais. Os fatos sociais são criados a partir da maneira como a sociedade percebe a si mesma e ao mundo ao seu redor, só podendo eles ser explicados por intermédio dos efeitos sociais que produzam. Para tanto, utiliza-se a sociedade, como formas de linguagem, de suas lendas, de seus mitos, de suas concepções religiosas, de suas crenças morais, etc. As representações coletivas são, segundo Durkheim, (...) o produto de uma imensa cooperação que se estende não apenas no espaço mas no tempo também; para fazê-las, uma multiplicidade de espíritos associaram-se, misturaram e combinaram suas idéias e sentimentos; longas séries de gerações acumularam nelas sua experiência e sabedoria. Uma intelectualidade muito articular, infinitamente mais rica e mais complexa do que a do indivíduo está aí concentrada. Isso é bastante significativo, visto que coloca o resultado, por assim dizer, aquilo que desemboca no que somos no momento presente como sociedade, ou ainda, como nos vemos, e ultrapassa o limite temporal, em sua teoria, uma vez que somos colocados como sendo o reflexo de uma série de idéias e de ações advindas dos mais variados desdobramentos sociais, tidos inclusive por gerações passadas, nos mais variados tempos históricos. A construção de nosso modelo social ou de nosso modelo de atuação particular e também de regramento coletivo, passam pela construção que socialmente se tenha feito nos mais variados períodos históricos. A riqueza que possamos ter inserido em nosso contexto social, intelectual ou de sabedoria, moral ou mesmo de desenvolvimento econômico, é dependente, por um lado, da construção que tenha sido possível às gerações anteriores a nossa, de terem levado a termo. Têm, alguns dos fatos sociais, um formato já bem definido em seus contornos, as chamadas maneiras de ser sociais, como as regras da esfera jurídica, por exemplo, ou as regras morais, os dogmas religiosos e os sistemas financeiros, o sentido seguido pelas vias de comunicação e, mesmo, o estilo das construções, da moda e a própria linguagem escrita. As maneiras de ser e os modos de agir exercem uma coação no sentido de que o indivíduo rume por determinadas condutas e ou por determinadas maneiras de sentir. São uma realidade objetiva e externa a eles e, como os fatos sociais que são, têm a capacidade de influenciar e de arrastar, por assim dizer, a esse indivíduo. A ação que vise transformar uma realidade, inovando, de encontro aos fatos sociais, apresenta-se em seu resultado mais comum, como um sinal de que se está tentando algo impossível, por não depender da força do indivíduo uma tal ação, podendo inclusive, que esteja ele indo de encontro à sanção, na medida em que se aproxime de alguma espécie de violação do padrão social. A maior dificuldade que pode o indivíduo encontrar, uma vez esteja imbuído do desejo de ir de encontro aos costumes, é a reação inversa exercida pelas forças morais, que se fazem presentes por intermédio de sua esmagadora superioridade de forças, em realidade uma proteção criada pela sociedade, a que os indivíduos não possam, exclusivamente por si mesmos, modificá-la sem a existência de uma real necessidade. Ainda assim devemos considerar que as modificações são possíveis, uma vez que possa o indivíduo, unir-se a outros, se combinados no rumo e no sentido de um mesmo objetivo e ainda, que possam eles vir a constituir um fato ou um produto totalmente novos. A Dualidade dos Fatos Morais A autoridade proveniente das regras morais postula a noção do dever em um primeiro momento e, muito embora o seu perfeito cumprimento se dê com o esforço pessoal do indivíduo, surge como desejável em um segundo momento. A sociedade, por exemplo, embora seja dotada de um poder coercitivo sobre nossas atuações particulares, traveste-se de protetora, e passamos a desejar tudo o que ela deseja, isto é, vamos tomando como sendo nossos ideais particulares tudo aquilo o que ela sociedade, tomou como sendo seus ideais, para o coletivo. Segundo Durkheim, (...) ao mesmo tempo que as instituições se impõem a nós, aderimos a elas; elas comandam e nós as queremos; elas nos constrangem, e nós encontramos vantagens em seu funcionamento e no próprio constrangimento. (...) talvez não existam práticas coletivas que deixem de exercer sobre nós esta ação dupla, a qual, além do mais, não é contraditória senão na aparência. Isso reporta-nos ao sentido da existência de uma realidade autônoma, ou seja, dotada de uma vida e de uma vontade próprias, com superioridade latente sobre os indivíduos e mais perfeita do que eles, anterior e posterior a eles, independente deles e com o poder de autoridade sobre eles, de forma que mesmo em os constrangendo por intermédio do exercício de seu poder de coerção, eles, os indivíduos, ainda assim a amam, por verem-na como sendo sumamente necessária. A vida social deve, portanto, ser constantemente estimulada à união e aproximação dos indivíduos, com a intenção de, por reforço dos ideais comuns, manter a coesão e o rumo geral. O Método de Estudo da Sociologia Segundo Durkheim A primeira regra estabelecida por Durkheim para a observação dos fatos sociais pelos sociólogos é considerá-los como coisas. Para tanto, deve-se afastar sistematicamente as prenoções (sic); definir previamente as coisas de que trata por meio de caracteres exteriores que lhe são comuns; considerá-las independentemente de suas manifestações individuais, da maneira mais objetiva possível. Em resumo, analisar os fatos sociais como coisa e tomá-los como uma realidade externa. O sociólogo deve considerar que se acha frente a coisas ignoradas porque, nas palavras de Durkheim, (...) as representações que podem ser formuladas no decorrer da vida, tendo sido efetuadas sem método nem crítica, estão destituídas de valor científico e devem ser afastadas. Ao cientista cabe examinar aos atos e aos fatos, bem como aos desdobramentos deles oriundos, com os olhos inquiridores e isentos, libertando-se de vez das falsas evidências, porque são elas criações de fora do campo científico, mas que, diretamente influem na paixão do observador sobre os objetos morais que se põe a examinar. Ao não atuar desse modo, não pode o cientista vir a formar um juízo conceitual perfeito, uma vez que esteja ele se distanciando do real conceito técnico, tão necessário que é à formulação pura dos mais variados questionamentos, embotando o seu juízo pelo fato de então estar identificando-se com a coisa analisada ou observada. Coesão, Solidariedade e os Dois Tipos de Consciência A solidariedade social é a grande responsável pela coesão surgida entre os indivíduos, que os mantém em sociedade, lutando contra as ameaças externas. Teríamos, portanto, duas consciências, uma individual, representando-nos no que temos de mais pessoal e distinto e uma outra, comum a todo o grupo de seres humanos, a sociedade que age e que vive em nós. Por intermédio da instrução pública, consegue-se que o indivíduo, construindo sua consciência comum, social, supere a si mesmo, libertando-se de visões puramente egoístas e interesses materiais imediatistas. É o estabelecimento de uma consciência coletiva, para Durkheim, um conjunto das crenças e dos sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma sociedade (que) forma um sistema determinado que tem vida própria . Tanto maior será a consciência coletiva, quanto maior for a coesão existente entre os componentes de uma sociedade, embora de antemão se saiba da impossibilidade da existência de uma uniformidade absoluta ou total. Nas sociedades em que predomina uma acentuada divisão do trabalho, o relacionamento social acaba por estabelecer uma dependência de uns indivíduos para com os outros, basicamente fundada na especialização de tarefas. Os Dois Tipos de Solidariedade A solidariedade, o conjunto de laços que efetivamente prendem os elementos ao grupo, pode ser de dois tipos: a solidariedade orgânica, aquela onde os indivíduos são solidários uns com os outros basicamente devido às semelhanças existentes entre si; onde não se pode mesmo diferenciá-los a ponto de chamá-los de indivíduos, no sentido exato do termo; onde a educação é difusa, não havendo a figura de mestres, e as idéias comuns ultrapassam em número e em intensidade as idéias e as tendências individuais; onde não há reciprocidade nas relações. E a solidariedade mecânica, aquela em que o indivíduo está diretamente ligado à sociedade, sem que haja intermediário; apresenta-se como um conjunto mais ou menos organizado de crenças e sentimentos comuns a todos os componentes; é o tipo coletivo. Na concepção de Durkheim, o modelo perfeito de sociedade na qual a coesão resulta (...) exclusivamente das semelhanças compõe-se de uma massa absolutamente homogênea, cujas partes não se distinguiriam umas das outras. É um agregado informe, uma horda, pertinente a composição de sociedades simples (ou inorganizadas), onde a individualidade apresenta-se de uma forma rudimentar, e o coletivo, apresenta-se bastante desenvolvido. Desse modo, tem-se que os membros de uma sociedade organizada de forma simples sejam solidários em função de terem uma esfera própria de ação, uma tarefa e ainda, pela existência de um nível bastante grande de interdependência, no tocante à sobrevivência individual. Os Indicadores dos Tipos de Solidariedade Para Durkheim, há predominância de determinadas normas do Direito como indicador da presença de um ou de outro tipo de solidariedade, uma vez que não pode esta solidariedade ser diretamente observada. O crime, com efeito, é provocador de uma ruptura nos elos de solidariedade, e sua reprovação confirma e torna claros os valores e os sentimentos de cunho comum. A vingança social vai de encontro ao agressor, na mesma proporção em que tenha ele violado uma crença, uma tradição, uma prática coletiva, um mito ou qualquer outro elemento essencial à garantia da coesão daquela sociedade. A penalização, por sua vez, visa evitar, antes de apresentar-se somente como sendo uma crueldade, a fragilização da coesão de uma determinada sociedade. É uma forma de auto proteção criada, uma vez que a punição é voltada a uma ofensa que transcende o indivíduo. A Sociedade Agindo Sobre o Indivíduo Segundo Durkheim, textualmente, (...) considerando que o suicídio é um ato da pessoa e que só a ela atinge, tudo indica que deva depender exclusivamente de fatores individuais e que sua explicação, por conseguinte, caiba tão somente à psicologia. De fato, não é pelo temperamento do suicida, por seu caráter, por seus antecedentes, pelos fatos da sua história privada que em geral se explica a sua decisão? Para ele a causa principal geradora do suicídio é exterior ao indivíduo, existindo em cada grupo social, uma inclinação de ordem coletiva para o suicídio, e daí é que derivam as inclinações particulares. Isso equivale a que o suicídio do indivíduo tem a sua causa básica no âmbito da sociedade, ou seja, origina-se no meio que o rodeia. O que chamamos de causa imediata do suicídio de alguém, não passaria de um eco do estado moral apresentado pela sociedade. As causas do suicídio são objetivas, exteriores aos indivíduos, culminando por estimulá-los ou mesmo por detê-los no ato. O suicídio egoísta tem como suas causas básicas os estados de depressão, de melancolia, e a sensação de desamparo moral provocados pela desintegração social. Os suicídios altruístas, por outro lado, são aqueles praticados por enfermos ou pessoas que chegam à beira da velhice, ou seja, por quem já não encontre mais fundamento para que esteja vivendo. O suicídio anômico é aquele tipo de suicídio surgido de um estado de desregramento social, no qual as normas de conduta se fazem ausentes ou onde já não são mais respeitadas. Moralidade e Anomia Só se detêm, ou se refream as paixões humanas, frente a um poder moral que os indivíduos respeitem, diz, com propriedade, Durkheim. Para ele a busca da reconstituição tanto da solidariedade como também da moralidade integradoras são questões primordiais nas sociedades industriais. Uma parte ao menos, da responsabilidade nas desigualdades surgidas, bem como nos níveis surgidos de insatisfação dentro das sociedades modernas, é oriunda de uma divisão anômica do trabalho e das várias anormalidades por ela provocadas. Na teoria apresentada por Durkheim, uma vez que a divisão do trabalho representa um fato social, o seu efeito primordial seria o de produzir mais solidariedade, e não o de simplesmente aumentar o rendimento das funções divididas. Via ele que, a simples divisão do trabalho, deixava de cumprir o seu papel moral, qual seja, o de tornar solidárias as funções divididas, tornando-se diluente da coesão pretendida, tirando inclusive a moderação necessária à competição existente na vida social e deixando de favorecer uma pretendida harmonia entre as funções. Segundo Durkheim, sobre hereditariedade: (...) Será, portanto, necessária ainda certa disciplina moral para forçar os menos favorecidos pela natureza e aceitarem o que devem ao acaso de seu nascimento. CONCLUSÃO A sociedade, na teoria sugerida por Durkheim, é formada não só pela simples junção de indivíduos de toda espécie, mas por algo bastante mais profundo e complexo, sugerido por uma atuação de interação entre esses indivíduos e pelo inter-relacionamento que possam eles ser capazes de produzir, não só no que diz respeito ao tempo presente, mas considerando-se também o relacionamento estabelecido pelas gerações, umas com as outras. O modelo social é, então, uma complexa modelação ou ainda, uma construção permanente, onde os colaboradores são não só os indivíduos das mais variadas origens, mas também os indivíduos dos mais variados períodos históricos imagináveis, a ponto de virmos a ser hoje, o resultado social da construção feita por nossos ancestrais. A aproximação entre os indivíduos deve ser estimulada, com a intenção de se poder dinamizar a formação de mecanismos de coesão, e que possibilitem ainda, tornar distinto o rumo geral pretendido. As instituições, bem como a autoridade advinda das regras morais, impõem-se ao indivíduo, sem que possam, contudo, deter um possível movimento humano transformador da realidade. Desse modo, mesmo a rigidez estabelecida, seja por mecanismos sociais, seja por regramentos éticos, é possível de ser modificada, uma vez exista uma combinação de idéias e de sentimentos dirigidos a um mesmo rumo. A pena é, para Durkheim, um mecanismo desenvolvido pela sociedade com o fito de punir aqueles que eventualmente tomem atitudes ou que tenham comportamentos que possam ser entendidos como ameaça ao equilíbrio estabelecido e ou determinado por esta mesma sociedade. O suicídio, por sua vez, tem causas objetivas e exteriores aos indivíduos, sendo considerado como um reflexo advindo do seio do estado moral da sociedade. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA 1 QUINTANEIRO, Tania; BARBOSA, Maria Ligia de Oliveira; OLIVEIRA, Márcia Gardênia de. Um Toque de Clássicos: Durkheim, Marx e Weber. Belo Horizonte, editora UFMG, 1996.